G r a v i d a d e
“É melhor ser odiado pelo que você é, do que ser amado pelo que você não é.”
André Gide
♣
— Você está muito feliz hoje — Gray diz com estranhamento.
— Eu não estou feliz — digo. — É você que está sempre de mal humor.
É possível que Gray estivesse certo, mas eu não vou dizer isso em voz alta e, com certeza, não vou admitir isso para ele.
O último tempo parecia que nunca ia acabar. Os ponteiros do relógio se arrastavam, mas assim que o sinal tocou eu corri para fora. Ansiosa por ver o jipe preto de Gray parado na entrada da MHS. Eu precisava de alivio para as minhas terminações nervosas. O dia inteiro oscilou entre quente e frio. Enquanto Natsu é quente como uma chama, Juvia é tão gelada como o polo norte. Estar pertos do dois é doloroso, é como estar no limite de dois extremos. No momento, eu preciso do morno. Da normalidade. De 20h00 até 00h00 eu teria isso. O máximo de normalidade possível. No nosso ramo, tínhamos que nos adaptar ás horas noturnas. Era o momento em que as feras saiam de suas tocas.
— O seu sorriso está me assustando — Evergreen passa por mim enrolando faixas nas mãos. Seu cabelo está preso apertadamente, sem que uma só mecha estivesse fora do lugar, vestia o mesmo traje preto que o meu. Deslizo um dedo sobre os lábios sentindo o desenho de um sorriso.
Nossa casa é enorme e a parte comum as visitas é só a ponta do ice berg, há muito mais nas profundezas. Tudo é uma fachada para esconder as intensas atividades noturnas. No total há quatro andares e mais quatro no subsolo: o primeiro compreende o ginásio, as salas de musculação, vestiários. O ginásio é enorme, com certeza toma metade do primeiro, piso de taco e vários tatames distribuídos. O interior do teto possui uma rede de vigas de aço que variam entre seis e nove metros para a prática de exercícios fundamentais: aprender a cair e no processo quebrar alguns ossos também.
Estico a perna e encosto a testa no joelho. — Não estou sorrindo — sussurro, as bochechas queimando.
— Agora você é mentirosa. Que feio, Lucy — Evergreen alfineta. Ela para diante do saco de areia com um olhar examinador, as mãos apoiadas na cintura.
Termino o alongamento e ainda sentada no chão começo a enrolar faixas pretas em minhas mãos. O ginásio está cheio – ou o máximo próximo disso –, todo mundo ansioso para treinar, afinar as habilidades até o ponto em que fosse capaz de cortar o próprio ar. A caçada ia ser dali há alguns dias. Nos, os novatos, estávamos com os nervos a expostos como um fio desencapado.
Prendo o cabelo com um elástico e me ponho de pé. Inclino minha cabeça para cima e olho dentro dos olhos de Gray.
— Estou pronta.
— Já estava na hora — Gray caminha para ficar a minha frente. — Vamos começar.
O primeiro golpe foi meu, um chute alto faz um arco em direção ao seu rosto, quase pude sentir a satisfação do golpe encaixando no rosto dele. Se fosse tão fácil não seria Gray. O golpe não encaixa, ele defende com o antebraço, eu ataco mais uma vez. Só que este é Gray. O punho dele fez seu caminho para meu estômago, roubando minha respiração por um momento.
Meus cinquenta e sete quilos não podem rivalizar com os oitenta e nove quilos de um corpo tonificado e musculoso, trabalhado para o combate. Pelo menos não com força bruta.
Mas, sim, com habilidade e inteligência.
Por isso, quando o golpe de Gray encaixa, eu caio com um gemido. Nem sempre é possível se dar ao luxo de lutar limpo. Gray abaixa a guarda por apenas dois segundos e já é o suficiente. Eu me movo como um raio, tesourando suas pernas com as minhas, batendo-o no chão com força o suficiente para deixar um hematoma no dia seguinte. Ponto pra mim. Assim que Gray eu salto para cima dele e golpeio seu rosto uma, duas, três vezes.
Deslizo para fora antes que Gray me imobilize. Novamente de pé, andamos em círculos, golpeando um ao outro com as mãos e os pés. Utilizando nossos pontos mais fortes e explorando os mais fracos. Gray é mais alto e forte, mas em compensação é mais lento onde eu sou pequena e ágil. Meus golpes encaixam com mais eficiência. Eu sou mais rápida, Gray muito mais forte.
— Desista — empurro o rosto de Gray contra o tatame, meu joelho apoiado em seu pescoço. — Você perdeu.
— Eu não perdi ainda. — O cotovelo de Gray voa em direção ao meu rosto, eu afrouxo meu agarre e isso é o suficiente para que ele se liberte. Cotovelo e joelhos, defesas e contra-ataques e golpes. Carne e osso e sangue. — Eu só perco quando você quebrar os meus braços e as minhas pernas.
O mundo se move ao meu redor, eu vejo o teto se afastar e o chão se aproximar, tardiamente percebo que sou eu que está em movimento. Gray põe mais força no agarre e eu sinto a articulação entre o úmero e a escapula prestes a deslocar.
— Você é gentil demais — Gray me solta e eu rolo para longe com a mão esquerda no ombro direto. — Isso vai acabar matando você um dia. Vá treinar sua mira. Próximo!
A arena de tiro não está vazia quando eu entro, nunca está, outras pessoas estão treinando com arbaletes e bestas. É tão grande quanto o ginásio. Eu ando em direção a uma parede com uma espécie de mostruário: flechas e arpões feitos de um metal duro o suficiente para atravessar a pele endurecida de um dragão, mas leve o bastante para que a manipulação não seja difícil. A diferença é que isto aqui não é para exibição. Eu pego um arbalete, bem diferente dos que são utilizados em pesca submarina, a empunhadura de couro. Testo o peso. Leve. Bom. Em seguida, pego um coldre de couro com uma dúzia de arpões e o prendo em meu quadril.
Há uma linha de tiro com silhuetas reptilianas espalhadas por todo o ambiente, em diferente alturas, com um alvo vermelho e branco pintados nas partes mais letais: asas, olhos e o mais difícil: o coração. As asas encouraçadas são um alvo fácil, não a proteção de escamas do resto do corpo. Um tiro ali e pronto. Um dragão que não consegue voar é um dragão abatido.
Fecho os olhos por um momento e me concentro na minha respiração: inspira e expira, inspira e expira. Testo o ombro que Gray imobilizou minutos antes e está ok. Posso começar.
Espeto um dos alvos em um dos olhos e começo a me mover pela arena. É um tiro excelente. O arpão se enterra até a metade dentro da orbita. Puxo um arpão e encaixo no arbalete. Tenho um tiro por vez. Em uma caçada outra pessoa estaria me cobrindo. Mesmo com toda a tecnologia o rústico é melhor. Armas de fogo seriam eficientes se elas conseguissem penetrar através das escamas.
Dirigi arpão após arpão em direção ao centro vermelho de cada alvo. Olhos, asas, coração até que esvaziei a aljava. E comecei de novo. Cada tiro melhor que o outro, cada arpão se enterrando profundamente, velocidade e precisão. Mais. Mais. Mais.
— Uau, você está tentando matar alguém? — De esguelha vejo Evergreen: uma toalha pendurada em seus ombros e uma garrafa na mão direita. Devolvo o arbalete e o coldre vazio ao seu lugar e me viro para ela.
— Estou tentando não morrer — respondo.
— Toma.
— Obrigada.
— Nunca te vi treinar tão pesado.
Não respondo de imediato, alivio desce sobre mim a cada gole, a água fria é como um bálsamo para a minha garganta seca. Termino a garrafa, amasso e jogo em uma lixeira no canto.
Evergreen enxuga o próprio rosto com pequenas batidinhas e suspira. — Você vai se sair bem, Lucy. Eu sei.
— Você não sabe disso — eu lhe asseguro.
— Podemos treinar juntas se quiser.
— Sério?
— Sim. Até deixo você acertar uns dois socos em mim.
— Hahaha. Eu posso fazer bem mais do que isso, Eve.
Assim que entramos no ginásio a primeira coisa que vemos é Gray instruindo um dos menores de dezesseis anos sobre o posicionamento dos pés. É um menino pequeno e magro, todo ângulos e ponta de osso, o cabelo é escuro, mas diferente dos cabelos completamente pretos de Gray, este possui reflexos roxos quando se movimenta debaixo da luz. — Você está colando todo seu peso no calcanhar. É por isso que você é derrubado com facilidade — Romeu obedece e desloca seu peso assim como instruído e olha para Gray em uma pergunta silenciosa. — Muito melhor — Gray elogia, recebendo um sorriso em resposta. Não é difícil compreender o motivo do olhar de adoração visível no rosto de Romeo. Gray é um bom instrutor. Se um aluno erra, ele não o trata como um fracasso. Ele simplesmente amortece a queda e dá suporte, corrigindo e ajudando a melhorar.
— Aquele é mesmo o Romeu? — aperto o botão do para chamar o elevador e me viro para observar um pouco mais daquela interação. Romeo olha para Gray com os olhos brilhantes de admiração. — Tão pequeno. Eu não sabia que ele já tinha idade para receber treinamento!
Gray arrepia os cabelos escuros do menino — Vá beber um pouco de água — instrui. — Depois continuamos.
— Bem, ele já tem quatorze anos, o que você esperava?
— Nossa, eu não sabia.
O elevador chega, as portas deslizam para o lado e nos entramos. Não consigo afastar meus olhos dos dois. Onde estive todo esse tempo? Dentro de uma bolha? Evergreen aperta o botão para o térreo. As portas se fecham e a gaiola de metal desliza para cima.
— O anuncio de hoje te deixou nervosa, não é? — Penso a respeito. Sim, deixou. Um suave bater na porta. “O líder está chamando todo mundo para o salão”. Não um pedido. Uma ordem de um homem acostumada a dá-las, de um homem que não está acostumado a ser desobedecido.
Assinto. “Já estou indo, obrigada por avisar, Milianna”. Mantenho a expressão neutra até a porta ser fechada.
Disparei escada abaixo assim que consegui controlar os tremores em minhas mãos e encontrei outras pessoas no processo. Todos muito ansiosos. O saguão estava bem iluminado, porém, mergulhado em um silêncio sepulcral. Atravessando a porta, faço meu caminho através dos membros do clã: homens, mulheres e crianças. Nem todos moram na casa principal. Apenas os órfãos e os solteiros. Todos eles vêm quando o líder chama, não importa se estão do outro lado do oceano. A palavra do líder é lei. Somos poucos assim como os dragões, mas somos unidos. Nosso clã é o último que restou.
Os rostos contorcidos em diferentes expressões: ansiedade, excitação, medo, confusão. Perguntas estouravam como bolhas no ar – como estática estalando com vida, esfregando-se na pele.
Jude Heartfilia – alto e aristocrático, um homem que nasceu para exercer autoridade – meu pai. Esfrego a pele sobre meu coração. Sinto um latejar doloroso como um ferimento antigo de batalha que doí quando menos se espera.
Balanço a cabeça.
A dor não importa, eu consigo pensar através dela. Meu pai olha para nos do alto das escadas.
“Lucy” Evergreen acena. “Aqui.”.
Gray e Ultear estão lá também, ao lado de Evergreen, olhando para cima em direção a extraordinária Ur Milkovich no lado esquerdo do meu pai, com sua contagem de vinte seis caçadas bem sucedida nas costas. Parada ao lado do meu pai, de braços cruzados, com a mesma aparência rígida e esbelta de que me recordo. No lado direito, o pai de Jackal, com olhos duros. Só havia um motivo para aqueles três estarem reunidos: uma caçada.
Todos bem vestidos com cores que variam entre o cinza, preto e branco. Nosso objetivo era sempre ter boa aparência sem chamar atenção.
“Como todos devem saber as buscas por ninhos têm se revelado infrutíferas e trazendo muitas baixas para nós, mas não desistiremos. Nos vamos encontrar cada dragão que existe na face desta terra até não sobrar nenhum. Esse é o legado que os nossos antepassados deixaram para nos, a missão que eles não conseguiram cumprir, nos cumpriremos.”
O saguão explode em gritos. É a nossa missão honrada. Nos nascemos para isso e para nada mais.
Será mesmo? Será que não existe nada mais para fazermos? Nenhuma outra contribuição? As outras pessoas acham que os dragões são lendas, apenas histórias. Por que não deixar assim?
“Não é somente os nossos avanços na busca pelos ninhos que viemos anunciar aqui. Na verdade, nos rastreamos uma espécime nas montanhas bem ao norte de Magnólia, acreditamos ser apenas um filhote. Ótimo para testar a habilidade dos novos membros do grupo de caça. O que não quer dizer que não será um desafio” Papai ri como se estivesse fazendo uma piada e os outros o acompanham. “Quando eu chamar seu nome, venha para frente!”
Um a um, os jovens com dezessete anos se moveram em direção as escadas e pararam em fila diante das cabeças do nosso clã. Penso neles como uma hidra: meu pai a cabeça principal. A cada nome, eu sento meu estômago afundar, como se fosse feito de concreto e não de tecido e sangue.
“Lucy” meu pai diz, eu já estava em movimento. O meu nome paira no ar daquele jeito que mostra o descontentamento em cada silaba. O meu nome tem apenas duas únicas silabas. Um feito e tanto. Eu estava de jeans e um moletom. Nada apropriado para o momento. Não estou apresentável para os padrões do clã... Até então eu tampouco estava esperando ir lá na frente. “Este é o futuro do nosso clã. Treinem, treinem com afinco, jovens, porque em breve vocês vão encarar um demônio e devem sair vitoriosos.”.
— Sim — sussurro. A apreensão voltou a me corroer com a ferocidade desde então. — Eu só não quero decepcionar ninguém. — Por ninguém eu quero dizer o meu pai, Jude e seus incríveis oitenta e duas caçadas. Como alguém espera que eu possa superar isso?
A porta do elevador se abre silenciosamente para o térreo, deslizando para o lado. Evergreen engancha o braço no meu e me puxa para fora do elevador. — Vamos comer, que tal? Estou morrendo de fome e aposto que você também está — brinca.
Olho para Evergreen com o coração inchando dentro do meu peito. Ela sempre foi assim. Sempre cuidando de mim. Cuidando das pequenas feridas que passam despercebidas.
— Obrigada, Eve.
As pálidas bochechas de Evergreen assumem um bonito cor de rosa muito contrário a expressão de confusão em seu rosto. — Não sei por que você está agradecendo — resmunga.
Eu me sento na ilha da cozinha enquanto Eve organiza os ingredientes para fazer nosso lanche – uma vez que já jantamos e é quase duas horas da manhã – sob o balcão. Pegando uma faca e tabua, Evergreen começa a cortar as bordas do pão, cantarolando baixinho. Ela faz tudo com muito concentração e eu fico em silêncio observando. Eve tem uma aura maternal sobre si como uma segunda pele: sempre cuidando e zelando daqueles ao seu redor e um feroz instinto protetor. No final, Eve faz três sanduiches de pasta de amendoim e geleia – dois para mim e um para ela – e serve suco de laranja para nos.
Dou a primeira mordida e o sabor explode na minha boca com uma sensação de sabores.
Eve sorri para mim por cima de seu copo. — E ai?
Com a boca cheia, eu respondo:
— Delicioso.
— Lucy! — ela rosna.
— Opa, desculpa!
Evergreen e eu comemos em silêncio. Quando ela termina o seu único sanduiche, eu já estou comendo o meu segundo. Metodicamente, ela cata as migalhas da ilha de mármore e põe no prato. De pé, ela lava o copo e o prato na pia e põe dentro da lava-louça e se vira para mim. O dedo em riste enquanto pontua suas palavras:
— Vá dormir assim que terminar. Temos aula amanhã e vê se passa maquiagem nessa sua cara, ouviu? Vão achar que está sendo maltratada em casa. — Balanço a cabeça como se estivesse ouvindo tudo o que ela está dizendo, mas na verdade só estou interessada em comer. — E eu duvido que você quer que aquele pedaço de mal caminho te veja parecendo um panda amanhã a noite.
Minha mente estala. Compreendendo as últimas palavras dela.
— Eve!
Ela sai da cozinha cantarolando. — Boa noite.
Assim que termino de comer, faço meu caminho para meu próprio quarto. Uma vez lá, dispo-me da calça cargo, camisa e botas, e me enfio dentro do box. Quando a água começa a gotejar em cima da minha cabeça, abro o xampu, e começo o processo lento de esfregar todo o couro cabeludo. É uma sensação boa. Coloco um pouco de sabonete liquido na mão e esfrego até fazer espuma. Lavo meus braços, ombros, axilas, seios e o espaço entre as pernas, tomando cuidado com minha barriga. Pequenas manchas arroxeadas e amareladas estão espalhadas pelo meu corpo. Realmente, qualquer um que visse meu corpo acharia que eu estou apanhando. Pensando por esse lado... a atitude de Natsu parece ser justificada.
Fecho a torneira do chuveiro, me enrolo em um roupão e com uma toalha menor começo a secar o cabelo. É um processo demorado, mas eu tenho paciência. O secador é a última etapa do processo.
Um suspiro escapa dos meus lábios quando me jogo na cama. Minha cabeça afunda no travesseiro. São duas da manhã. Eu rapidamente mergulho na escuridão de um sono bem-vindo.
♣
— O que vocês acham dessa blusa? Sejam sinceras.
— Feia — diz Evergreen.
— Amassada — adiciona Ultear.
Roupas estão espalhadas por todos os lados: na cama, penduradas nas costas de cadeiras, transbordando do encostado à parede e da cômoda. Evergreen está sentada em minha cama, as pernas longas cruzadas. Não é preciso dizer que ela está linda. Acho que Evergreen é capaz de ficar bonita até mesmo com um saco de batatas. Ela se levanta e caminha até o meu armário.
— Toma — ela volta trazendo duas peças. — Vá se vestir.
Vou para o banheiro. A saia é curta, tão curta que me surpreendo a ver tanta pele exposta. A grande maioria das mulheres do clã opta por mostrar o máximo de pele possível já que praticamente usamos calça e botas todos os dias. Nada muito feminino, obviamente. Os cabelos rigidamente presos atrás da cabeça. É completamente compreensível, mas ainda assim... — Está muito curto — reclamo puxando a peça para baixo.
Evergreen estapeia minha mão. — Não está muito curto. Está ótimo. Sorano não tem chances contra você — a última frase é dita com um sorriso de quem esmaga uma barata e sempre prazer com o ato.
— Que chances? Ele já tem namorada, Evergreen.
Ultear dá de ombros.
— E daí? Ela não está na cidade, você sim.
— Aprende uma coisa, Lucy, as coisas não vão cair do céu direto para o seu colo, você precisa ir atrás do que quer.
— Quem disse que eu quero alguma coisa?
— Não é isso o que a sua cara diz — Evergreen cruza os braços debaixo dos seios, levantando-os, e dá um suspiro cansado. — Se você não quer, então me explica por que você está tão interessada com a sua aparência hoje?
— Bingo! — exclama Ultear.
— Olha, eu.. — duas batidas na porta me interrompem. — Quem é?!
— Gray. Seus amigos chegaram — ele avisa.
Ultear pula da minha cama para os próprios pés e caminha para porta. Ultear é meia-irmã de Gray, com mais idade do que o belo rosto deixa transparecer. O cabelo escuro longo está solto e cai em suas costas, franja encobre parcialmente os olhos incomuns, mas não menos belos. Escuros a primeira vista, sob um olhar desatento, mas se você dignasse um bom momento para olha-la notaria o vermelho que começava na parte mais inferior da pupila e escurecia nas extremidades. Uma característica única da família Milkovich. O cabelo preto a única semelhança entre os irmãos além do ventre materno.
— Termine de arrumar a Lucy — Ultear fala com docilidade e abre a porta. — Eu vou descer e fazer sala para as visitas.
Assim que a porta se fecha e me deixa sozinha eu encaro Evergreen e recomeço de onde parei:
— Qual é o problema de querer ficar um pouco mais arrumada? — ergo uma sobrancelha. Hoje eu quero ficar bonita e isso não tem nada haver com Natsu Dragneel. Nada.
— Nenhum. O problema é você não querer admitir o que está bem na sua cara. Chega de conversa fiada. — Evergreen apoia a mão em meus ombros e me guia até a cadeira da penteadeira. — Sente-se. Vou arrumar seu cabelo para ninguém em especial, ok? — Fecho os olhos e deixo Evergreen trabalhar. Sinto o momento em que ela começa a passar o pente pelos fios longos, desembaraçando-os de forma gentil e cuidadosa. Dou um sorriso bobo, me sentindo... amada. É tão que gostoso que acho que posso dormir.
— Faz muito tempo que você não penteia o meu cabelo — digo.
— É mesmo. E pelo visto, acho que nunca devia ter parado. Você não cuida dele direito.
— É só cabelo... — resmungo. — Estou pensando em cortar, dá muito trabalho — E eu tenho preguiça, muita preguiça por sinal, mas essa parte eu guardo para mim mesma.
Eve ri. Seu riso parece como sinos delicados badalando. Ela deveria rir mais. — Mato você se o fizer. Seu cabelo é tão lindo, Lucy. Parece com filigranas de ouro. Ele só precisa de cuidado...
— Eu só preciso de você para cuidar dele por mim — praticamente estou ronronado. Os olhos pesados. Tão bom. É impossível não se sentir embalada por essa... Abro os olhos e olho para o reflexo de Evergreen no espelho. Chamo se nome. Um grampo de cabelo está espremido entre os lábios dela. Mesmo assim ela resmunga uma resposta de volta.
— Sim?
— Que música é essa que você sempre fica cantarolando?
Ela para seus movimentos por um momento. — É uma música que minha mãe cantava para mim quando eu era pequena? — e recomeça. — Não me lembro das palavras, só do som.
— É bonita.
— Sim, eu sei — ela vira a cadeira para si e eu fico de costas para o espelho da penteadeira. — Abra os olhos. Eu ainda não acabei — Evergreen seria uma mãe maravilhosa. — Prontinho. Dá uma olhada.
Minhas maças do rosto parecem afiadas e angulares, o cabelo preso em um coque, os olhos profundos e misteriosos, o castanhos está luminoso. Eu... — Pareço com a minha mãe — Evergreen apoia o rosto no meu ombro e olha para o meu reflexo no espelho. Um sorriso delicado em seus lábios. Quero que ela sorria sempre. Ela merece mais do que essa vida de caçadas.
Uma casa feliz, um marido e filhos para que ela possa amar e cuidar. Eu consigo vê-la assim.
— Sim, parece — ela diz.
— Obrigada, Eve. Obrigada.
— Eu não fiz nada. Eu só ressaltei o que estava ai. Agora vamos descer. Os homens odeiam ficar esperando.
Assim que chegamos à porta da sala de vistas, os meus olhos imediatamente encontram Natsu, de preto dos pés a cabeça, e Juvia ao seu lado como um cão de guarda. O barulho dos nossos passos deve ter denunciado a nossa presença. A cabeça de Natsu se move na nossa direção, a de Juvia também, mas a ação quase passa despercebida. Evergreen está linda – um verdadeiro espetáculo –, mas os olhos de Natsu vêm para mim. Eu congelo no lugar sob o olhar dele e não dou mais nenhum passo. É como se meus pés tivessem sido costurados no chão. O mundo ao redor desaparece: Gray encostado na parede parecendo entediado, Ultear sorrindo afável para as visitas, Juvia com seu semblante frio e até mesmo a linda Evergreen… some. Todos somem. Nessa bolha só existe Natsu e eu. Nossos olhares amarrados um no outro.
Ligação.
Alguma coisa acontece ente nos dois.
A gravidade agora se chama Natsu Dragneel e eu estou sendo puxada em direção a... — O que é isso? — a voz de Gray me puxa abruptamente para a realidade. — Essa saia é... Tão curta!
Encolho-me com o comentário. As palavras de Gray são bem mais forte que um tapa em meu rosto. Eu sabia que era uma má ideia desde o começo.
Evergreen infla como um balão, ela avança em direção a Gray como um touro, o dedo em riste apontado para o rosto dele. — Larga de ser um babaca e deixa a Lucy em paz, Gray. Você está parecendo à droga do Jackal com essa atitude babaca e machista.
Gray rosna.
— Não me compare com aquele merda, Evergreen!
— Então, para de agir como um, droga! — ela grita.
Escuto baixinho, a voz é baixa e suave, quase hipnotizante:
— Você está linda — as três palavras exercem um efeito devastador escavando seu caminho até o meu coração.
Toda a discussão some, e o sangue corre para as minhas bochechas. Natsu olha para mim com a mesma atenção que um joalheiro tem ao examinar uma joia e julgar seu rela valor. Conto seus passos. Ele dá dez e para na minha frente. Sobe dois degraus e fica tão próximo que consigo sentir sua respiração quente em minha bochecha. Eu espero. O que ele vai fazer na frente de todo mundo? Eu sinto o momento em que o peso em minha cabeça alivia e meu cabelo cai em minhas costas. Ele se afasta e me mostra o delicado kanzashi que Evergreen usou para prender meu cabelo.
— Assim está melhor — ele diz.
Talvez, Evergreen esteja certa, afinal. Talvez eu queira estar bonita para alguém hoje.
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