C e m m e t r o s
“É melhor ser odiado pelo que você é, do que ser amado pelo que você não é.”
André Gide
Existe uma normalidade muito bem-vinda que só é obtida ao frequentar uma escola. Os problemas que se tem nesse período da vida parecem ter a mesma capacidade de uma bomba nuclear: arrasador e fatal. Só que não é bem assim. Aquele cara que você é super a fim e não te dá à mínima não é o fim do mundo, uma nota baixa não é a pior coisa que vai te acontecer, a menina que era sua melhor amiga e que hoje não olha na sua cara... também não é o fim do mundo.
O ensino médio é cercado por fins do mundo. O fim verdadeiro é quando se está morto. Ai não tem mais volta. Acabou. Tenho um relógio tique taqueando em minha cabeça. Em alguns dias eu posso morrer. Não andar mais por esse corredor, circulando entre a massa de corpos, escutando fofocas, escutando os professores. De repente, tudo aquilo que é incomodo me é muito precioso. Esse pensamento tem me devorado há dias como cupim consumindo a madeira. Enfraquecendo os alicerces, deixando tudo instável e propicio para o pior cenário. Uma mente perturbada é uma mente suscetível ao erro e o erro conduz a morte. Eu não quero morrer.
— Você escutou o que eu disse? — o resmungo vem de Evergreen.
— Não, foi mal — eu balbucio. — O que você disse?
— Eu perguntei se você vai tentar entrar para o time de atletismo.
Fazer planos é uma perda de tempo, eu posso morrer em alguns dias.
— Não, ainda não.
— Pois deveria. A sua habilidade para fugir vai ter o reconhecimento que merece. Já pensou nisso?
Rolo os olhos.
— Ah! Você já ficou sabendo?
— Você sabe como é — Evergreen se defende. — O novatos estão deixando todo mundo meio agitado, ninguém quer perder crianças tão promissoras, mas é a tradição. Só os fortes sobrevivem.
— É, eu sei.
Ah, sim, os novatos. As caças sempre são realizadas em grupos, as crianças que completam 17 anos são enviadas para sua primeira caçada junto com os mais experientes. São dezessete anos de vida, dez deles treinando para isso e mesmo assim menos da metade voltam vivos e vitoriosos, alguns voltam vitoriosos e faltando partes, outros dentro de sacos pretos ou não voltam. As apostas são de que eu vou voltar em um saco preto. O elo mais fraco do meu grupo sou eu. Provavelmente, também sou eu que condenará todos à morte. Mas, quando uma lâmina desce em direção a sua cabeça com a intenção de partir seu crânio em dois, o que você faz?
Eu corri.
Toda história tem duas versões, algo que depende do ponto de vista, é nisso em que eu acredito. É muito difícil estimar a origem, o momento da história em que o homo sapiens tornou-se o que é nos dias atuais e o momento em que os dragões começaram a existir. Sabe-se apenas que estavam ali durante a nossa evolução – e, em algum momento o trem começou a descarrilar.
Os dragões possuem propriedades curativas que conseguem tornar o impossível em possível: o sangue, a pele escamosa, os olhos, as garras, as entranhas. Tudo é aproveitado, nada é desperdiçado. Não é muito diferente do que se faz com os bovinos, nada deles é desperdiçado, tampouco os testículos.
Em algum momento da história, os homens eram a caça e os dragões caçadores, cerca de 1500 anos atrás a mesa virou. Começou na região chamada Escandinávia, que hoje compreende o território de três países europeus de Ishgar. Foram os vikings que viraram o jogo a favor da humana e quase extirparam os dragões da face da terra. Sim, quase, porque ainda existem alguns poucos ninhos escondidos pelo mundo. Não o suficiente para que as pessoas acreditassem nas lendas que eles se tornaram, como: Azi Dahaka na mitologia persa que atemorizava os homens, roubava seu gado e destruía florestas, Zu, um deus-dragão sumeriano das tempestades ou países como China e Japão onde eram associados a uma imagem positiva apesar da capacidade de destruição quando enfurecidos, causando tempestades, ou desempenhando um papel divino[1].
Todo caçador passa por um rito de maturidade para provar a si mesmo como um adulto e ser, finalmente, aceito como parte da caçada, o dever sagrado do nosso povo. O rito é bem simples: matar um dragão na primeira caçada. Olhar dentro dos olhos de um dragão é como olhar para um abismo, negro como piche – é como estar diante da morte. Dizem que matar seu primeiro dragão traz uma sensação inigualável, impossível de transmitir através de palavras, porque você enfrentou a morte e saiu vitorioso.
Toda criança do clã sonha com o dia em que matara um dragão e será reconhecido como um adulto. Somos condicionados para isso. Para a matança. Sem ela, o que somos?
Matança e orgulhoso desmedido que atravessavam séculos estão prestes a me alcançar.
Um homem muito inteligente ou quem sabe muito covarde disse que nenhum homem permanece de pé por muito tempo diante de uma espada. As pessoas acreditam que eu não vou durar muito tempo diante do meu primeiro dragão. Aparentemente, Evergreen também é uma dessas pessoas.
— Você não tem aula do outro lado do prédio? — fecho a porta do armário com força. — Vai se atrasar.
Finalmente dou uma boa olhada em Evergreen. A maneira como você se veste, fala e age dita sua existência nesse pequeno mundo. Tudo em Evergreen diz: abelha-rainha, aproxime-se por sua conta e risco.
— Ui, eu sei quando não sou bem-vinda, viu? — a massa de alunos se abre quando Evergreen passa com suas pernas longas e compridas e se fecha novamente. O cabelo longo ondulando no meio das costas. Aluna modelo, abelha-rainha, capitã das cheerleaders.
Tudo isso parece irrelevante diante da coisa mais importante que a torna extremamente atlética e capaz de fazer piruetas e acrobacias.
Aprender como movimentar os pés e o corpo parece inútil quando o seu inimigo pode atingir facilmente a mesma altura que um prédio de 10 andares. Eu consigo entender que o medo e a necessidade por sobrevivência moveram os meus antepassados a enfrentarem os dragões, agora os dragões mal existem e a tradição continua. É como se fossem uns viciados por emoção. Uma morte honrada é tudo o que importa. Uma morte enfrentando um dragão é a maior honra que se pode ter. Morte, morte, morte. Por que não a vida? Os dragões com seus poucos remanescente se esconderam do mundo e se tornaram lendas. É quase impossível encontra-los agora. Por que não deixar as coisas como estão? Parar com essa matança. Cadê a lei de proteção aos animais em perigo de extinção?
Ponho-me em movimento para a primeira aula do dia: química. Existem certas coisas que não fazem sentido na vida de uma pessoa. No meu caso é a química. Todas aquelas fórmulas, anéis benzóis, números e nomes complicados não entram na minha cabeça.
O professor não está na sala ainda, mas os alunos sim. Eu me sento mais no fundo ao lado das janelas. Enormes e largas dominam uma parede inteira. Largo os livros sobre a mesa e me sento. Se eu tenho que ficar uma hora sentada, então eu prefiro ter algo bonito para ver. Tipo, a pista de atletismo... sim, muito bonito.
Correr. Conduzir seu corpo até o máximo da sua capacidade. Só mais um passo. Só mais um pouco. Sinto que correr é tudo o que eu tenho feito desde sempre. Correndo, correndo, correndo e não chegando a lugar nenhum.
Hoje eu corri também. Não deveria, mas eu fiz. Não é o fato de o Gray me bater até minha bunda ficar roxa de tanto atingir o chão que é o problema. O problema foi eu ter corrido. Como consequência virei mais um motivo de piada entre os meus – vulgo Evergreen. Mesmo agora consigo escutar os gritos de Gray. Esqueça a história de morrer durante a caçada, o mais provável de acontecer é ter uma membrana timpânica rompida com os gritos dele.
“É melhor fica e lutar! Se você correr só vai morrer cansada! Cadê o seu orgulho?” Orgulho manteria a minha cabeça no devido lugar em cima do meu pescoço? Acho que não.
Eu esperava que me ver exausta e sentada sobre minha própria bunda despertasse algum tipo de compaixão em Gray. Isso nunca aconteceu. Às vezes parecia que ele tinha um prazer doentio em me bater até que meus braços fossem geleia e eu estivesse com a bunda no chão vezes o suficiente para perder a conta. Gray é alto e forte, calculista e metódico. Ele não vai aliviar a mão porque eu sou mulher, não vai me subestimar porque sou menor. Ele vai vir pra cima todas às vezes sem dó e piedade. Cara, eu estou cansada de apanhar. Os hematomas brilham como luzes de natal na minha pele.
“Você é gentil demais” ele disse. “Isso vai matar você. Vamos lá, mais uma vez!” Sim, era a gentileza que ia me enfiar em um saco preto, se Gray não fizesse isso antes.
— Natsu Dragneel, venha aqui na frente se apresentar, por favor — as palavras chamam minha atenção. Não existe nenhum Natsu Dragneel neste colégio. Se tivesse eu saberia.
O menino já está lá na frente quando eu olho. Como não o notei antes? Ele é exatamente o tipo de pessoa que não passa despercebida. Os olhares tendem a se demorar mais nele. Ele é novo e diferente, mas não é só isso que prende os meus olhos nele. Há um magnetismo irresistível que atrai os olhos de todos, inclusive os meus. Bem construído, ele parece ser feito de uma substância diferente e mais forte do que o carbono que compõe o corpo dos seres humanos, talvez aço? Olhar para ele é como olhar para uma adaga bem elaborada: é bonita de se olhar e extremamente afiada ao corte. Isso, afiado, está é a palavra perfeita para seus olhos. São escuros, o resultado da ausência total de luz, com uma pequena fagulha luminosa. No oriente médio o preto é associado à morte e o nascimento, o mal e o mistério [2]. Eu não sei se Natsu Dragneel é mal, mas com certeza ele é misterioso.
Percebo que não sou o a única que foi pega de surpresa com o aluno novo. Todo mundo está meio divido entre choque e excitação. Ele é carne nova. Uma presa que acabou de entrar em uma clareira cercada por leões famintos que vão rasgar uns aos outros para chegar até ele primeiro.
De onde estou posso escutar as engrenagens de Sorano Enjeru trabalhando, ela é a próxima candidata ao posto de abelha-rainha quando Evergreen se formar e sabe disso. O primeiro movimento vai ser dela. O ensino médio também é um jogo de xadrez – Natsu Dragneel é o rei que todos vão querer capturar.
Meu Deus. Quando ele fala, eu estremeço. O tom rouco viaja pela minha pele. Um sorriso surge fácil no rosto de Sorano. Um metro de cabelo liso e lábios da cor de pêssegos maduros. Dentes perfeitos, olhos azuis que desmontam os rapazes sem muito esforço.
— Nos já sabemos disso — Sorano diz. — Por que você não diz algo que não saibamos, huh? Tipo, se você tem namorada? — Definitivamente, Sorano não brinca em serviço. Ela é ousada e seu rosto não demonstra um pingo de constrangimento. Apenas sorri como quem pergunta as horas.
Caras como Natsu Dragneel não ficam solteiros por muito tempo, eles sempre têm namoradas. Se alguém já não o fisgou, o fará em breve. Sorano sabe bem disso. A expectativa pela resposta estala como energia estática na sala. Todas estão esperando pela resposta. Também me vejo nesse de meninas que estão esperando com expectativa pela resposta.
Os olhos escuros cintilam com divertimento. Natsu dá uma risada anasalada.
— Sim, eu tenho namorada — ele diz.
Todas as meninas da sala desinflam como um balão. É cômico de se ver. Exceto por Sorano. Para ela isto é um desafio. Um chamado para a guerra. O prêmio? O aluno novo.
— Ok. Já chega, Enjeru — ralha o professor.
— Poxa — Sorano faz um muxoxo. A sala ri.
— Pode ir se sentar, Dragneel, vamos começar logo essa aula. Já perdemos cinco minutos e tem muita matéria para dar — O riso morre.
A aula transcorre o mais normal possível. Todos os alunos querem conhecer o aluno novo, especialmente os do sexo feminino. As meninas mal conseguem se conter em seus assentos. Dedos nervosos se movem sobre as telas dos smartphones. Olhares descarados, olhares envergonhados, olhares de esguelhas. Eu também olho. Tem como não olhar? Tento imaginar como é ser um aluno novo. Morei a vida toda em Magnólia, cresci e estudei com as mesmas pessoas toda a minha vida. Alguém vir para essa cidade é um milagre – e, os milagres são comumente conhecidos por sua raridade.
Eu tomo notas durante toda a aula. Química é uma droga. Isso quer dizer que eu preciso me esforçar em dobro nessa matéria senão quiser pegar um DP no final do semestre.
Quando o sinal toca eu largo a caneta sentindo alivio e estico os dedos. Estão doloridos de tanto escrever. Cinco páginas frente e verso cheias de anotações importantes é o resultado de uma hora de aula. Faltam sete horas para as três da tarde. Eu sobrevivi à primeira aula, não sei se o aluno novo vai ter a mesma sorte. Guardo as anotações dentro de uma pasta, enfio dentro da bolsa e fecho o livro de química. Boa sorte, novato.
— Precisa de ajuda para encontrar sua próxima aula? — Soa o gongo. Sorano vai para o segundo round.
— Estou bem, obrigada, er... Enjeru, certo?
— Enjeru é sobrenome, meu nome é Sorano.
Minha próxima aula é história. Tenho que ir até meu armário e pegar o livro para a aula. Observo de esguelha a interação entre Sorano e o aluno novo, Natsu. Ele sorri pequeno e educado para o que quer que Sorano esteja dizendo. Talvez já tenha percebido que não vai se livrar dela com facilidade e, enfim, entendeu que precisa fazer isso imediatamente se quer preservar o seu namoro intacto. Sorano é implacável quando quer alguma coisa. Ela só não conseguiu o título de capitã porque existe alguém acima dela na cadeia alimentar.
Eu não perdi o momento em que os olhos do menino novo deslizam para a direita, tampouco consegui desviar meus próprios olhos a tempo para o meu próprio bem. Meus deus, que vergonha!
Preto. De repente, preto é tudo o que eu posso ver.
Por alguma razão desconhecida eu sorrio para ele. É um movimento involuntário como piscar os olhos ou respirar. Não houve consciência do ato. Para minha perplexidade, o aluno novo retribui. Ele revela uma fileira de dentes perfeitos com os caninos levemente mais pronunciados, o sorriso é tão grande que ele fecha os olhos por um momento. Tudo o que eu pude pensar naquele meio segundo foi que aquele era o sorriso. O mais lindo que eu já vi na vida.
A coisa toda durou uns dois segundos, talvez três. O momento é cortado quando eu atravesso o portal da porta. Contudo, eu escuto sua voz novamente e meu coração galopa. “Como ela se chama...”. Será que eu escutei direito? E, se ele perguntou meu nome, qual é o problema? O cara namora, eu não tenho chance desde o começo e com Sorano na jogada? Cai para menos que zero. Um número negativo. A demônia é linda demais.
Uma vez no corredor, eu me apresso para meu armário e troco os livros. É estranho o efeito que um cara bonito sorrindo tem.
— Lucy, você já ficou sabendo do aluno novo? — a fofoca tem a mesma eficiência que um vírus, se espalha com facilidade. Cabelo azul e ondulado cai para trás quando Levy se inclina para falar comigo. — Todo mundo só está falando sobre isso!
— Sim, temos a aula de química no mesmo horário — eu respondo.
— O quê? Então, é verdade o que todo mundo diz que ele é, tipo, quente?
— Ah, sim, é verdade sim. Mas se eu fosse você nem pensaria nisso. A Sorano já fez seu primeiro movimento e ela não vai largar o osso tão fácil.
Levy desinfla.
— Nossa, coitado do novato.
— Pois é. Coitado.
Sorano Enjeru é uma típica sanguessuga. Ela vai sugar sua vitima até a última gota e quando o coitado não tiver serventia, ela vai partir para o próximo e deixa-lo a ver navios. Ou seja, até que pareça outro cara mais quente do que Natsu Dragneel na MHS Sorano vai grudar nele como um carrapato, sanguessuga ou coisa pior: uma vampira.
Abro o livro de história na parte em que parou na última aula. É um sinal de que o assunto está encerrado.
— Oi.
O meu coração dá uma cambalhota dentro do meu peito.
— O... i.
— Posso me sentar aqui? — ele indica a cadeira ao meu lado.
Olho para Levy que já está olhando para mim de forma incisiva. Sim, eu digo com o olhar, é o novato! Ela quase não se aguenta de tanta animação. Como eu disse carne nova é raridade em Magnólia.
— Claro, a cadeira não tem dono — Me arrependo imediatamente de ter aberto a boca. Levy parece concordar porque ela me olha como se tivesse crescido uma segunda cabeça em mim.
— Lucy! — Levy chia. — Desculpa, novato, ela não quis ser grossa.
— Tudo bem. Ser grossa é bom. Todo mundo me trata como se eu fosse de vidro, é um pouco irritante. — Natsu fala olhando para mim, então se vira para Levy com um sorriso e estica a mão. — Natsu — ele diz para Levy.
— Eu sou Levy e essa aqui é a Lucy.
— Oi de novo — eu digo.
— Eu me lembro de você, temos química juntos.
— Química, eba! — pontuo o desanimo em cada palavra. Natsu ergue uma sobrancelha, confuso.
— Eu não entendi.
— Lucy é péssima em química — Levy explica.
— Sério? É a minha melhor matéria — Natsu ri. Esse garoto está sempre rindo ou é impressão minha?
Está na hora de mudar de assunto. Sei muito bem qual é a linha de pensamento que a mente de Levy está tomando. O brilho nos olhos de Levy não me enganam. É uma atitude nobre, mas não, obrigada.
— Então, por que você se mudou pra Magnólia?
— Pelas belas paisagens — Natsu responde. Isso é uma cantada?
— Lamento informar que você não vai encontrar muitas aqui.
Natsu ri, de novo.
— É, verdade, ninguém vem para Magnólia. Não tem nada aqui — Levy abre os braços para demonstrar o que ela quer dizer. Como se ela não estivesse sendo clara o suficiente.
Natsu parece achar graça. — Eu duvido muito.
— Ah, é? Por quê? — Indago.
— Por que... — Natsu começa a falar e sua voz se perde no momento em que o professor entra na sala e eu me viro para frente.
História é fácil. Faz sentido. Química não. Os fatos estão na nossa frente. É só ler e pronto. Não tem dificuldade. Eu giro a caneta entre meus dedos, parando para anotar as partes mais importantes, e giro outra vez. É um hábito. Não consigo parar. A verdade é que eu estou nervosa. O menino novo sentado ao meu lado me deixa nervosa. Ele é bonito e caras bonitos me deixam nervosa. Caras com sorrisos bonitos como o dele me deixam nervosa.
Agora, falta pouco para o intervalo. Pela primeira vez na manhã eu não estou pensando na minha morte prematura. A ansiedade que andou me correndo não evapora, mas agora ela torce meu estômago por motivos totalmente diferentes. Meu deus, o que está acontecendo comigo, droga?!
Minhas narinas dilatam automaticamente quando capto um cheiro novo e imediatamente eu já sei a quem pertence. Busco todo o meu alto controle para não olhar. Posso dizer com toda a certeza do mundo que é do novato. Nunca cheirei nada como aquilo. Especiarias, algo ardente, e pele. O cheiro da própria pele dele me envolve. Eu sei que aquele cheiro não é oriundo de sabonete, creme ou perfume. É um cheiro que cada ser vivo possui. Único como a impressão digital.
O som do ventilador girando, canetas rabiscando, voz do professor. Tudo é engolido por um vórtice negro. A não ser o garoto me olhando. Aquele que tem namorada. Aquele de olhos escuros como piche, algo semelhante a um buraco negro que suga tudo inclusive a luz. Tremo. Sinto como se cada pequeno segredo dentro de mim está prestes a escapar sem que eu diga uma palavra para impedir isso de acontecer. Tento segura-los, mas são como areia, eles vão escapar por entre os espaços entre meus dedos. Se eu não romper nosso olhar ele vai levar tudo de mim.
O mundo se inclina e eu me inclino junto. Gravidade não é a lei que está me regendo no momento. É Natsu. Eu, mariposa, ele a luz. Estou indo me queimar. Preciso parar de olhar!
— Você... naquele hora, você sorriu como se...
— Como se o quê? — me inclino mais, sua voz é como uma caricia, é seda para os meus sentidos, roçando em minha pele como um gato.
Por um instante ele parece arrependido de suas próprias palavras. Não, continue, por favor. Eu sou insistente.
— Como se o quê? — pergunto.
— Como se você me conhecesse — Natsu diz, por fim. — Você me conhece, Lucy?
Lucy. É apenas o meu nome. O meu nome dito com doçura. O meu nome que parece se prolongar em sua língua. Lucy. Quero que ele diga de novo. O meu nome. Lucy. Estou perdendo o juízo.
O olhar dele no meu é intenso, cheio de expectativa. Eu nunca vi ninguém como ele. Se tivesse, eu jamais esqueceria. Olha só pra ele. Esse não é o tipo de rosto que uma pessoa simplesmente esquece! É do tipo de rosto que fica gravado na mente e rebobinando em um loop infinito.
Eu quero dizer que sim.
Tudo o que eu digo é: não.
— Eu nunca te vi antes.
Uma sombra atravessa a face de Natsu. É decepção o que eu vejo em seu rosto?
Estranho.
— Desculpe, quer saber? Esquece o que eu disse — Natsu ri, animado. Eu me pergunto quanto dos seus sorrisos são verdadeiramente genuínos. Me pego desejando ver mais uma vez o seu sorriso de outrora. O sorriso de lindo e radiante, capaz de emanar sua própria luz, cegando todo o resto.
— Não precisa se desculpar. Todo mundo diz que eu tenho um rosto comum. — É a minha vez de sorrir. Mas se eu o conhecesse, eu jamais me esqueceria do seu rosto.
Covardemente, eu me viro para frente encerrando a conversa. O coração dá golpes violentos em minhas costelas. Um terremoto está acontecendo dentro de mim. Desisto de fazer anotações. Só continuo a girar e girar a caneta. Eu não escuto mais a voz do professor de história. Só consigo escutar o meu coração. Tu-tum. Tu-tum. Tu-tum. Tu-tum.
Era estúpido e eu sabia. Uma reação anormal. Existem muitos caras bonitos assim como Natsu Dragneel e um rosto bonito não é tudo nessa vida. No entanto, eu podia sentir algo me dizendo que ele não era como os outros. Um babaca, eu quero dizer, e de babacas eu entendo. Que seria legal fazer amizade com ele. Eu realmente espero que a namorada dele sabia como teve uma puta sorte de fisga-lo primeiro. Mas o que importa? Em alguns dias isso tudo vai se tornar irrelevante pra mim. Em alguns dias eu posso morrer. Morrer de verdade. Game over pra mim. Tudo porque estou distraída com o menino novo que é dono de um sorriso bonito e que já tem uma namorada. Na verdade, um sorriso muito bonito.
Quando as aulas terminam e eu saio e vejo Gray e Evergreen esperando por mim dentro do jipe, Gray é o primeiro a perceber que tem algo fora do normal. Nada escapa dele. Ele também é o primeiro perguntar se aconteceu alguma coisa. Eu só entro e digo:
— Não aconteceu nada. É cansaço.
Gray olha para mim desconfiado. Ele não está totalmente convencido. Felizmente, sou salva pela impaciência de Evergreen.
— Vamos embora logo, Gray — reclama. — Eu estou com fome.
Ele dá de ombros.
— Ok, ok. Já estou indo.
O que eu disse era uma tremenda mentira. Tem alguma coisa muito errada comigo, sim. O meu coração idiota não consegue parar de bater freneticamente desde o segundo horário. Eu sinto como se tivesse corrido 100 m sem ao menos ter saído do lugar.
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