“Tell me why I feel like there's no way out
Trying hard to heal as the pain pours out”
Às sete da noite do domingo tudo o que Susannah conseguia pensar era no quanto estava arrependida. Na verdade, talvez não fosse arrependimento, já que de modo algum pensaria em voltar para casa, mas Des Moines a assustava. As pessoas, os barulhos ininterruptos, as ruelas vazias, o trânsito... Tudo era tão desconhecido, tão assustador, e ela não estava acostumada com tudo aquilo. Odiava, agora mais que nunca, o fato de ter sido criada como uma garotinha tola, sempre dependente de tudo e todos. Sentia-se como uma deficiente física jogada ao relento ou como uma criança sendo forçada a viver sozinha uma vida adulta.
Chegara à cidade pouco depois das sete da manhã e despediu-se do homem sem mesmo perguntar seu nome. Andara sem rumo por tanto tempo que já sentia as pernas arderem. Não sabia o que fazer. Pensara tanto em fugir, em conseguir sair de casa, que não teve tempo de planejar o que fazer após chegar à capital.
Ela se recusou em gastar seu pouco dinheiro com comida, então só o que lhe restava agora era uma maçã e um o pacote de cookies. Sentia sede e frio. A manhã fora ensolarada e calorenta, mas assim que o sol se pôs a noite tornou-se fria e o ar seco, fazendo Susannah tossir e os olhos lacrimejarem de irritação.
Aos poucos ela começava a sentir o desespero chegar. Procurara um lugar para dormir, mas tinha medo de se deitar a céu aberto. Buscara um quarto para alugar, mas, ou eram muito caros, ou não valiam a pena. Com a grana que tinha na carteira, era capaz que, mesmo se dormisse em um quarto aquela noite, talvez no dia seguinte fosse obrigada a buscar um viaduto para se abrigar.
Parara para pensar no quanto ela precisava arranjar dinheiro, imediatamente. Chegou a tentar, com muita vergonha, perguntar se precisavam de empregados numa lojinha de conveniência de posto, mas negaram-lhe. Sentia-se cada vez mais perdida e inútil.
Cansada de perambular e raciocinar sobre sua atual situação, deixou que suas pernas a levassem até um beco largo e iluminado por postes de luz amarela. Mal notou o quê ou onde era. Abatida pelo desânimo e o cansaço tentou esconder-se nas sombras e esticou-se ali no chão mesmo, recostando-se à parede fria. Não havia mais opções.
A exaustão era tamanha que só notou que chorava quando as lágrimas mornas deslizaram pelas bochechas. E por fim, mesmo tentando não se entregar, adormeceu.
* * *
— Ela fede um pouco.
— Isso não importa. Veja se ela está drogada.
Susannah sentiu toques alheios e estranhos subindo-lhe pelas coxas, puxando-lhe as roupas. Os olhos custaram a abrir com a secura e arderam quando foram tomados pela luz da rua. Em cima dela, não conseguia ver rostos, mas vultos contra a luz. Ainda se sentia grogue demais para agir.
— Ela está acordando! Merda, ela tá consciente!
— Saia!
Susannah sentiu uma repentina falta de ar e a visão ser tomada por um par de olhos estranhos, fundos e famintos. Eram escuros, emoldurados por olheiras, e estavam muito próximos dos dela. O estranho tapou sua boca com força e a outra mão grosseira apertou sua garganta. Agora ela se debatia e tentava fazer o possível para se libertar. Sua mente não conseguia nem mesmo raciocinar, apenas seu instinto agia no momento. A imagem do canivete relampejou em sua cabeça e ela debateu os braços para buscar a mochila, mas fora impedida pelo homem de pé.
— Shhh, calma! — o que a prendia com as mãos sorria debilmente. — Calma, hoje é meu aniversário, faça-me um pequeno favor, certo?
Aniversário. Seu estômago embrulhou-se somente com a lembrança.
Susannah conseguiu morder um dos dedos dele com força e sua garganta, assim que a outra mão se afrouxou, berrou por ajuda num eco rouco.
— Cala a boca! — ela só sentiu o ardor súbito tomar-lhe a bochecha direita e a queimação continuar. — Vadia.
Ela preferiu fechar os olhos. O rosto do jovem a nauseava e ela tentava esvaziar-se de qualquer tipo de sentimento. Não havia nada que pudesse fazer, sentia-se impotente, dominada. Deixava-se ser levada pelo cheiro de álcool no hálito dele, o que a fazia lembrar de seu pai.
— Hey! Que merda é essa? — uma terceira voz soou na rua.
— Vai embora! — o que prendia a garota gritou de volta. — Vai embora daqui!
— O que vocês estão... — houve uma longa e silenciosa pausa antes do baque ressoar.
Sussanah não abriu os olhos nem depois de sentir que o rapaz havia saído — ou arrancado, não soube dizer — de cima dela. Seus pulmões batalhavam buscando ar, arfando e tossindo. Sentiu gosto de ferrugem na boca, mas não havia sangue. Sua cabeça rodou, seus ouvidos captavam gritos e xingamentos, mas não conseguiu abrir os olhos. Sentiu a cabeça rodar e desfaleceu por alguns segundos.
Foi muito rápido, como tomar um choque ligeiro, mas para ela parecia que fora sido “desligada” por muito tempo. Seu corpo logo voltou a responder. A primeira coisa que ressoou em sua cabeça a fez despertar de vez.
— Chama a porra da ambulância, Sid!
Seus olhos abriram imediatamente após ouvir o pedido de ambulância. Sua consciência sabia que ela não podia ser levada a hospital algum, seus pais possivelmente estariam procurando por ela sabia que hospitais eram uma das primeiras paradas de policiais em busca de garotas desaparecidas. Ela cambaleou ainda tonta e tentou se erguer nas pernas fracas.
— Ei! Ei, espere! Você está bem?
Susannah piscou algumas vezes e encheu o pulmão de ar. Conseguia ficar de pé. Percebeu que os olhos que a fitavam no momento eram completamente diferentes do par anterior. Estes eram de um azul que, na luz do ambiente, pareciam acinzentados e sinceros.
— Não precisa de ambulância. — murmurou ainda sentindo a garganta arranhar. — Eu estou bem.
— Você precisa ir para um hospital. E a polícia vai querer falar com você, para ver se consegue se lembrar da feição deles...
— Não. — gemeu. — Não, eu não quero.
Ela se abaixou para recolher seus pertences do chão e se esforçou para fazer suas pernas doloridas caminharem para longe dali.
— Espera. — o homem impediu-a de continuar, aproximando-se mais. — Qual é o problema? Você não quer falar com a polícia?
— Não. — ela fez uma pausa ajeitando a mochila nos ombros. — Mas eu não sou uma fugitiva por causa disso.
— Não disse que era. — ele continuou, sério. — Tem certeza que está bem?
— Sim.
Ele não parecia satisfeito com a resposta. Suas sobrancelhas loiras quase invisíveis franziam-se numa linha reta.
— Você aceita um copo d’água, pelo menos?
Aceitou, é claro. A sede e a secura de sua boca chegavam a ser doloridas.
Ela seguiu o rapaz que entrou em uma das portas do beco, entrada de uma pequena loja de CDs e vinis. Ao fundo, outro homem pendia ao telefone e coçava a testa, confuso.
— Não precisa mais, Sid. — o mais baixo enfiou o dedo no gancho, finalizando a chamada. — Ela pediu para que não chamasse a ambulância.
— Tem certeza? — ele perguntou à garota com a testa mostrando rugas de apreensão. — Você desmaiou.
— Eu estou bem. — repetiu. — Obrigada.
O outro sacou do frigobar uma garrafa de água e a entregou, oferecendo também para que ela se sentasse num velho sofá atrás do balcão. O meio litro de água esvaziou-se num piscar de olhos. Ela arfou, satisfeita e enxugou a boca com a manga do moletom cinza. Voltou-se aos olhos curiosos e sentiu-se desconfortável em estar sendo observada.
Ambos eram tatuados até onde não se podia mais ver. O mais estranho tinha uma tatuagem no rosto próximo ao olho e cabelo raspado bem rente, deixando somente uma espécie de moicano pintado de vermelho pendendo no meio da cabeça. O outro, alguns centímetros mais baixo que o colega, exibia o mesmo padrão de corte, mas a parte raspada era mais baixa e o moicano de um loiro cinza escuro. Tinha uma barba meio ruiva por fazer.
— Algum problema em nos dizer por que você não quer ir ao hospital?
“Não confie em estranhos” ressoava em sua cabeça a todo o momento, mas por mais esquisitos que eles parecessem, talvez fossem muito mais confiáveis que qualquer outra pessoa de aparência comum naquela cidade.
— Eu... — balançou a cabeça. — É que a polícia deve estar me procurando. Eu saí de casa.
— Por quê? — perguntou o de cabelo vermelho.
— Longa história.
— Não acha que seus pais precisam saber onde está? — o outro cruzou os braços na frente do corpo. — Afinal, você é menor de idade.
— Não sou. Já passei dos vinte e um, inclusive. Tenho identificação, se quiserem confirmar.
— Sim, por favor. — o mais baixo aceitou o documento que ela ingenuamente fisgou da carteira. — Não dá para acreditar. Eu jurava que você era muito mais nova... Isso não é uma falsificação, é?
Ela conseguiu sorrir levemente antes de tomar seu documento de volta.
— Então, Susannah, — ele enfatizou o nome dela como se acreditasse que este fosse inventado — não sei o que aconteceu para você fugir de casa, mas a gente pode te ajudar no que precisar. Se quiser, é claro. Aliás, este aqui é o Sid e eu sou o Corey. — finalizou estendendo uma mão amigável para o cumprimento e no rosto um sorriso amistoso.
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