Zoro lia e relia suas anotações, e, a cada nova leitura, ficava ainda mais confuso. Sua teoria mais forte sobre o caso em que trabalhava parecia cada vez mais um beco sem saída, só que Zoro não conseguia encontrar outra interpretação dos fatos. Naquele dia, estava conversando com a família de um dos desaparecidos e a hipótese levantada pela tia mais velha o desagradou profundamente:
— Talvez eles não estejam mortos.
Não era como se Zoro gostasse da perspectiva de estar de fato lidando com suicidas, mas era surreal demais, utópico demais, acreditar que todas aquelas pessoas estavam vivas e saudáveis em algum lugar sendo que jamais estiveram bem durante os últimos anos. Ele estava claramente lidando com um padrão e esse padrão perdia totalmente o sentido se os desaparecidos simplesmente fossem pessoas que estavam cansadas da vida e tomaram a decisão consciente de sumir.
Irritado, jogou o caderno longe e se levantou da cama. O burburinho da televisão também o irritava, e Zoro desligou o aparelho. Os jornais diários insistiam no caso das plantações de espinafre e Zoro tinha a forte impressão de que a ideia da mídia era simplesmente abafar o caso dos corpos desaparecidos, como fizeram há seis meses com o acidente onde Law trabalhava. Na ocasião, a notícia da vez era uma forte e anormal gripe que infectou um grupo de pessoas nas imediações do laboratório, ignorando totalmente todo processo judicial em que Law se envolveu por causa de um erro mínimo.
Talvez os espinafres fossem a gripe da vez.
O apartamento de Zoro estava abafado. Ele sempre se esquecia de abrir as janelas e também de comprar comida. Faminto e com calor, Zoro desistiu dos papéis, tomou um banho rápido e se vestiu, saindo de sua minúscula residência para a rua depois de descer alguns lances de escada.
A fome estava tirando completamente sua concentração e ele tinha certeza de que, se comesse, conseguiria raciocinar melhor. Parou no primeiro restaurante que encontrou, duas quadras depois da rua onde morava, e se serviu de um prato farto. Estava com dinheiro, depois de trabalhar em dois casos de traição conjugal, e achou que estava realmente merecendo um presente. Pediu também uma garrafa de saquê e se alimentou decentemente pela primeira vez em dias.
Estava distraído, mastigando e olhando pela janela para o nada em especial, quando ouviu uma voz familiar:
— Zoro! Há quanto tempo!
Era Kanjurou, o professor de Artes que havia ajudado Law a arranjar emprego na escola depois que a carreira de Law como cientista foi simplesmente destruída. Ele parecia animado e mordiscava um doce que Zoro desconhecia.
— Como tem passado? — Zoro perguntou.
— Diante dos últimos acontecimentos, eu até que estou bem. — Kanjurou murmurou. — Se incomoda? — E indicou uma cadeira da mesa que Zoro ocupava.
— Fique à vontade.
— Você quer um pedaço? — Kanjurou perguntou depois de se acomodar devidamente na cadeira.
— Esse doce é de que? — Zoro fez uma careta, ainda mastigando a comida.
— Castanhas com ameixa. Eu não gosto de ameixa, mas não faz sentido separar as duas partes porque aí o sabor do doce não é o mesmo. — Suspirou.
Zoro franziu o cenho. O comentário de Kanjurou não tinha absolutamente nada a ver com qualquer coisa que estava passando por sua cabeça no momento, mas o teor das palavras fez um sentido incômodo para ele. O acidente no laboratório veio acompanhado das notícias sobre a gripe. O sumiço dos corpos tinha como contraponto as plantações de espinafre. Todo maldito caso em que se empenhava para resolver tinha seu oposto bizarro para o qual todos os holofotes se voltavam.
O detalhe era que Zoro não acreditava em coincidências.
— Acho que vou aceitar um pedaço.
De boa vontade, Kanjurou partiu doce e entregou metade a Zoro.
— Você tem visto Law-dono?
— Faz uns três dias que vi. — Zoro explicou de boca cheia, ainda pensativo. — Smoker não vai mesmo com a cara dele.
— Isso é porque ele achava que Doflamingo era santo.
— E não era?
Percebendo que estava falando demais por causa do súbito nervosismo, Kanjurou deu um sorrisinho e mudou de assunto:
— Esse doce é do restaurante secreto que a Robin-dono frequenta. O cozinheiro fez especialmente para ela.
— Por que você tá comendo o doce da Robin e não vai lá comprar o seu?
— Sanji-dono não me aceita como cliente. — Kanjurou assumiu um ar desanimado.
— O estranho da sobrancelha enrolada?
Kanjurou achou graça.
— Esse aí.
— Não sabia que ele era cozinheiro.
— Por isso eu disse que o restaurante era secreto.
O sorrisinho de Kanjurou fez Zoro ter uma estranha impressão sobre aquela conversa, mas Zoro não disse nada. Em vez disso, permitiu que Kanjurou falasse do que bem entendesse, até que finalizasse sua refeição e tivesse um pretexto para ir embora, devidamente alimentado e pronto para voltar ao trabalho.
[...]
— Você vai começar a falar o que está acontecendo?
Foi a primeira coisa que Law perguntou quando Luffy trancou a porta do pequeno trailer onde morava. Ele estava espremido no sofá junto com Corazón, que mantinha aquela absurda cara de paisagem enquanto o mundo de Law virava de cabeça para baixo.
— Luffy, por favor, seja delicado. — Nami suplicou com um olhar desanimado. Ela se sentia a pior das pessoas por sequer conseguir conter o amigo idiota, e agora, que as consequências das burrices de Luffy estavam sentadas em seu sofá, Nami só queria acordar e descobrir que aquilo era um pesadelo.
— Eu como pessoas. — Luffy declarou.
Delicado como um tiro de bazuca.
— Em que sentido? — Corazón perguntou, confuso.
— No sentido literal. — Nami respondeu. — Luffy e eu temos uma condição genética que só permite que nos alimentemos de carne humana.
Enquanto Corazón parecia ligeiramente espantado com a revelação, Law, por outro lado, estava prestes a explodir. Ele tinha o olhar congelado em um ponto da parede e Luffy cortou o ar a sua frente com a mão, tentando chamar sua atenção.
— Você tá bem, Tral?
— É desse jeito que você queria me comer? — Foi o que Law conseguiu dizer, em meio aos inúmeros impropérios em que sua mente trabalhava.
— Então... Não exatamente.
O trailer já era apertado e, naquele momento, parecia ainda mais claustrofóbico. Law se viu hipnotizado pelo olhar insistente de Luffy, e se perguntou se aquilo que via estampado nos olhos de seu stalker era fome ou desejo.
— Você disse que queria comer ele? — Nami perguntou desolada.
— É disso que eu tava falando, Tral. Ela fica no meu pé.
— Ele te disse que queria te comer? — Corazón pareceu ainda mais chocado do que quando Luffy deu sua demonstração de completa falta de tato com as palavras. — Por isso você ficou estranho hoje de manhã?
Sentindo uma gota fria de suor escorrer por seu rosto, Law fechou a cara completamente.
— Ele acabou de te falar que se alimenta de pessoas e você está preocupado com isso, Cora-san?! Por favor, foquem no que realmente importa!
— Mas isso importa! — Luffy pareceu emburrado.
Àquela altura, Law já tinha perdido a paciência completamente. Levantou-se e se aproximou de Luffy, gesticulando um pouco mais do que o normal:
— Tem corpos de suicidas sumindo pela cidade e as famílias estão atrás desses corpos. Digam-me, por favor, que não foram vocês que fizeram isso.
— Não fomos nós. — Luffy respondeu com firmeza.
— Nós não matamos e nem violamos cadáveres. — Nami explicou. — Os únicos corpos que comemos são os de pessoas que se oferecem para isso antes de se matarem.
— O que querem dizer com isso? — Law perguntou pausadamente.
— Internet. — Foi a resposta curta de Nami.
— E aí começaram a sumir com os corpos e eu tenho certeza de que a culpa vai cair em cima da gente. — Luffy resmungou.
Não conseguiriam conversar com tanta gente falando coisas diferentes ao mesmo tempo. Pensando nisso, Law teve a melhor ideia que poderia ter naquela ocasião:
— Nos deem um segundo. —Disse por fim e puxou Luffy pelo braço para fora do trailer.
Àquela altura, já havia anoitecido. O trailer estava estacionado em um ferro velho imenso nos limites da cidade, e o carro de Nami estava bem escondido por baixo de uma lona azul em meio a uma pilha de entulho. Por fora, o trailer parecia tão velho quanto todos os ferros presente no local, e Law compreendeu que estavam, de fato, em um lugar seguro.
— Você ainda não me disse por que estava me seguindo.
— Conversei pela Internet com Bellamy durante muito tempo, ele entrou em contato dizendo que cometeria suicídio em breve. — Luffy explicou. — Mas aí o assunto começou a mudar e ele disse que sabia o nome do responsável pela minha situação e da Nami. E nos falou de você. Quando te seguimos pela primeira vez, Nami percebeu que Bellamy não estava falando a verdade e mandou que eu continuasse te seguindo para ver se você era estranho.
— Eu, estranho? Não era você quem queria me comer? — Law não conseguiu evitar o comentário e Luffy sorriu.
— Eu ainda quero. — Luffy resmungou. — Foi isso que eu disse à Nami. Ela ficou preocupada, porque eu nunca matei ninguém, Tral. E quando eu falei que não queria mesmo que você morresse, ela me explicou que eu não queria te comer de verdade, que só queria transar com você ou algo assim.
Foi aí que Law fez, em tempo recorde, uma série de considerações sobre Luffy e sobre a situação em que estava metido até o último fio de cabelo. Luffy era um espécime raro de ser humano, não por sua condição genética, mas porque era direto e sincero o suficiente para fazer Law perder um pouco o fôlego. Além disso, ele era uma boa pessoa, por mais que todo o histórico de vida conspirasse para que não o fosse, e tinha a incrível capacidade de fazer Law esquecer completamente que, dias antes, estava enfiado dentro do quarto, se sentindo uma pessoa desnecessária para o mundo.
Não que os acontecimentos recentes fossem realmente bons, porque Luffy estava também cheio de problemas aparentemente muito piores que os seus. Mas Law se sentia grato por aquela vontade de morrer ter desaparecido.
— Eu encontrei o corpo do Bellamy antes da polícia. — Luffy prosseguiu. — Quando Nami viu, me disse que alguém tinha matado ele. Ele ia entregar seu endereço para mim, achando que a gente ainda não sabia.
— Sabe que eu não o matei, não sabe?
— Sei. E é por isso que estamos aqui. — Luffy sorriu. — Estavam armando contra a gente, não vamos deixar eles fazerem o que bem entendem!
Law esboçou um pequeno sorriso. O cenário não era dos mais bonitos, mas fazia tempo desde que Law se sentia tão bem em um lugar desconhecido.
— Eu gostaria de deixar Cora-san fora disso. Talvez seja mais perigoso do que parece.
— Ele é seu pai?
— Ele me adotou quando minha família sumiu.
— Sua família sumiu? — Luffy arqueou a sobrancelha.
— Cora-san me disse que eles acharam que eu tinha morrido. Tive problemas de saúde quando era criança. — Law resumiu, emburrado. Não era o tipo de pessoa que gostava de falar do passado, especialmente porque fazia apenas horas que conheceu Luffy de fato e ainda estava se adaptando com a realidade de que ele não era um assassino contratado.
— Acha que ele pode se defender sozinho caso ataquem sua casa? — Luffy perguntou.
— Ele é treinado para isso, Mugiwara-ya. Vai ser realmente melhor se ele não se envolver diretamente.
Luffy sorriu, porque estava gostando da conversa e por causa do apelido.
— Eu imaginei que vocês não fossem pessoas normais. Nami sempre fica brava comigo porque ninguém reage bem à nossa condição e ela acha que eu falo demais. Mas vocês estão até bem tranquilos.
— Eu sei que não é escolha de vocês e Cora-san também sabe.
— Vocês não são normais, mas são gente boa. — Luffy concluiu satisfeito e Law achou graça porque ninguém achava que ele era gente boa.
— É, vocês também são.
[...]
Depois de procurar nos arredores do laboratório vestígios da plantação de espinafre, completamente contrariado, Zoro estava quase convencido de que a epifania causada pelo comentário de Kanjurou foi a coisa mais estúpida que já havia acontecido consigo nos últimos anos. Ele respirou fundo e apagou a lanterna, desejando voltar no tempo e encher a cara antes de Kanjurou aparecer com aquelas ideias infelizes.
Zoro estava pronto para ir embora quando viu uma silhueta se destacar ao longe nos fundos do laboratório. O contorno parou próximo à cerca que protegia a área de reflorestamento que tinha um relevo mais alto que o resto do terreno. Zoro achou, por um momento, que a pessoa fosse saltar a cerca, mas simplesmente parou, depositou no chão uma caixa larga e começou a cavar ao pé da cerca.
O cenho franzido de Zoro, juntamente com o suor nas mãos, indicava que estava preso em uma gigantesca contradição. Queria intimar a pessoa e descobrir o que diabo fazia ali uma hora como aquela, e, em contrapartida, sabia que não tinha o direito de interferir na liberdade de um civil comum e nem em seus hábitos estranhos. Zoro só permitiu se deixar levar pelo instinto quando ouviu a voz grossa pronunciar:
— Mas que porra é essa?!
Imediatamente, Zoro correu. A julgar pela estatura e tonalidade vocal, se tratava de um homem, e Zoro viu ele dando um passo para trás, tropeçando na caixa. O homem se recompôs a tempo antes de cair e, quando Zoro se aproximou o bastante, viu que a tampa da caixa havia se deslocado e não soube naquele momento o que era mais bizarro: o conteúdo que o homem carregava ou a estranha forma viva pulsando ao redor da cerca.
Na caixa, uma quantidade de ossos humanos que Zoro supunha pertencer a uma pessoa adulta. Na cerca, um tecido vivo, disforme e transparente, pulsando como um coração fora da caixa torácica sem uma única gota de sangue sequer.
Zoro queria bater naquela pessoa e queria se sentir menos assombrado com o que estava presenciando. Ao ver melhor quando o desconhecido parou sob a luz indireta da lâmpada do laboratório, notou que ele era loiro e tinha uma sobrancelha característica da qual Zoro não esqueceria facilmente.
O homem intencionou tocar o “coração”, mas se deteve ao ouvir, de longe, o ruído dos portões do laboratório se abrindo. Alarmado, o homem pegou a caixa rapidamente e começou a correr, sendo seguido de perto por Zoro.
— Para de me seguir imbecil!
— Nem fodendo!
Zoro continuou correndo e deram a volta para sair pelo outro lado, onde a cerca estava danificada e seria bem mais simples de atravessar. Depois de permitir que o homem atravessasse primeiro, transpassou o arame arrebentado e continuou correndo até interceptar o desconhecido puxando-o pelo braço que segurava a caixa.
— Vamos conversar, cozinheiro.
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