Sempre gostei de assistir os programas de canais fechados como H&H, History ou um Animal Planet. Em fato, o Animal Planet era meu favorito; não que eu não fosse um especialista em Say Yes To The Dress, Ame-a ou Deixe-a, Alienígenas do Passado e demais séries de outros canais — eu sou! —, mas, preciso admitir, existia certa fascinação na rotina de ajustar a postura no sofá e temer pela vida de alguma das possíveis presas de um leopardo, pantera, leão, qualquer felino perigoso que fosse.
Dizem que todo mundo procura espectros dentro da tele-cultura, um filme, série, desenho ou programa só se torna interessante quando existe um personagem que representa o expectador, que tenha traços de personalidade, principalmente, parecidos. Conhecer o gosto cultural de alguém é fundamental para desvendá-la, uma grande vantagem de fazer faculdade de Psicologia é estudar os padrões pessoais e descobrir, por exemplo, que pessoas que assistem à sitcoms, em sua maioria, procuram pelo conforto televisivo mais que os outros; por questões de representatividade à minoria que participam (em quesitos raciais, de sexualidade, familiares), por terem problemas com o desenvolvimento, ativistas, que seja.
O fato é que: eu assisto Animal Planet. E, caso eu estivesse em um desses programas que analisam as caças no reino animal… Não passaria de uma inofensiva e pequena presa. Me sinto assim enquanto saio do carro do vovô, aquele fusca velho e azul, que é ruim, ainda que melhor que metrô em horário de pico. No fim, preciso bater a porta do motorista duas vezes para ela fechar e o som acaba chamando atenção de Jimin, que acaba de sair pela porta do carona.
— Cara, mais uma porrada dessas no bebezão do senhor Kim e ele nunca mais te empresta o carro, você sabe — ele fala, eu passo por ele com a chave e um coração de pelúcia pendurado nela, porque vovô diz que dá identidade.
— Dois erros aí — eu retruco enquanto caminhamos lado a lado, o vento forte balançando meu cabelo e, por alguns segundos, me senti um leão. Bem amigável, daqueles que deitam para receber carinho, claro. — ‘Pra começar, vovô não me emprestou o carro… Eu peguei sem ele saber.
Jimin arregala os olhos e acena com a cabeça, como se não acreditasse no que eu dizia. Mas, vamos ser realistas, o que eu diria ao senhor Kim? “Vovô, tem como me emprestar o carro? Nada muito urgente, é só que eu me envolvi numa discussão muito madura com o nosso cliente emo dois anos mais novo que eu, então eu menti que conhecia o prefeito e que o faria linchar esse cliente da praça pública. Ele seguiu parte dessa semana duvidando dessa informação, dizendo que ia investigar. Aí, a gente brigou, e eu tenho duas notícias! A primeira é que, para o alívio da população mundial, eu não menti nessa discussão… Nem joguei um tênis no emo, se ele disser isso, duvide, é mentira da cabeça dele, a tinta do lápis de olho derreteu, entrou no sistema dele, fez ele ficar louco. Mas, a outra notícia é que, essa briga nos fez parar na delegacia. Agora tenho que cumprir dois meses de serviço comunitário em um asilo do bairro, mas, como eu disse, nada demais. Agora posso pegar o carro?”, pode não parecer, mas eu temo pela minha vida!
— Em segundo lugar, o carro não é o bebezão do vovô Kim — empurrei a porta de vidro que dava entrada à recepção do asilo, um lugar bem bonitinho e ajeitado, grande até. — Eu sou.
Decerto porque sou um comediante nato, Jimin começou a rir antes mesmo de eu me dirigir à moça simpática, que parecia cuidar do balcão de recepção. Ruim para nós, no entanto, porque acabamos chamando atenção de todos os presentes ali; a boa notícia era que, na verdade, só havia eu, Jimin e alguém sentado em um dos sofás caramelo que enfeitavam a peça.
Como quem não quer nada, dei uma cutucada (com o cotovelo) no Park, em um pedido mudo para que ele parasse de rir. Acontece que não foi tão mudo assim, porque Jimin fez drama, deu um gritão bem comum dele, e eu só o encarei com meu olhar 360, 370, 180, sei lá eu o número do olhar. O importante é que funcionou, porque logo, logo, ele estava quietinho do meu lado.
— Então.. Oi, boa tarde — me dirigi à moça da recepção, sorrindo sem graça, sabendo que, de alguma forma, tinha passado má impressão. Com certeza era culpa do Jimin. — Desculpa pela cena, sabe? O Jimin aqui é meio…
Fiz sinal com o dedo na orelha, indicando que ele era lelé da cuca e vi ela sorrir. Respondi com uma piscadinha, como o bom charmoso que sou, e ela alargou o sorriso. Era bonita; tinha cabelos na altura do pescoço, de corte reto, liso, e pretos, dependendo do quão bem era iluminada pela luz do local, mostrava suas mechas coloridas, aquela cor de amora. Parecia delicada. Imaginei que tivesse a minha idade, um ano a menos, talvez
— ‘Tá tudo bem, de verdade, senhor. Você veio ‘pro estágio…? — perguntou, meio sem jeito, a voz era surpreendentemente grave. O tom de dúvida no final me fez pensar que talvez o asilo recebesse mais visitas do que eu imaginava, ou ela saberia toda a agenda de quem viesse na recepção.
— Senhor não, eu tenho vinte, não me faça parecer velho — disse na esportiva, ainda sorrindo, até que me dei conta… Estava em um asilo, um asilo cheio de pessoas mais velhas. — Quer dizer! Amo velhos, sem problema ser velho, tipo, nenhum mesmo! De verdade, não tenho nada contra ser velho, veja bem, o meu avô é um velho!
Do meu lado, Jimin escondia o rosto na mão, mas com certeza não por vergonha… Do jeito que o conheço, ele tentava não rir da minha tentativa de conversa. Eu não estava tentando impressionar a moça, ou algo assim, só me parecia útil passar uma boa impressão, desde que eu sabia que seria encarregado de ir, por dois meses inteiros, àquele lugar. Jimin rir disso era um insulto, apesar de que sim, eu sou mesmo um comediante nato.
— Eu entendi, eu entendi! — Ela disse, rindo um pouco, e eu fiquei aliviado. Não queria dar a entender que era algo como um… Anti-Velhos. Afinal, eu sou o total oposto; vendo revistas, jornais, bons livros a eles. Escuto suas histórias, pergunto de suas famílias. Às vezes até me ofereço para ir à igreja com Siwon e a família Choi!
Aos poucos, o clima voltava ao normal. Até mesmo Jimin tinha parado de rir, o que significava que a minha cota de vergonhas minimamente cômicas tinha realmente acabado. Suspirei, me apoiando no balcão, a madeira era resistente, aguentaria meus fortes braços de quem só levanta caixa de produtos e não faz mais nada da vida.
— E, hm, quanto ao estágio… Olha, dá ‘pra se dizer que sim, vim ‘pro estágio — ela parecia confusa e eu já sentia os olhos de Jimin em mim. — ‘Pro estágio que a prefeitura me obrigou a fazer…?
Mais risadinhas, e eu percebi que a moça tinha dentes bem branquinhos, além de que, claro, a graça era só mais um dos meus charmes. Mas voltando aos dentes, anotei mentalmente de marcar consulta com o meu dentista, mas tinha certeza que, antes mesmo de voltar para casa, me esqueceria disso. Ainda estava sob devaneios quando ouvi ela dizer:
— Ah, sim, veio pelo serviço comunitário.
— Ei, não fala assim, parece rude — fiz beicinho, parecendo realmente magoado com aquilo; não estava. — E sério. Não é como se eu tivesse cometido um graaande delito, como agredido alguém, por exemplo.
Nem pude avaliar a expressão dela, para saber se sabia ou não o motivo de eu estar, em um sábado a tarde, no asilo que ela trabalha, antes que sequer procurasse sinais de julgamento (sou mestre nisso, vi Sherlock três vezes. E estudo Psicologia. Mas o que me ajudou a ficar realmente bom nisso de leitura facial foi a série, não se deixem enganar), notei movimentação do sujeito que estava sentado no sofá da recepção. E então, aquela voz que eu chegava a escutar nos meus pesadelos:
— Na verdade, agrediu sim.
Típico do vitimista. Revirei meus olhos tão forte, que achei que fossem ficar presos. Quase que instantaneamente, meus ombros caíram, provavelmente tão cansados quanto eu de ter que aguentar esse bicho insuportável. De qualquer forma, ele tem, decerto, um magnetismo esquisito, porque sempre que a gente se vê, ele vem se aproximando, e mais e mais… Não pode me ver longe, mas tudo bem, eu entendo, sou mesmo difícil de se aturar longe, todo mundo quer pertinho. O que eu posso fazer? É o charme.
— Oi ‘pra você também, Jeongguk — fiz questão de ser educado, afinal, não é só da comédia e do perfume bom (meus dois maiores charmes, digo com certeza) que se vive um homem. Eu, por exemplo, vivo do deboche e da fofoca, mas ninguém jamais saberá disso. Para todos os efeitos, sim, nasci engraçado e cheiroso assim mesmo, faz parte do sangue, a única coisa que importa.
A pobre da moça da recepção estranhou meu astral baixar de repente, provavelmente, já que encarava um pouco a mim e depois a Jeongguk, passando o olho por Jimin, confusa. Eu não me daria o trabalho de explicar o que se passava e, para a minha sorte (ou não), Jeongguk mesmo faria as honras:
— Sem tênis ‘pra atirar nas pessoas hoje? — Sempre provocativo, um porre. Hoje ele vestia uma jaqueta de couro, o que não era bem do feitio emo dele, ainda que tenha caído bem. Principalmente com o boné e os brincos prateados, ele estava até apresentável. Quase tanto quanto chato.
— Não sei, fala mais um pouco e a gente testa. Talvez hoje eu jogue os dois — respondi na mesma moeda, me aproximando dele, que já estava do meu lado, no balcão, apoiado como eu. Um verdadeiro imitão, mas nada com que eu não conseguisse lidar.
Àquela altura, Jimin já estava mandando mensagem desesperado para seu namorado, o Seokjin, textos curtos como “Taehyung, galo de briga, vai peitar o menino da banca!!”, e “Vou te contar tudo, fica ligado aí no celular”. No fim, essa era uma das fórmulas para a nossa cola, aquela que nos mantinha grudados desde a infância: a fofoca.
— Então você finalmente admite que me agrediu?! — Jeongguk pergunta e sorri de lado, os lábios dele repuxando a bochecha, a voz baixa porque estamos perto um do outro; tão perto que eu notei uma pintinha na sua boca, marrom, misturava-se com a cor cereja predominante, era bonito.
Jeongguk, assim de perto, era bonito. Mesmo que me encarasse com aquele toque de desafio nas orbes, as bochechas para cima, a expressão certeira, arrogante. Era irritante que ele fosse assim: chato, arrogante, um metido. Mais irritante era que ele não conseguia ser feio. Nem assim.
— Não foi agressão! Você foi até a minha banca me ameaçar, eu só me defendi! — E foi literalmente isso, não foi? Não sei da onde esse garoto tirou que foi caso de agressão, blá blá blá, era um tênis, só isso.
Ele revirou os olhos, bufando, os braços apoiados no balcão. Já não sabia mais no que prestar atenção: em Jimin, que digitava fervorosamente no celular e, vez que outra, levantava o olhar para checar a cena que se passava no momento (o que me fazia questionar se ele estava fofocando com o namorado, ou fazendo coisas a mais…), a moça da recepção, a das mechas bonitas, que olhava para tudo aquilo completamente perdida, chegava a dar pena; ou em Jeongguk, que só me fuzilava com os olhos, suspirava, se mexia desconfortável, e voltava a me encarar.
E quando eu comecei a pensar que, de fato, aquele silêncio todo era quase uma bênção na minha vida, levando em conta que eu aturo o falador do Jeongguk há todo esse tempo e, como a parte de mim que já lidou bem com isso pensa, achei que nunca mais estaria na companhia única do silêncio. Acontece que, para minha infelicidade, eu não apenas aturava Jeon Jeongguk, como também Park Jimin; e, parando para analisar, esses dois parecem estar em constante briga para ver quem fala mais. Jimin ganhou essa, quebrando o silêncio e rindo antes de dizer:
— Ele bufa e fica puto bem como você falou, TaeTae… Parece mesmo um pitbull!
Sinceramente? Eu deveria prever. É claro que ele faria questão de soltar uma pérola dessas em um dos momentos mais calmos que toda a minha existência interligada com a de Jeongguk já presenciou. Sem muito o que fazer, já sabendo que isso geraria uma discussão, espalmei minha mão na testa, talvez para tapar minha expressão de desânimo.
É difícil ser bonito, engraçado, ter bom gosto e ainda fazer boas comparações, sabe? Hora ou outra o tiro sai pela culatra, ou, como dizem, seu melhor amigo solta uma dessas na frente do seu inimigo mortal. Lei natural, meus caros.
Pelo canto do olho, assisti Jeongguk abrir a boca em um “o” perfeito, algo como uma mania dele, imagino. Seus olhos pareciam grandes bolinhas de gude quando ele os arregalava, e perceber isso me fez rir. Pronto, estava dada minha sentença de morte, eu poderia esperar, ali de pé mesmo.
— ‘Tá rindo do quê, Kim? — A voz grave, me fez sentir que talvez, só talvez, ele estivesse meio irritado. — Pitbull, sério?
Sorri amarelo, sem jeito, a situação era constrangedora. Aquele era para ser um apelido que se usasse de vez em quando, só quando se estivesse falando mal do Jeon… O que no meu caso é sempre, mas frequência não está sendo discutida aqui. Também, não é como se fosse minha culpa; ele realmente se assemelha a um cachorro, principalmente quando bufa, ou coça as orelhas. Enquanto brigávamos, já o ouvi rosnar, e juro que não foi meu inconsciente projetando nele essa imagem que eu tenho, quer dizer, eu nunca fechei meus olhos e enxerguei ele deitando e rolando. Mas já o ouvi rosnar, e disso eu tenho certeza. Me pergunto se ele baba quando se distrai…
Certo, eu não deveria ter pensado nisso, porque me fez rir. Muito mesmo, a imagem de Jeongguk distraído, com a boca aberta, babando. Droga de cérebro, agora ele está simplesmente me furando com os olhos, puto demais, e eu só consigo rir. De certa forma, é complicado me julgar, a pauta Jeongguk X hábitos de cães é sensível, principalmente para pessoas como eu, com a imaginação solta.
— Você consegue fazer algo além de rir que nem um idiota ou…? — Ele pergunta e, de súbito, fiquei sério; foi ofensivo, ora, eu sei fazer muito além disso. E minha risada é uma graça, não deveria ser relacionada à palavra “idiota”. — Ótimo, você consegue, ‘tô impressionado. Agora me diz, por que pitbull? Nem faz sentido!
Eu já estava com vontade de rir de novo, ainda que com zero paciência para o drama de Jeongguk. Não era algo que eu queria discutir, de qualquer jeito, então só ignorei e esperei que ele soubesse (por si só) exatamente o que lhe fazia parecer um cachorro. Me manterei calado.
— Na verdade, é bem óbvio — mas é claro que Jimin não faria o mesmo que eu. Em horas como essa, me questiono o que eu vi nele. Só sei que, agora, Jeongguk o encara realmente curioso, talvez nem mesmo ofendido, enquanto o Park faz algo com as mãos.
Uma mímica. E só então eu arregalo os olhos ao perceber Jimin apontar para os músculos do braço, dando a entender que Jeongguk é taxado de pitbull por ser… Muito bem dotado de músculos. O que não é, de todo, uma mentira, mas, definitivamente, é algo que ele não precisava saber. Isso significa que, além de um atirador de tênis, Jeongguk vai me encher o saco por achar que sou um admirador de seus músculos salientes, bíceps bem definidos, tríceps fortes e… Perdi o foco, o importante é que não! Não sou isso e, apesar da tentativa clara do meu amigo de arruinar minha imagem como inimigo do Jeon, eu não deixarei que ele pense isso. Jamais.
Encaro o Park com os olhos saltados, questionando pela nossa telepatia, que um dia há de funcionar, por que diabos ele disse isso. Ele pisca para mim, e só então eu percebo que é uma vingança pela cena com a moça da recepção. Agora eu quero jogar um tênis na testa de Jimin, talvez até mesmo me torne inimigo dele! Jeongguk quase se torna passado perante a minha raiva, mas antes mesmo que eu supere nossa rixa, alguém aparece no salão.
Tem cabelos brancos, usa um cardigã bege e longo. Tiarinha de cabelo feita de tricô e calças de flanela, apoiada em uma bengala de madeira. É a própria vovó de contos de fadas e, me dando conta disso, percebo que, em algum momento disso tudo, a moça da recepção deve tê-la chamado; a vovó cuidadora do asilo, talvez?
— Ah, vocês devem ser os meninos que o prefeito falou que ajudariam com o asilo. Estranho, achei que seriam apenas dois… Mas não tem problema, me acompanhem! — Ela sorriu, amigável, parecia ter cheiro de biscoitos e chá de hortelã. — À quem interesse, sou Nayeon, a velha-chefe disso tudo, basicamente a líder da gangue dos outros velhos. Venham, vou mostrar o asilo a vocês.
Ótimo, outra líder de trupe de idosos. Ela e Jeongguk se dariam bem.
[...]
Eu errei.
Não que Nayeon e Jeongguk tenham se dado mal, mas não se deram bem como eu imaginava. Confesso que meus pensamentos voaram para os dois de mãos dadas, num campo florido, durante a tarde, ela contando suas histórias de juventude como líder de Gangue e ele ouvindo, absorvendo o conhecimento, para depois repetir a história — meu maior pesadelo. Minha felicidade se fez quando, na verdade, ela realmente apresentou todo o espaço para a gente, logo após Jimin dizer que não fazia parte do time dos “delinquentes”, se despedir e ir embora.
Vimos a cozinha, a sala dos cuidadores, o jardim, o pátio, a sala do crochê, a de esportes (onde, na verdade, era só um monte de entulho que, de acordo com Nayeon, virava algo próximo a um campo de bocha, quando montados), a sala de debate (outro adentro: não era bem voltada para debates, a princípio, desde que, com as palavras de Nayeon, “Sana e suas seguidoras” instalaram aquilo como um espaço para chá, biscoitos, e cachorros), o espaço de recreação, a biblioteca, uma espécie de cafeteria usada para lanches coletivos e o espaço onde cada um dos membros do asilo recebia visitas.
Era um lugar grande, bem organizado. Ao que parece, faxineiras iam de cinco em cinco dias e os próprios idosos ajudavam com a limpeza mais simples; além do mais, as famílias que tinham condições doavam produtos de higiene, cobertores, roupas, eletrodomésticos e o que era de uso comum. Eles viviam às custas da prefeitura, e a iniciativa começou quase quinze anos atrás, quando a falecida neta de Nayeon, de acordo com ela, disse que não aguentava mais ver velhinhos “como a avó” sozinhos nas ruas, ou sem lugar para viver. Usaram do dinheiro da aposentadoria da Lin e, mais tarde, do que a neta deixou em seu testamento, para abrir o asilo, pediram fundos ao governo e tudo cresceu rápido.
De qualquer jeito, eu imaginava que não ia gostar muito do tempo que tinha a passar ali. A começar pelo fato de que, é, Jeongguk pode não ter se dado excepcionalmente bem com Nayeon, mas sim com, praticamente, o resto do asilo. Desde às cozinheiras, que apertaram suas bochechas, às velhas que estavam nas salas de crochê, debate — incluindo “Sana e suas seguidoras”, com seus cachorros de raça, que pularam nas pernas de Jeongguk — e biblioteca.
Injusto, porque, tudo bem, ele tem esse rostinho simpático, apesar do estilo todo voltado ao preto e a falta de pele à mostra, as bochechas rosadinhas como a boca, e aquele sorriso de menino, não de homem, que deveria deixar os velhinhos bobos. Mas, ainda assim, Jeon Jeongguk é um porre! Fala alto, não respeita os outros, vive sendo um constante grosseiro, além de arrogante, o típico filhinho de papai. Não vejo o que quer que seja atrativo para os velhos nele… Quer dizer, eles estão lá, paparicando ele, o garoto sentado no grande puff colorido que decora a sala de recreação, e cerca de nove idosos em sua volta, chamando-o de “filho” e o elogiando.
Sinto que quero ir para casa, que não vou aguentar muito mais tempo aqui, até mesmo meu humor começa a ficar azedo. E é pensando nisso que eu me viro para a janela, o sol lá fora praticamente chamando meu nome, e eu sinto desejo de sorvete. Talvez seja a única coisa que consiga me animar agora.
— Taehyung, não é? — escuto a voz vir de trás de mim, Nayeon aparecendo no meu campo de vista assim que eu deixo de visualizar a janela, ela tem a voz mansa e é mais baixa que eu, como uma velhinha de filme. Parece interessada em falar comigo. — Você parece abatido… Venha, me deixa te mostrar uma coisa, rapaz.
Ela sai andando, ainda que demoradamente, pouco usando a bengala. Eu vou atrás, parte por estar curioso, parte por sentir nela a sensação de conforto que tenho com o vovô. Deixar a sala de recreação, os nove idosos dela e o mimado do Jeon para trás me faz bem, mas eu só me dou conta disso quando chegamos na cozinha. Imaginei que ela me ofereceria uma caixa de biscoitos envelhecidos, como vovós costumam fazer; talvez um chá, um mingau. Um mingau seria bom agora.
No entanto, ela apenas para diante de um dos armários, me chama com o dedo e eu a vejo estender a bengala, ao contrário, para cima. Com o pegador, aquela parte suspensa e maior, mais resistente da madeira, ela abre o armário alto (nada que eu não conseguiria tê-la ajudado, me surpreendeu que não tenha pedido uma mãozinha), e a visão do que tem dentro é…
— Voilà!
É rum. Muito rum, tem garrafas importadas de 95, duas séries especiais do Montilla Carta Ouro, em garrafas pequenas, grandes, de pescoço longo ou não, as de corpo achatado, redondo, largo.. Bicardis aos montes. Ela parece orgulhosa do que me mostra. Eu sorrio de canto para ela, passando o braço por seus ombros cobertos pelo cardigã bege. Ela me dá um tapa na mão.
Na verdade, quem se dará bem com Nayeon serei eu. Você perdeu essa Jeongguk.
[...]
Como neto de um senhor de idade, pensei que trabalhar (ainda que obrigado, para não ser preso) em um asilo fosse fácil. Não só pela minha experiência em saber dosagem de remédios, possíveis problemas que venham a ocorrer e no que prestar ajuda. Fui criado pelo meu avô, ainda muito pequeno morei com ele, e tudo bem, são os efeitos de ter nascido em um meio turbulento da vida de Kim Taeyeon; minha mãe era o grande orgulho de vovô e vovó, principalmente de vovô, que a viu crescer, insistiu em seus estudos, e de repente enxergou ela pela tela da tevê velha de tubo, nas passarelas. Minha mãe costumava ser modelo, inclusive quando engravidou de mim — e isso foi um problema; não apenas sua profissão exaustiva e a licença que ela teria que tirar, porque nenhuma agência gostaria de uma modelo fora do padrão, tampouco uma grávida. Acontece que eu sou filho de Kim Taeyeon e de um dono de uma marca muito, muito famosa de roupas.
Internacionalmente famosa, e é justamente por isso que mamãe nunca me falou sobre a identidade dele. “Para o preservar”, ela dizia, no fim, com alguns anos de percepção aguçada e a tendência a análises, que faz parte do meu sangue, descobri que era para preservá-la também. Existia um trato, até onde eu soube: minha mãe contou ao meu pai de sua gravidez e ele, influente, rico e claramente supervalorizado, ofereceu a ela dinheiro e a carreira de modelo segura. Tudo que Kim Taeyeon precisava fazer era dar o fora da França (onde ela engravidou, em meio a um grande evento da moda, o que me torna não-oficialmente de dupla nacionalidade), ter o bebê (eu!) em completo sigilo, me manter longe dos holofotes e, então, quando voltasse, em forma, claro, teria contratos prontos e uma carreira para seguir.
Costumava perguntar a vovô quais eram as roupas favoritas da mamãe, para, quem sabe, me sentir mais próximo a ela. No fim, os anos passaram, eu fiz cinco, sete, dez, doze… Ela não vinha para o meu aniversário, raramente mandava cartões ou um presente. Mas vovô não, vovô sempre estava lá: com um bolo ruim, sua tentativa de me fazer comemorar a idade que ia avançando junto a ele, um presente barato e histórias sobre sua vida jovem, sobre como ele amava minha avó, como eles eram felizes, e como ele se tornou imensamente mais feliz depois que eu nasci. Dali, decidi que as roupas favoritas da mamãe não importavam mais; meu avô se tornou meu herói, mesmo que, invés de capas, ele vestisse suéteres. Estava tudo bem, porque eu o amava, e ele me amava também.
Ainda o amo, e é recíproco. Vivemos bem, e eu percebo que talvez essa ilusão de que o meu padrão de vida, com vovô, me tornou meio sonhador. Pensei que todos os velhinhos seriam iguais a ele, e parecia perfeito, eu achei que daria conta, já que dava conta de quase vinte e um anos com ele. Amar os outros residentes do asilo seria fácil, desde que todos fossem como vovô.
Para minha infelicidade, eles não eram; e não que isso fosse ruim, nem que fosse bom, acontece que eu nunca descobriria a intensidade disso, ou o quão importante era. Porque Jeongguk chegou antes. Ele, aparentemente quase sem experiência com idosos — não vou contar a jogatina barulhenta como forma de lidar e amar velhinhos, me recuso —, me atrasou. E eu já admiti demais, para mim, pelo menos, que seu charme poderiam ser as bochechas vermelhinhas, o sorriso de menino, ou a voz doce; não me importava. Era um insulto, de qualquer forma, a minha história com vovô, que ele estivesse lá, mesmo após uma semana do serviço comunitário, sendo o centro das atenções, recebendo biscoitos, cachecóis de tricô, vendo os álbuns de fotos dos residentes.
Enquanto eu — oh, pobre Kim Taehyung —, bebia rum com Nayeon.
Tudo bem, essa não era uma condição desagradável, ainda que eu tivesse de misturar água ao meu rum, para que ela não se sentisse “ultrapassada” por não beber da mesma quantidade alcoólica que eu; e até dava certo frio na barriga, estávamos fazendo algo contra as regras, ainda que a própria Nayeon ditasse a maioria delas. Só… não era como eu esperava estar em uma sexta-feira, que parecia animada na minha cabeça. Invejava Jeongguk pela facilidade dele de entreter os velhinhos, de parecer atrativo a eles, e, não só isso, mas realmente fazer a vida deles mais completa. Eu bebia rum para me completar!
— Estranho… Desde que te mostrei o Armário Secreto imaginei que você fosse ficar mais feliz, menos abatido — Lin disse, do meu lado, batendo o pequeno copo de shot na madeira da mesa, chamando minha atenção. — No fim, continua na mesma fossa.
Eu a olhei com descrença, mas sem forças para ir contra seus argumentos. Estava mesmo acabado, em um estado deplorável; um pouco disso da situação diária que passava no asilo, recebendo tapas de Nayeon e zero atenção das outras pessoas do local, mas a outra era que me preocupava mais: o fato de eu estar, constantemente, mentindo para vovô. Desde que decidi omitir o fato de estar cumprindo serviço comunitário, depois de, literalmente, jogar um tênis na grande testa de Jeongguk, sob pena de cadeia e multa, ando cansado, tendo que mentir sobre meu paradeiro, para não o deixar paranoico, preocupado ou desconfiado. Era complicado, porque, além de pesar no meu coração, não valia a pena.
Não era como se eu fosse destratado dentro dali, não mesmo; todos eram muito cordiais, eu recebia uma xícara de leite com nescau (porque café era amargo demais para entrar na minha vida) assim que chegava, batia papo com a recepcionista, adorava fofocar com as faxineiras, e Nayeon conseguia ser uma ótima companhia, principalmente quando se soltava e começava a destilar seu ciúme disfarçado da influência que outras residentes (“Sana e suas seguidoras”, cof, cof) estavam criando. Nessas horas, ela costumava me servir um copo de bebida com água, eu falava que isso era demais para o coração de velha dela, e ela me xingava, dizia que estava na flor da idade, e que velho era eu. Uma boa amizade, eu diria.
Tão boa que eu já me sentia seguro para deitar a cabeça em seu ombro, como fazia agora, o tecido quentinho de sua roupa de lã acomodando meus fios, e eu nem mesmo recebia tapas após tentativas de contato físico! O progresso era tão real quanto as badaladas do relógio, que marcavam quatro horas da tarde… Os ponteiros me chamaram atenção e eu desviei o olhar da cena que se passava no outro cômodo, onde Jeongguk fazia os velhos rir enquanto os desenhava. Eles tinham o olhar disperso, e enchiam-no de elogios toda vez que traçava uma simples linha com o grafite claro no papel, parecia legal lá. Mais legal que aqui, mesmo que tivéssemos rum. Suspirei.
Logo após o som audível do meu suspiro, Nayeon, ainda com a minha cabeça sob seu ombro e parecendo incomodada com meu desânimo, fez barulho de pum com a boca. Como se fosse normal, audível e realmente parecido com o som de gases; eu a encarei, um pouco assustado, achando graça. Ela retribuiu, mas seu olhar dizia “o que é, ein?” e eu sussurrei um “sua velha maluca…” apenas para ela ouvir. Ainda que tivesse essa aparência digna de comerciais americanos da década de 80, com sua típica elegância coreana do The American Way Of Life (o que é contraditório, dado o fato que somos referentes a um continente de hábitos totalmente diferentes), conseguia ser uma mulher desbocada e surpreendente. Dessa vez, comprovou isso me olhando quase compreensiva e perguntando:
— Falo sério, seu rebelde mal educado. O que ‘tá havendo com você?
Senti nela aquele conforto que encontrava em casa, quando voltava machucado depois do treino de algum esporte que não gostava e vovô pegava o Merthiolate, parecia doce enquanto me olhava e falava algo sobre cura mágica do remédio que ardia no joelho. Então, ele me dava colo e perguntava o que tinha acontecido enquanto colávamos figurinhas em um dos álbuns que ele mesmo havia me dado. Parecia ter dez anos novamente.
— Eu só sou meio complexado — respondi, sentindo vontade de rir, me acomodando melhor no ombro dela.
Nayeon virou seu rosto e eu percebi que haviam poucas rugas nele, o que não me surpreendeu, dada a vaidade extrema da mulher e sua insistência na aura jovem. Ela brincou com um dos meus fios de cabelo, desbotado, já que eu não retocava o loiro há algum tempo. Botou o fiozinho atrás da minha orelha e ergueu suas sobrancelhas, parecendo realmente preocupada.
— Minha neta uma vez me explicou que respostas assim são desculpas que você dá na sala do seu reitor machista depois de quebrar a cara do idiota que tentou espiar pela sua saia — a neta dela parecia realmente maravilhosa; eu teria dito isso, teria rido baixinho também, mas ela ocupou o silêncio continuando: — Então me diz, quem foi o idiota que tentou espiar pela sua saia, Taehyung?
Agora sim, a confortabilidade de estar sendo cuidado, mas com humor. Gostava disso, gostava como ela resolvia as coisas com copinhos de vidro, rum e piadas, principalmente porque sentia que seria assim, quando mais velho. Claro que mais bonito, porque meus atributos continuariam até a velhice, mas Nayeon era querida (do jeito dela) demais para que eu lhe dissesse isso. Apenas sorri, soltando ar pelo nariz e ergui minha cabeça do seu ombro, ficando sem expressão por um tempinho. Não sabia ao certo se deveria falar tudo aquilo que sentia a ela, ainda que parecesse disposta a ouvir e, quem sabe, me ajudar. Só sentia que estaria exposto quando falasse sobre, já que era algo pessoal, e existia necessidade de confiança.
Olhei para ela de novo. Notei uma ruga, uma única ruga, perto dos olhos. Preocupação, velhice, que fosse, estava ali, marcada pelo tempo, pela sua experiência. E o engano da experiência… Me parecia familiar, e então eu sorri, percebendo que confiava em Nayeon, e que bater um papo sobre a minha incapacidade de ver Jeongguk como todos os outros residentes viam, ou simplesmente deixar de encará-lo como um pequeno babaca arrogante, seria bom.
— Você é velha, então acho que vai entender quando eu digo que acho difícil mudar hábitos que você considera primordiais — digo, ela me dá um tapa na orelha. Não dói, pelo contrário, me conforta. — Mas sério… Nayeon, a ideia do serviço comunitário me assustou ‘pra caramba, principalmente porque eu não imaginava que brigar com seu cliente emo e jogar um tênis nele fosse tãããão sério.
— Você jogou mesmo um tênis nele — ela afirmou, então não pareceu uma pergunta, era mais como se estivesse absorvendo a informação, em voz alta. Eu dei de ombros e disse que, em minha defesa, ele mereceu; ela concordou com a cabeça, docemente sensibilizada com a minha causa, imagino. — Continue.
— Certo, é só que, quando o oficial disse que seria em um asilo, eu me acalmei, por alguns segundos. Tenho conhecimento disso, sabe? Velhos. Não se ofenda, mas vocês são fáceis de lidar — outro tapa. Eu sorri, prosseguindo: — Falei ‘pra não se ofender… O negócio é que dá ‘pra levar esse assunto de gente idosa sem complicações. Vocês precisam de carinho, até mais do que precisam de remédios. Querem alguém ‘pra bater papo, que escutem suas histórias de quando eram novos, joviais e sentiam a vida batendo forte no coração de vocês. Querem quem entenda suas lições, que possam ensinar sobre amor, que tricotem, cozinhem, ouçam, pintem, falem com vocês. Eu posso fazer isso, eu gosto de fazer isso.
— Mas…?
Bufei, subitamente incomodado. Agora era a hora de expor a parte minha que não tinha defesa, que só se sentia como injustiçado, talvez irritado com tudo isso. A mente humana funciona de formas curiosas, eu entendo, só não esperava que isso se aplicasse a mim também, ou que eu sentisse vergonha disso. No fundo, seria mais fácil aconselhar alguém na minha condição, com toda essa raiva acumulada e incapacidade de canalizar para o lado certo, para onde pudesse se tornar um progresso espiritual, ou coisa do tipo; mas quando o problema é com você, a visão de tudo fica pessoal, é mais difícil de lidar, de mudar. De qualquer forma, eu apenas deito novamente sob o corpo de Nayeon, inalando o cheiro de biscoitos e chá que emana dela, e desejo que ela me acolha como vovô faria comigo, caso eu tivesse dez anos, e passe merthiolate, ou qualquer coisa que faça esse machucado sarar.
— Mas Jeongguk chegou antes. Jeongguk! — digo, como se fosse um absurdo. — Ele grita, tanto, ele grita muito, e ele é tão inconveniente… É do tipo que tem tudo de mão beijada, que nem mesmo precisa lutar por uma vaga em uma faculdade pública, mas que não se dá ao trabalho de estudar ‘pro vestibular. Talvez ele somente compre algo como uma educação em casa e tenha um diploma que será inútil, porque viverá às custas do pai. O ponto é: a gente briga, briga, briga e eu vivo constantemente lutando pelo meu espaço na praça. É divertido porque eu ganho, é divertido porque se tornou rotina e, admito, tornou toda a questão de administrar a banca mais interessante. Mas era isso, era lutar contra os barulhos dele, em nome do meu silêncio, na praça, e só.
Ela espera que eu continue, sei disso. Mas eu preciso respirar, me acalmar, sentir minha pulsação normal, antes de continuar. Meu rosto fica vermelho e eu sei que o desespero enquanto falo é justamente por sentir todas essas emoções à flor da pele, por nunca ter me dado o luxo de expor elas, de pensar nelas, e de repente estar à mercê de um desabafo com uma velhinha amigável. Seria deplorável, se eu não sentissse que estivesse me ajudando para caramba.
— Disputar com ele na praça é uma coisa. Disputar com ele num asilo, onde eu jurei que seria capaz de lidar bem, de ter sob meu controle, é… É ruim. Eu sinto como se estivesse perdendo não só o meu espaço, não só as discussões, mas também tudo o que sou bom, o que eu gosto de fazer. Sinto como se estivesse falhando com a minha história, com o meu avô — minha voz vai ficando mais baixa, e eu percebo que não tinha pensado sobre isso muitas vezes, mas que tem um peso enorme sob mim. — Falhando… comigo. E não é só questão de perder, é questão de perder ‘pra ele!
Paro de falar, sentindo só o efeito das minhas próprias palavras no meu estômago, revirando ele, e na minha mente, fazendo-a pesar uma tonelada. Eu queria não ser tão inseguro, queria não ser tão competitivo, queria entender de relações sociais como, provavelmente, um psicólogo deveria. A teoria sempre foi mais fácil, de qualquer maneira, a prática sempre me desafiou; me desafiou como naqueles esportes que eu não gostava, e que me machucava. Enquanto via o peito de Nayeon subir e descer, me perguntava se ela me odiava agora, se me achava um mesquinho, se chegou a achar que desperdiçou seu rum com um idiota complexado (e eu não estou falando de justificativa para agressão contra assediadores).
Talvez eu queira meu avô agora, seus bolos ruins e as figurinhas dos meus álbuns. Qualquer coisa que me faça sentir estar em terreno seguro, que não me faça tremer por dentro, meio controlado pelas minhas emoções e pelas sensações que elas me trazem. Porque ter ciência de que sentir o que eu sinto no momento é errado, mas senti-las mesmo assim é péssimo; me faz brigar com a minha própria personalidade, e eu tenho medo que isso desencadeie algum tipo de complexo de autodestruição, como diz os padrões da psicologia. Tudo voa rápido pela minha mente, e eu só penso que odeio, odeio Jeongguk, como nunca odiei ninguém, ou nada, que ele é o culpado por isso tudo e, então, é um choque quando ouço Nayeon falando baixinho:
— Acho que você é mais parecido com a minha neta do que eu me deixei perceber.
Por alguns segundos, fico pensando no significado disso, sem saber se é algo bom ou ruim.
— Ela tinha muito desses sentimentos, dizia que era complicado lidar com a própria cabeça, que às vezes precisava parar e analisar tudo como se estivesse de fora. Pedia minha ajuda, meus conselhos. Sempre me senti especial, sua única conselheira e confidente, pense só na importância disso ‘pra uma avó…
Eu sorri, meio triste, porque a voz dela era melancólica. Quis perguntar como eram essas sessões de terapia entre as duas, se, por acaso, a netinha Lin tinha melhores resultados que os meus, mas não parecia certo; ainda que a lembrança da neta de Nayeon não parecesse triste, faria da morte dela mais real, e eu odiaria lembrá-la dessa dor. Então, eu suspiro de novo, como que descobrindo uma nova mania, e nem consigo levar isso no humor, porque pareço triste, talvez esteja triste. Ainda estava triste quando Nayeon continuou, a voz mais firme:
— Eu vou só tentar fazer com você o que eu faria com ela. Normalmente eu dava chá ‘pra ela, enquanto ela me contava seus problemas e a gente tentava achar soluções criativas, mas só tenho rum aqui — ela diz, movendo o braço para servir mais no copinho e dividir comigo. — Algo me diz que você não vai se importar.
Penso em dizer que ela está certa, mas antes que possa, sinto minha garganta queimar e a bebida descer; ela escolheu um fraco hoje, talvez quase que prevendo essa conversa, e eu me sinto intimidado pelo seu instinto. Velha esperta.
— Para início de conversa, vou te dizer algo que o tempo me ensinou: não importa quanta experiência você tenha, as expectativas vão entrar em batalha com ela, então você vai se ver muito empolgado, talvez muito desanimado, e algo vai acontecer ‘pra te surpreender. A vida é assim, ela não gosta de ser dada como previsível, e tudo bem, porque ela não teria graça se fosse. — Passa uma das mãos pelo meu cabelo, tendo certeza de que estou prestando atenção. — A sua vida botou Jeongguk, o rapazinho ali, ‘pra te surpreender.
Obrigado, viu, vida?, a ironia me escapa pela cabeça, e logo eu percebo que ela não disse isso como algo negativo. Só não entendendo em que ponto a presença do moleque pode ser positiva, mas deixo que continue, porque sua voz me conforta, seu ombro também, e naquele ponto eu nem precisava mais de bebida.
— Entendo que vocês tenham criado esse ambiente de disputa, de brigas, engraçadas ou não. A picuinha dos jovens me deixa confusa, preciso dizer, mas o caso é que, Tae, não acho que seja justo com ele que seja sua surpresa ruim. O que faz dele algo ruim?
— Ahn… Tudo? — pergunto, mais como apontando algo óbvio. Era Jeon Jeongguk, o que nele poderia ser bom? Mas deixo que essa ideia ambígua que eu pareço dividir apenas com meu próprio consciente se dissipe, e sou mais claro. — Ele é arrogante e barulhento. Além de ser um privilegiado que não dá valor ao que tem, já disse isso. Vive me provocando, porque decerto não tem nada melhor ‘pra fazer da vida, e só… Eu não sei, ele me confunde. Quer dizer, ele é tão sociável com todo mundo, mas comigo não? Qual o problema dele comigo? Antes de tudo isso começar, antes dele ir ‘pra praça, jogar truco com a gangue dele, eu tinha uma ideia empática do Jeon.
— Por que não tem mais?
— Porque ele é um porre! Chegou a brigar comigo porque comprou dez chicletes que explodem na boca e um deles não fez isso; então veio pedir reembolso de toda a grana. Isso sem contar as outras várias vezes que ele simplesmente passava de bicicleta pela banca e fazia questão de gritar alguma das gírias do truco, só ‘pra me irritar. Consegue perceber o quão infantil, egocêntrico, chato, mesquinho e idiota esse cara é?
Depois do desabafo, estava vermelho de novo. Gesticulava aos montes, porque a indignação fazia isso comigo, me deixava hiperativo, com necessidade de expressão. No fim, eu não conseguia conter qualquer resquício de bons sentimentos referentes ao Jeon, e não importava se fosse aquele quê de admiração quando ele vestia algo que caía bem, ou só a observação relapsa do olhar dele sob os idosos, quase carinhoso. Só me parecia irreal que ele fosse essa mesma pessoa: tão insuportavelmente briguento, aquela presença chata que te esgota, e o cara que desenha velhinhos de modo realista, se dedica a isso, compra bolinhos de sabor especial para cada um, sorri e mostra sua pintinha no lábio como um charme qualquer. Então eu o odeio, por muitos motivos, mas, principalmente, porque ele parece me odiar mais.
— Queria dizer que o rum ‘tá mexendo com a sua cabeça, mas não posso — ela diz, e eu retorno à realidade, ignorando as conclusões que tirei, voltando a prestar atenção no que ela diz. — Você parece ser assim, meio doido ao natural. Mas me deixe te dizer uma coisa, sim?
Não preciso assentir, ou confirmar de qualquer forma, para que ela siga seu discurso. Agora me encarando nos olhos, parando o afago no meu cabelo, tornando tudo aquilo mais sério. Estremeço entre essa pausa de fala, sem ter ideia do que vem a seguir, mas ansioso de toda maneira.
— Surpresas são sempre boas. Porque trazem conhecimento, trazem mais experiências. São elas que mantém o ciclo da vida tão improvável, e devemos ser gratos a isso. Fico pensando que você nunca parou ‘pra pensar em quantas vezes Jeongguk esteve na praça e você não o percebeu; se ele quis se apresentar como uma surpresa naturalmente boa, mas você, Tae, estava focado demais nas probabilidades reais que existem nesse seu mundinho. Se a personalidade implicante dele não é apenas um reflexo do que pensou ser a forma mais fácil de chamar a sua atenção...
Silêncio. Mordo meu lábio inferior, notando que ela gosta de metáforas e que eu vou levar um sermão, um sermão bonito, mas ainda assim um sermão. Não me importo, de qualquer jeito, porque isso pode ser o início da mudança da minha complexidade, ou como quer que chamem o fato de eu sentir coisas que não gosto de sentir.
— O barulho dele te incomodou quando você passou a percebê-lo, mas e quando ele esteve em silêncio? Talvez frequentasse a praça muito antes da banca estar lá. Talvez ele lidasse com avôs, avós, e pessoas no geral, muito antes de você; já pensou que ele também pode ter bagagem social, e que isso torne mil vezes mais fácil para ele estar aqui? Ou, quem sabe, ele não tenha nenhuma, seja um renegado pela família, e estar em um asilo, com velhos necessitados de atenção, só seja tão bom porque ele também precisa. — Nossos olhos se encontram, e ela pega meu queixo, afaga ali, como faz com uma criança para checar seus reflexos e passar a personalidade afável. — Se ele não foi uma boa surpresa ‘pra você, ainda, talvez se torne. Mas o senhorzinho tem que entender que nem tudo é sobre você e facilitar isso, facilitar a transformação dele. Então, vá até lá, participe com os residentes. Deixe sua velha maluca com o rum dela e torne a presença de Jeongguk não mais um desafio, mas mais experiências.
Eu fecho os olhos, sentindo as palavras dela ecoarem em mim; por toda minha mente, elas percorrem um caminho, encontram meu peito, e fica quentinho. Estou calmo, estou sentindo o que ela quer me ensinar e fica mil vezes mais fácil de entender que não é questão de aprender ou reprovar, de falhar ou de ter sucesso, mas de tentar, quando vejo que isso tudo é importante para ela também. Nayeon disse que eu sou mais parecido com a falecida neta do que ela se deixou perceber. Me faz pensar, ainda com os olhos fechados, sentindo cada partezinha da minha consciência se solidarizar, que talvez ela nunca tenha passado merthiolate nos machucados da neta, da pequena Lin, mas que tenha feito as feridas curarem com um chá, uma conversa cheia de conselhos importantes e um abraço.
O faço então. Finalizo aquela sessão de cura como imagino que ela e a neta faziam: tiro a cabeça de seu ombro, empurro o copinho de shot para longe e aproveito seu corpo contra o meu, num abraço quentinho.
— Deixe a vida ser imprevisível ‘pra você também, Tae. Descubra as boas surpresas — ela diz, e parece suficiente, pelo menos para o momento, mas a mantenho ali, me abraçando, enquanto trocamos nossos perfumes, e eu sinto os diversos tecidos que tapavam seu corpo.
O merthiolate teria ardido menos que suas palavras. Mas não seria eficaz como elas.
[...]
Percebo agora que não fiz jus aos meus reais dotes em todo esse tempo: houve muito além da minha beleza, minha graça, minha inteligência e bom gosto que acabei por não falar. Deveria digitar uma grande lista com todos meus atributos e colá-la nas minhas costas, talvez assim as pessoas — me referia a Jeon Jeongguk, mas, pensando bem, é capaz dele não se encaixar na categoria “pessoa” — sejam mais educadas, ou me valorizem mais.
Deixando de lado meu drama sobre a visão que a sociedade tem de quem sou, preciso atualizá-los do que se encontra no meu perfil: além do que já foi dito, conto também com uma fama no mundo de apostas (sou um sortudo), ótimo com trabalhos manuais e… Cozinho muito bem. Posso não ter sido ensinado por grandes cozinheiros, chefs renomados ou algo assim, mas me orgulho de ser dono de um tempero único. E Jimin pode comprovar! As madrugadas de inverno frio sempre contam com sua presença enxerida pedindo carinho, meu melhor cobertor e “aquela sopa que só você sabe fazer, TaeTae…”. No fim, sou um cozinheiro de mão cheia e um amigo incrível, alimento Jimin e o vejo ficar por mais noites adentro, o tempo que a sopa dura.
Mas se fazer caldinhos nutritivos não é suficiente para você, saiba que eu asso salgados muito bem, e tenho facilidade com comidas de sal cotidianas; kimchi, carnes e o que quer que pense em querer: eu sou bom nisso. Minha única falha — porque, provavelmente, Deus percebeu que estava me fazendo muito parecido a sua imagem e decidiu que isso era demais para as minhas lindas costas carregarem — é no mundo dos doces. Não que eu seja um caso perdido, eu me viro com receitas estrangeiras e tutoriais no YouTube, mas não é algo que eu possa fazer de olhos fechados.
Como disse Nayeon, questão de alguns dias atrás, talvez cinco, a vida é movida de surpresas. E eu sou um cara realmente adaptável! Quando soube, por intermédio da própria mentora do asilo, que haveria uma dinâmica proposta por ela para fazer com que todos no asilo se sentissem confortáveis juntos, e que tinha haver com comida, me animei. Primeiro porque pensei que comeria de graça, mas claro, Nayeon não seria tão boazinha comigo… Acabou que ela revelou uma competição de culinária. Com temática doce.
Teria sido ótimo, porque eu acabaria com tempo suficiente para pesquisar, me planejar e fazer algo agradável ao paladar — e não estou dizendo que eu faria tudo isso para ganhar a competição. Haha —, mas, novamente, Nayeon não seria tão boazinha comigo. Ela disse que seria uma dinâmica de grupo contra grupo, e separou os interessados em dois deles: grupos médios, de velhinhos realmente empolgados, eu, Jeongguk e duas cozinheiras do próprio asilo, que seriam mentoras e ajudantes diretas.
Possivelmente para tornar a coisa toda mais justa, foi feito um sorteio. Certo da minha sorte, torci para que ficasse em um grupo com pessoas pacíficas, que me auxiliassem quando preciso e que soubessem trabalhar com grande número de pessoas. Deveria saber que, de todas as surpresas do mundo, a vida parecia deixar só as piores para mim… Acontece que a minha sorte se aplica somente a apostas, pelo visto, pois, tendo dois possíveis grupos quase que completamente montados, meu nome foi anunciado e precisava seguir do número 2 (o número referente ao grupo sem Jeongguk). Mas, como era de se esperar:
— Taehyung, você fará parte do grupo… 1!
Preciso conter um revirar de olhos, mas se torna quase impossível quando escuto Jeongguk bufar; como se a minha presença não fosse desejada… Pois bem, agora esse emozinho de quinta estaria ciente dos meus dotes, e eu faria meu melhor para provar que a equipe não poderia estar melhor com a minha participação!
Caminhei orgulhosamente até ele, Gerald (um velhinho muito simpático dono de uma calopsita), Yuta, o senhor Shin, e duas velhas que eram as “seguidoras da Sana”. Eu achei engraçado quando, ao sortear para si própria um grupo, Nayeon caiu com a própria Sana — parecia justiça divina… Pisquei para ela, que fechou a cara e bateu um pulso no outro, o que sempre faz quando deseja que alguém vá para aquele local inapropriado, como a própria me revelou. Tive vontade de rir e mostrar minha língua a ela, afinal, esse é o melhor jeito de se fortalecer amizades, imagino, mas antes que pudesse, um corpo grande e vestido de preto entrou no meu campo de visão. Antes mesmo de erguer o olhar, soube que era Jeongguk; denunciado pela coloração do tecido de suas roupas, ou pelo perfume forte, de todo modo, precisei me esforçar para não elogiar seu cheiro (ele tinha dessas às vezes, aparecer com uma novidade na aparência que, por milésimos de segundo, me deixava beirando a atração), e simplesmente encará-lo com tédio.
— Vai, fala, pitbull — depois de todo o caos com o apelido, e as idas dele à banca apenas para perguntar se a camiseta que vestia no dia deixavam seus músculos bem a mostra (sempre deixavam, mas eu não diria isso nem morto), eu me rendi a chamá-lo assim publicamente. Nayeon me censurava com o olhar sempre que eu o fazia, mas sabia que ela tinha vontade de rir.
— Não quero que fique se metendo com a comida como faz com o truco, tudo bem? — Seu tom era manso, apesar da fala ser uma ordem. Jeongguk me confundia, e um dos motivos era essa sua dualidade estranha, o jeito que falava e que parecia não expressar certamente o que falava; o jeito que se vestia versus o jeito que era; complexo estranho e meio paradoxal, e que, admito, me deixava meio fora de órbita.
Talvez por estar imerso nessa interpretação estranha que eu tinha de como ele era e como tentava ser, esqueci de responder de imediato. Não que tivesse palavras certas para isso, no fim, a minha raiva continuava a ser canalizada para ele, e eu sabia que, se abrisse a boca, não sairiam coisas muito legais. Então só virei o rosto, me recusando a discutir com ele, que pareceu até meio surpreso. Não que eu ligasse, de qualquer forma, era só um jeito de evitar o peso na minha própria consciência por como eu o tratava (mesmo que ele merecesse).
Seguimos para a grande cozinha, não aquela parte com uma mesa redonda de madeira e armários aéreos que eu e Nayeon costumávamos ficar sempre que íamos fofocar, ainda que não acontecesse mais com tanta frequência, desde que a nossa conversa aconteceu e eu decidi, literalmente, me infiltrar na rotina dos idosos — oferecendo minha ajuda, fazendo o possível para entretê-los e, às vezes, até parando apenas de ouvir para falar também. Era bom, não apenas interagir mais com os velhinhos, mas conhecer partes do asilo que passaram batido no primeiro dia (ou na primeira semana).
O espaço era amplo, e eu pensei que se me dessem uma daquelas os chefes de cozinha teriam inveja do meu desempenho. Aquele brasileiro do programa que eu gostava de ver, legendado, ainda que na versão original, cheio de tatuagens legais e que falava grosso com os competidores do MasterChef Brasil… Lhe daria uma surra de sabor, pode apostar que sim! Mas, precisei lembrar, não estávamos nesse programa e a cozinha não era minha, então deixei meu desejo por liderança de lado e me concentrei em ouvir as ideias do grupo.
— A gente pode fazer aqueles bolinhos de festa de aniversário, que são pequeninos e de chocolate! — o senhor Shin disse, e eu soube que ele estava falando de cupcakes, achando fofa sua descrição. Ri e disse que por mim tudo bem, desde que alguém dali soubesse fazer glacê de chocolate para a cobertura.
Ninguém sabia, e a equipe ficou em silêncio até que outra ideia surgisse, e eu torci para que fosse simples, porque não queria ser o cara que problematizasse todas as opções…
— E se a gente fizer um sorvete caseiro? — uma das Seguidoras (me acostumei com o apelido dado por Nayeon, e no fim não lembro de seus nomes reais) disse, e me pareceu boa coisa. Até me permiti ficar animado, eu entendia de coisas geladas e aquilo realmente poderia dar certo.
— Não dá, desde que o Jungsu desmaiou com ataque de diabetes os produtos que eles compram ‘pra cozinha tem um valor de sacarose menor, não vai ter o mesmo gosto — me surpreendeu que uma observação realmente útil tenha vindo da boca de ninguém menos que Jeongguk, e isso me fez querer bater com um martelo na minha cabeça (toooin), em primeiro lugar porque eu nem mesmo sabia que houve um caso problemático com diabetes e, em segundo, porque isso me lembrou da conversa com Nayeon, e eu percebi minha dificuldade em deixar Jeongguk se tornar uma surpresa boa.
Mais um tempo sem que ninguém dissesse nada, e eu aproveitei para me escorar na bancada de mármore, a parte grande que só ficava dividida pelo forno elétrico em uma extremidade e o fogão cooktop na outra. E foi percebendo a disposição da cozinha que eu pensei em algo; revisei mentalmente o que é preciso na receita, conforme uma vez eu tinha visto na internet, e percebi que não era nada que não pudesse ser feito em grande quantidade e para velhos amigáveis que sofrem de doenças cardíacas e o que comem tem impacto no seu equilíbrio biológico, em outras palavras, seria uma receita inofensiva.
— Hum, e quem sabe… — comecei a falar, meio receoso, ainda me apoiando com ambas as mãos na bancada. Por dentro, tremia mais que vara verde, não por medo de reprovação da minha ideia, mas por estar enganado e aquilo ser sim algo perigoso para os velhotes. — Sequilhos? Aqueles biscoitinhos de nata que derretem na boca, são vendidos em padarias e bem gostosos, dá ‘pra ser feito sem muito açúcar e tal.
As duas mulheres e os dois homens se encararam, e eu só conseguia morder a boca, por dentro torcendo para que todos concordassem. De repente me senti um daqueles competidores de novo, esperando pela aprovação dos chefes; como mais uma daquelas metáforas que meu cérebro fazia sem que eu tivesse controle sobre, a imagem do tal do Henrique Fogaça se misturou a quem eu olhava pelo canto do olho: Jeongguk.
Jeongguk e seus grandes casacos, suas grandes camisetas, seus jeans apertados e seus coturnos de plataforma. Ele encarava o chão, os cabelos grandinhos caíam na testa, e só então eu percebo que o tempo passou e sua franja ficou ondulada, aqueles pseudo cachos me fazendo ter vontade de encará-lo por um tempo maior que a eternidade; eu não consigo ver sua expressão, mas, algo dentro de mim, diz que ele sorri. Isso me faz despertar, porque noto movimentação sua e só então eu percebo que todos os olhares estão direcionados a mim.
— Taehyung, querido? — A outra Seguidora diz e eu preciso fazer um esforço enorme para me concentrar, quase como os que eu precisava fazer durante as aulas de Álgebra, e isso me faz reprimir uma careta (álgebra, ew!) — Ouviu o que falamos?
— Na… — percebi minha voz rouca, e arranhei a garganta, tentando fazer com que ela parasse de soar como uma versão ruim do “ugo” do shrek — Na verdade não, desculpa. O que disseram?
Houve uma espécie de compaixão no olhar deles e isso me fez descobrir duas coisas: a primeira, é que velhos são esquisitos, muito esquisitos. Dando por mim, unindo os fatos e percebendo que eles sabiam exatamente o que me deixou repentinamente distraído, percebo que são duplamente observadores. Alguém traz o martelinho de novo, por favor? é o que quero dizer, mas me contenho ao ouvir Gerald dizer que a ideia dos biscoitinhos foi aprovada, e que começaríamos já.
Sorri, percebendo que estavam todos empolgados. Eu estava fazendo progresso com toda aquela coisa de parar de encarar tudo como uma competição e entender que eu não estava falhando, desde que tivesse fazendo o meu melhor; interagir e tal. Vestimos os aventais que uma das cozinheiras nos deu, e me diverti enquanto colocava a touca protetora, clarinha e de TNT nos fios grisalhos do senhor Shin e das Seguidoras. Gerald ficou por conta de Jeongguk, assim como Yuta, e isso parecia bom, porque nem nos demos o trabalho de fazer com que isso virasse pauta de discussão.
Logo, todos do grupo tinham higienizado as mãos e estávamos prontos para iniciar… E, aparentemente, eu estava no comando. Pedi, gentilmente, para que os homens se encarregassem de separar os ingredientes (que eram apenas 4, apesar de ser em grande quantidade, porque a receita não rendia muito), enquanto eu e as mulheres ocupávamos em pegar batedeira, cuê, copo medidor, uma grande tigela e uma forma retangular. Jeongguk, por sua vez, surpreendentemente, sabia exatamente o que fazer quando pegou a tigela e os ingredientes chegaram até suas mãos.
— Primeiro os ingredientes secos, pitbull de avental — eu falei, brincalhão, sem segurar a língua, e quase pude sentir o olhar de Nayeon, lá do outro lado da extensa bancada, sob mim. Ele revirou os olhos, e eu sabia que faria um alto som de respiração, mas, interrompendo o ciclo, continuei: — Fica fofo em você, no fim.
Isso o calou. Na verdade, tive a impressão de que ele até parou a ação que conduzia, o que me fez rir internamente. Eu voltei ao que estava fazendo, decidindo com as meninas qual das formas era melhor: a mais alta ou a mais baixa. Me peguei distraído apenas quando Jeongguk interrompeu a gente, dirigindo-se para o nosso meio, pedindo licença baixinho e pegando o cuê para bater todos os ingredientes a mão. O segui com o olhar, enxergando o exato momento quando dobrou a parte mais longa da manga do casaco e eu juro que estava sóbrio quando vi resquícios de tinta preta na pele dele…
De novo, questionei a minha sobriedade. Aí lembrei que Nayeon não me dera rum hoje, bebi apenas o achocolatado de sempre, mas então comecei a notar um padrão novo: aparentemente, toda vez que eu pensava em Jeongguk e relacionava-o com uma metáfora qualquer (como a do cachorro e a do Henrique Fogaça) surgiam indícios de que eu estava certo. Pensei que a tinta preta fosse de desenhos permanentes, tatuagens; recuei em pensamento, sem saber se estava projetando nele o chefe de cozinha brasileiro mesmo. No fim, deixei o pensamento de lado, mas só porque o ouvi dizer:
— Senhora Lee? Consegue me estender a batedeira? E, Gerald, bota o forno ‘pra pré-aquecer, por favor. Yuta já untou a forma, o.k, vou apenas bater um pouco mais para que o aspecto aerado fique firme e…
— E o quê? Você sabe o resto da receita, por acaso? Pretende continuar trabalhando sozinho, e não em equipe? — o interrompi, cruzando os braços e falando ríspido. Quem ele achava que era?
Ele demorou a entender que eu estava falando diretamente com ele, mas o fazendo e em seguida apoiando suas costas em uma tripa de armários, parando com os movimentos da mão que batiam a massa. Estufou o peito, parecendo ofendido, meio intrigado, e riu baixo.
— Você é idiota, Kim. ‘Tô trabalhando sim em equipe, você não percebeu porque parece mais a fim de apreciar meus músculos no avental.
Dessa vez, quem parece intrigado sou eu. Arregalo meus olhos com a ofensa, descruzando os braços e batendo inconscientemente o pé no chão, ofendido. De boa, esse garoto conseguia ser um porre, um arrogante e ainda por cima pensar que eu, logo eu, cheio dos atributos, do bom gosto, de decência, iria perceber isso nele! Audácia.
— Ah, cala boca! — foi tudo que consegui responder, sem suavizar minha expressão. — Não pareço nada, seu falador.
— Qual é, Taehyung, vamos… — ele sorri, daquele jeito debochado, superior, e eu tenho vontade de estragar essas suas covinhas a mostra com um soco. Ou talvez outro tênis. — Admita que meu porte de atleta te atraí, hum?
Consigo parecer mais horrorizado com a ideia do que realmente estou. Eu nunca, nunca mesmo, admitiria isso, mas não é como se ele estivesse errado… Ainda assim, mantenho meu discurso e faço a atuação do século, deixando muita novela mexicana no chinelo, quando nego fervorosamente com a cabeça e volto a cruzar os braços. Tento parecer mais tranquilo ao ter meu quadril um pouco abaixo da bancada, repetindo para mim mesmo que ele só estava falando aquilo da boca para fora e não tinha percebido o quão bonito era aos meus olhos.
— Nem se você fosse o último homem da Terra!
— Não me magoe assim… — ele faz um beicinho com a boca, e eu volto a notar a pintinha ali, me odiando por isso. Agarra-se à tigela e chama a minha atenção para o fato de que faz isso com somente um braço, parece um teste a minha sanidade. — Repete isso aí, repete.
Me forço a parecer bravo, mas minha pose vacila. Não há muito o que fazer, estão todos olhando, e eu só espero que minha boca não me traia e acabe por me entregando; não é como se eu fosse apaixonado nesse idiota, ainda que, de alguma forma muito, muito esquisita, ele faça o meu tipo. Aquele cabelo grandinho e o rosto angelical, é como se fosse um atentado ao mundo que ele fosse, proporcionalmente, tão bonito e tão chato.
— Nem. Se. Você. Fosse. O. Último. Homem. Da. Terra!
Minha fala pausada deveria dar crédito ao que era dito, ou qualquer coisa assim, e pensar nisso me fez sentir inocente. Era quase como se eu não soubesse como funciona essa personalidade provocativa de Jeongguk: ele aproximava-se a cada palavra dita, seu perfume invadindo meu nariz, sua imagem bonita e bem vestia simplesmente perto demais. Perigoso, era perigoso, porque além de conhecê-lo, eu conhecia meus limites, e eles não aguentavam aquilo, principalmente quando Jeongguk fazia questão de mover os quase-cachinhos com uma mão, enquanto ria baixo, fazendo seu peito tremer e a boca colorida de vermelho abrir; tão, tão perto. Senti minhas pernas vacilarem e meu olhar sustentado sob o seu com certeza parecia mais assustado do que eu desejado, mas não por essa rivalidade estranha que sempre acaba com a gente dividindo a mesma troca de ar, os rostos próximos e provocações como “fala de novo” ou “você é tapado?” saindo no automático, as vezes nem chegando a ter resposta.
— Garoto obediente — ele diz, e eu quase não assimilo, até que ele torne claro: — Repetiu, bem como eu mandei.
Apoio minhas mãos em seu peito coberto pela camiseta preta, inicialmente para afastá-lo, um toque inocente. Desistindo do empurrão, e cedendo a minha vontade de simplesmente deixá-las ali. Queria apertar, só para ver se os músculos do local eram tão rígidos quanto minha imaginação achava… Nunca eu, claro, jamais pensaria sobre a rigidez da barriga e peitoral de Jeon Jeongguk! Seria uma ofensa a mim se alguém chegasse a pensar que eu faria algo assim, obviamente não; isso não é coisa para se pensar de seu rival, certamente. E exatamente por ser culpa apenas da minha imaginação, continuei apoiando meu toque ali, mirando em seus olhos, que eram pretos, escuro, mas que brilhavam em linhas imaginárias, o desafio fazendo isso, causando isso.
— Você não manda em nada, Jeon. Nem em mim, nem nessa equipe. Se toca — não digo muito mais que isso, pois me comprometeria; não precisa, de qualquer jeito, porque ele entende que eu levei nosso desafio a outro patamar.
Não é mais sobre nossa discussão, a cozinha, ou o fato de eu negar essa possível atração. É pelas coisas que ele insinuou, e pelo que eu respondi. Uma conversa de adultos tão discreta que, possivelmente, nem Nayeon tenha entendido como ocorrerra, ou do que se tratava. De qualquer jeito, era o nosso sistema: essa competição intensa sobre quem dominaria discussões, espaços, quem tinha mais argumentos, acusações.
— É mesmo, Kim? Ou só diz isso para tentar se convencer de que é verdade? — Ele sorri, sorri de novo e eu juro que tento não olhar para seus dentes, sua língua ou a maldita pintinha. Foco em seus olhos, e não parece suficiente, nunca parece suficiente.
Agindo por impulso, o que eu começo a pensar que é algum mecanismo de defesa que eu desenvolvi para lidar com Jeongguk, eu pego a grande tigela. Não sei o que vou fazer com ela, mas a pego, e seguro forte, como se fosse algum tipo de demonstração do que eu sou capaz. Então me aproximo mais, com ela em mãos, sentindo o metal tamborilar sob meus dedos, e digo, tão pausadamente quanto antes: “você nem imagina o que é ou não verdade, Jeongguk”.
Não faz muito sentido quando dito fora de contexto, mas eu tinha certeza de que seria interpretado da forma que eu gostaria, ele entendia, afinal, sobre o que tudo aquilo dizia; travava aquela batalha comigo, e estaria até o final tentando me convencer de que sabia algo sobre mim. Eu não lhe daria esse gosto, entretanto.
— Mas é o que pretendo descobrir — diz, pisca e passa, delicamente, a língua sob o lábio inferior. Minha cabeça entra em pife instantâneo, de repente notando que talvez ele tenha notado minha fixação pela maldita pintinha, ou por toda sua atrativa e estranha beleza.
Acordo do transe quando sinto a tigela magicamente não estar em minha posse, notando que está nos braços de Jeongguk, e ergo a sobrancelha. Aquilo era uma espécie de jogo paralelo a argumentação, por acaso? Então que assim fosse. Esperei que estivesse distraído comigo, naqueles três segundos de prepotência que se é contado alto quando ele enruga os olhos ao me encarar fixo, e a puxei de volta, sorrindo sapeca em resposta.
Dali em diante, fazemos da tigela algum tipo de competição real, e chega a ser estranho como refletimos a necessidade de parecer superior com uma tigela de alumínio sendo puxada, e depois arrancada por outro, em seguida puxada e assim segue o ciclo. Fizemos isso, no mínimo, umas seis vezes, a velocidade do ‘’pega-tira’’ aumentando gradativamente, saindo do nosso controle, como todas as nossas brigas, que começava para ver quem controlava mais e acabava com ambos impotentes. Acontece que dessa vez não teve delegacia ou falsas ameaças, mas sim uma tigela que pareceu se rebelar contra a gente e simplesmente voou sob nossas cabeças lá pela sétima ou oitava puxada, enquanto nos agarrávamos a ela juntos, botando firmeza demais, sem entender exatamente quando os dois puseram-a para cima e soltaram.
Ela voou alto, por cima dos nossos braços e parecia um foguete em direção à lua; quando girou 360 graus e vimos a massa escorrer, pouco a pouco, em câmera lenta, nossos olhos se arregalaram. Eu gritei um “nããããããããooooo” prolongado, como se acompanhasse a massa, caindo ao chão, sendo seguido por Jeongguk, que implorava para alguém, sem ninguém exatamente: — Segura! Segura!
Não houve indícios de que alguém fosse segurar. Era muita massa indo ao chão, eu não conseguia acompanhar. Depois disso, tudo aconteceu muito rápido: em um segundo a tigela voava e, em outro, Jeon deitava no chão, escorregando em direção ao que caía da massa, tropeçando nos próprios pés e só se mantendo com o pescoço e braços para cima, o corpo já colado ao piso sujo. A tigela tocou um de seus dedos, mas voltou a girar e, antes que percebêssemos, ela acabou indo ao chão, vazia, girando sob o próprio eixo; o que terminou melhor que Jeongguk, uma vez que o mesmo tinha o corpo impulsionado pela massa derramada, a parte lisa fazendo-o deslizar livremente pelo piso e, pouco depois, tombava contra Gerald.
Gerald, um velhinho magro, velho e que estava sem bengala. Gerald, que não tinha forças para segurar dois livros na mesma mão. Gerald que, atingindo pelo corpo bem impulsionado do enorme Jeongguk, foi ao chão. De costas. E ficou inconsciente.
Só consegui assimilar o monte de velho ao redor de Gerald, Jeongguk tentando se levantar e caindo, graças a massa aerada que continuava no chão e, por um segundo, todos em silêncio, pensando que ele havia desmaiado também. Não tínhamos tanta sorte, queria dizer, porque ele continuava ativo, ativo e desesperado; não fiquei para ver suas gesticulações e desculpas aos montes, corri para a recepção e usei o telefone de linha para chamar uma ambulância, porque já não apostaria na melhor das condições de Gerald.
Parte de mim temeu pela sua calopsita, que ficaria sem dono caso algo grave realmente tivesse acontecido, se não fosse somente um desmaio… A minha ansiedade crônica não pode despejar mais pensamentos ruins, porque logo a ambulância estava ali e, junto a ela, paramédicos, que levaram rapidamente o seu Gerald em uma tábua grande e amarela, para dentro do veículo, e chamou os dois envolvidos no acidente para ir junto: eu, Jeongguk e Nayeon, que ainda respondia como responsável pelo asilo (e por tudo que acontecia nele).
O trajeto até o hospital teria sido mais tranquilo, se Jeongguk tivesse calado a boca e eu não tivesse literalmente gritado até que ele o fizesse. Saímos do veículo nos empurrando, como duas crianças, mas eu não ligava mais; por um segundo, me agaichei, prestes a arrancar meu tênis do pé, e ele se afastou. Voltei a minha posição inicial, ameaçando-o, mas nada foi diretamente feito após isso. Nayeon voltou da sala em que correu com os paramédicos para deixar Gerald, dizendo que ele ficaria sob supervisão, ainda que os exames não tivessem mostrado contusões ou feridas graves, apenas um desmaio pela pressão que baixou na hora, com o susto.
— Coisa de velho — ela disse, tentando nos acalmar. Eu conseguia ver suas mãos tremendo, no entanto, a feição preocupada. Agarrei-a em um abraço apertado, sentindo suas unhas rasparem na minha camiseta solta, e só fiz questão de largá-la para dizer:
— Vou buscar um café ‘pra você. Jeongguk, você vem comigo. — já devidamente assustado, o meu olhar Botador de Medo nem surtiu efeito, e só o vi arrastar os grandes sapatos de plataforma atrás de mim.
Eu caminhava rápido, o hospital era grande e frio, aquele branco todo estava me dando uma vertigem. Agradeci aos céus quando achamos a cafeteria, e, antes que Jeongguk passasse por mim, com sua cabeça baixa e postura torta, o agarrei pela manga do casaco, arrastando-o até uma das mesas mais afastadas, mas sem me sentar. Ele não deu indícios de que o faria, e eu só me perguntei por onde começar.
— Você… Você… — eu repeti, atordoado, os olhos dele parecendo maiores. Mas eu não tinha pena, não quando ele causou uma bagunça tão grande. — Tem noção do que acabou de fazer, porra?
Ele suspirou, assentindo. Em choque ou não, ele parecia consciente da situação que nos colocou e do perigo que representou ao velho Gerald. Queria falar do quanto meu corpo tremeu quando o vi cair, quando o vi fechar os olhos; mas não podia, não podia porque Jeongguk já estava assustado, e eu não queria piorar as coisas. No fim, apenas mordi a parte interior da minha bochecha, ficando em silêncio. Ele não disse nada, e eu só esperava que Nayeon não estivesse se culpando pela bagunça que armamos.
— Eu não queria ter feito isso, não queria ter feito ele desmaiar. — Jeongguk fala, o fio de voz tão baixo que eu quase pude sentir a garganta dele doer ao dizer aquilo. Não sei se me deixou mais irritado, pelo fato de eu realmente me compadecer, coisa que eu não deveria estar fazendo, principalmente quando ele causou isso, não eu, ou somente a percepção de que estávamos parados como se algo fosse se resolver assim.
Caminhei até a tenda de pedidos da cafeteria, meu punho fechado, e eu já não tinha certeza se o que sentia ainda era medo, pelo Gerald, raiva de Jeongguk ou pena de Nayeon. Talvez uma mistura de coisas, mas tinha algo, algo mais amargo que isso; que acontecia quando eu bebia o rum mais forte do Armário Secreto e sentia-o descer pela garganta, chegar no estômago e explodir em ardência. Tentei não dar importância a isso enquanto fazia o pedido — um café preto, apenas, sem açúcar —, paguei do meu próprio dinheiro e voltei a encarar Jeongguk, que enfiara as mãos no bolso do grande casaco e parecia tão desconcertado quanto um peixe fora da água.
— Você vacilou — é tudo que digo, antes de sair da cafeteria, o café em mãos, sem direção senão Nayeon na sala de espera. Sigo tão firme que quase penso estar alucinando quando, de longe, escuto:
— Espera aí! Eu? Eu vacilei?
Já não importava mais o quão doce a voz de Jeongguk poderia parecer, ali, era áspera, meio aguda. Ele estava claramente me cobrando de algo, e eu não sabia do que era, ainda que no fundo, enquanto meu estômago revirava e eu sentia minha pulsação mais forte, eu sentia que sim, sentia que ele tinha razão. Parei no corredor e ouvi o som característico de seus coturnos, a borracha da sola batendo contra o chão, ele se aproximando, ele perto de novo.
Não preciso me virar para saber que ele está atrás de mim com uma carranca. Sinto seu perfume, de novo, e sinto, sinto sua ira. Assim como sinto a mão ossuda no meu ombro, virando-me de súbito e me fazendo grato ao copinho do café ter tampa. Não sei como definir tudo que passa em seu rosto, é como se eu já não estivesse mais autorizado a ler suas expressões e, pela confusão que ele aparenta estar, eu não sei se era algo ruim. Espero que a gente comece outra discussão, ali, no meio do corredor. Mas tudo que ganho é ele segurando lágrimas grossas e sua voz demorando a acompanhar quando a boca abre.
— Você não… Não pode fazer isso — ele diz, tranca a respiração e continua com dificuldade. — Me culpar. Eu nunca quis Gerald desmaiado! Isso não é engraçado, não é sobre a gente, discussões estúpidas, água mineral ou um tênis acertando a minha cabeça!
Por um tempo, penso que é isso que ele tem a dizer, que ele cansou e não vai mais prosseguir. Então, mexe no casaco, parece apertar a própria mão dentro do bolso, olha para os lados e balança a cabeça, sem muita ação e nem reação. Não quero dizer nada, não vou dizer nada. O café ainda está quente ao meu toque, e eu seguro com mais força, não porque preciso, mas porque percebo que sim, ele tem mais a falar.
— Ele ‘tá internado. Quando entrou na ambulância… Quando, quando ele… — palavras passam pela sua cabeça, quase consigo ouví-las, mas não interfiro, nem para completar sua frase, deixo que ache as melhores e continue. — Quando Gerald ‘tava na porra da ambulância, merda, eu achei que ele não estivesse vivo. Tinha pulso, tinha respiração. Fiquei apavorado. Me senti responsável por aquilo, e doeu, doeu porque eu não queria fazer aquilo. E não fiz, não sozinho. Nós fizemos.
Tinha mais entalado em sua garganta, muito mais, e eu sabia. Só que não ia aguentar que despejasse isso sob mim; tendo razão ou não, eu também nunca quis Gerald nessas condições, em meio a um desmaio, e eu como parte da culpa. Não era justo que eu fosse quem aguentasse a minha culpa, por si só, e a que ele jogava em mim — em meio a essa conclusão, sorrio, amargo, sem conseguir sustentar. Porque percebo que é o que tenho feito com ele todo esse tempo; despejado minhas frustrações, canalizado minha raiva para ele, alimentado algo que não passaria de uma rixa boba, se não fosse a ideia insistente de que precisava ser melhor que Jeongguk.
Mas agora era um ciclo e eu não sabia se conseguia rompê-lo, não mais. Principalmente com tanta raiva, interna, gritando o nome dele, que era culpa dele. O fato de eu estar assim, de estar sendo ruim. Ele fez a primeira provocação, ele usou a minha praça, ele… E eu já não tinha mais argumentos, nem para discutir com a minha própria consciência. Apenas virei de costas e rumei para a sala de espera.
Atrás de mim, Jeongguk gritava. Me xingava aos berros, me culpava, só fazia minha irritação aumentar e eu não vi quando o copo amassou em minhas mãos. Também não vi quando Jeongguk me seguiu, ou quando chegamos de encontro a Nayeon, e ele ainda gritava; alcancei a ela a bebida que já não estava mais tão quente. Me virei para ele, e tive certeza, pelo jeito que seus olhos estavam vermelhos, não pelo choro recente, mas pela ira, que, dessa vez, partiríamos para a briga física.
Não esperei que ele iniciasse aquilo, e simplesmente estufei o peito, perguntei que porra ele queria de mim. Ele não ergueu o punho primeiro, nem eu. Apenas nos encaramos, e ele se aproximava, cada vez mais. Deixei que estivesse cara-a-cara comigo e o agarrei pela gola do casaco, ele fez o mesmo com a minha blusa, estávamos suspensos pela brutalidade um do outro. Ele me mandou soltar, e eu ri, ri alto, enquanto ouvia Nayeon mandando que nos soltássemos.
Uma das minhas mãos saiu da gola dele e foi parar em seu cabelo, eu prestes a puxar, quando ele subiu o joelho. Ia me chutar. Eu ia puxar seu cabelo. Aquela maldita briga iria, novamente, longe demais, longe demais, e eu tinha certeza que não estava pronto para lidar com as consequências disso. Fechei meus olhos, esperando pelo chute, pelo soco, pelo empurrão, o que quer que ele tinha para me dar, para me punir; um, dois, três.
Nada veio. Ouvi a voz do médico ao fundo. Jeongguk afrouxou o toque no meu colarinho.
— Acompanhantes de J. Gerald? Ele acordou. Me sigam, por favor.
O doutor Min, conforme dizia em seu crachá, parecia novo, mas entendia dos procedimentos locais. Se apresentou como Yoongi, disse que ficou responsável pela observação de Gerald e que não quis ninguém da equipe própria no quarto, porque confiava era nos próprios instintos. Deixou que ficássemos no quarto 233 e disse que, qualquer emergência que houvesse, poderíamos acionar o botão verde na cabeceira da cama onde Gerald estava deitado. Mais detalhes sobre o que se passou com o velho seriam passados depois, quando Yoongi e Nayeon estivessem à sós, e foi isso que dissipou o clima de preocupação ali.
— Aí estão vocês. — Gerald diz, e sua voz é tão fraca que eu quase digo para que não se importasse em falar, eu mesmo faria por ele. Me contento em dar um sorriso, meio atordoado, e ver Nayeon pegar sua mão sob o lençol claro.
— Velho fracote… Você nos deu um belo susto! — Ela diz e todos deixamos que uma risadinha escape, inclusive o próprio Gerald, que sorri para Nayeon e promete não fazer mais, como uma criança obediente faria.
Demora até que mais alguém fale, e eu não sei se o clima de culpa é só na minha cabeça ou se ele realmente transborda por todo o quarto branco. Me sinto prestes a chorar quando Jeongguk corta o silêncio, pedindo desculpas, num fio de voz; não sei o que sinto na hora, é quase como pena, mas também raiva, porque ele está fazendo de novo: está tomando a minha culpa, para depois jogá-la na minha cara.
— Ora, não precisa pedir desculpa, rapaz. — Gerald diz, os olhos presos em Jeongguk, afável como um bom velhinho de quase noventa anos. — Eu que sou fraco ‘pra essas coisas, os jovens devem sentir pena das aventuras que perco.
Parece engraçado, mas não consigo rir. A única pena que sinto é de ver ele tão pequeno na maca, os braços tapados pelo lençol, de repente sinto que talvez ele esteja com frio e não consigo parar de perceber o quanto suas pernas tremem. O impulso de sair do quarto me toma, mas antes que eu o faça, ouço a voz familiar de Jeongguk novamente:
— Não, não. Preciso me desculpar sim, fiz uma grande burrada me deixando levar pelas provocações de Taehyung. Te coloquei em risco, seu Gerald! E
E aí está, o pequeno babaca de novo. Sinto meu olho tremer, não sei se pela irritação de tudo aquilo ou se porque as palavras de Jeon me fazem realmente um idiota e eu sinto isso forte.
— Peço desculpas também, seu Gerald. No fim, Jeongguk não deveria ter tomado controle da equipe que eu achei que trabalhasse em conjunto, ele fez mesmo uma grande burrada nascendo! — respondo, o ínicio para o velho, mas depois me dirigindo explícitamente ao Jeon, tendo certeza de que havia recebido o recado e sorrindo cínico.
— Minha única burrada foi ter me rebaixado ao seu nível, Taehyung, não se engane. Você não vai conseguir jogar a culpa de mais uma de suas irresponsabilidades ‘pra mim de novo, idiota.
Viro meu corpo completamente para ele, que ainda parece perdido entre a maca e a porta. Ouço Nayeon falar algo como “de novo não…”, mas não presto atenção, não parece minha prioridade, pelo menos não quando Jeongguk consegue ser um babaca de primeira e ainda por cima sair como bonzinho. Mais do que irritado, estava farto daquilo; existia parte da rotina de brigar com ele que era divertida, como quando ele me pedia o valor de cinco chicletes de volta, ou quando me pedia uma Pastelina salgada e me chamava de egoísta por não dar. Até as brigas sobre o truco conseguiam ser interessantes, mas não isso. Não quando ele me tirava do sério, e ainda assim agia como se tivesse razão. Isso era desgastante.
— Você é um babaca, Jeon. Um arrogante que não percebe que você mesmo causou isso, porque vive pondo sua cabecinha nas nuvens e simplesmente se recusa a ver que Gerald ‘tá em uma cama de hospital porque você não consegue ficar cinco minutos sem se achar superior, e isso me irrita! Me irrita porque você é um estúpido, um estúpido sem noção!
Grito, sem querer gritar. Nayeon desistiu de tentar chamar nossa atenção e eu já não sei mais como o seu Gerald está quando Jeongguk também se vira para mim, a expressão ofendida, mas tudo que eu consigo sentir é raiva, ela gritando por cada cantinho do meu corpo. O pior era saber que existia certa razão no que ele falava, mas admitir seria como perder, perder mais que o argumento, mas perder o que eu consegui progredir dentro do asilo. Não quis mandar Gerald para o hospital. Mas fiz. Fiz porque não sei lidar com Jeongguk sendo um porre a todo instante, enquanto consegue ser um doce com todas as outras pessoas do mundo; ele me odeia, e eu não consigo entender esse ódio, então lido com isso odiando-o de volta. Odiando-o mais.
— Certo, porque era eu que estava simplesmente encarando meus músculos enquanto todos estavam tentando fazer a porcaria da receita de biscoitos! — Jeongguk acusa, e não parece querer parar. — Eu não fiz aquilo ‘pra te irritar, na verdade, você é que se irrita com tudo que eu faço. E eu não faço de propósito! Cacete, eu não sei o que tem tão de errado comigo ‘pra que você haja sempre assim com tudo que eu faça. Qual o seu problema, ein?
— Meu problema? Meu problema? — questiono incrédulo, porque parece piada, parece piada que ele esteja jogando o ódio sem razão dele para cima de mim. — Eu gostaria de saber também, porque aparentemente você teve um problema comigo muito antes de eu pensar em ter um problema com você.
Ele acompanha meu raciocínio com dificuldade, porque é mesmo confuso. Muitos problemas. Bem como tudo que envolve a gente; é excesso, excesso de tudo para pouca razão. Sempre foi sobre ser demais: barulho demais, gente demais, gostos demais. Contra o menos, silêncio de menos, paciência de menos, sensatez de menos. Não importa mais, porque eu já não sei se consigo ver tudo isso acontecer sob meus olhos, e quando dou por mim Gerald está tentando falar:
— Meninos, meninos… Não briguem, não é culpa de ninguém. Ninguém tem problema também, parem de se culpar, por favor.
Jeongguk fala por cima. Tudo me estressa. As pernas de Gerald ainda tremem e, por Deus, alguém precisa pegar uma coberta para esse homem! Penso nisso quando saio na frente de Jeongguk, que continua falando disparado, e apenas sussurro um pedido de desculpas, me retirando do cômodo.
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