Desespero. Solidão. As palavras que definiam Cloe Tally naquele colégio-sanatório com certeza eram essas e por mais que sussurrasse para si mesma todas as noites que ela se acostumaria e suportaria tudo, era cada vez mais difícil manter a palavra sempre que via os espíritos atormentados que deslizavam morbidamente pelos corredores e jardins de War & Peace, a maioria deduzia que se tratavam de crianças que frequentaram o colégio e que por alguma razão, haviam morrido bem como agora assombravam o prédio, embora os funcionários parecessem não ver aquele estranho fenômeno.
O pior de tudo era passar por aquele processo completamente sozinha. Antes Cloe contava com a presença dos pais e do irmão, mesmo depois do trágico incêndio que os matara ela tinha os avós e a tia. Mas agora ela não tinha ninguém, raramente recebia visitas da família. O avô justificava a distância como empecilho, mas ela deduzia que ele não gostava do colégio e por isso evitava aparecer. O jeito que o senhor olhava para os lados e para os alunos parecia indicar aflição. E ele parecia sempre querer apressar as visitas.
Já era seu terceiro ano em War & Peace. Apesar de já estar acostumada a viver naquele ambiente mórbido e assombrado isso com certeza não significava que era mais fácil ou menos assustador. O espírito envolto de negro que lhe assustava aparecia com bem menos frequência do que antes, mas tantos espíritos cheios de melancolia e solidão lhe faziam mal. Os remédios que sua enfermeira lhe receitava não parecia diminuir aquelas visões.
Cloe sabia que não era louca, mas ninguém parecia acreditar nela já que apenas ela era capaz de ver. Havia crianças ali que sabia que sofriam de distúrbios psicológicos, mas ela estava sã. No primeiro ano agira como um dos loucos, gritando de medo toda vez que via Gipsy, apavorada demais que fosse a vez dela de ser incendiada até a morte. Mas depois de ser presa no Quarto várias vezes, aprendera a se controlar e fingir que o tratamento estava fazendo efeito em sua mente ensandecida.
O Quarto se tratava do maior medo dos alunos de War & Peace. Tratava-se de um ambiente totalmente fechado, claustrofóbico e com pelo menos 4 metros cúbicos em que o aluno ficava preso durante a noite inteira preso em uma camisa de força. Eles diziam que era uma forma de tratamento, mas todos sabiam que se tratava de um castigo. Todos tinham medo do Quarto, e Cloe se comportava o melhor possível porque a ideia de ficar presa no cubículo com espíritos olhando para ela com lágrimas nos olhos a apavorava mais do que ter que enfrentá-los em espaços abertos.
Cloe estava aproveitando a manhã no único lugar do colégio que poderia se considerar razoavelmente livre; o jardim. Toda manhã, antes do início das aulas, os alunos conscientes de seus atos tinham permissão de aproveitar a brisa matutina e a luz do sol. Sentada no banco de pedra, a garota distraía sua mente com visões utópicas de seu futuro: uma mulher normal, com um marido e filhos, um emprego bem sucedido vivendo feliz sem nunca mais olhar para os lados e ver um morto olhando para ela a cada esquina. Era a única coisa que ela tinha para fazer, já que Lourdes tomara dela qualquer forma de entretenimento e ela não tinha amigos com quem conversar.
Gostava de sonhar com o improvável. Talvez o seu destino fosse ficar presa em um sanatório e nunca encontrar uma vida normal, mas sonhar não custa nada. Imaginar libertava Cloe, fazia com que ela se sentisse menos presa e abandonada naquele lugar, algumas vezes sua imaginação ia tão longe que era como se sua alma estivesse bem longe do corpo.
— Oi...?
Cloe ergueu a cabeça em um sobressaltado assustado, focando sua visão no garoto que estava diante dela. Provavelmente era mais baixo do que ela, usava óculos de lentes tão grossas que deixavam os olhos tão fundos que lhe dava certa agonia. O cabelo castanho era cortado em tigela e sardas se espalhavam pelo seu nariz. Ele a olhava com certo receio, a alguns passos dela, ligeiramente corado e um sorriso tímido. A Tally se lembrava de ver o garoto algumas vezes, mas nunca haviam conversado.
— O que foi? — Cloe perguntou, logo percebendo que poderia ter sido grosseira por não cumprimentar apropriadamente.
— Nada, eu só... Pensei que poderíamos conversar — ele respondeu, sua voz quase sumindo. Ele pareceu enrubescer ainda mais e Cloe sentiu-se meio perdida com aquilo.
— Ah... Tá bom — ela respondeu incerta, arrastando o traseiro para o lado para dar espaço ao garoto para sentar ao seu lado. Ainda estava curiosa pelo motivo que o teria levado a falar consigo. Provavelmente o tédio de ficar o tempo todo sozinho.
Ele sentou. Por um instante ambos ficaram calados sem dizer nada, olhando para frente como se fosse apenas um fato ocasional compartilharem o mesmo banco. Cloe não sabia o que dizer para o garoto, principalmente porque fora ele quem lhe chamara e não o contrário. A garota ficou balançando os pés e olhando-os distraidamente até ouvi-lo novamente.
— Sabe... Já vem um tempo que tenho observado você... — ele falou baixinho, evitando contato visual.
— Por quê? — perguntou a menina, curiosa.
— É que eu q-queria fazer amizade. É meio chato ficar aqui sozinho — respondeu imediatamente, e Cloe teve impressão de que aquele não era o motivo completo. Mas decidiu não insistir.
— Eu sei — ela concordou suspirando. — Odeio esse lugar.
— Eu também. Faria qualquer coisa pra sair daqui — fez uma careta. — Eu não sou louco. Mas não adianta dizer isso para os meus pais, eles não acreditam em mim.
Cloe olhou para o garoto, se perguntando se era prudente perguntar a ele os motivos que haviam feito seus pais colocá-lo naquele inferno. Ele parecia bastante sensato e assim como ela devia ser apenas considerado louco.
— Por que seus pais te colocaram nesse colégio? — ela perguntou vencida pela curiosidade.
O garoto apertou os lábios e olhou para os lados, voltando sua atenção para Cloe. Quando falou, sua voz saiu bem baixinha para que apenas ela escutasse.
— Eu vejo espíritos — sussurrou. Cloe arregalou os olhos. — Agora mesmo tem uma garotinha aqui do nosso lado, olhando pra gente. Ela é...
— Pálida, tem olhos azuis e o cabelo bem loirinho — a Tally completou por ele, chocada por encontrar alguém que conseguia ver o mesmo que si. — Eu também estou a vendo.
O menino olhou para ela, chocado.
— Você também...?
— É por isso que eu to aqui também — respondeu. — Meus avós acham que isso é loucura. Mas eu sei que não estou louca!
— Hey! Vocês dois aí, acabou o descanso! — uma voz autoritária gritou da porta. — Não se atrasem!
Atrasos não eram tolerados em War & Peace. Pessoas que se atrasavam costumavam ser castigadas, embora nem todas as punições fossem severas. Mas nenhum deles preferia arriscar.
— Qual o seu nome? — Cloe perguntou, andando ao lado do garoto para dentro do prédio.
— Eu sou Kentin, mas pode me chamar de Ken — ele respondeu. — E você?
— Cloe.
~x~
Os dias pareciam ser muito menos perturbadores com Ken ao seu lado. Por ter alguém com quem conversar, até mesmo mais do que isso, alguém que era capaz de entendê-la, que poderia conversar sobre seu pequeno “problema” e não iria julgá-la como louca, Cloe sentia seu coração muito mais leve e aguentar sua jornada interminável em War & Peace era muito mais fácil.
Os dois se tornaram muito próximos e ficavam juntos o tempo que pudessem, conversando e tornando a situação de ambos muito mais leve. Era quase como se Cloe conseguisse se esquecer de que estavam em colégio-sanatório, se sentir uma pessoa quase normal. Mesmo antes da morte de sua família, ela não se lembrava de ter tido um amigo tão próximo como Ken o era.
Saindo da sala de aula os dois seguiram para o refeitório na hora do almoço, os dois conversavam sobre como Ellen, uma garota da sala deles, havia surtado durante a aula da senhorita Ruby do nada. Ou os funcionários achavam isso, porque Cloe e Ken foram capazes de ver claramente um espírito de um menino que parecia ter chorado sangue sentado sobre a mesa da professora, balançando os pés e soluçando, como Ellen havia alegado.
— Acho que ela vai passar o dia no Quarto — comentou Ken tristemente. Cloe concordou com a cabeça.
— Coitada. Eu também fiquei assustada, mas acho que ela ainda não consegue controlar o medo — a Tally respondeu. — Ellen tem esses ataques toda vez que tem algum espírito por perto.
— Eu era como ela — murmurou Ken, enfiando as mãos nos bolsos. — Se via um espírito eu ficava doido. Mas a experiência de ficar no Quarto é horrível, esse tratamento de choque me ajudou a ter controle.
Cloe apertou os lábios e concordou. Nunca ficara tivera nenhum surto psicótico com espíritos como o garotinho que aparecera na sala, mesmo que eles lhe dessem muito medo, mas o único que conseguira arrancar gritos desesperados, agitação e lágrimas dos seus olhos a ponto de precisar ser medicada ou presa no Quarto era quando Gipsy aparecia. Mas depois de um tempo suas aparições se tornaram menos frequentes e, assim como Ken, a experiência de ser trancada no Quarto lhe dera mais controle sobre si mesma. E ali sim os outros espíritos, sempre vários juntos, a deixavam apavorada.
— E você, Cloe? — ele perguntou.
— Eu o quê? — ela perguntou desperta de seus pensamentos.
— Como era sua reação no começo?
— Ah — ela coçou a nuca. Cloe mordeu o lábio inferior e parou de andar e Ken repetiu a ação, observando-a com curiosidade. A garotinha nunca lhe falara sobre Gipsy ou sobre o incêndio, mas percebia que já confiava nele o suficiente para tal. — Eu nunca... Bom, esses espíritos me assustam, mas eu consigo controlar. Só teve um que... Que me assustava a ponto de ficar como a Ellen.
— Um só? — Ken arregalou os olhos por trás das lentes redondas e fundas. — Como assim...?
Cloe sentiu a garganta de fechar impedir que a voz saísse. A garota apertou os lábios e respirou fundo; nunca era fácil falar sobre aquilo, mas Ken era seu melhor amigo, o único que tinha. Sabia que poderia confiar nele.
— O espírito que provocou a morte da minha família — ela esclareceu por fim.
Ken arregalou os olhos, chocado.
— Sua família...?
— Minha mãe, meu pai e meu irmão mais velho — continuou, sentindo a garganta travar de novo. As lágrimas se juntaram no canto dos olhos e rapidamente as secou. Ken apressou-se em segurar as mãos dela carinhosamente, afagando as costas das mãos da garota com os polegares.
— N-não precisa falar sobre isso se não quiser! — ele apressou-se em dizer. — Eu vou entender, não vou te forçar a falar nada. Ah, melhor irmos logo antes que o almoço esfrie!
Cloe forçou um sorriso por trás de suas lágrimas. Concordou com a cabeça e ambos seguiram para o refeitório para poderem almoçar, logo voltariam à rotina infernal daquele colégio-sanatório que ambos odiavam.
Mas pelo menos agora tinham algo que os fortalecia e tornava os dias melhores: uma amizade sincera.
~x~
— Você está pálido.
Durante o café da manhã, Cloe parou de comer seu mingau de aveia para observar o rosto do amigo. Havia dias que parecia estranho, mas ele sempre desconversava e dizia que estava tudo bem. Mas com um ano e meio de amizade Cloe sabia reconhecer quando Ken estava mentindo ou falando a verdade.
— Eu dormi pouco — mentiu, comendo seu mingau e dando de ombros.
— Não minta pra mim — Cloe semicerrou os olhos. — Eu estou vendo, Kentin. Já faz semanas que você tem estado pálido, fraco... Ontem você até desmaiou! O que está acontecendo?
Ken torceu o nariz, e Cloe soube que havia se incomodado por ter sido chamado de Kentin. Geralmente ela o chamava assim quando estava aborrecida.
— Eu não sei, de verdade — suspirou. — Eu tenho tomado os remédios. Tenho me alimentado. Eu não sei o que está me deixando assim.
— Não é melhor falar com a sua enfermeira? — Embora Elise, a enfermeira responsável por Ken fosse uma bruxa vestida de anjo branco, era a única com quem o garoto poderia contar caso não se sentisse bem.
— Eu falei. Ela disse que estou sendo fresco — ele respondeu. — Disse que vou melhorar, que não tem nada de errado comigo.
— Ela te examinou?
Ele parou de comer e olhou para ela, envergonhado.
— Não...
Cloe respirou fundo. Não era de perder a paciência, e nem queria brigar com seu melhor e único amigo sendo que ele claramente estava doente. Mas não podia acreditar que Ken estava aceitando o veredicto da bruxa sem ao menos um exame básico que talvez o levasse ao médico.
— Mas você não está bem! Dá pra ver! — ela exclamou, embora falasse baixo para que Lourdes, que andava no refeitório, não escutasse. A diretora odiava conversinhas.
— Mas o que eu posso fazer? Ela me assusta e você sabe disso — Ken choramingou. Aquilo amoleceu o coração da garota, que mudou a expressão para uma mais compreensiva. — Eu não tenho uma enfermeira como a sua.
A enfermeira de Cloe, Amalie, era uma das poucas do colégio que não tratava as crianças com desprezo. Era amorosa com aqueles pelos quais era responsável, e pelo menos nisso Cloe tivera sorte.
— Eu sei. Mas e se for grave?
— Não deve ser. Vou melhorar — garantiu.
— Só te vejo piorando, Ken.
Uma espécie de chicote de montaria bateu sobre a mesa entre eles, fazendo as duas crianças erguerem os olhares sobressaltados. Lourdes os encarava com seus olhos severos e sombrios, pronta para castigá-los. É claro que não os bateria, castigos físicos não eram permitidos — embora ela já tivesse admitido várias vezes que adoraria usar aquele chicote para bater neles —, mas ela sempre achava um método que fosse igualmente desagradável.
— O que as duas cobrinhas estão chiando aí? — a diretora perguntou severamente e Ken abaixou a cabeça. — Eu falei com vocês dois, óculos fundo de garrafa! Eu já não disse para não ficarem de conversinha? A louça que mandei vocês dois lavarem semana passada não bastou, não?
Cloe engoliu em seco e ergueu a cabeça, trêmula. Seus olhos deixavam seu medo evidente, mas ela não podia deixar o amigo naquela situação. Se não falasse com Lourdes sobre a saúde dele, o que poderia acontecer com Ken?
— S-senhora, eu acho que ele está doente... — gaguejou a menina. — E-ele tem estado pálido e c-com muita moleza...
Lourdes ergueu uma das sobrancelhas e observou o garoto, tomando o queixo dele com certa violência para observar.
— Parece o mesmo moleque magricela e preguiçoso pra mim — respondeu com descaso, soltando o rosto dele com a mesma violência. — Voltem a comer. Em silêncio! Se eu ouvir de novo a voz de vocês faço vocês fazerem todo o serviço das faxineiras por duas semanas!
Cloe engoliu em seco e se calou, embora seu interior gritasse que ela era uma bruxa e que Ken não era nenhum garoto magricela e preguiçoso. Abaixou o olhar e voltou sua atenção para seu mingau insosso, mas o sabor daquela coisa não a incomodou. O que a incomodava era a saúde do seu melhor amigo. E alguém por quem ela poderia estar desenvolvendo um sentimento diferente.
~x~
Quando as crianças tinham um momento para descansar Ken e Cloe gostavam de jogar xadrez, um jogo que ele lhe ensinara e ela era péssima. Mas aquele dia em especial a Tally ganhava todas, e não era porque estava ficando mais habilidosa com o tabuleiro e as peças, mas porque Ken não estava atento ao jogo. Como Cloe temia, estava piorando.
Seu amigo estava mais magro do que de costume. Mal conseguia comer sem passar mal, tinha olheiras nos olhos e faltava muito nas aulas para poder dormir. A enfermeira jurava que estava cuidando dele, mas Ken parecia piorar a cada dia. Aquilo não estava certo.
— Ken, tem certeza que não quer descansar?
Ele ergueu os olhos cansados, e concordou fracamente com a cabeça.
— Me ajuda a ir pro quarto?
Cloe assentiu com a cabeça e deixou que o garoto se apoiasse nela. A fraqueza do amigo era de se preocupar; poderia nunca ter sido o garoto mais forte do mundo, mas nunca a ponto de precisar se escorar nela para andar, e ultimamente era muito comum que o fizesse.
— Um pouco de descanso vai me fazer bem — falou baixinho, como se lesse os pensamentos dela. E tentou sorrir, mesmo que fraquinho. — Não se preocupe comigo.
Cloe engoliu as lágrimas e sorriu, concordando com a cabeça.
— Você vai ficar bem — falou, mas a sensação que tinha era que seu amigo iria morrer. E ela não suportaria perder ele também.
Ajudou-o a seguir para o quarto e o ajudou a se deitar. Elise passou pelo corredor no mesmo instante, olhando as duas crianças.
— Ele piorou? — a enfermeira perguntou, mas seu tom de tédio deixava claro que não se importava.
— Sim... Por favor, cuide dele.
— Como se eu tivesse alternativa. Sai da minha frente, garota — ela empurrou Cloe para o lado, que quase caiu com o desequilíbrio. — E saia daqui, o menino precisa de descanso e não de uma menina chata choramingando.
Cloe concordou com a cabeça e saiu. O sinal da primeira aula bateu e ela correu para não se atrasar.
Só esperava que Ken melhorasse de uma vez.
~x~
Estava sem ver Ken o dia inteiro e estava começando a se preocupar. Sabia que o toque de recolher estava chegando, mas mesmo assim precisava vê-lo e saber como estava e por isso mudou de direção. Se corresse poderia chegar a tempo em seu quarto também.
Mas uma coisa lhe chamou atenção: a porta dele ainda estava aberta e ouviu som de voz saindo de lá, então sorrateiramente se aproximou para tentar entender do que se tratava. E ouviu a voz da enfermeira dele falando.
— Mais essa injeção... Pronto! — Elise soltou uma risadinha. — Vou me livrar rapidinho de você. Sério, eu odeio esse emprego, sabia? Por azar só consegui emprego nesse lugar horrível, por mais que eu quisesse ser enfermeira de um hospital de verdade... Mas não, me mandaram pra cá! E minha vida é cada vez mais infernal por culpa sua e de seus amiguinhos loucos, sabia? Eu vou me livrar de vocês, um por um. Mas não se preocupe, quem sabe você não vai pra um lugar melhor, hein? A Nicole acreditava que iria, só fiz um favor pra ela.
Cloe ouviu tudo e ficou completamente sem reação. Nicole era uma menina que devia ter uns cinco anos e morrera no ano passado, todos disseram que havia pegado alguma doença infecciosa. Apesar de presa naquele lugar, sempre fora uma menina muito simpática e costumava fazer orações antes de comer, recitando “papai do céu, obrigada pela comida”. Ela dizia que era amiga dos anjos e conversava com eles, mas Cloe não sabia dizer se ela realmente via ou se era delírio de Nicole. Afinal via espíritos, não anjos.
A mesma enfermeira que cuidava de Kentin era a que cuidava de Nicole, e ela sempre parecia irritada com a menina por conversar com anjos e ainda mais, por afirmar ser um próprio anjo em missão na Terra e apesar de todos os maus tratos de Elise, ainda era simpática com a mesma e tentava incentivá-la a melhorar seu desvio de caráter com seu jeito doce, dizendo que se apegara a enfermeira que só queria se livrar dela. O caso da morte da criança havia sido esquecido como se ela jamais tivesse pisado em War & Peace, mas agora Cloe sabia toda a verdade.
Aquela bruxa havia matado Nicole e estava tentando fazer o mesmo com Ken.
Cloe ficou trêmula, parada nas sombras sem saber o que fazer. E se ela a visse ali? E se tentasse matá-la também? Deu passos para trás e tropeçou em um vaso, que se espatifou no chão. A menina prendeu a respiração.
— Quem está aí? — a voz da enfermeira perguntou. — Quem é? — o som se aproximava.
O medo de ser vista e ser assassinada fez Cloe correr o mais rápido que suas pernas permitiam para voltar ao seu quarto. Quando chegou jogou-se na cama em prantos, sem saber o que fazer.
Ela contaria a Lourdes tudo que sabia no dia seguinte. Não iria deixar aquela mulher horrível matar seu melhor amigo.
~x~
No dia seguinte Cloe acordou com uma agitação estranha nos corredores.
A menina se levantou da cama sem entender, vendo que a porta de seu quarto já fora destrancada, mas parecia cedo para isso. Calçou as pantufas e saiu no corredor, vendo muitos curiosos cochichando sobre alguma coisa.
— Cloe?
A voz de sua enfermeira lhe chamou atenção.
— Ah querida, eu sinto muito! — Amalie a abraçou.
— O que aconteceu? — perguntou confusa.
Amalie respirou fundo e afastou-a para olhá-la.
— Seu amigo, querida. Ele está em coma...
Cloe arregalou os olhos.
— O quê...?
— Os médicos vieram levá-lo. Mas...
Cloe não ouviu o resto. Correu em disparada na direção do quarto de Ken esperando que aquilo fosse só uma brincadeira de mal gosto. Mas não era. Era uma cruel e dura verdade.
Ken estava sobre uma maca, sendo carregado com aparelhos para que se mantivesse vivo, mas ouviu alguns enfermeiros dizendo que só um milagre salvaria aquele garoto.
— Ken! — ela gritou. — Ken!
— O que? — um dos enfermeiros se assustou. — Tirem essa menina daqui!
Elise entrou no quarto de Ken com falsa preocupação no rosto, o que inflamou a fúria no peito de Cloe.
— ASSASSINA! VOCÊ MATOU ELE! — gritou a plenos pulmões, sentindo as lágrimas descerem pelo rosto. — VOCÊ FEZ ISSO!
Ela olhou para a Tally, aturdida.
— Do que está...? Ah, a pobre menina... Era tão amiga dele, pobrezinha.
— Vamos querida, saia daqui... — pediu o enfermeiro que tentava segurá-la.
— Ela é uma assassina! Prendam essa mulher! Prendam! Ela matou meu amigo!
— Pobrezinha, está delirando... — disse a enfermeira. — Acho melhor eu cuidar dela...
— Não. Eu mesma cuido.
A enfermeira responsável por Cloe surgiu, pegando a garota no colo enquanto esta se debatia em desespero, segundo após segundo sendo afastada de Ken que estava moribundo sobre aquela maca.
Você tem que sobreviver!, pensou a garota assim que sua voz não aguentava mais gritar e suas lágrimas rolavam por seu rosto.
~x~
Amalie era a única que acreditava nela, mas mesmo assim não foi capaz de fazer nada. Entretanto pelo menos lhe garantira proteção contra Elise, afinal Cloe tinha medo que a enfermeira quisesse dar cabo nela agora. Toda vez que passava por ela seu olhar era de puro ódio como se dissesse que estava marcada.
Semanas se passaram. Nenhuma notícia de Ken. Cloe ficou afundada em depressão, incapaz de cumprir qualquer tarefa até o fim. Lourdes não parecia ligar para sua dor, mas a contragosto decidiu deixa-la em paz depois que Amalie conseguiu convencê-la de que a menina precisava de um espaço para superar a perca do melhor amigo.
Mas a falta de notícias já estava deixando-a agoniada. Lourdes já devia saber alguma coisa, com certeza ela saberia! Antes do café da manhã Cloe correu para a sala da diretora, batendo na porta para receber permissão para entrar. Quando viu que se tratava de uma aluna, Lourdes revirou os olhos.
— O que é?
— Eu... Quero saber se tem notícias do Ken.
A diretora ergueu uma sobrancelha.
— Hã? Do boneco namorado da Barbie?
— Não! Meu amigo, Kentin! — ela se apressou a explicar. — Ele foi levado pro hospital, lembra?
Lourdes fez uma expressão confusa, depois fez uma careta para tentar se lembrar, até que estalou os dedos indicando que se lembrara.
— Kentin! O garoto dos óculos fundo de garrafa?
— É — Cloe torceu os lábios. Nem ela e nem Ken gostavam daquele apelido maldoso da diretora.
— Ah sim. Morreu no caminho do hospital.
A notícia pareceu tirar o chão sob seus pés. Cloe abriu a boca, tentando falar, mas som algum saía. Apesar da notícia ela não conseguiu chorar, porque não parecia real. Não poderia ser real!
— O K-Ken...? — soluçou, finalmente sentindo as lágrimas virem à tona.
— Oh querida, não pensou que ele fosse sair vivo daquele quadro, pensou? — Lourdes perguntou e Cloe, apesar da tristeza, sentiu o deboche em sua voz. Mas aquilo não importava. — Seu namoradinho morreu. Sinto muito — a diretora disse, mas Cloe sabia que ela não sentia nada.
Cloe fechou os olhos e a expressão de dor dominou seu jovem rosto, sentindo as lágrimas escorrerem e penetrarem os lábios e sentiu o gosto amargo. Tão amarga quanto a notícia que acabara de receber.
— Olha, não tenho tempo para seu choro, entendeu? Saia daqui que eu vou trabalhar! — Lourdes abriu a porta e empurrou Cloe para fora, batendo a madeira pesada em seguida.
Cloe tentou caminhar um pouco mais, mas em certo lugar do corredor ela parou, quando finalmente a ficha caiu; Ken, seu melhor amigo, o garoto por quem estava começando a sentir algo que ela estava julgando ser amor, havia morrido. A pessoa que alegrava e iluminava seus dias não estaria com ela nunca mais.
Ele se fora para sempre. Kentin a deixara sozinha.
Sentindo a dor irromper em lágrimas e coração apertado pela angústia, Cloe encostou-se na parede, escorregou até sentar no chão, escondeu o rosto entre os joelhos e chorou desesperadamente.
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