“Havia naqueles dias gigantes na terra; e também depois, quando os filhos de Deus entraram às filhas dos homens e delas geraram filhos; estes eram os valentes que houve na antiguidade, os homens de fama.” Gênesis 6:4.
Vale do ossos secos, 1535.
Miguel, o arcanjo, observou a mulher de cabelos louros caminhar pelo chão coberto por cadáveres quando a tempestade chegou aos céus. Traços angelicais, aparência de um ser puro, mas uma alma obscura e desvirtuada. E a pior parte, a que tornava tudo tão difícil e doloroso: ela era sua herdeira; sua cria. A lembrança constante de seu pecado. Os anjos abominavam tal criatura imperfeita, um misto de sangue humano com a graça dos céus. Nephilins. Os amaldiçoados. Filhos do pecado. Eram os valentes que se vangloriavam como se fossem os reis do mundo. De qualquer modo, a luxúria e ambição resultaria em sua extinção total. Mas, ainda assim, algum dia os anjos parariam de pecar?
O pecado é algo tão carnal, tão humano.
Therese, o fruto da relação de Miguel e uma mera mortal, sofria das consequências que deveriam cair nos ombros do arcanjo. Presa em um vale sombrio, sem luz e sem vida. O pecado de Miguel escondido em na profunda escuridão para que nunca soubesse sobre sua fraqueza. Se ele soubesse o quanto isso apodrecia o espírito de Tessie – como apelidou a garota quando era apenas uma criança –, talvez a optasse por tirá-la dali antes que o pior acontecesse.
— Veio me visitar, papai? — disse a loira, virando-se para encará-lo. Tinha um sorriso no rosto, repleto de escárnio; um sinal de que sua sanidade já havia lhe deixado há décadas. — Espero que tenha trazido algum brinquedo — outro sorriso, esse ainda mais sádico. O arcanjo a olhou, seus olhos estavam cheio de sofrimento, a vulnerabilidade humana.
— Olá, Tessie — ele disse, sem nenhuma expressão no rosto. — Como está se sentindo?
— Como se estivesse queimando no inferno — um vestígio de sorriso iluminou seu rosto.
Seu rosto, antes angelical e magnífico, transfigurou-se em uma aparência demoníaca. Havia ferimentos que expunham seus ossos e seus olhos mudaram para um tom vermelho sangue, como as chamas do tártaro. Em suas costas, a figura de um par de asas negras vislumbrou nos olhos de Miguel. Estavam partidas e queimavam em brasas. Não parecia um anjo sequer um demônio, era algo incomparável. Seu corpo parecia se estender em um tamanho colossal, como se fosse o de um gigante. Lentamente fora retornando ao normal.
— Gosto de vê-lo com medo de mim — constou Tessie, cambaleando para os lados. A transformação a deixava exausta, ainda mais quando se transmutava por completo. Diferentemente dos outros nephilins, Therese dispunha de um fardo a mais. Talvez devêssemos ressaltar a parte não contada da história. Está na hora de revelá-la.
Não se surpreenderão com isso, afinal, tudo começa e termina com ele. Lúcifer. Quando a serpente descobrira sobre o pecado de Miguel, garantiu que as coisas decaíssem ainda mais. Com chantagens e falsa promessas fez com que Miguel depositasse uma mínima confiança sobre ele em relação a sua... filha. Mas, é claro, não se pode confiar em Lúcifer. Quando teve a oportunidade, esguichou seu veneno sobre Therese. Prendeu-a no instinto selvagem de um animal. Transformou-lhe em uma besta, uma fera. Uma pequena vingança contra seu irmão por tê-lo lançado ao inferno como uma aberração; fez de sua filha uma aberração tão insana quanto ele era julgado ser.
— Acredite, eu sinto muito pelo que ele fez com você, Tessie.
— Lúcifer? Ah, não se preocupe! Ele não me fez nada, até gosto dele, na verdade. Sabe, com todos esse anos que se passaram, pensei que saberia. Você fez isso comigo. No final, a culpa é inteiramente e unicamente sua.
Não respondeu nada, apenas a fitou com receio, parecia querer dizer algo, mas não tinha coragem. Therese revirou os olhos e continuou a caminhar por cima dos cadáveres; todos secos, uns restavam apenas ossos. Miguel a acompanhou, perguntando-se como seria para ela viver todos os dias naquele lugar imundo, embora fosse o único lugar onde não machucaria ninguém e onde não saberiam sobre sua existência. Egoísmo. Por mais que negasse, as atitudes do arcanjo eram tomadas apenas pensando em si próprio.
O vale dos ossos secos, uma metáfora bíblica que na realidade era um prisão sem saída para quem habitasse ali. Com o tempo, Tessie aprendeu a gostar do lugar, principalmente pelo fato de despertar seus instintos mais insanos – adorava tê-los, eram prazerosos. Perguntava-se o porquê de Miguel continuar indo para o vale, ao invés de deixá-la ali para sempre, apodrecendo. Não deveria se preocupar, poderia simplesmente esquecer. Enterrar seu pecado.
— Euricius Cordus morreu — espontaneamente, disse Miguel. Therese o olhou sem entender onde queria chegar com isso. Explicou-se: — Você nunca gostou dele, então pensei que gostaria de saber que ele está morto.
— O humanista? — questionou. — Ficaria mais feliz de ter o matado eu mesma.
Ele sorriu, pela primeira vez.
— Talvez um dia você possa sair daqui. Estou procurando um jeito de reverter isso.
— Se eu conseguir sair daqui, garantirei que não sobrará nada lá fora.
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