- Esse livro que você indicou é uma bela de uma porcaria, Granger. - Olhava com desdém as páginas amareladas e emboloradas do primeiro e antigo volume de Em Busca do Tempo Perdido, de Proust. A edição, que datava da década de 1960, tinha algumas palavras com ortografia antiga quando considerados os novos acordos ortográficos, o que não facilitava a leitura. O exemplar foi encontrado nos fundos de uma das prateleiras da biblioteca, na ala de literatura trouxa.
- Se não está gostando apenas não leia. - Sem desviar os olhos de sua própria leitura, um grosso livro sobre poções medicinais, Hermione respondeu com artificial marasmo e tédio: já havia feito essa sugestão uma dúzia de vezes.
- Não se trata disso. - Suspirou profundamente, tornando os olhos para a página de leitura interrompida. Depois, quase sem perceber, leu em voz alta um trecho grifado em tinta preta pelo antigo proprietário do livro. - E essa doença, que era o amor de Swann, multiplicara-se de tal maneira, estava tão estreitamente unida a todos os seus hábitos, a todos os seus atos, seu pensamento, sua saúde, seu sono, sua vida, até ao que ele desejava depois da morte, formava de tal modo um todo só com ele, que não seria possível arrancá-lo de Swann sem o destruir quase por inteiro: como se diz em cirurgia, seu amor não era mais operável.
Hermione interrompeu novamente a própria leitura, voltando os olhos para o rapaz na outra extremidade da sala e reconhecendo de imediato o trecho lido. Aquela era, afinal, uma de suas passagens preferidas do livro. A mesma sensação de meses atrás continuava a lhe invadir cotidianamente: ouvir Malfoy ler era como acessar um espaço primordialmente íntimo, ela não deveria estar lá. Draco levantou os olhos pois, inconscientemente, sabia que a sua colega de casa lhe observada. Se encararam e ele suspirou novamente, sorrindo a contragosto. Sabia exatamente o que se passava na cabeça de Hermione naquele momento.
- Certo. A narrativa não é tão ruim e tem umas passagens bem bonitas. Mas é muito detalhista e também... Eu odeio livros grifados, sempre tenho a impressão que o leitor anterior está predeterminando no que devo prestar atenção. - Hermione riu enquanto fazia mais uma das milhares de notas mentais sobre aquele recente relacionamento: ela também odiava livros previamente grifados. - Qual é a graça, Granger?
- Você é ridículo. E também é paranoico, sabia disso?- Alcançando com uma das mãos uma almofada próxima aos seus pés, Hermione a arremessou na direção de Draco, que a segurou antes que acertasse seu rosto. Ambos riram, enquanto os demais alunos que ocupavam o extenso salão da casa de Sonserina se entreolhavam em um misto de diversão e curiosidade.
Nenhum deles poderia dizer com certeza como aquilo ocorrera. Assim como a primeira aproximação, ocorrida alguns distantes meses atrás, agora também tudo se sucedeu com ou sem suas respectivas autorizações. Como se seus corpos respondessem a outros comandos que não eram os conscientes e lógicos. Porque, caso quisessem levar apenas a lógica em consideração, nada daquilo jamais faria sentido. Hermione e Draco estavam fadados a estarem em lados opostos em qualquer circunstância importante de suas vidas, até que não estavam mais.
Desde a ida até Travessa do Tranco e a descoberta sobre o assassino de seus pais, ambos haviam invariavelmente se aproximado. Desde aquela noite Hermione temia descobrir até onde a ira de Malfoy poderia levá-lo e, ao menos inicialmente, a desculpa utilizada para estar próxima a ele era essa: vigiá-lo para que não machucasse ninguém, incluindo a si próprio. Após alguns meses, essa preocupação deixou de fazer sentido. Entre crises de raiva, insônias e incompreensão, Draco submergia com maior vigor. O rapaz se dedicava aos estudos e ao hospital e, Hermione poderia jurar, sua amizade estava verdadeiramente ajudando-o. Fazia então cinco meses que haviam visitado Hugo e não havia qualquer sinal de que Malfoy fosse sucumbir a qualquer momento ou sair enlouquecido atrás de qualquer um capaz de contornar sua dor através de vingança.
Mas então, e aí estava todo o nó da questão, por que diabos ela continua diariamente a se aproximar dele? Na última semana se esforçou em compreender e gradativamente aceitava a contragosto o que todos ao redor já haviam assimilado: eles se tornaram amigos. Fosse pelas tragédias familiares tão próximas, pelas dores da guerra, astúcia e inteligência ou mesmo por uma intensa inclinação à melancolia, Hermione e Draco tinham mais em comum do que ela jamais tivera com qualquer outra pessoa. A ida inesperada para a casa de Sonserina acelerou e extrapolou esta aproximação. Não seria capaz de admitir a ninguém para além de si própria, mas aquela nova relação lhe fazia bem. Era bom poder conversar com alguém sem nenhuma espécie de pudor para com suas dores. Draco entendia todas elas e mais, compreendia todas as fugas de Hermione, não era necessário fingir estar bem ou, em dias particularmente difíceis, fingir que já não doía mais. Como ele próprio costumava dizer, em uma espécie de piada interna entre ambos, “você não consegue mentir para mim Granger, eu não sou um dos seus amigos estúpidos”.
Os amigos estúpidos eram, obviamente, Rony e Harry. E ambos estavam passando por uma enorme dificuldade para aceitar as novas relações de amizade de Hermione. Rony simplesmente passou a ignorá-la, ainda mais do que já vinha fazendo após sua tentativa de suicídio. Tudo que sabia a seu respeito provinha de Gina ou Harry e as notícias não eram boas: Rony se entregava aos seus variados demônios, sempre se embebedando e arrumando brigas nas vilas próximas ao castelo, mesmo a presença de Arthur na escola não ajudou em uma significativa melhora na questão. Harry buscava ajudar como podia, mas mesmo ele estava sem saber exatamente como seguir lutando contra alguém que só fazia afastá-lo. Hermione não tinha forças para enfrentar o amargor que as palavras de Rony sempre continham: sua paz e equilíbrio eram, ou estavam, ainda demasiadamente frágeis. Considerando tudo, Rony vivia seus dias conforme queria, sem que a interferência daqueles que ainda se preocupavam com ele surtisse qualquer efeito.
Harry, ainda que delicadamente, também não via com bons olhos a aproximação entre Malfoy e Hermione. Ainda que não externasse para a amiga, em seu interior nutria certezas sobre as más intenções de Draco, desconfiando de qualquer sentimento ou atitude boa que ele poderia ter. Estava, no entanto, determinado a permitir que Hermione tomasse suas próprias decisões, principalmente por verdadeiramente perceber a melhora de sua amiga nos últimos meses. Ele não poderia expressar em palavras suficientes como era bom saber que sua saúde progredia, ainda que finalmente estivesse convencido que a antiga Hermione jamais retornaria: ela havia morrido durante a guerra, como tantos outros amigos, familiares e colegas. Harry, por sua vez, gradativamente recuperava sua doçura e equilíbrio, em grande parte graças ao amor e cuidado de Gina, principalmente. Eles formavam algo muito bonito e leve de se ver, eram enfim a prova de que relações saudáveis ainda tinham espaço para florescer naquele mundo maculado pela guerra.
- Você vai ao hospital hoje? - O crepúsculo avançava com determinada pressa e logo a noite devoraria todo o castelo. O salão comunal encontrava-se agora pouco mais vazio, alguns alunos se encaminhavam para seus respectivos quartos ou mesmo para o refeitório. Após o fim das aulas daquela tarde, Draco e Hermione haviam se encaminhado para o salão e ali ficaram até aquele momento. Era irremediavelmente estranho vê-los dividir o mesmo espaço e, principalmente, conversar por longos períodos.
- Oh, hoje não. Eu finalmente fui liberado dos trabalhos escravos daquela merda. - Malfoy respondeu com a voz afetada pela ironia. - É claro que sim, Granger.
- Então já pode se considerar atrasado, palhaço. - Hermione apontou para o antigo relógio acima de uma das mesas de estudos da sala.
- Mas que merda. - Se levantou rapidamente, recolhendo os livros ao seu redor e colocando-os desajeitadamente em cima de uma das prateleiras. Depois, pensou, os guardaria em seus devidos lugares. Recolheu sua capa e, através do reflexo de uma das estreitas janelas empoeiradas, ajeitou seus cabelos. Se encaminhava para a porta quando, repentinamente, se voltou para Hermione, que distraidamente analisava suas unhas. - Granger, você está bem?
- Estou. - Desviou os olhos para qualquer canto esquecido da sala. De repente o cômodo pareceu ainda mais frio e um arrepio percorreu todo seu braço. Draco suspirou fundo, se reaproximando de Hermione que ainda ocupava uma das desgastadas poltronas do salão.
- Desembucha Granger, o que você tem?
Ela teve de levantar a cabeça para poder encará-lo. Atrás da poltrona, Draco apoiava ambos os braços no encosto. Hermione observou por alguns segundos a séria fisionomia do rapaz, preponderando se deveria ou não ser, mais uma vez, totalmente sincera para com ele. Draco notou que algo estava errado logo nas primeiras frases que trocaram, ainda em sala de aula, naquela mesma tarde. Granger estava mais calada que o normal, não participou ativamente das aulas e pouco respondeu as perguntas dos professores. Depois, já no salão, nenhuma de suas recorrentes provocações surtiram qualquer efeito. Ele acabou concluindo que ela estava em um mal dia por algum motivo privado mas, subitamente, sentiu a real necessidade de perguntar uma vez mais se ela estava bem. Era categoricamente estranho pois, em geral, pouco se importava com aqueles que estavam ao seu redor. Draco, mesmo que desejasse, não saberia dizer os reais motivos pelos quais os sentimentos, ações e cotidiano de Hermione lhe afetavam, invariavelmente. Agora, observando a hesitação da resposta e as feições pouco serenas da garota, sua certeza de que algo de errado ocorria aumentava.
- Hoje é aniversário de casamento dos meus pais, sabe? Bom, seria… Eu lembro com tanta nitidez, esses costumavam ser dias de festa. A família toda vinha almoçar conosco, cantávamos parabéns. - Uma risada trêmula e abafada escapou de sua boca. - Quem canta parabéns em aniversário de casamento? Que estupidez… - Hermione falava pausadamente, formulando cada frase com cuidado, como se custasse um tremendo esforço dizer todas aquelas palavras juntas de uma só vez.
- Eu sinto muito. - Draco sabia exatamente como ela se sentia, seria impossível que não soubesse. Em alguns momentos, como agora, gostaria de não saber pois, em seu íntimo, admitia que Hermione não merecia passar por tudo aquilo. O sentimento de luto ainda que amenizado pelo passar do tempo, era capaz de definhar a mais saudável das mentes. Com surpresa, ele verdadeiramente descobriu que gostaria de retirar todas as dores de Granger, caso pudesse.
- Eu sei. - sorriu um sorriso mínimo, imperceptível para a maioria das pessoas. - Eu só… Acho que deveria ocupar minha cabeça com alguma coisa hoje. Discutir com você geralmente funciona. - Alargou o sorriso em uma breve mas sólida risada. - Gostaria que você não tivesse plantão hoje, mas isso é verdadeiramente egoísta e eu tenho…
E então tudo aconteceu rápido demais. Tão rápido que Hermione teve real dificuldade em assimilar o que ocorria. Em um momento Draco a observava falar ainda apoiado na poltrona e, no instante seguinte, se debruçou sobre a mesma e preencheu os falantes lábios de Hermione com seus próprios lábios, impedindo-a de concluir a frase ou o raciocínio. O que quer que Hermione fosse falar, estava perdido para sempre na memória, inundada e inebriada pelo beijo inesperado. Pela primeira vez naquele longo e difícil dia, ela se esqueceu de qualquer pesar, problema ou luto. Tudo se resumia ao beijo e ao quanto se viu, inadvertidamente, entregue a ele. Draco apoiou uma das mãos em sua nuca, aproximando ainda mais seus lábios e corpos. Depois, em um breve suspiro, ele se afastou. Tão rápido quanto se aproximou, o rapaz saiu porta afora destrambelhadamente, deixando para trás uma Hermione sem fala, fato tão ou mais improvável que o próprio beijo.
***
- Qual é a urgência hein Malfoy? Sabia que já estava praticamente dormindo?
Astoria naquele momento era uma figura engraçada. Os cabelos negros desgrenhados combinavam com o rosto parcialmente amassado, reflexo provável de que ela dizia a verdade: já estava dormindo quando a coruja de Malfoy, uma ave escura de olhos amendoados profundos, insistentemente bicou sua mão até que a garota despertasse e recebesse o bilhete do amigo. Em poucas linhas de uma caligrafia porca escrita às pressas, Draco pedia para que ela lhe encontrasse o mais rápido possível na torre de astronomia. E lá estava ela, de roupão, chinelos e péssimo humor.
A torre de astronomia não possuía iluminação e estava então submersa no típico breu das noites outonais de lua nova. Com relativa dificuldade ela foi capaz de distinguir a silhueta do amigo, Draco fumava apoiado no parapeito úmido da torre. Após perceber a chegada de Astoria, ele se virou e apagou o cigarro, de relance ela pode notar sua feição nada convidativa.
Astoria podia com facilidade perceber as mudanças no humor de seu melhor amigo, ao longo dos últimos cinco meses. A volta às aulas, o ambiente de sociabilidade de Hogwarts e mesmo o desfecho trágico do mistério em torno da morte de seus pais, haviam feito com que Draco retomasse ao menos em parte sua vontade de estar vivo. É claro que ele ainda carregava consigo todos os seus demônios, no entanto, e este era um tremendo avanço, ela não sentia com frequência aqueles típicos sobressaltos de ansiedade e medo, quando ele demorava um pouco mais a voltar para o castelo ou a ignorava por completo. Ainda que Draco jamais pudesse se recuperar totalmente de todos os seus traumas, Astoria conseguia agora entrever uma espécie de redenção e futuro, era mais do que poderia ao menos sonhar há alguns meses atrás. Mas agora, olhando o amigo a sua frente, com olhos perdidos e pele translucida pela palidez anormal, a sensação de impotência retornara como se jamais tivesse partido.
- O que, em nome de Deus, aconteceu Draco? Por que você não foi ao hospital?
Sem resposta e inesperadamente, Draco avançou alguns passos em direção a ela, com ambas as mãos segurou o rosto de sua amiga e a beijou. O beijo era desesperado e quase violento, foi diferente daqueles que trocaram quando ainda viviam juntos. Diferente e pior. Passaram-se alguns segundos até que Astoria se desse conta do que acontecia e, quando o fez, empurrou com todas as forças o corpo de Draco para longe de si. Sem lutar contra a amiga, Draco se afastou imediatamente, apoiando uma das mãos e cabeça na parede fria da torre.
- Mas que merda foi essa Draco? Você enlouqueceu de vez é seu desgraçado? - Astoria deu um ou dois tapas nas costas do sonserino que, ainda assim, não se virou ou reagiu. Ela pode ouvir um longo suspiro por parte do mesmo. - Que que você tem na cabeça?
Malfoy finalmente se virou. Apoiando as costas na parede atrás de si, ele escorregou até se sentar no chão esburacado e sujo. Encarou Astoria, em um misto de preocupação e pedidos de perdão.
- Me desculpe, eu só precisava… Ast, eu tô muito fodido.
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