I m ã
“É melhor ser odiado pelo que você é, do que ser amado pelo que você não é.”
André Gide
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Acordo na manhã seguinte com a sensação de estar caminhando em direção a um pelotão de fuzilamento.
Visto um moletom cinza enquanto o quarto começa a ser iluminado com os primeiros raios tímidos do sol. Empurro as cortinas mais para longe e abro a janela: o ar frio afaga minhas bochechas, os raios solares muito frios para provocar sequer um formigamento em minha pele, longe, uma cadeia de montanhas com os picos salpicados de neve se ergue minúscula.
Inspiro fundo. Eu estou viva. Repito as três palavras como um mantra: eu estou viva, eu estou viva, eu estou viva.
Desço para a cozinha esperando encontrar alguém acordado, mas a casa toda está mergulhada em algum feitiço do sono como no conto da bela adormecida. É como se eu fosse à única pessoa acordada e viva. Gray deve acordar em breve para nos levar para a escola e depois ir para a faculdade. Então, eu tenho uma hora de corrida pela frente.
Rapidamente, eu devoro duas barras de cereais e tomo uma das bebidas nutritivas da geladeira.
— Parece que alguém caiu da cama — escuto o comentário vindo da entrada da cozinha. Eu não me viro de imediato. Termino minha bebida primeiro e depois me volto lentamente para encarar Jackal e seu sorriso de hiena.
— E que já está de saída — respondo. — Você não vai estragar o meu dia antes mesmo dele começar, Jackal.
Ele me dá um sorriso preguiçoso e predatório. De alguma forma a mente doentia de Jackal o convenceu que eu sou uma propriedade que ele reivindicou como sua. Tudo isso por causa de uma noite. Um erro que eu gostaria de voltar no tempo e garantir que não tivesse acontecido. Mãos fortes me segurando pelos ombros, peito duro me empurrando sobre minha barriga, me levando duro, áspero, cru... Com Jackal era sempre assim: ele gostava de foder, duro; nunca fazer amor. Pisco para afastar as memórias e enterre-las de volta ao lugar de onde nunca deveria ter saído. Eu sou seu dono.
Ainda consigo me lembrar de um Jackal diferente, mas isso foi há tanto tempo que a memória já desbotou. Mas eu me lembro das mudanças, da criança que cresceu junto comigo. Pele bronzeada pelas horas ao sol, rosto bonito, apenas crianças tentando superar as atribulações de uma vida dura de caçadores. O mesmo menino que aparecia com marcas roxas ao redor dos pulsos. Treinados a partir do momento em que começamos a dar nossos primeiros passos. O meu pai, nosso líder e o pai de Jackal ao lado. Como um príncipe e uma princesa, todo mundo olhava para nos com aprovação, a certeza de que o meu caminho estaria inevitavelmente entrelaçado ao de Jackal. Senão como um príncipe então como um protetor. Desde criança Jackal sempre me quis por perto, sempre brigando, sempre obcecado por mim. Isso só piorou conforme crescemos. Eu já vi Jackal socar um menino até transformar seu rosto em uma máscara de sangue só porque sorriu para mim. Na época, eu não tinha como escapar de Jackal, não tinha ninguém a quem recorrer. Não até Gray chegar vir para Magnólia.
“Sai fora, Jackal”.
“Ela é minha, porra. Sai você, drittsekk.”
Aquele dia foi à primeira vez em que eu vi alguém bater em Jackal de verdade. Se Jackal não se afastar ele vai descobrir em breve como é ter o nariz quebrado outra vez.
Jackal estica o braço e bloqueia a porta. — Aonde você pensa que vai?
— Eu vou aonde eu quiser. Você não manda em mim, Jackal. Agora sai. — Me movo para passá-lo, e ele se move para me bloquear.
— Você sabe que você é minha, sempre foi... Aquele Gray, aquele maldito estragou tudo.
Estremeço com o tom possessivo. Jackal me assusta. Sempre me assustou. Os anos só o tornaram pior do que já era na infância. Eu só não sei como pude ser tão cega em não perceber antes.
— Você está louco, isso sim!
Jackal estica um dedo como se fosse desliza-lo pelo meu rosto, mas não chega a me tocar. Os olhos brilhantes.
— Louco por você, passarinho — ele diz.
Meu punho se conecta com o nariz de Jackal. Crack. Jackal se encolhe, as mãos fechadas em concha são incapazes de conter o sangue jorra como uma represa. — Fica bem longe de mim, Jackal! — grito.
Assim que escapo da cozinha, eu praticamente corro até a entrada. A casa é grande como um palácio. Grande o suficiente para que seja impossível cruzar com todas as pessoas que vivem nela. Há tantas janelas que é cansativo tentar contar a todas. Se eu encontrei Jackal foi porque ele quis. Ele veio me procurar. Isso faz um arrepio percorrer minha pele.
Desço os degraus da entrada de casa com pressa, meu sangue gelado, afobada. Completamente desesperada para colocar o máximo de distância possível entre Jackal e eu. Fumaça branca espirala para o alto a cada respiração minha. As palavras de Jackal circulando em minha mente. Eu não me aqueço. Só corro. Normalmente, eu corro dois quilômetros e meio, mas hoje eu acho que vou correr bem mais do que isso.
Ajeito os fones nas orelhas e a música explode em meus ouvidos assim que aperto play.
O centro da cidade é muito longe para ir a pé e morar tão longe tem os seus benefícios: privacidade. Os vizinhos iam começar a se questionar sobre a intensa movimentação que ocorre antes de uma caçada: motos e jipes e armas. Muitas armas. As casas da região, por exemplo, ficam afastadas umas das outras por vegetação densa, interrompida por trilhas que só os moradores conhecem. Nem todo mundo gosta de se embrenhar na mata para correr. Eu sim. Fazemos isso por obrigação desde pequenos, mas eu peguei gosto pela coisa. O ar limpo, o silêncio interrompido pelo canto de uma ave, endorfina circulando pelo corpo. Ao se aprofundar na floresta que compõe Magnólia as folhagens das copas tornam-se mais densas e os raios de sol mal conseguem penetrar através delas, isso não tornava o percurso difícil, apenas misterioso. Em alguns momentos ao olhar para cima eu conseguia avistar um pedacinho do céu.
Magnólia, uma cidade pequena com um estilo de vida tranquilo e imperturbável, as pessoas que vem para cá procuram um refúgio da agitação de uma vida em uma metrópole ou fugir dos seus próprios demônios. A cidade é protegida por uma densa vegetação, arvores de troncos largos e altos e densa folhagem que dificultam a visualização de cima. O meio mais fácil de sair daqui é por trem. Longe, bem longe, é possível ver uma cadeia de montanhas.
Eu nunca sai de Magnólia antes. Não sei se um dia eu vou.
Meus pulmões estão ardendo, os meus músculos queimando, já não inspiro e expiro ritmadamente. Eu arfo descontroladamente. Eu não consigo pensar em nada que não seja no próximo passo.
Eu desacelero para um trote até parar completamente. Apoio às mãos nos joelhos e puxo o ar.
— Oi, você.
Olho para o lado e vejo Natsu olhando para mim, sorrindo, com covinhas aparecendo no canto dos lábios. Só que não é Natsu. É uma mulher. Uma mulher muito parecida com ele. Pisco duas vezes acreditando que é uma miragem. O cabelo é mais escuro. Vermelho como sangue. A pele é clara, bem diferente que a de Natsu que é bronzeada, não sei como pude confundi-los. Meus olhos se dirigem para baixo, o pescoço dela é longo como o de um cisne, está vestindo uma regata preta e uma calça xadrez vermelha e preta. Ela é linda. Eu estou ofegante, suada e, provavelmente, fedendo.
— Oi — respondo, ofegante.
Ela está apoiada no pilar da varanda com sorriso brincando nos lábios. Uma caneca apertada entre as mãos. Fumaça branca subindo. Café, talvez? Agora não importa. O que importa são os olhos dela sobre mim. Ela tem os mesmo olhos que os de Natsu. A primeira vista parecem negros como piche, tenho certeza de que se eu chegar mais perto se revelarão de outra cor.
— Eu sou Erza, minha família e eu acabamos de nos mudar para cá. Quer entrar um pouco? Você parece exausta — ela diz. — Exausta e com sede.
— Na verdade, eu preciso ir embora, obrigada — Entrar na casa de um estranho? Jamais. Porém, isso aqui é Magnólia e nada acontece aqui. Pessoas novas? Ah, sim, isso sim é um acontecimento e tanto. Como moradora daqui eu também estou curiosa sobre os novos moradores. Só existe outra pessoa que se mudou para cá e eu o conheci ontem na escola. Isso quer dizer que... — Muito obrigada, eu ia adorar um copo de água, estou morrendo de sede! — Levy não vai acreditar quando eu contar a ela onde eu estive.
— Eu sou Lucy, moro alguns quilômetros para lá — aponto para o caminho de onde eu vim.
— Eu sei.
Lanço um olhar curioso. Erza não entra em detalhes.
— Não repare na bagunça. Ainda estamos arrumando as coisas.
Subo as escadas da varanda e me vejo dentro da casa de Natsu Dragneel. Eu me livro dos tênis na entrada e entro de meias. A primeira coisa que noto são as caixas de papelão empilhadas em cantos estratégicos para não dificultar a passagem. Grandes e pequenas, algumas abertas outras fechadas. Apesar de eu nunca ter visto eu sei reconhecer uma típica casa com mudança. Ir para outro lugar, enfiar tudo dentro de um caminhão e deixar a vida que tinha para trás parece ser algo incrível. Quase como um sonho. Sigo Erza até a cozinha. A casa dela é muitas vezes menor que a minha. Acabaram de se mudar e... é tão aconchegante. Cheia de vida como a casa de Levy.
Mesmo no verão e com o aquecedor desligado a minha casa é gelada e impessoal. Um inverno que nunca passa.
Nossa cozinha é toda branca e preta: as paredes, as bancadas, o granito, a geladeira, o fogão, o micro-ondas. Tudo é monocromático. A cozinha desta casa é colorida. O piso é feito de madeira escura, as paredes são pintadas de amarelo pastel, a geladeira é de um vermelho vivo brilhante que chama atenção não só pela cor. Há inúmeros imãs de geladeira cobrindo a porta. Imãs de lugares que só conheço por nome. Caixas de cereais estão atulhadas sobre a mesa no centro, a pia está abarrotada de pratos, cinco caixas de pizza estão empilhadas em um balcão. Faço uma anotação mental sobre os novos morados de Magnólia: eles comem muito ou tem mais gente aqui além de Erza e Natsu. A proposito, onde ele está? Dormindo, talvez. Ainda é muito cedo. Nem todo mundo acorda com o sol.
— Eu só consegui encontrar a cafeteira hoje de manhã! Mas pelo menos água eu posso te oferecer.
Aceito o copo que Erza me oferece. A sede sobrepõe qualquer curiosidade. Dou três goles enormes e esvazio o copo.
— Obrigada.
— Mais?
— Sim, por favor — Erza enche o copo uma segunda vez e eu bebo tudo e entrego. — Obrigada.
Erza pega o copo de volta e cruza os braços. Os olhos escuros fixos em mim. Ainda não consegui descobrir de que cor eles são.
— Você é sempre tão educada assim? — ela pergunta.
— Como?
— Você disse ‘obrigada’ umas três vezes em menos de cinco minutos.
— Disse? Eu não percebi. Desculpa.
Erza ri. — Você é estranha. Pelo o que você está se desculpando agora?
Eu sou pega de surpresa com a pergunta. Não sei o que dizer a Erza. Existe uma resposta certa ou errada para essa pergunta? Parece que qualquer coisa que eu vá dizer para ela vai ser a minha última ou muito errada. Não sei qual das duas opções é pior que a outra. Opto pelo silêncio constrangedor.
— Lucy? — dessa vez, quando eu olho é Natsu que eu vejo olhando de volta para mim.
O braço dele está apoiado no umbral da porta da cozinha e parece que ele acabou de ser eletrocutado ou caído da cama, o cabelo apontando para todas as direções. Ele coça um dos olhos e abre a boca para dar um longo bocejo. Meu coração acelera, de repente, a parede parece muito interessante. Eu já vi o abdômen de muitos membros do clã e nenhum provocou rubor em mim. Achei que era imune a um peitoral bem trabalhado, mas eu estava enganada.
— Vocês se conhecem?
— Sim, dá escola.
— Você não me contou que já tinha feito amigos.
— Nos nós conhecemos ontem, Erza. — Natsu rola os olhos e entra na cozinha. — Você está com fome, Lucy? Toma, come isso aqui. Foi a Juvia quem fez. Você vai adorar. — Natsu me oferece um pote de biscoitos e eu pego um. É redondo com gotas de chocolates na superfície. Nada que tenha chocolate pode ser ruim, então, eu dou uma mordida apenas para experimentar. Eu devoro. — Bom, não é? Aqui, pega outro antes que você coma os seus dedos.
Sinto minhas bochechas esquentarem, mas obedeço, estou morrendo de fome também.
— Obrigada.
Erza sorri para mim e o meu coração se desfaz em um sentimento quente. Orgulho? Acho que sim. Erza é o tipo de pessoa que você quer impressionar. O seu olhar de agora é de aprovação? Porque sinto como se tivesse acabado fazer uma prova muito, muito difícil e ser aprovada com sucesso.
— Gosto de garotas que tem apetite. Então, o que você acha?
Engulo antes de responder. — Dos biscoitos? São uma delicia.
— Não estou falando dos biscoitos, bobinha. Quero saber o que você acha do meu irmão. Ele é bonito, não é?
— Erza!
Natsu é atraente, pele cor de mel, cílios escuros e longos e um dos sorrisos mais lindos que já vi. Mas, enfim, isso não é o tipo de coisa que se diz para alguém que se acabou de conhecer.
— Ele estava todo deprimido por termos nos mudado para cá e deixarmos a Lis para trás.
— Lis? — pergunto. Esse é o nome da namorada dele?
— Uma garota que ele gosta — Erza diz num sussurro fingindo que Natsu não consegue ouvi-la.
— É a minha namorada, Erza — corrige. — Será que você já pode parar de me constranger? Já não foi o suficiente?
— Nunca é o suficiente, maninho.
Uma risada escapa pelos meus lábios e os dois irmãos olham na minha direção. Pega no flagra. Abro a boca para me desculpar, mas me detenho a tempo. Agora vem a parte constrangedora. Limpo a garganta.
— Eu agradeço muito pela água, Erza, mas eu preciso ir pra casa. São uns quatros quilômetros até lá e daqui a pouco tem escola e... — explico.
Erza empurra Natsu para fora do seu caminho, ele reclama, mas ela está focada em seu alvo: eu. Espero um tapa, um soco, um grito. Qualquer coisa exceto um abraço. — Você é bem-vinda para voltar quando quiser — ela aplica um pouco mais de força nos braços e eu sinto que vou me transformar em água. É macio, confortável e ela cheira como rosas. Acho que eu ia gostar de ter um irmão ou irmã. O abraço é rompido. Erza me segura pelos ombros e olha em meus olhos. Ela está sorrindo, de novo. Deve ser uma característica de família. Rir. — Você não conheceu a Juvia, que pena! Natsu, seu estúpido, apresente Lucy e Juvia, ouviu?!
Natsu está encolhido com as mãos tapando as orelhas. — Ouvi! Ouvi! Pare de gritar!
— Ótimo, agora acompanhe a Lucy, sim?
— Eu já ia fazer isso. Não precisa falar — Natsu reclama. — Acha que eu sou idiota? Não precisa responder. — Natsu segura o meu pulso e me puxa atrás dele. — Vamos, Lucy, não dá atenção para o que Erza fala. Ela só diz besteira mesmo.
— Eu escutei isso, cabeça de fósforo! — O tom de Erza para Natsu é de ameaça, quando ela dirige o seu olhar para mim a sua voz é mais suave e amigável. — Tchau, Lucy. Venha nos visitar quando tiver mais tempo, por favor.
— Sua irmã é divertida — digo, quando nos afastamos da casa.
— Pode falar a verdade, eu não ligo. Eu sei que ela dá um puta medo.
Chuto uma pedra.
— Dá mesmo — admito com uma risada. — Você é o caçula?
— Sim. Somos três. A Erza é a do meio — diz.
— Legal.
— E você?
— Se eu tenho irmãos? Não. Sou peça única.
Agora que o sol saiu completamente eu faço um esforço para não olhar para toda a pele exposta de Natsu. Tento me concentrar em outra coisa. Os gravetos e folhas secas quebrando debaixo da sola dos tênis, o vento empurrando o meu cabelo para longe do meu rosto, os pássaros... Pássaros? Estranho. Eu não consigo escutar nenhum. Apesar de escutado o canto de vários durante o caminho inteiro até ali.
— Então, você corre... — Não parece uma pergunta. — Faz atletismo?
Faço que sim com a cabeça.
— Corro sempre de manhã ou pela tarde. Só que nunca corro tão longe como hoje. Para a segunda pergunta: não. Eu não faço atletismo, mas estou pensando em fazer os testes para a equipe.
— Por quê? — Natsu deve ter visto a confusão no meu rosto porque reformula a pergunta. — Você disse que não corre tão longe. O que tem de diferente hoje?
Imediatamente, Jackal me veem a mente. Balanço a cabeça.
— Nada. Eu só queria testar os meus limites, sabe?
— Sei — e, quando Natsu diz isso parece que sabe mesmo. Em seguida, segura meu queixo e inclina minha cabeça para trás. — Quem fez isso com você? — Gelo glacial atravesse os olhos de Natsu. Um frio capaz de congelar o mais quente dos verões. — O seu lábio não estava assim ontem!
— Foi um acidente — É verdade. Estávamos aquecendo e dava para ter desviado do golpe. O problema é que eu estava distraída. Muito distraída para o meu próprio bem.
— Um lábio partido não é acidente. Quem fez isso com você?
Empurro sua mão para longe.
— Não me trate como se me conhecesse, eu sei me cuidar — Eu poderia mostrar o meu ponto agora se ele quisesse. Eu podia levar uma surra de Gray, sim. Isso porque ele era o melhor. Se você apanha do melhor e consegue fazê-lo penar para lidar com você... Então, com certeza, você é alguma coisa.
— Desculpe — Natsu recua, encolhendo os ombros, parecendo surpreso consigo mesmo. — Eu não quis... você sabe.
— É, eu sei. Daqui eu vou sozinha. Tchau, Natsu.
Eu não quero ir. Quero conversar com ele. Quero saber mais sobre sua vida antes de Magnólia, o motivo da sua mudança para cá, a história de todos aqueles imãs de geladeira, a história da cicatriz em seu pescoço... Mas o meu orgulho está ferido. Isso supera qualquer curiosidade que eu tenha a respeito de Natsu Dragneel.
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O ginásio de MHS é enorme, fica além de um comprido corredor aberto que conduz para outro corredor, a iluminação dentro do ginásio é quase que totalmente natural, provinda de enormes janelas que se aproximavam do teto, mas haviam luzes florescentes no teto. Duas quadras feitas com piso de madeira ficavam além de um par de portas duplas, as quadras divididas por uma rede suspensa que caia do teto. Uma porta dupla vaivém conduzia para a piscina olímpica onde a aula do quarto tempo seria ministrada. Placas indicavam os vestiários e os banheiros. No vestiário feminino, compridos bancos de madeira ficam diante de fileiras de escaninhos feitos de aço e luz branca florescente dá um aspecto pálido a todas as mulheres presentes. As meninas conversam, riem e gritam numa cacofonia de vozes diferentes. As roupas são rapidamente substituídas por maios e os cabelos ficam contidos dentro de toucas.
— Você esteve na casa dele?! — o grito vem de Levy.
Bato a porta do escaninho com força.
— Dá pra você falar mais baixo? — sibilo.
O som de um apito estridente é a nossa deixa. As meninas começam a sair do vestiário.
— Vamos logo. Eu não quero chegar atrasada na aula da Aquarius.
Levy considerou minhas palavras por um tempo.
— É, você tem razão. Mas eu quero saber tudo nos mínimos detalhes!
Além do corredor dos vestiários vinha um cheiro forte de cloro. Com um impulso empurro a porta e nos juntamos ao grupo de meninas paradas ao redor de Aquarius que já estava gritando ordens a plenos pulmões.
A treinadora sopra um apito após o aquecimento e aponta o dedo para duas plataformas. — Vamos lá, suas molengas! Eu quero que formem duas filas. — O cronometro está nas mãos. — Cem metros! Ida e volta. Vai! — A primeira dupla se lança na água.
A fila avança com lentidão e eu aproveito para contar a Levy tudo o que ela quer saber.
De esguelha, eu olho para as grandes janelas que se abrem para a pista de atletismo. Primeiro, eu noto o cabelo, é como um sinalizador. Acho que eu seria capaz de encontra-lo em qualquer lugar com aquela cor de cabelo singular. Não, vermelho intenso como o de Erza, e, sim rosado. Se natural ou artificial não importa. Não acho que qualquer pessoa possa ter um cabelo daquela cor sem ter uma personalidade compatível. A segunda coisa que noto é que Natsu é rápido, tão rápido que não sei se sou capaz de acompanha-lo. Ele não me disse que não corria quando o vi de manhã, mas eu também não perguntei. Eu quase posso esquecer que estou irritada pelo o que disse de manhã. Quase.
— Então, ele tem uma irmã — Levy repete, uma mão debaixo do queixo, pensativa.
— Na verdade, dois, ele é o caçula — explico.
A água se agita na nossa frente, uma mulher de maio preto surge sem provocar muitas ondulações, os cílios são grossos e algumas gotas gordas se agarram a eles, o cabelo está firmemente preso dentro da touca da mesma cor que a peça. Espalmando as mãos na borda da piscina, ela se ergue e sai da piscina. A sua forma de se mover é a mesma que eu já vi inúmeras vezes nos membros mais perigosos do clã: leve e com músculos fluidos.
Ela para bem diante de Levy e eu. Seus olhos são escuros, um intenso preto sem fim que evoca as partes mais profundas do oceano, a escuridão que só pode ser encontrada em níveis abissais. Tão puro ónix que dava impressão de que a pupila e a íris são uma só.
— Você está no caminho — a expressão fria combina com a voz. Mecanicamente, dou um passo para o lado. Quando ela passa os cabelos do meu braço e pescoço arrepiam em um aviso primal.
A menina é magra e esguia com todas as curvas muito generosas. O maio possui uma fenda enorme nas costas e a impressão que eu tenho ao olhar é que sua coluna tão reta não pode ser feita de ossos e, sim, de algo mais duro e resistente como aço. A pele é branca como a neve antes de tocar o chão ou algo ainda mais puro, as gotas de água deslizam pela seda que a pele dela é, então, eu vejo seu cabelo. Longo e ondulado, desce até o quadril em uma cascata de cabelos azuis que enrolam ao chegar na ponta.
— Você sabe quem ela é? — Sim, eu sei.
— Aquela é a Juvia.
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O refeitório é um local amplo, piso linóleo branco, grandes janelas que se abrem para o bosque atrás da escola, luzes florescente penduradas no teto e mesas de diferentes tamanhos para poder acomodar grupos de quantidades distintas.
O almoço é sempre agitado por motivos diferentes. Especialmente por causa da fofoca. É o momento em que todo mundo se encontra e compartilha o que aconteceu de mais interesse ou o que eles acham que aconteceu. Eu me sento à mesa junto com Levy que se reveza entre comer e ler e Kanna Alberona, do último ano assim como Evergreen, que exibe sua descendência espanhola em seu cabelo escuro, longo e grosso, pele morena beijada pelo sol e olhos brilhantes da cor de avelã e um sorriso largo que rivalizava com o de Natsu.
— Lucy, que bom que chegou! Você vai sábado à noite? — Kanna pergunta.
— O que tem sábado à noite? — indago.
— A festa do lago — responde como se fosse algo óbvio.
— Nossa, eu tinha me esquecido completamente — admito. O lago Eventyr com seus oitocentos metros de um lado ao outro fica praticamente escondido dentro de uma floresta de pinheiros. Longe de olhares curiosos, o ponto de encontros dos adolescentes, famoso por suas festas. — É claro que sim! — As festas no lago eram a única coisa divertida que tinha para se fazer em Magnólia e eu tinha me esquecido completamente disso.
— Puta merda.
Eu assisto os olhos de Kanna aumentarem de tamanho e a boca dela cair aberta tomada pelo choque.
— Meu deus, quem são aqueles dois? Eles são lindos!— Eu sei de quem ela está falando antes mesmo de olhar. Aparentemente, todos os membros da família de Natsu são estonteamente lindos.
— Natsu e Juvia — Com o canto do olho, vi a cabeça de Natsu se virar de repente na direção da nossa mesa. Como se ele estivesse escutando a nossa conversa. — Eles acabaram de se mudar para a cidade.
Tenho o visto muito nas últimas horas e o dia não acabou. Ele parece ser a quina do móvel que sempre encontra o dedo mindinho. Está acompanhado da menina que vi durante o quarto tempo. Juvia é o nome. Só pode ser ela. Muito diferente da pessoa que eu vi mais cedo: saia comprida com flores em azul e branco que ondula a cada passo dado com uma fenda panturrilha e um cropped branco que só mostra dois dedos de pele. O cabelo, agora seco, cai como uma cascata azul de cachos volumosa em suas costas.
— Natsu! — Sorano praticamente quica na cadeira quando o vê. Ela se estica e acena para ele. Natsu se limita a sorrir e acenar em retorno. Ao contrário do que todos que observavam esperavam: ele não se junta com Sorano e sua corja.
Evergreen é uma boa abelha-rainha, ela não pisa nos outros desde que não atravesse seu caminho e frustre seus planos, ela é o centro da escola, dos bailes, dos professores. Ela não gosta de perder tempo oprimindo os menos favorecidos do que ela. Evergreen pode parecer fútil para quem olha rapidamente, mas a verdade não é bem essa. As pessoas só estão olhando a superfície e não a profundida. Eu sei que ela queria eu estivesse na mesma mesa que ele. Mandando na escola como se fosse o seu pequeno feudo particular. Assumindo o seu posto quando ela se formar no final do ano. Eu prefiro a vida comum e pacata de um plebeu. Bem longe dos holofotes, pelo menos, o máximo que eu conseguir evitar. Ter os olhos de todos sobre si o tempo todo é algo opressivo. Rouba um pouco si porque o tempo todo você está se doando para os outros. Tentando atingir as expectativas que todos os que te observam têm.
Os olhos de Kanna se arregalam ainda mais (como se isso fosse possível) e parecem ser capazes de saltar para fora das orbitas.
— Caralho, aquele gato está vindo pra cá! Ah, cara, que hilário, olha a cara da Sorano!
Arrependo-me assim que olho para a mesa de Sorano. Ela está incrédula. Um misto de fúria gelada e humilhação. Sorano é uma pessoa que não está acostumada à rejeição.
Natsu para diante da nossa mesa. Juvia, fria como um bloco gelo ao lado dele. Passo os olhos pelo restante do refeitório, registrando todos os diferentes olhares que estão direcionados para a nossa mesa: choque, incredulidade, surpresa, admiração, ódio. Inclusive, há um sorriso que faz os lábios de Evergreen inclinarem para cima em aprovação. “É assim que se faz, garota!”, é o que todo o rosto dela diz para mim.
Eu quero me enterrar em algum buraco. Que vergonha.
— Natsu, oi! — Pela primeira vez desde que me sentei Levy afasta os olhos do livro só para cumprimenta-lo.
— Oi, Levy. Oi, meninas. Podemos sentar com vocês?
A resposta é um unanime: sim!
Um sorriso gigantesco atravesse o rosto de Kanna.
— Sou Kanna — ela se apresenta.
— Oi. Eu sou...
— Natsu e essa ai é a Juvia. Eu sei quem vocês são.
— Como...
— Magnólia é uma cidade pequena. As noticias voam por aqui. Enfim, você sabe o que você acabou de fazer?
Natsu troca um olhar confuso com Juvia. Eu só quero me afundar na cadeira. Ele tinha que sentar do meu lado?
— Acho que não — Natsu responde com cuidado. Quase que com medo de estar dizendo algo errado.
— Você acabou de rejeitar Sorano Enjeru na frente de toda a escola. Repito: toda a escola. Você sabe o que isso quer dizer, novato? Que ela pode fazer dá sua vida um inferno após essa humilhação, mas eu acho que é a nossa Lucy aqui que vai pagar o pato. Ai, cara, eu não acredito que vivi para esse dia! Amiga, você está ferrada. Sorano já não ia com a sua cara, agora então.
— Obrigada pela parte que me toca, Kanna — digo.
— Eu só estou colocando as cartas na mesa.
Rolo os olhos.
— Escuta — Kanna continua —, que tal vocês irem ao lago Eventyr com a gente no sábado à noite? Vai ter uma festa e vai ser bom para você se enturmar com o pessoal e tudo mais.
— Festa? Parece bom pra mim — Natsu responde. — O que você acha, Juvia?
Os olhos escuros e frios de Juvia encontram os de Natsu. — Eu gosto de lagos — responde. Esfrego distraidamente meus braços. Quando Juvia fala os pelos do meu corpo se eriçam.
Natsu volta o olhar para Kanna.
— Nos vamos, sim. Obrigado pelo convite, Kanna.
— Ótimo. Eu soube que vocês moram próximo da Lucy. Vocês três podem ir juntos e nos encontramos no lago, que tal?
Ao som do meu nome, eu me torno hiperconsciente do braço de Natsu estar encostado no meu, que sua camisa preta lisa se adere ao seu corpo e não contribui o fato de eu o ter visto sem ela mais cedo. Um calor suave emana através da pele dele e para piorar, Natsu cheira bem, tão bem que sinto vontade de provar seu sabor com minha língua.
Com olhar de Natsu sobre mim, calor floresce em minhas bochechas. Eu me viro para ele assim que escuto a sua voz e quase, quase me arrependo, porque sua respiração faz cócegas em meu rosto, nossas respirações se misturam e eu posso sentir o calor ali também. Eu não percebi que estávamos tão próximos.
Sinto que estou esquecendo algo importante, algo que eu não devo esquecer.
— Acho uma ótima ideia. Não acho que conseguiríamos chegar ao lago sozinho — ele admite com uma risada. Calor se enrola em minha barriga. Então, eu me lembro, me lembro de que ele tem namorada. Uma namorada chamada Lis.
Desvio o olhar e rompo o feitiço.
— Tudo bem.
O calor que vem de Natsu é tão intenso que faz parecer como se ele estivesse com febre. É o mesmo calor que vem ao ficar próxima de uma chama. Machuca se ficar muito tempo perto.
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