Depois da troca de mensagens, Vitória se sentiu mais confiante. Ia dizer toda a verdade a Emília, contar toda sua história de uma vez por toda, tudo que a filha ainda não sabia. Bento tinha razão, foi pra isso que ela veio, e era isso que faria. Assumiria toda as consequências, ela nunca pensou que seria fácil e não era agora que ia mudar de ideia, por mais que aquela fagulha preenchesse seu coração pelo fato dela e Emilia se darem tão bem. E parte da verdade incluía também a pessoa mais que fundamental da história, Luís. Não sabia como ele ia agir, mas ele também precisa saber. Primeiro, bastante óbvio, ele era o pai. E depois…. Ela não ia esconder mais nada da sua pequena.
Resolveu ligar pro Carmosino. E Vitória pode perceber o quanto ele ficou surpreso com a ligação. Coisa que não entendia já que ambos vinham mantendo contato por causa do convênio. Mas quem era ela pra dizer algo? Sobressaltava-se a cada ligação dele, sempre que via o nome masculino piscar no retrovisor. Bobagem…
Luís ficou ainda mais surpreso quando ela se convidou para o desjejum em sua mansão. Mas obviamente ele aceitou, acreditando ser mais uma reunião de negócios.
Vitória não se demorou para se aprontar, já feito sua higiene. Então pegou seu carro e foi pra casa de Luís com uma única intenção, dizer-lhe a verdade.
(.....)
Na casa da Beraldini, Raimunda ouviu os gritos desesperados da patroa, e sem pensar duas vezes, correu pro andar de cima. Emília não estava na suíte, então se apressou para ir ao toalete. A visão lhe provocou horror.
Por um instante, Raimunda levou as mãos aos lábios para abafar o grito que queria soltar pela garganta... ao ver Emília jogada no box banhado de sangue. A postura da promotora era quase fetal, o choro se juntava com soluços e gritos de perdão. A empregada não demorou para entender o que tinha acontecido ali. Mas ela não podia acreditar. Olhava da patroa para o que restara do feto que ela tinha nas mãos e para o frasco de Cytotec ainda sobre a pia . Raimunda não podia acreditar num ato tão vil.
Talvez Emília pudesse notar a repulsa, o desgosto estampado na face da doméstica quando os olhares se cruzaram. Mas tão transtornada, também poderia ter passado despercebido.
— Meu bebê, Raimunda, meu bebê – E só ao ouvir seu nome ser chamado foi que Raimunda se viu obrigada agir
— Por favor, Dona Emília, vamos, saia daí – Ele fez menção em se aproximar, mas a patroa se encolheu ainda mais no box – Não piora as coisas, Dona Emília –
Mas a Beraldini não parecia ouvir, perdida na sua própria culpa e arrependimento. Raimunda teve que invadir o box e usar toda a sua força para levantá-la do chão e tirar aquele pedaço morto de suas mãos.
— NÃO RAIMUNDA ME DEIXA, POR FAVOR ME DEIXA –
E apesar dos gritos e choro desesperado, Raimunda enfiou Emília debaixo da ducha fria, para que a água lavasse o sangue impregnado na pele
— MEU BEBÊ.., ME.. MEU … MEU BEBÊ – E a cada soluço, ela engolia cada vez mais água se engasgando, sendo obrigada a se calar na força
O choro foi cedendo aos poucos, a água que caía da ducha tendo um efeito calmante. Raimunda ajudou Emília se banhar, e depois a se vestir. Deixou a patroa na cama descansando e foi preparar um chá de camomila. E enquanto preparava, resolveu ligar para a médica amiga de Emília.
(...)
Vitória estacionou próximo a mansão. Fitou pela milionésima vez o reflexo no espelho e era mais do que óbvio a tensão em sua expressão. Respirou fundo, tentando relaxar.
— E eu achando que não teria maior beleza do que a aurora do amanhecer lento. Está linda, Vitória – Ele a cumprimentou, como sempre gentil, segurando a canhota de forma delicada, sentindo o aroma inebriante da pele sempre perfumada e hidratada
— Sempre cavalheiro, Luís – As maçãs estavam coradas, e ela não sabia se pelo elogio ou pelo toque do nariz afilado a lhe roçar a pele, arrepiando-a. Achava ridículo como parecia adolescente ás vezes em sua presença –
— Mas entre, por favor. A casa é sua – Ele deu passagem, admirando a classe do gracioso andar feminino – Marina já está colocando a mesa – Ele a ajudou a retirar o leve casaco, pendurando-o no cabideiro que havia no hall, bem como a bolsa de onde ela apenas tirou a bolsinha que carregava o celular.... hábitos da profissão
Quando chegaram a cozinha, a mesa estava realmente posta, Marina acabava de colocar a mesa uma jarra de suco de laranja feito da fruto, bem geladinho.
— Luh já acordou, Marina? – Ele perguntou, assim que chegou na cozinha
— Ela está se levantando, senhor! Mas disse se sente sem apetite e não desce para o desjejum. O senhor vai precisar de mais alguma coisa? –
— Não, Marina, pode ir adiantar outros afazeres –
A empregada assentiu, deixando-os a sós. Ele puxou a cadeira para que ela se sentasse, num gesto cavalheiro
— O que vai querer, Vitória? Sinta-se a vontade –
— Só um pouco de suco e torradas, Lúis. Tenho um almoço ainda hoje –
Os olhos castanhos num tom claro se perderam nos gestos cuidadosos de Luís ao lhe servir o café. O jeito com ele passava a pasta nas torradas que seriam para ela.... fez a mente divagar em lembranças passadas. Ele sempre teve esse hábito de servi-la, cuidar dela, e isso parece não ter mudado. Perdida em pesamentos, ela nem ouviu que ele fala consigo, e já lhe chamara a atenção umas duas vezes
—– Vitória… – E foi o toque suave dos dedos em seu ombro que a fez acordar para a realidade
— Oi, me desculpe!. Falava algo? –
— Nada demais. Apenas que estou esperando Bernardo chegar da Espanha para formalizarmos nosso negócio. Ele deve chegar em dois dias – Respondia enquanto se sentava na cadeira ao lado e se servia também.
— Entendo – Ela bebericou um pouco do suco para ver se algo descia pela garganta – Mas não foi sobre negócios que vim falar, Luís – E ela fitou as duas amêndoas tão escuras quanto as da filha
— Não???? – A torrada que ele segurava ficou no meio do caminho, e a tez já se franzia em pequenas rugas de confusão, o que a fez sorrir.. sempre desconfiado e temeroso.
— Sabe de uma coisa? Eu fico me perguntando o que teria sido de nós se nos tivéssemos dado uma segunda chance – Os dedos deslizaram levemente sobre a tez masculina, tentando suavizá-la, e juntamente com tom suave da voz, conseguiram seu intento
Ele depositou a torrada novamente no prato, talvez surpreso demais para o simples mastigar
— Achei que esse assunto estava morto há anos atrás. E não fale em nós, eu estava disposto a largar tudo por você –
— Você não entende, não é? O problema não era meu casamento, e sim tudo que você representa pra mim, Luís. Tudo que aconteceu entre nós me deixou uma marca muito grande –
— Maior do que nossa história? – Ele ousou perguntar
— Se você soubesse – Ela suspirou, e desviou olhar para o copo mais uma vez. Degustou goles generosos, sentindo a garganta a seca.
— E foi para isso que veio não é? Para me contar que ainda não sei... – Perguntou, mas ela não respondeu. Então os dedos foram guiados até o queixo feminino, e num gesto suave, ele virou o rosto dela para si. Para que ela ela pudesse encarar seus olhos – Vitória, por que você veio aqui? – Tentou de novo
— Luís, eu … eu.. eu vim – E aquilo estava sendo mais difícil que imaginou. As mãos não paravam tremer e nada parecia sair de forma coerente de seus lábios.
Luís segurou a canhota trêmula entre as mãos enrugadas, como lhe dando apoio. Vitória estava disposta a falar quando o telefone tocou
— Me desculpe eu tenho que … – Se afastou e finalmente ela atendeu a chamada. A cor fugiu de sua face. Transtornada, ela fitou Luis e os olhos castanhos pareciam suplicar por ajuda.
— Fique calma, respire, beba mais um pouco de suco – Luis nem sabia se ainda tinha outra pessoa na linha, mas tirou o telefone da mão dela, encerrando a chamada. E serviu um pouco mais de suco para ela, apesar do copo ainda estar razoavelmente cheio.
Vitoria bebeu com avidez quase toda a bebida, deixando um pouco menos que a matade do copo... enquanto sentia os dedos cálidos se embrenharem pelos seus cabelos, numa caricia e uma suavidade deliciosa
— Sente-se melhor? – Perguntou, ainda a brincar com mechas sedosas
E ela assentiu, voltando a depositar o copo sobre a mesa
— Pode me dizer o que aconteceu? – Mais do que curioso, estava preocupado
— Uma emergência na casa da Emília, Luís – Ele pode perceber o tom desesperado voltar aos poucos. O nome de Emilia fez sua preocupação se agravar, notável nas pequenas rugas que se forma na tez delgada. Mas ele se esforçou para se manter sereno por Vitória
— Tudo bem, ok? Você não vai sozinha. Vou pegar minha maleta e te acompanho –
— Mas, Luis…. – Seu protesto foi interrompido antes mesmo que concluísse
— Não adianta barganhar, dessa vez eu não vou te ouvir. Eu nunca devia ter escutado você – Com aquela indireta, ele segurou seus rosto, salpicando um beijo carinhoso na tez feminina – Eu volto já – Sem palavras, ela deixou que ele subisse.
Tenso, Luís nem sequer estranhou a preocupação em demasia de Vitoria. E também preocupado, até se esqueceu do motivo que levou a mulher até ele.
Ao chegarem na mansão do Sartorini, ambos tentaram parecer menos nervosos. Verdade que Luís conseguiu o feito maior.
— Ainda bem que a senhora chegou – Raimunda cumprimentou Vitória, estranhando a presença do Carmosino.
— Tudo bem, Raimunda... O que aconteceu? –
Ela deu passagem pro casal entrar, ficando meio incerta em responder a pergunta com Luis ali
— Pode dizer, Raimunda. Antes de tudo eu vim como médico – Ele a cumprimentou, cavalheiro, segurando a mão de pele escura, sentindo o aroma de sabão, aroma de quem trabalha
Se foi pela simpatia ou não, Raimunda decidiu falar
— Ela tá mais calma agora! Não sei se podia, mas dei a ela um chá de camomila, ela estava bem nervosa e…
— Sim, Raimunda, e o que houve? – Vitória perguntou, apreensiva demais para se conter. Luís gentilmente levou a canhota ao ombro feminino, num afago, chamando atenção, numa mensagem muda de que ela precisava se acalmar
— Ela… ela.. Eu não sei, Dona Vitória. Acho que ela provocou um aborto. O banheiro estava sujo de sangue ela gritava muito. Eu vi um frasco de cytotec sobre a pia… Sei que é usado pra aborto. Eu não tenho certeza, mas acho que Dona Emília teve um aborto – Omitiu certos fatos desnecessários, e se utilizou do eufemismo pra descrever a conduta da patroa.
— ELA OQUE????? Não, ela não fez isso. Me diz que ela não fez – Se desvencilhou da mão forte de Luis que ainda estava sobre si. Nervosa demais para que atendesse ao seu pedido. Luís estava em choque, até para perceber o movimento brusco
Raimunda apenas assentiu sem jeito, não pode negar
— NÃO.. NÃO…DROGA!!! Ela disse que ia me esperar, que íamos conversar. Não pode ser. Deus, eu tinha que salvar esse bebê… Eu tinha – Os olhos lacrimejaram e ela nao impediu a queda das primeiras lágrimas –
— Você sabia que ela está grávida? – Luís fez a pergunta que também parecia ser a dúvida de Raimunda. E era notável o tom repulsa na voz masculina
— Sim – Ela assentiu envergonhada, enxugando as lágrimas sem êxito – Ela me implorou para que eu fizesse a cirurgia. Eu aceitei e… chegamos a marcar pra hoje… Mas eu não consegui Luís … eu não consegui. É só um bebezinho, meu…. Tão indefeso…. Eu disse que eramos pra conversar. A culpa é minha, toda minha – choro finalmente rompeu. Ele a amparou em seus braços, afagando seu cabelo, tentando acalmá-la. Ele queria saber mais, mas nada importava agora.
— Leve-a até a cozinha, por favor. Sirva um pouco de água com açúcar – Pediu a Raimunda que tudo assistia... quando sentiu a mulher em seus braços mais calma
— Não, eu preciso vê-la.. – A ventura contestou de imediato
— Você sabe que não é a melhor indicada pra isso agora. Acalme-se e logo irá vê-la – E num gesto sutil, indicou que Raimunda a levasse
A contragosto, mas sabendo que o homem tinha razão, Vitória cedeu.
Luís então pegou o lencinho que estava na bolsa da calça e enxugou a tez suada, o que sempre ocorria quando estava nervoso. E então, conhecendo a casa, subiu a escadaria para o quarto do casal.
Deitada sobre a cama, o olhar e o pensamento distante alheia a confusão do andar debaixo, Emília sequer prestava atenção no noticiário que passava na televisão, alarmando os cidadãos sobre o caso de um pai acusado de matar a própria filha. Apenas as batidas da porta lhe trouxeram de volta a realidade
— Pode entrar, Raimunda –
— É aqui que temos a paciente mais linda do mundo precisando de ajuda – E brincou, tentando aliviar a própria tensão, ao espiá-la pela pequena brecha que ele abriu na porta –
— Luís???? – Idiotamente perguntou, surpresa, até mesmo assustada
— Nossa, meu senso de fidelidade tá zero nessa casa – Se fez de ofendido voltando a brincar ao se aproximar, se sentando na beirada da cama ao lado dela
— Desculpe, é que…. –
— Também sou seu amigo, Emília. Sou fiel a você também – Ele forçou um pequeno sorriso e ela pareceu se tranquilizar com a declaração.
— Desculpe, não pensei que Raimunda chamaria você. Aliás, não pensei que ela fosse chamar alguém
— Eu entendo…. Vai me dizer o que aconteceu? –
Emília criou coragem para narrar o que fez, e dessa vez ela não tinha mais lágrimas para produzir, talvez estivesse fatigada demais emocionalmente para isso.
Ela notou a diferença passear pelos traços masculinos, a serenidade de antes abrindo fuga. Até mesmo a decepção passou pelos olhos castanhos, tao castanhos quantos os seus.
— As dores cessaram? – Perguntou formal
— Mais ou menos. Mas se parecem com cólicas normais de menstruação –
— Sangramento? –
— Normais também –
— Ok, levante um pouco a blusa –
Ela fez o obedecido e os dedos cálidos passearam por ali, pelo baixo ventre. E ele comprovou que as dores da Beraldini não eram de fatos absurdas.
— Você me parece bem, ao menos fisicamente. Use o que você toma normalmente pra cólica pra aliviar a dor. Se a dor agravar, ou ter um sangramento significativo, não hesite em procurar um hospital. Pode até me procurar, venho correndo – Ele até forçou um sorriso, fazendo com que ela deixasse escapar um também
— Mas.. – Ela sentiu que vinha um mas..
— Mas deve procurar um médico para fazer uma ultrassonografia. Mesmo que tudo lhe pareça bem.. É preciso saber se o aborto foi completo
Emília assentiu e Luis fez menção em se levantar, mas ela impediu segurando sua mão, o deixando surpreso
— Nunca, nunca quis, que se decepcionasse comigo – E as lágrimas pareciam querer cair de novo, mas só ameaçaram enchendo seus olhos d'água - É tão bonita a admiração que você tem pela sua advogada –
— Shiiiu .. – Ele ficou tocado pelas iris castanhas a lhe fitar, e que brilhavam pelas lágrimas acumuladas ali. Segurou canhota feminina, entre as suas mãos num afago – Verdade que nada vai justificar o que fez. E ainda vamos conversar sobre isso em outro momento. Mas até irredutivelmente errada como está agora, você é admirável – Ele chegou a sorrir, ainda pequeno. Independente do que realmente achava, ela não precisava saber agora – Sabe que Lucrécia morre de ciúmes de você? Quero dizer.. comigo?. Ela não diz, mas sei que sim. E sabe por que? Por que você é a filha que eu adoraria ter.... Tudo bem que se eu pudesse realmente escolher seria o Bernardo, mas.. – Graciosamente deu de ombros, rindo um pouco, conseguindo relaxa-la e até mesmo que ela risse em resposta
— Você e Bernado são especialistas em me fazer sorrir nas horas mais impróprias, só senhor mesmo – Ela sorriu, o carinho estampado nas iris que cintilavam.
— Vou levar isso como elogio – Ele ainda segurava a mão feminina, então a guiou até os lábios para um beijo singelo – Comporte-se, e obedeça minhas recomendações. Deixa eu ir porque tem uma senhora desesperada lá embaixo querendo ver você – E dessa vez Emília deixou que Luis se levantasse
— Vitória? – Ela perguntou surpresa
— Uhum – Ele assentiu. Então carinhosamente lhe beijou a testa antes de finalmente sair – Cuide-se, acima de tudo – Disse por fim.
Assim que fechou a porta, Luís apenas fechou os olhos, deixando que toda a tensão e tristeza se esvaísse num único suspiro. Apesar de parecer seguro com Emília, ele não tinha a minima noção do que faria. Era tão injusto com o bebezinho, com Bernardo. Ele se permitiu ficar ali, escorado na porta, tentando achar uma saída pra uma situação que não tinha solução. Só desceu a escadaria de encontro a Vitória quando se sentiu pronto.
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