Escrita por: Spaderlivy
David se acomodara no antigo apartamento da amiga Kate, que fizera questão de lhe ceder o espaço para que ele estivesse confortável durante sua estada em Nova York. Coincidência ou não, seu apartamento ficava no Queens.
Após passar o dia revisitando lugares familiares à ele, a noite avançou rapidamente, e voltando ao apartamento silencioso, David tomou um banho e se aqueceu nas cobertas da cama queen-size. Ainda assim, seus pensamentos inquietos não o fizeram relaxar. Estar de volta ali era agridoce, estranhamente reconfortante e ao mesmo tempo doloroso. Fitando o teto, David observava o ventilador acima de sua cabeça parado. Virando-se na cama, ele tentou adormecer. Agora, entre o primeiro estágio de sono, o homem se pegou sonhando com a figura fantasmagórica de Ana, surgindo sorrateiramente entre as cobertas, afagando seu corpo e encaixando-se nele como em vida inúmeras vezes fizera. Suspirando em sonho, ele sentiu-se amado novamente, sonhar com ela era a única coisa capaz de lhe trazer alguma paz.
De repente, um estrondo no andar de cima, algo como um móvel pesado caindo o fez despertar e encontrar-se desolado no mesmo instante em que abrira os olhos encarando a solitária realidade.
David praguejou silenciosamente pelo seu despertar abrupto. Sentando-se na cama, ele passou a mão pelo rosto, inquieto e irritado. Levantando-se, ele caminhou até a janela, esquadrinhando as calçadas ainda agitadas no começo daquela madrugada fria. Um pensamento incomum lhe passou pela mente; que tal dar uma volta? Ele pensou. Escutando seu próprio pensamento, o loiro decidiu caminhar, talvez assim se cansasse o suficiente para voltar a dormir e aos braços de Ana, ainda que em sonhos. David vestiu-se com o sobretudo e as luvas, agasalhado-se bem, e antes de sair, seu olhar fitou a velha câmera ainda na mala semi aberta e não desfeita em cima da poltrona. Apanhando-a e pondo-a numa pequena bolsa de mão, ele bateu a porta em direção a noite nova-iorquina e toda a inspiração que ela poderia oferecer à um poeta sem uma musa a quem prestar tributo.
Ao sair do prédio, o barulho das vozes altas nos bares das calçadas eram alegres e vivos. Bem diferentes de seu estado de espírito. O loiro caminhou sem pressa, deixando que seus passos o levassem sem rumo certo à qualquer lugar. A noite estava úmida e fria. E com um olhar disperso e passos vacilantes, David se viu adentrando ao Central Park. Não era surpresa que ele acabara ali, não depois de tantas histórias vividas naquele lugar.
Haviam alguns jovens barulhentos ouvindo música e bebendo como se a vida fosse uma eterna festa, David parou, à distância suficiente para não fosse notado, retirando sua câmera da bolsa, ele apontou seu olhar artístico para cena a sua frente, fotografando-os de longe. O grupo sequer notou o flash em sua direção, continuavam imersos em sua diversão sem fim. David sorriu sozinho, apreciando secretamente a inocência daqueles ali presentes. Provavelmente nunca tinham experimentado a dor da vida adulta, e se tivessem, eram mais fortes nessa idade.
Voltando a caminhar, ele circulou pelo caminho, mirando seu olhar à qualquer coisa que o encantasse. E foi então que ele a viu, sentada num banco fumando um cigarro. A mesma jovem hispânica que ele havia visto mais cedo pela janela da livraria. David sorriu com a coincidência daquilo, permanecendo imóvel alguns segundos, apenas admirando a beleza da moça.
Ela tinha os olhos baixos, quase entristecidos, os cabelos caindo pelos ombros encolhidos dentro do sobretudo precário. O vento parecia cortá-la vagarosamente. E ela era a coisa mais bela que o loiro havia visto desde a sua chegada. Intrigante, misteriosa, magnética. Era impossível não ser atraído até ela, à toda melancolia envolta em sua figura, quieta, silenciosa, absurdamente atraente. David não conteve a si mesmo, apanhando a câmera e enquadrando-a para uma foto perfeita. Acreditava que ela não o notaria ali, tal como os adolescentes, a bela deveria estar imersa em sua própria existência, sem poder notar a dele. Com este pensamento, ele bateu a foto, sendo surpreendido pelo olhar imediato que ela lançou em sua direção. Um par de olhos ferozes, castanhos escuros, acertou em cheio o verde dos seus, e por um segundo, David sentiu o ar lhe ser roubado dos pulmões.
— O que diabos está fazendo? — esbravejou a jovem, ficando de pé e caminhando apressada em sua direção.
— Você é algum tarado ou o quê? — indagou, agora parando a sua frente com as mãos na cintura. David perdeu os olhos na latina, ela era baixa e franzina, talvez fosse o sobretudo largo que a tornava ainda menor, ele pensou. Seus traços hispânicos eram perfeitamente desenhados em um rosto de beleza exótica, seu olhar ligeiramente assustado cobria seu semblante. O homem sorriu, completamente sem jeito.
— Me perdoe, não quis assustar você. — disse ele, guardando a câmera na bolsa. A mulher o encarava, agora de braços cruzados e cenho franzido.
— Sou fotógrafo. — completou ele. E foi a vez de Olivia analisá-lo meticulosamente, encarando-o nos olhos, a jovem mordeu o lábio inferior, uma mania que a atacava sempre que sentia-se nervosa ou encurralada. Guiando os olhos por seu rosto, analisando suas expressões, ela pôde notar que o homem havia corado. Estranhamente, Olivia sentiu-se encantada por seus traços únicos. David tinha um rosto que inspirava confiança. Talvez fosse o ar angelical de seus cabelos loiros e lábios rosados, ou dos cílios claros cobrindo o verde de seus olhos amargurados. Fosse o que fosse, Olivia sentiu sua ira diminuir gradativamente nos segundos em que o olhara de perto.
— Você é bizarro. — disse, baixando a guarda e virando-se de costas para o loiro, estava disposta a partir dali e encerrar o estranho incidente, quando ouviu a voz grave e vacilante surgir por trás de seus ombros.
— Como se chama? — perguntou David, vendo-a virar para olhá-lo novamente.
— Por que quer saber? — replicou a moça, arisca e desconfiada. David riu, enterrando as mãos nos bolsos do sobretudo e dando de ombros, vendo-a bater o queixo.
— Está congelando aqui. Se sente bem? — mudou ele de assunto. Olivia permaneceu em silêncio um segundo, antes de respondê-lo.
— Não… Quer dizer, sim. Só estou um pouco cansada. — respondeu a moça, puxando o sobretudo para frente, tentando mantê-lo fechado. David aproximou-se devagar, como que para não assustá-la, fitando seus olhos demoradamente.
— Posso te oferecer meu casaco? — disse, a voz agora baixa e calma, genuinamente interessada no bem estar da jovem trêmula à sua frente. Olivia baixou os olhos como se pensasse a respeito da oferta.
— Você não é nenhum maluco, é? — indagou ela, ainda arredia feito um animalzinho ferido. David baixou os olhos sorrindo, antes de mira-los ao rosto dela novamente.
— Não, eu prometo que não. — assegurou ele, sério. Retirando imediatamente o sobretudo, o homem o estendeu até ela, a jovem permaneceu parada alguns segundos, olhando-o com o lábio inferior entre os dentes outra vez, denunciando um certo nervosismo antes de finalmente vestir-se com a peça.
— Obrigada. — disse ela, a voz agora soando baixa e arfante.
— De nada. — respondeu David. Ambos se entreolharam profundamente. Olivia acabou por sorrir de canto, mostrando apenas o esboço da covinha do lado esquerdo do rosto.
— Mora longe daqui? — perguntou ela, começando a caminhar, um convite silencioso para que David a seguisse.
— Há umas três quadras. — respondeu ele, caminhando com ela. Olivia o encarou por cima dos ombros. O olhar atento em seus movimentos.
— Costuma vir no parque e tirar fotos de mulheres desconhecidas? — perguntou ela, o tom zombeteiro cobria sua voz. David riu alto, atraindo o olhar dela ao seu sorriso simétrico e ardente. Olivia suspirou involuntariamente.
— Na verdade, não. Eu meio que estava aposentado até esta semana. — revelou o loiro. A moça riu, assentindo com a cabeça.
— E o que o fez voltar a ativa, senhor ex fotógrafo aposentado? — zombou com um sorriso de canto.
— Não sei, esta cidade, talvez. — respondeu ele, como se divagasse sobre a própria resposta.
Ambos se deram conta de que caminhavam para fora do parque, voltando às calçadas barulhentas. Olivia parou, olhando-o, começando a retirar seu sobretudo do corpo.
— Não, não. — disse David, impedindo-a de continuar.
— Fique com ele, você parece estar com muito frio. — completou.
— Não posso aceitar. — disse ela.
— Por favor, fique. Você realmente estava se contorcendo de frio lá atrás. — disse ele, rindo. Olivia acabou por rir, passando a mão pelos cabelos, colocando uma mecha atrás da orelha.
— É por que eu estou meio doente, talvez eu até passe isso pra você, sei lá. — disse ela sem pensar muito no que dizia. David franziu o cenho, avançando um passo em sua direção e retrocedendo o mesmo com receio de assustá-la.
— O que você… O que você tem? — gaguejou ele, preocupado em saber.
— Eu não sei, só um mal estar. Mas não ligue para isso, eu vou esperar um ônibus. — respondeu ela, finalmente retirando a peça do corpo e passando para ele. David a encarou, o olhar repreensivo. Estava estranhamente afeiçoado à aquela jovem, de forma que algo quase paternal lhe tomava o coração. Sentia certa e inusitada necessidade de protegê-la.
— Tudo bem, onde é o seu ponto de ônibus? — perguntou ele, voltando a estender o sobretudo sobre os ombros dela. Olivia o olhou, rindo, aceitando que ele não a deixaria em paz se não a ajudasse.
— Logo ali, na esquina. — apontou ela. E ambos retomaram a caminhada até o ponto. O silêncio instalou-se entre seus passos, Olivia mantinha-se aquecida com o agasalho dele, as mangas enormes cobrindo centímetros a mais de seus braços. David mantivera as mãos nos bolsos da calça, a cabeça semi baixa. Olivia parou no ponto de ônibus e sentou-se no banco, David a acompanhou, sentando-se ao seu lado, virando-se em sua direção para olhá-la diretamente.
— Não é perigoso andar sozinha até em casa uma hora dessas? — perguntou. Olivia deu de ombros.
— Mais ou menos. — respondeu ela. Ambos se olharam em silêncio mais uma vez.
— Não se preocupe, cara. Eu estou acostumada. — disse ela com a voz despreocupada.
— Você vai ficar bem? — perguntou o loiro, com um olhar terno sobre seu rosto. Olivia o olhou de volta, notando o brilho verde de seus olhos à luz do poste da esquina, respirando fundo um segundo antes de respondê-lo.
— Vou, sim. — garantiu, vendo o ônibus apontar na esquina. Ficando de pé, a moça acenou com a mão, David levantou-se, ficando ao lado dela. Olivia virou-se para ele, retirando o sobretudo e devolvendo-o.
— Obrigada. — agradeceu, aproximando-se inesperadamente para deixar um beijo em sua bochecha, pegando-o de surpresa. Um rápido e suave roçar de seus lábios em sua pele trouxe um arrepio até sua nuca. David riu, sem jeito. O ônibus parou à frente deles e a jovem subiu os primeiros degraus, dando uma olhadela para o loiro por cima dos ombros.
— Não me disse seu nome. — gritou ele, quando ela já havia entrado e as portas se fecharam. Olivia atravessou a pequena roleta, colocando seu rosto para fora de uma janela.
— Olivia. — disse alto. David a assistiu sumir com a partida do ônibus, ela tinha um sorriso largo nos lábios.
— Olivia. — repetiu ele baixinho, um sorriso formando-se em seu rosto. Girando nos calcanhares, David vestiu-se novamente com seu sobretudo, agora impregnado com o perfume da jovem. O homem suspirou para o ar, observando as estrelas no céu, voltando a caminhar até o seu apartamento. Uma estranha sensação dominava seu coração e seu pensamento. Acreditava que jamais voltaria a ver a estranha novamente, mas quisera Deus que voltasse. Olivia era, para um artista como ele, fonte de inspiração viva.
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