Aquele tipo de lugar não era feito para pessoas como Claire. Tinha uma reputação a zelar – e uma coreografia a decorar. Só em pensar nas tarefas acumuladas, a garota podia sentir o cérebro fritar. Respirou fundo e procurou avaliar os pontos positivos da situação. Durante a detenção, teria tempo de, ao menos, terminar seus deveres de orgânica. Eram fáceis de resolver, mas a professora sempre os acumulava numa pilha interminável.
Também lhe aliviava saber que as terças-feiras eram “dias pouco movimentados para os pequenos e desvirtuados projetos de delinquentes” – palavras do monitor, não de Claire. Portanto, ao passar a primeira meia hora sozinha, supôs que este seria o ritmo até o final das três horas totais.
Como estava enganada!
Já retirara suas lentes de contato quando o monitor se levantou para verificar alguma “baderna em potencial”. O coração de Claire deu um salto, porém ela se esforçou em fingir que não estava lá. Enfiou-se pouco a pouco atrás de seu livro de estudo, e afundou-se mais na cadeira. Quase derrubou os óculos no processo.
Inferno!
Pouco depois, o monitor retornou, trazendo o que Claire pensava ser um visitante frequente à detenção.
A senhorita TPM. A bomba-relógio de Sweet Amoris. O pior pesadelo favorito das tintas de cabelo vermelho-gritante.
Castiel. Claire reprimiu um suspiro. Ao passo que o monitor o fez audivelmente.
— Se continuar aparecendo por aqui, vamos ter que trocar números e nos apresentar a nossas famílias, Cassy.
Cassy? Certo, talvez aquele dia pudesse render, afinal. Mesmo assim, Claire permaneceu atenta.
— Entre — o monitor continuou. — As portas e as janelas ficarão trancadas, então não tente gracinhas suicidas. Tente aprender um pouco com a mocinha ali.
Não me meta nessa história, pelo amor!, pensou Claire, resgatando seus fones de ouvido na bolsa. Castiel também parecia desconfortável com a presença da garota em seu point. Ou deveria dizer hábitat natural?
Com um pigarro, o monitor lançou à Claire um sorriso de boa sorte. Então, ela se concentrou no som da porta se trancando e na figura sombria parada em frente a ela, a bolsa pendendo num ombro desleixadamente.
— O que foi? Perdeu alguma coisa na minha cara?
Claire ignorou-o, puxando o fio do fone e já conectando-o no celular. Recomeçou a música que tocava anteriormente – oh, olá, The Struts!— e aproveitou o bom-humor inabalável. Colocou apenas o lado direito do fone e sorriu para o companheiro de detenção.
— Bom dia para você também, Cassy.
Em resposta, ele resmungou.
— Só se for para você.
— E está um lindo dia, mesmo! Obrigada.
Vendo que Claire não daria atenção às suas rebeldias sem causa, Castiel imitou-a. Como seu fone passava por dentro de sua camisa, ele apenas colocou-os nos ouvidos e ligou-os.
Foi como se os pensamentos carbônicos de Claire tivessem passado por uma montanha-russa puxada por um bate-cabeça. O som estava tão alto que arruinou o perfeito solo de guitarra – e com um volume adequado! –, fazendo Claire sobressaltar-se em sua cadeira. Ao seu lado, Castiel ergueu uma sobrancelha e retirou um de seus fones para investigar.
— Que foi? É barata?
— Não! — Claire sentiu o rosto pegando fogo, de vergonha. Levantou os óculos e procurou se recompor do susto. — Seu fone, está gritante! Abaixa isso aí, cara, por favor.
Castiel olhou para a garota como se ela fosse um pinscher latindo cheio de ódio. Talvez essa fosse a impressão. Emitindo um “hum” aborrecido, ao menos Castiel fez o que a garota pediu.
— Obrigada.
— Disponha, madame.
Claire estava pronta para voltar às próprias tarefas, quando escutou-o falando algo mais. Por Baryshnikov e Vaganova. Não terei um minuto de paz? Claire, então, virou a cabeça para encará-lo.
— Desculpe. Disse algo?
— Sim, surdinha. Disse: “eu não te conheço de algum lugar?”, e você ignorou.
Claire soltou um riso nervoso.
— Tenho certeza que não... — afinal, gente como você não se mistura com gente como eu.
— Nunca me engano. Deixe-me ver. Tire esses óculos, eles cobrem metade da sua cara.
É por isso que não os uso! Mesmo contrariada, Claire seguiu o pedido – talvez porque também já tivesse feito um, anteriormente. Não tinha o direito de reclamar. Castiel, então, analisou os olhos castanhos e os cabelos amendoados da garota e franziu a testa. Quando Claire pensou que ele estava prestes a fazer algum comentário sobre sua dupla identidade, ele apenas deu de ombros.
— Detesto admitir, mas... tem razão. Não faço ideia.
Claire gargalhou, não resistindo a piada.
— Isso que disse que nunca se engana — ela recolocou os óculos, piscando para adaptar-se. — Agora imagine só se se enganasse.
— Como é? — Castiel ergueu uma sobrancelha. A garota sorriu vitoriosamente ao observar as bochechas dele igualando-se ao tom do cabelo.
— Eu não disse nada! É a sua palavra contra sua.
— A tigresa tem garrinhas, então?
— Uh, sim. Retráteis. Só estou as polindo um pouco.
Foi a vez dele de rir. Claire perguntou-se o motivo. Teria sido real ou ele só estaria fazendo troça dela? A segunda opção parecia muito mais lógica.
Em seguida, Castiel estendeu as pernas para cruzá-las na cadeira da frente. Brincou com algo no bolso da jaqueta, que Claire não se deu ao trabalho de tentar enxergar.
— E como a tigresa veio a ficar enjaulada?
— Nada digno de uma rebelião, posso afirmar.
— O quê? Te pegaram colando? — ele riu, zombeteiro.
— Pior. Me pegaram matando aula na biblioteca. Saí de História para terminar meus deveres em Química Orgânica. Mas acabou que foi até bom que vim para cá. É mais silencioso.
Castiel olhou-a como se estivesse louca.
— Matou aula para estudar?
— Bem-vindo ao ensino médio — ela deu de ombros. — Ou é isso, ou não consigo balancear as aulas, as extracurriculares do clube e o meu trabalho.
Ele bufou, resmungando algo que passou desapercebido aos ouvidos de Claire. Inclinou-se para ouvir melhor. Castiel pigarreou e recomeçou o comentário:
— Eu não acredito no sistema escolar. Acho que os alunos fariam um melhor serviço de organização do que essa diretoria meia-boca.
— Está me dizendo que é um anarquista estudantil?
— Sim...?
Claire soltou um assobio, se fingindo de impressionada.
— Uau. Está aí uma coisa que jamais pensei ouvir de alguém. Principalmente de alguém como você. Sem ofensa, é claro — acrescentou ela, antes que o espírito de contenda invadisse a sala. — E o senhor, por que veio parar aqui? Algo digno de uma rebelião?
Castiel, por sua vez, deu de ombros. Retirou o que tanto brincava do bolso e jogou o objeto em sua direção. Com os reflexou intactos devido às aulas de dança, ela o pegou ainda no ar. Tratava-se de um maço de cigarros. Assustada, deixou-o cair sobre a mesa.
— Estava fumando?
— Parabéns pela dedução, Sherlock — ele ironizou, enquanto resgatava o maço. De volta ao bolso. — Alguém me delatou e cá estou eu.
— Bom, então foi um motivo justo! Por que inventou de fumar aqui? Não podia esperar até sair?
— Está preocupada, tigresinha?
Claire revirou os olhos, para esconder o constrangimento.
— Eu, não. Nem te conheço direito! Só estou tentando entender como funciona essa cabeça cheia de neurônios queimados. Céus, você é insuportável!
Foi a primeira vez em que a garota quieta desembestou a falar. Arrependeu-se de imediato; como havia dito, mal o conhecia. No entanto, conhecia seu temperamento explosivo. Daquele jeito, Claire esperava que a qualquer momento ele fosse virar um Hellboy e sair queimando a tudo e a todos. Porém, contrário às suas expectativas, Castiel nada mais fez que abrir um sorriso, como se Claire o tivesse elogiado.
— Obrigado!
— Disponha.
Pela segunda vez, ela tentou ouvir música e se concentrar nas cadeias carbônicas à sua frente. No entanto, ele se aproximou, ignorando qualquer noção de espaço pessoal.
— Está ouvindo Queen? — talvez fosse a vez dela de estourar o limite de volume, afinal.
— Não, é The Struts.
Ela se sentiu na obrigação de oferecer o outro lado do fone a ele, visto que ele franziu a testa.
— Glam rock?
— Não gosta?
— Geralmente não, mas esse é até interessante.
— Percebi, pelo metal gritante...
Castiel bufou, mas foi um mais bem-humorado que os anteriores.
— Não me leve a mal, mas eu gosto mais de metal gótico do que de hard rock. Gosto de entender o que estão cantando. Como essa — explicou ela, procurando alguma faixa de Nightwish em seu celular.
— Você não tem cara que entende do que fala, mas as garrinhas estão afiadas — ele ergueu uma sobrancelha provocativamente.
Claire olhou para ele, devolvendo o gesto.
— Nem tudo é o que pensa ser, Cassy. E, cara, sua perspectiva de vida é um saco.
— Como é?
— Precisa parar de pensar que aparência define gostos ou atitudes. E precisa tentar ser mais eclético nas coisas que faz. Pode acabar gostando, sabe? É meio previsível. O bad boy que escuta metal, e fuma, e usa jaquetas de couro, e mata aula e...
— Já entendi — Castiel a interrompeu. — E quem é você mesmo para me dar esse tipo de conselho, tigresa?
Foi a vez de Claire sorrir. Tentou imitá-lo, cruzando as pernas em cima da cadeira da frente, mesmo que também teve de se afundar um pouco na cadeira, pela falta de altura – não era baixa, mas também não era um poste ambulante, feito Castiel.
— Eu? Ninguém importante. Mas não consegue saber o que eu “faço” pela minha aparência, consegue?
Pelo resmungo, Claire supôs se tratar de um não. Até que estava gostando de irritá-lo.
— Veja só. Estou usando meus óculos, mas se fizer isso... — brincou ela, retirando-os com muito drama. Em seguida, prendeu o cabelo num rabo de cavalo. O elástico ajudava na imagem: vermelho e cheio de rendas. — Quem eu sou?
— Animadora de torcida — ele gargalhou, não resistindo à palhaçada. Notando seu erro apenas depois, transformou o sorriso numa careta cômica. — É uma dupla personalidade ou uma especialista em disfarces?
— Ah, não. Eu sou uma fraude!
— Então é uma animadora de torcida?
Ela estalou a língua no céu da boca, enquanto Nemo ainda tocava em seus fones.
— Não. Só me visto como uma — e sorriu.
Apreciando o jogo de adivinhação, Castiel e ela se arrumaram na cadeira, para se encararem de frente.
— Esse drama todo só pode ser do clube de teatro.
— Também não — mas quase! — E isso foi ofensivo!
— Desculpe-me, madame — pediu ele, indicando pelo tom irônico que pensava o contrário.
— Olha só, ele aprendeu a usar a palavrinha mágica! Que orgulho.
— Desse jeito, fica difícil achar que veio parar aqui matando aula para estudar — Castiel igualmente sorriu, buscando o maço no bolso.
— Eu disse que estava só polindo minhas garras. E veja se vá fumar para lá. Se quer morrer mais cedo, faça isso sozinho, por obséquio.
Levantando-se, ele caminhou até a janela da sala, abriu-a e acendeu o cigarro. Deu um trago e soprou a fumaça para fora, ambos sem pressa. Com o dia chuvoso, Claire observou as gotículas acumularem-se na ponta do nariz reto de Castiel.
— “Por obséquio”? — Castiel provocou. — Deixe-me adivinhar. Clube do livro?
— Não... mas bem que eu gostaria.
— Como sei que não mentiu até agora?
— Não menti. Por que eu mentiria?
Ele deu de ombros, junto a um longo trago no cigarro. E Claire contraiu o rosto em uma careta.
— As garotas gostam desse bafo todo ou fica só no clichê da figura sensual fumando?
— Preferia mais quando estava quieta. Garota insuportável.
Claire gargalhou.
— É seu último palpite? Existe um clube para garotas insuportáveis?
— Nah, eu iria dizer “clube de música”.
— E vestir aquele uniforme ridículo para viver de assoprar trombones ou sei-lá-o-quê para a banda e os atletas? Deixa disso, eu sei usar melhor meu tempo, obrigada.
Castiel terminou seu cigarro e o amassou na janela, deixando-o de lado de fora. Voltou para o lado da garota, mordendo o lábio inferior. Eu daria uma moeda pelos seus pensamentos.
— Desisto. Só tenho certeza de que é insuportável. Quer me dizer o que faz nas horas vagas?
Claire abriu um sorriso. Estava prestes a confessar e acabar com a brincadeira, quando o monitor abriu a porta sem cerimônia. Olhou para os dois, como se soubesse que estavam aprontando, e bufou.
— Você, mocinha. Ms. Delacour solicita sua presença no ensaio de hoje. Pode dividir seu tempo de detenção ao longo da semana. Mas só porque se comporta bem e hoje foi um caso extraordinário. Por
— Ms. Delacour? — Castiel indagou, sorrindo. — Não é o nome da...?
Sabendo que o monitor não entenderia a piada interna, Claire recolheu os pertences em silêncio.
— Ballet. Sim. Por quê?
— Por nada...
E agora fui descoberta! Viva!
— Se estiver interessado nas aulas, posso pedir para ms. Delacour incluí-lo na lista — o monitor continuou, alheio aos risos de ambos os alunos.
— Eu? Nas aulas? Não mesmo — então, ele sorriu para Claire.
Ela torcia para aquilo não ser um flerte. Se fosse, estaria perdida. Começaria a rir de nervoso, e aí sim pareceria uma nerd puritana. Não que ela fosse, contudo... aquele ali era um problema.
Além disso, há sempre a opção de estar fazendo troça.
— Que seja. Vamos, mocinha.
Claire assentiu com a cabeça, jogando a mochila sob os ombros. Ajeitou os óculos no rosto e devolveu o sorriso para Castiel. Deixou o monitor destrancar a porta e sair, antes de segui-lo.
— Bom resto de detenção, Cassy.
— Bom ballet, garota insuportável.
Ela suspirou e estendeu-lhe a mão. Como um bom punk, ele apertou com firmeza.
— Pode trocar por Claire, se quiser.
Castiel ergueu uma sobrancelha e um sorriso torto. Já ela, riu e deixou a sala. Arriscou-se a olhar para trás e piscar para o projeto falho de bad boy, mas depois recuperou o rumo atrás do monitor.
Afinal, toparia com Castiel mais vezes. Tinha gostado de deixar o porte de mocinha de lado, para variar um pouco...
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