O silêncio ecoou na cozinha.
Daniel engoliu em seco ao escutar as palavras de Julie, suaves aos seus ouvidos.
Nessas horas ele acreditava veemente que o coração não parava de pulsar após a vida . Apenas isso explicaria a sensação entorpecedora que repassava pelo seu corpo , como se suas terminações nervosas reagissem ao descompasso do coração.
Ela teria realmente expressado o que ele havia entendido ? Não, não podia ser.
Tinha que parar de ver coisas onde não existiam. Ela não estaria bem simplesmente porque ele voltou , era utópico demais pensar assim.
Suspirou cansado.
Julie... por que tem de ser tão difícil?
Fechou os olhos com força. Precisava se desligar do que sentia e dar lugar a razão.
Queria ter o poder de sufocar aqueles malditos sentimentos , mas infelizmente não tinha.
Pelo menos ela estava bem , e isso sem dúvida era o que mais importava.
- É um alivio saber disso , por um momento achei que ia surgir um rio aqui – Comentou o fantasma com ar de riso, fugindo de seus próprios pensamentos . Ao fundo escutou uma pequena risada dela. – Mas já está tarde , é melhor você ir deitar – Falou soltando-se do abraço, relutante. – Seu pai iria achar estranho chegar na cozinha e ver você abraçando o vento – Diz ele com um sorriso de canto.
Era bom fazer piada disso , mesmo que às vezes a realidade batesse a porta. Ele , assim como boa parte dos fantasma , sentiam-se um nada . Quem sabe uma lembrança de algo que já foram um dia. E no fim , a invisibilidade era apenas um reflexo da verdade.
A garota olhou-o um pouco desnorteada . Lábios, nariz e bochechas avermelhadas devido o choro recente. Não queria deixar o abraço caloroso do fantasma , mesmo que ele tivesse razão.
- Você sabe que eu não ligo – Julie fala arqueando uma das sobrancelhas , falhando ao tentar esconder o sorriso.
Já de pé , ele sorri , estendendo uma das mãos na direção dela.
- Vamos , Julie. Não seja teimosa – Daniel chama fingindo estar sem paciência .
Ela assente a contragosto , segurando a mão que ele estendia. As pernas bambas e um pouco dormentes pela posição fixa fizeram Julie segurar uma expressão de incômodo ao levantar-se , cambaleando para frente de modo involuntário.
Ela para ao trombar-se com o corpo do fantasma , que em reflexo a segura pelos ombros , causando-lhe um pequeno susto pelo contato.
Julie olha para cima , encarando Daniel a poucos centímetros de distância. O coração parecendo não entender que seu lugar era dentro do corpo.
Ao fundo ela escuta o baque da geladeira se fechando depois dela ter se esbarrado acidentalmente nele , e tenta ignorar o desespero interno pela conta de luz que chegaria em pouco tempo.
Tinha esquecido a geladeira aberta.
Não atentando-se a esse fato no presente momento , Julie agora percebia que eles estavam mergulhados na completa falta de luz. A garota pisca os olhos tentando acostumar-se ao breu.
Olhando para Daniel , conseguia ver de perto como seus olhos brilhavam ao olhar para ela , mesmo com a escuridão fazendo-se presente. Inspirou, quase que sentindo o ar faltar aos pulmões.
Por que você tem que me olhar assim? Pensava sem conseguir desviar das orbes escuras à sua frente.
Daniel engole em seco ao perceber Julie lhe fitar com tamanha atenção. A garota parecia não saber a influência que tinha sobre ele. Parecia que a noite , ironicamente , havia lhe reservado um looping de emoções.
Por um milésimo de segundo Julie olha para os lábios dele , mas logo se afasta alguns passos rapidamente , cruzando os braços na frente do corpo. Sentia-se assustada com o próprio pensamento.
Daniel estreita os olhos na direção dela , sem conseguir ver com clareza suas expressões. Não entendia a repentina mudança da garota.
Não. Eu não pensei isso. Falava Julie à sua consciência, mesmo que as bochechas ruborizadas e o nervosismo palpável provassem o contrário . Nessas horas só podia ser grata pela falta de luz.
Inspirou com dificuldade.
Como seria beijar um fantasma ?
Bia certa vez havia se indagado sobre isso em voz alta , e agora abruptamente aquilo havia surgido em sua mente. Como um estalo , ou melhor , como algo indesejado. Não queria pensar naquilo , apenas viu-se olhando para ele e de repente...
Respira , Julie. Não pira. Era o que repetia consigo , sentindo o coração agitar-se dentro de si.
Tentava se convencer que era a carga emocional ocasionada pelo stress , só podia ser. Foram tantos dias preocupada com o paradeiro do fantasma , que agora ele não saía da sua mente . Era isso. Estava até imaginando bobagens.
Deixou um suspiro baixo escapar .
Agora tinha Nicolas , a pessoa que sempre sonhou ter ao seu lado . A pessoa para qual ela sorria abobalhada quando ele nem mesmo sabia da sua existência , a pessoa que quando passava nos corredores ela suspirava . Como um amor quase que impossível, que agora finalmente estava ao seu alcance. Mas então, por que isso ?
Uma só ação poderia causar tantos estragos.
Não poderia sequer cogitar aquele pensamento novamente , era repulsivo. Ela gostava de Nicolas , certo ? Jamais iria trair alguém ou se aproveitar dos sentimentos de outra pessoa ( que por sinal ela tinha recusado ) . Mesmo que não namorasse oficialmente ( ainda ) , tinha algo . Nicolas gostava dela.
Sentiu o coração vacilar no peito ao pensar que Daniel também gostava dela. Olhou para o fantasma , que com certeza a encarava com certa curiosidade. O fantasma que havia se apaixonado por ela , e que nunca teria seus sentimentos correspondidos.
A vida e a morte eram tão duras com ele.
- Desculpa – Julie disse em um sussurro. Não só por ter se jogado nele acidentalmente , mas também por ter machucado seus sentimentos. Na noite em que ele se declarou e falou sobre o que havia feito com Nicolas , ela não pensou no quão doloroso estava sendo para ele.
O quão confuso ele estaria ? Lembrava-se dele ter comentado um tempo atrás que nunca havia se apaixonado . E agora , em sua pós vida , ele se apaixonara justamente por uma viva.
- Tudo bem – Ele respondeu compreensivo.
No fundo, ambos sabiam que tal diálogo não resumia apenas a essa situação do empurrão . No ar ficava subtendido a profundidade das palavras não ditas. Um silêncio diferente , reconfortante. Assim como o olhar, que mesmo incapaz de captar com clareza devido a escuridão, ainda estava lá.
Julie virou-se e saiu andando cegamente pela cozinha , tateando os móveis para evitar mais incidentes até a escada. Pressentia Daniel atrás de si.
Estancou em frente aos degraus , olhando para o fantasma ao seu lado.
Parando para refletir , Julie percebia que não dito nada referente a volta dele. Estava tão perplexa e absorta que não chegou a comentar nada.
Eles se encaram por alguns segundos , as palavras a faltar. Por fim Daniel decide que já era hora de encerrar aquele dia.
- Boa noite , Julie – Despede-se Daniel ao olhar para ela , dando as costas em seguida.
- Daniel , espera ! – Exclama Julie , segurando por impulso o braço do fantasma , que confuso, vira-se na direção dela.
Ele olha com o cenho franzido para garota , à espera do que ela tem a dizer.
- Eu... – Começa um pouco perdida. Não sabia ao certo porque tinha chamado ele , decerto para pelo menos lhe dizer alguma coisa. – ... Eu estou feliz que você tenha voltado.
O fantasma não consegue segurar a risada ao escuta-la. Julie ergue uma das sobrancelhas sem entender.
- Deu pra perceber . Se eu fosse vivo você teria me esmagado – Ele diz com um sorriso de canto , referindo-se ao abraço dela.
Julie faz um bico – Mas nem pra você levar minhas felicitações à sério... – Diz ela fingindo ressentimento.
Ele sorri irônico – Disponha.
Julie pondera sobre falar ou não o que vinha em sua mente.
- Eu... senti a sua falta , quero dizer-r nós todos – Diz apressando-se a corrigir a fala , sentindo dificuldade para respirar normalmente.– Eu sei que você é livre pra fazer o que quiser , mas por favor , não some desse jeito de novo. – Julie diz sentindo um aperto no peito.
Daniel tenta disfarçar a surpresa com as palavras dela.
Daniel , controle-se. Você não está em uma comédia romântica. Vocês estão na vida real, e aqui são só amigos. Ela sente sua falta porque você é um amigo. Amigo, apenas.
- Também senti , de todos – Ele diz engolindo em seco ao olhar para ela , desviando o olhar pensativo – Às vezes .... é necessário repensar sobre a vida , a morte , ou sei lá o que for – Diz quase que descontraído , referindo-se ao seu período de reclusão – Mas pode ficar tranquila. Vocês ainda vão ter que me aturar pelo resto da eternidade.
Julie sorri na direção dele – Sendo assim , até amanhã. Temos muito para organizar e colocar em dia mocinho – Ela diz fazendo ele expressar algo similar a uma careta , ela segura o riso em consequência - Boa noite , Daniel. – O fantasma assente com ar de riso e logo a garota começa a subir as escadas. Daniel observa Julie afastando-se , tendo a completa certeza de que o que sentia por ela estava longe de ser passageiro.
Julie termina o lance de degraus em pouco tempo e logo abre a porta do quarto , indo em direção a sua cama.
Como de costume olha para o teto, esperando o sono voltar enquanto pensa sobre demasiadas coisas. O horário da noite sempre era o mais propício para divagações, Julie não duvidava disso. Deitou a cabeça no travesseiro , enquanto involuntariamente pensava no indivíduo que a pouco havia se afastado.
Talvez se a vida e o destino tivessem sido mais clementes...
Se tivéssemos nascido na mesma época , se o acidente não acontecesse...
Talvez nem por Nicolas eu me apaixonasse.
Sim , era um pensamento radical. Bocejou sentindo os olhos pesarem , estava cansada demais pra relutar. Sua mente parecia querer idealizar estórias antes de dormir , então que fosse.
Quem sabe se a gente se conhecesse numa roda gigante como descrito por Bia na página da banda? Nossa você iria ficar desesperado ao ser vomitado por mim. Será que me chamaria de cretina ?
Se não fosse o sono , Julie teria rido nesse momento.
Eu poderia me apaixonar por você, sem medo. Pelo seu sorriso , pelos seus olhos que brilham ao olhar para mim. Pelo modo como você me abraça , pelas emoções que desabrocham em meu interior.
A garota já não sabia se divagava , se sonhava.
Existiria um " nós " em vez de um " eu e você " separados. E eu não precisaria estar aqui, lutando e cortando as raízes de qualquer mínimo sentimento existente. Porque afinal , não haveria questões complexas como eu ser viva e você ser um fantasma; ou como eu gostar de outra pessoa, já que você seria o que as pessoas chamam de " alma gêmea ".
Mas é isso , a vida não é justa. A vida... é apenas a vida.
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