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História Fábula - Conto 2 — Remorso


Escrita por: CoraL

Notas do Autor


Capítulo dois de Fábula! 8D *pulando histericamente de alegria*
Novamente, capítulo betado pela Onigiri-san! Muito obrigada! *-*
Espero que gostem do que vão ler. E volto dizer que há Spoilers (mas acho que isso eu já disse por vezes demais...)
Finalizando aqui, acho que esse capítulo ficou maior do que o anterior. *gota* E também tenho ouvido Linkin Park demais nesses últimos dias xD
Boa leitura!!

Capítulo 2 - Conto 2 — Remorso


[centro][b]— Conto 2: Remorso.[/b] "Mama help me, I've been cursed Death is rolling in every verse Candy paint on his brand new hearse Can't contain me, he knows he works" Bleed It Out, Linkin Park [/centro] <<3 dias depois. 11 de Outubro>> [i]“Eu dormi... e, logo depois, acordei. Acordei de um sonho que parecia ter saído da eternidade, obscura, fria e dolorosa. Eu não me importaria de continuar a sonhar que eu estava realmente morto... se isso fosse me manter longe de machucar mais alguém.” [/i] Quando acordou, tudo estava esbranquiçado, tudo estava claro demais. Sentia o corpo começar a tremer em desespero, tremer de um modo que o faria cair no chão. Parecia impregnado por algum tipo de doença. Foi então que tudo desapareceu. A agonia que o atormentava, de repente, sumira e aquilo o fez se engasgar. Natsuno olhou desesperado para suas mãos e nelas ainda havia cor. Agarrou a garganta, apertou-a e sentiu o corpo reclamar da falta de ar e da dor que estava causando. E do mesmo modo que provou sua respiração, prensou dois dedos no pescoço e ainda tinha pulso. Também percebeu que a janela de seu quarto estava aberta ([i]alguém[/i] a deixou aberta), mas a luz do sol não o queimava. Então, gradativamente, seus olhos pareciam enxergar a tudo de um modo diferente, mais nítido, detalhado e até mesmo em um tom mais azulado. Seu nariz sentia o cheiro da madeira, do mofo e da quase morte — uma sensação empoeirada com um gosto metálico de carniça e falta de vida. Seus ouvidos conseguiam ouvir tudo, absolutamente todo e qualquer tipo de ruído que nem distingui-los apropriadamente conseguia. Ouvia as folhas das árvores e dos arbustos ao redor da casa farfalhando com a brisa; ouvia a mola de sua cama reclamar com o leve subir e descer de sua própria respiração fraca; a madeira da casa rangendo e se expandindo com o calor irritante do verão; passos, vários, multiplicados, atravessando o solado dos corredores, batendo forte no chão enquanto cresciam progressivamente de volume conforme se aproximavam de seu quarto. Foi então que sua porta foi aberta e por ela apareceram dois homens trajados formalmente de preto, com uma grande interrogação pendurada nas faces. Ao pé deles, havia um caixote comprido de madeira. Um calafrio atravessou Natsuno da cabeça aos pés, e ele não pôde deixar de pensar que aqueles homens tinham vindo buscá-lo para o seu funeral. “Senhor, seu filho está vivo.” Natsuno ouviu um deles falar para o corredor. No instante seguinte, seu pai entrava empalidecido em seu quarto, andando como se o chão fosse se abrir em uma fenda profunda abaixo de seus pés. Tinha os olhos fundos e renhidos e o cabelo bagunçado como um ninho, como se mechas tivessem sido arrancadas com as mãos. “Impossível...” Disse ele, em um assobio que chegou apenas aos ouvidos do filho. Yuuki caiu em seus joelhos e levou as mãos à boca como se fosse vomitar. De repente, um eco irracional pareceu nascer em sua garganta, e o homem começou a rir e a gargalhar como se tivesse ganhado na loteria. Ele se levantou e saiu correndo pela casa, gritando, enlouquecido, coisas que não faziam nenhum sentido. Os agentes funerários se entreolharam assustados e encararam Natsuno com uma expressão de piedade (que profundamente o irritou até os ossos). O garoto saiu cautelosamente de sua cama e lhes fez uma mensura, envergonhado. “Desculpe-me por... I-isso.” No instante em que falou, praguejou mentalmente. Sua língua havia batido nos dentes e agora doía com um corte em sua ponta. Levou a mão à boca, reagindo como se tivesse mordido a bochecha, quando que, na verdade, havia apenas se cortado com os próprios dentes. Assim que se deparou com os agentes funerários ainda o fitando, ele se apressou em logo acrescentar, tomando mais cuidado e segurando um pouco a própria língua ao falar: “Eu não estava esperando por isso. Realmente sinto muito por meu pai tê-los incomodado.” Um dos agentes meneou a cabeça e suspirou. “Está tudo bem.” Natsuno pôde sentir o pensamento vadio correr pelas mentes deles: “O pai, na verdade, enlouqueceu e achou que o filho estava morto, sem perceber que ele estava apenas dormindo; que grande dor de cabeça”. “Eu— Vocês sabem o caminho até a porta?” Ele perguntou aos homens, arqueando uma sobrancelha, sem se importar em esconder o desgosto que havia criado por eles. “Eu preciso acalmar meu pai.” E, com aquele motivo mais do que convincente, os agentes assentiram, tomaram o caixão nas mãos e foram embora pelo corredor. Quando os ouviu fechar a porta da frente e sair com o carro da entrada de sua casa, Natsuno massageou as têmporas, preparando-se para encarar mais um novo problema. Refletiu por um instante e organizou sua mente. Sentiu uma onde de ódio dominá-lo, junto da súbita vontade de sair matando todo ser não vivo que visse pela frente. Invés, controlou-se, seguiu até a janela e a fechou, banhando o quarto em escuridão. Ele levou a mão, devagar, até o pescoço e se arrepiou ao encostar na cicatriz que Tohru havia deixado em seu corpo. Podia sentir as duas saliências causadas por suas presas com perfeição, assim como ainda sentia os dentes e o corpo frio dele sobre o seu na noite anterior, tempo antes de morrer, arrancando-lhe seus últimos momentos de vida. Aquela fora a última mordida, e seria a marca que representaria toda a tristeza que ganhara com aquele massacre às escuras que aqueles malditos de Kanemasa haviam começado. Agora, sabia o que tinha de fazer e pretendia começar naquele instante. Ele saiu do quarto e encontrou o pai caído de joelhos na sala, o olhar vagando pelo ar como se ele estivesse perdido no espaço, um canto mergulhado na loucura. “Ah... Azusa... Azuuuzaaa...!” Ele gritava, com um sorriso sem razão no rosto. “Vooolte, Azuuusaaa! Natsuno acoooordou! Volte para miiim, Azusa!” O filho se estendeu na frente dele e encontrou um pedaço de papel amassado em suas mãos. Com cuidado, ele o tomou e leu. Sentiu uma pena gigantesca do pai e se perguntou se aquilo tudo não havia sido o suficiente para ele, mas logo lamentou: não era nada além da ponta do iceberg. Foi naquele instante que Natsuno sentiu a fome apoderar-se de si. Não era uma fome comum. Mesmo que seu estômago roncasse, aquilo não era nada. Ele sabia exatamente que tipo de fome era aquela, pois naquele instante também se dera conta do fortíssimo gosto de sangue na boca, o sangue que havia arrancando de sua língua com os caninos. A bulimia estava contorcendo suas entranhas e o fazia olhar para seu pai como um prato suculento, pronto para ser servido em uma bandeja. O garoto conseguia ouvir o coração dele pulsando e via exatamente onde as veias se estendiam vigorosas sob a pele branca como gesso. Aquilo era totalmente insano. Repugnante. Fazia-o querer vomitar. Natsuno se afastou do pai até bater contra uma parede e escorrer para o chão, onde se encolheu e apertou os joelhos com as mãos, tremendo. “Pai.” Ele chamou, mas sem resposta. Então fez uma bolinha com o recado da mãe que tinha nas mãos e tacou, acertando o homem na cabeça. Yuuki pareceu parar momentaneamente e depois virou a cabeça para o filho, ainda em órbita, como se ele fosse uma atração, algum objeto de madeira muito bem feito. “Pai, eu estou com fome. Prepare algo para eu comer.” Ordenou o jovem, e logo o homem estava de pé, andando em ziguezague com os braços soltos em direção à cozinha, novamente repetindo coisas de modo estranho. “A-almoçooo! S-super super almoçoo para o meu Natsu-sunoo!” Ao perdê-lo de vista, Natsuno ficou mais aliviado. Precisava se manter mais sob controle, precisava gelar a cabeça. Ele se levantou e rumou cautelosamente até a cozinha. “Pai.” Chamou mais uma vez. Ele o viu pegar uma longa faca de cozinha e então acertar a cabeça de um peixe estirado na pia, fazendo-o cair em dois pedaços distintos e assassinados. Logo após, Yuuki virou a cabeça sobre um dos ombros, sorrindo de orelha a orelha. “Pois não, Natsuno querido?” Seu filho engoliu em seco, mas nem por isso hesitou. “Eu vou tomar um banho. Se alguém aparecer, dispense-o na mesma hora. Não deixe ninguém entrar em casa, está bem?” O homem virou os olhos de volta para a pia, deixando a cabeça em um ângulo estranho sobre o pescoço. “Ah, mas eu estou cozinhando, Natsunooo... Eles terão de esperar!!” E então voltou a massacrar o peixe sem nem prestar muita atenção, passando a ignorar o filho e o mundo ao redor dele como antes. “Você não deve dizer a ninguém que eu...” Sua boca parou, sem saber exatamente o que dizer. Seu pai poderia surtar caso dissesse algo errado. "[i]Bobagem[/i]", ele pensou, irritado. “Ninguém pode saber que eu acordei, portanto, não fale nada a ninguém a respeito. Se alguém chegar e insistir, mande-os embora e depois ignore-os.” “Aaaah... Está beeem...” Resmungou o homem, ainda aéreo e “cozinhando”. De certa forma aliviado, Natsuno deu meia volta para o corredor dos quartos, adentrou o banheiro e o trancou logo atrás de si. A pequena janela no topo da parede trazia pouca luz para dentro, fazendo-o se sentir mergulhado em um leve manto de penumbras. Ele seguiu até a banheira, tirando suas roupas, jogando-as no chão pelo caminho, e nela entrou, abrindo a torneira gelada em seu máximo. Esperava que aquela frieza acalmasse seus nervos, mas percebeu que o frio não lhe incomodava mais. Logo que a banheira encheu, fechou a torneira e submergiu-se até que o nível do nariz desaparecesse embaixo d'água, até seu fundo. Na verdade, era apenas um teste. Queria muito saber o quanto aguentaria. Em pouco tempo, seu corpo começou a reclamar por falta de ar, e o forçou a ignorar. Esperou alguns minutos, ele ainda estava vivo. Depois de passados trinta minutos, ele ainda não havia sucumbido a uma segunda morte. Por quê? Por que não conseguia morrer? Primeiro a luz do Sol, depois afogamento. Nada parecia adiantar. Tudo bem que matar um Shiki com falta de ar não parecia ser um método nem um pouco eficaz, mas ele [i]deveria[/i] ter sofrido com a luz do dia, como as coisas geralmente [i]deveriam[/i] ser. Sem falar do pouco tempo em que permanecera morto. Na noite anterior, Natsuno havia dormido pensando que nunca mais iria acordar, mas, de repente, na manhã seguinte, despertou com seu pai preparando seu funeral. Nem conseguia mais pensar que realmente havia morrido. Teria sido aquele sonho aterrorizante apenas... mais um sonho, e não sua morte? Ele respirava, tinha pulso, e, em breve, iria comer algo sólido. Havia recusado sangue, que sabia que era extremamente importante para algo como ele, mas seu corpo havia aceitado a ideia sem muito pestanejar. No que ele havia se tornado? Como em um clarão, Natsuno se lembrou de Tatsumi. O maldito conseguia andar sob o sol. Já tinha visto uma vez: quando ele encontrou Kaori e Akira espionando a mansão de Kanemasa, logo antes do anoitecer, enquanto os jatos de luz tingiam o céu de vermelho demoradamente. Tatsumi estava ali, espreitando-os. E “vivo”. Natsuno, portanto, era um ser igual. O desgosto o tomou para si, batendo em sua cabeça e rachando-a como uma pesada pedra. E, desta vez, ele realmente teve vontade de morrer. Mas não morrer, e sim exterminar sua existência, findá-la de uma vez. Afinal, morto já estava: de vida, de alma... E apenas vivo de carcaça. Aquela sensação fez sua boca torcer e seu suposto coração imortal, apertar-se. Seus braços se movimentaram e embalaram o corpo. E no instante em que um pouco seus lábios crisparam, água gelada invadiu-lhe a boca, fazendo-o se engasgar. Ele se viu obrigado a se sentar e voltar para a superfície enquanto tossia e cuspia líquido para fora da garganta. Sentado, com apenas a cabeça e os joelhos pontando para além do nível d'água, Natsuno esfregou o rosto e abraçou o próprio corpo, descansando o queixo sobre as pernas. Tentou pensar, pensar em qualquer coisa que pudesse ocupar sua mente no lugar daquela sensação amarga de ser um Shiki, tão odioso, mas como nada lhe veio, levantou-se da banheira e começou a se secar. Enrolou-se em uma toalha sobre os ombros e deixou que o pano felpudo re-esquentasse seu corpo. Ainda com o cabelo pingando, ele andou pelo banheiro, recolhendo suas roupas jogadas no chão. Quando se levantou, deparou-se com o próprio reflexo encarando-o pelo espelho. De primeiro, botou a língua para fora, examinando onde a havia mordido de manhã. Entretanto, não encontrou nenhuma afta ou coisa do tipo. Verificou também seus dentes: duas presas haviam crescido em frente aos seus caninos, saindo da gengiva em cima do osso esmaltado. Tocou-lhes com a ponta do dedo e descobriu o quanto elas eram realmente afiadas. Testou a mandíbula abrindo-a e fechando-a algumas vezes e constatou que só se machucaria com seus “novos caninos” caso quisesse ou fosse estupidamente descuidado. Quando ele se desinteressou pelos dentes, sua atenção se voltou para seu próprio reflexo em si. Timidamente, ele tocou o vidro, molhando-o. Tombou um pouco o rosto para o lado e, com o dedo, delineou o contorno de seu pescoço morosamente, até recair sobre o reflexo de sua cicatriz, a sua marca. Largando o espelho, envolveu aquela parte de sua pele com a mão fria, estremecendo e se arrepiando com o contato. Deixou um dedo repousar em cada um dos dois sulcos que as presas de Tohru-chan haviam deixado nele. Presas que ele agora também tinha. Ainda podia descrever exatamente a sensação de ter o vampiro sobre si — mordendo-o, perfurando sua carne com seus dentes, tragando sua vida. “Tohru-chan...” Sentiu-se como se estivesse despencando de um penhasco, um abismo de trevas e escuridão não só feito de ódio, mas também de tristeza e pesar. Natsuno havia sido assassinado, traído por seu melhor amigo, pela pessoa que havia se tornado a mais importante para ele — aquele que havia tornado sua vida menos irritante, menos frustrante, e até mesmo mais alegre. Como se não tivesse bastado sofrer com a morte dele e então com o choque de sua “volta”, Natsuno teve de se render à própria morte. Tohru-chan havia escolhido poupar sua própria “vida”, matando outra para sobreviver. “Foi o que ele escolheu...” O jovem sentiu sua garganta se fechar, seca em repulsa, e apertou os nós dos dedos que seguravam sua toalha e roupas. “Mas eu... eu não serei como ele. Eu nunca quis me tornar o que agora sou, portanto... portanto...” Ele deixou seu rosto tombar para frente e a mão em seu pescoço cair pensa ao lado de seu corpo ainda úmido. “Portanto, eu não me renderei novamente, não tão facilmente.” Prosseguiu ele, murmurando tais palavras como uma prece. “Eu matarei a todos. Darei a eles o destino que eles tanto abdicam, enquanto brincam com a vida de outras pessoas. Eu nunca os perdoarei.” Natsuno cerrou sua mão livre em um punho forte, que fazia as unhas machucarem a própria carne. Ele se voltou para o espelho, cravando os olhos em seu reflexo — um brilho mortífero de ódio e determinação. “E logo após isso... Será a minha vez de ir junto a eles. Findado para sempre.” Quando foi almoçar, deparou-se com um ensopado no qual ainda podia se ver algumas partes inteiras do peixe usado. A sopa até brilhava com as escamas que não foram totalmente lascadas. Só de olhar para o caldo escuro em seu prato, Natsuno teve náuseas, mas como não tinha mais nada para comer que não estivesse totalmente cru ou congelado, ele se contentou e tentou aceitar aquilo de bom grado. Depois de tentar cortar as partes intragáveis do peixe com garfo e faca comuns, ele deu sua primeira colherada sem se preocupar em fazer uma cara de “nossa, como isso está fantástico!” para o pai, já que o homem enlouquecido que estava sentado logo à sua frente parecia mais preocupado em vê-lo comer até o final, do que vê-lo gostando ou não de sua gororoba. Mas, logo ao levar a colher à boca, o metal bateu em seus dentes, fazendo-o praguejar. Ele tateou a gengiva com a língua e por pouco não a cortou novamente. Havia se esquecido de seus caninos, só que agora eles pareciam ainda maiores do que antes quando acordara. “Ah, Natsunooo! P-parece delicioooso!” “Ótimo como sempre, pai.” Respondeu ele, sem mudar a expressão indiferente do rosto, apenas continuando a comer para que findasse logo sua fome irritante. “S-sabe...! Tivemos visitas hojeee..!” Disse Yuuki, tombando a cabeça para o lado com um sorriso de orelha a orelha no rosto, mas que logo foi substituído por uma carranca. “Crianças rudes e religiosas! Realmente insetos irritantes!” Guinchou ele. Natsuno deixou a colher repousar no prato por um instante, pensativo. Os nomes “Kaori” e “Akira” ecoaram em sua cabeça. Mas para não chamar a atenção do pai, ele voltou a comer, até mais rápido que antes. “São má influência para Natsuno, querido. E ainda me atrapalharam enquanto eu cozinhava!” Chiou o homem, indignado. O jovem cutucou sua sopa, inquieto, engolindo seu almoço com a garganta trancada e seca. “[i]Eles devem ter descoberto que eu morri...[/i]” Ele levantou os olhos para o pai e se lembrou de sua origem na cidade grande. “[i]Eles devem achar que eu vou ser cremado.[/i]” Mas logo outra constatação veio-lhe à memória. “[i]Cremado... É provável que os Okiagari também venham a pensar assim. Devo usar isso como uma vantagem? Bem, claro que sim.[/i]” Natsuno levou o prato fundo até a boca e terminou de sorver o caldo ralo e escuro, deixando apenas os ossos e escamas para trás. Quando o colocou novamente na mesa, ele empurrou o prato para o lado e chamou a atenção do pai, apoiando-se totalmente sobre os cotovelos em cima do acrílico. “Pai, está na hora de você saber o que realmente se segue nessa vila hedionda.” O homem tombou a cabeça para o outro lado, seus olhos vidrados, mas ainda disposto a ouvir. Ter de explicar tudo a ele deixou Natsuno mentalmente cansado, com as têmporas latejando. O que o filho agora lhe contava fez a expressão vazia de Yuuki se contorcer em uma de cólera e revolta. “Eu sabia!!” Gritou ele, descontrolado. “Aqueles fedelhos deturparam Natsuno! Mentirosos, ordinários! Esta vila está repleta de pessoas estúpidas e medíocres!” Natsuno se irritou e bateu com força na mesa com o punho cerrado, fazendo o prato tinir com os talheres. “Esta vila está repleta, sim, de gente ordinária. Todos são supersticiosos e fofoqueiros. Mas aqueles dois que vieram aqui mais cedo são meus amigos e eles nunca contaram uma única mentira a você. Foi você quem nunca quis ouvi-los! Por causa disso, até mamãe foi embora.” Yuuki ficou estático. Seus olhos se arregalaram e pareceram afundar ainda mais em seu rosto. Podia até estar sendo cruel acusando-o daquele jeito, mas Natsuno não sentia um único pingo de culpa. Seu pai era um homem obstinado e irreversível e aquilo fora uma das causas que o haviam levado à ruína. Sentia ódio do pai por isso, mas não conseguia deixar de sentir pena dele também. Afinal, as únicas posses que lhe sobravam ainda eram a vida e a casa, porque até sua sanidade o deixara para trás. “Você acredita em seu filho, não acredita, pai?” Natsuno perguntou, fitando-o severamente. Ainda abobado pelo choque de suas palavras anteriores, o homem apenas balançou a cabeça para cima e para baixo; um vago assentimento. “Os Despertados são verdadeiros, como eu falei.” Prosseguiu o garoto ainda sério. “Eu sou um deles agora.” Mesmo com a constatação, o homem continuou a não reagir ou se mover. Natsuno, então, puxou a gola da blusa e deixou à mostra a cicatriz da mordida em seu pescoço. “Está vendo? Esta é a prova de que eu virei um deles. Há também esta aqui.” Disse, para depois tombar a cabeça para trás e abrir a boca, mostrando seus caninos longos e pontiagudos. “Sei que é estranho eu estar ingerindo algo que não seja... sangue... humano.” A palavra o enojou por um instante e a ideia o deixava enjoado. “Além do fato de eu poder estar andando durante o dia também e até passando pelo sol. Acredito que eu seja um tipo diferente do deles, mas ainda não sei definir qual. Você está me entendendo, pai?” Estreitou os olhos para ele, sempre tentando manter uma ligação com suas palavras à mente perturbada do pai. Aparentemente mais calmo, o homem concordou, até mais enérgico. Com isso, Natsuno prosseguiu. “Eu estou contra eles, pai. Posso ser um deles, mas estou contra eles. Nós devemos lutar, pai. Devemos exterminá-los. Os Despertados são criaturas que nunca deveriam ter existido neste mundo. Por causa deles que eu [i]estou assim[/i]. E devo admitir que também há a grande hipótese da mamãe ter ido embora por causa deles.” Concluiu ele em um sussurro. Mesmo com o olhar vidrado, Natsuno conseguiu enxergar tristeza no pai. “Eu peço, pai, que você seja meu aliado, que me ajude nesta guerra contra os Despertados. Eu não pretendo lutar sozinho contra eles, até porque duvido que eu consiga. Não há como vencer esta guerra sem apoio. Aceita lutar comigo, pai?” Yuuki o olhou demoradamente até abrir um largo sorriso coberto de ternura. “Tudo pelo meu querido Natsuno.” Disse ele, literalmente estendendo os braços para o filho. O jovem notou tanto amor paternal emergindo do outro — mesmo um amor que chegava até ele através de um poço de loucura —, que se sentiu coberto por uma sensação nostálgica. Ele conhecia aquela sensação de “aceitação”. Natsuno estava sendo aceito de braços abertos pelo pai... Do mesmo modo que ele tinha aceitado Tohru-chan em seu pranto. Agora mais do que nunca, ele temia que o pai passasse pelo mesmo que ele havia passado. Então irritado, Natsuno se levantou abruptamente, de cabeça baixa e punhos cerrados. Como um passe de mágica e com muito esforço, ele olhou para o pai com uma expressão amenizada e um sorriso de criança no rosto. “Muito obrigado, pai.” Disse ele, do modo que menos fosse preocupar o outro, que agora sorria ainda mais abobado. “Eu estou cansado, então, se me der licença, descansarei em meu quarto. Não deixe que ninguém entre em casa, por favor, assim como eu pedi hoje de manhã, está bem?” “Siiim!” Respondeu o pai, pulando de alegria. Natsuno dirigiu um último sorriso a ele, um que saiu bem mais falso do que ele esperava transparecer, e apressadamente se retirou da cozinha, atravessou a sala e o corredor e entrou no quarto, trancando a porta atrás de si enquanto seu coração parecia querer sair pela garganta. Com o corpo rígido e os membros apenas pensos em suas juntas, ele arrastou os pés até sua cama onde se deixou cair. Se recolheu sobre o colchão, encolhendo-se e fechando-se em uma concha dolorida. Seu pai o havia aceitado assim como ele aceitara Tohru-chan, logo antes de morrer. Tê-lo aceitado causou sua morte. A história estava se repetindo... Será que ele acabariam matando o pai mais cedo ou mais tarde do mesmo modo em que Tohru-chan o havia matado? Naquele instante, Natsuno prometeu para si mesmo que nunca iria atacar ninguém, nunca iria se alimentar do sangue de ninguém. Preferia se tornar fraco e definhar do que ter de tomar para si a vida de outra pessoa. Ter de matar alguém para que sobrevivesse não era a sua saída para o que tinha se tornado. Aquela nunca iria ser sua resposta e tampouco iria ser sua escolha. “Eu não sou como eles...” Murmurou para si mesmo no escuro de seu quarto fechado, transformando aquelas palavras em uma prece. “Eu nunca me conformarei com tal pecado.” Ele piscou pesadamente os olhos, sendo pouco a pouco dominado completamente pelo cansaço. “Isso tudo não é justo, Tohru-chan...” Sussurrou ante o sono que fechava suas pálpebras. Quem dera se ele estivesse apenas sonhando. Ou então apenas estivesse adormecendo para nunca mais acordar novamente.

Notas Finais


[b][i]Errata:[/b][/i] No primeiro capítulo, há uma parte da narração em que dei a entender que Tohru respira, pois eu havia descrito sua respiração e tudo o mais. Shikis não respiram!! Então peço desculpas por esse deslize meu x.x (todavia, como vimos nesse capítulo 2, Natsuno é excessão \o/)

Outro detalhe: é provável que o capítulo três venha a demorar mais do que esse segundo demoruo. Razões no meu jornal.

Obrigada por lerem! Reviews deixam feliz qualquer autor!
Coral.


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