Quente, bem quente. Sentiu seu rosto queimar aos poucos, o que a levou a finalmente tentar abrir os olhos. Falhou, pois o clarão lhe fez cerrar as pálpebras: eram os raios do sol diante de si. Depara-se com o degradê laranja do entardecer, esse que era escondido pelas as folhas das árvores que se moviam. Sim, movimento. A menina, estranhando, logo se pôs a sentar, sabia que plantas não andavam. E de fato, quem se movia era na verdade ela, ou mais especificamente a carroça de madeira em que estava.
Kanae tenta se lembrar de como havia parado ali, mas foi incapaz de resgatar algo útil na memória. A última coisa que era nítido para ela era a cena de sua mãe lhe puxando pelo braço, o olhar desprezível daqueles velhos ao lhes ver adentrando a sala e uma sensação muito intensa lhe percorrer o lado esquerdo. Na verdade, havia mais: lembra que sua mãe lhe machucou, e muito. Era quase como se a dor permanecesse na sua pele até agora. Kanae, em reflexo, leva sua mão ao ombro esquerdo, e encontra uma série de bandagens. Alisava-as com cuidado, reparando num estranho relevo por debaixo do tecido, que a fez rasgar todo o curativo. Seus galhos já cresciam novamente.
Kanae questiona-se por quanto tempo esteve apagada, pois sentia bastante tontura e fraqueza.
— Kanae, você acordou. — O carroceiro falou, sendo ele o pai da menina. — Está sentindo alguma dor?
— Não… Só me sinto cansada — disse a pequena. Seu corpo balançava conforme o veículo também fazia com a estrada irregular de terra. — Papai?
— Sim, querida?
— Tem alguma comida? Eu tô com muita fome.
— Podemos fazer algo pra comer assim que acharmos um lugar para passar a noite.
— Mas papai, minha barriga tá roncando! — A menina fez um drama, jogando o corpo para trás.
— Está bem… — O homem suspira. — De acordo com o mapa, acredito que há uma vila por aqui por perto. Mas assim que comer, voltaremos à estrada.
— Ebaa! — comemorou. — Ei, papai. Aonde estamos indo, mesmo?
— Por enquanto, a nenhum lugar específico. Mas a meta é encontrar uma casa segura para tu ficares.
— Mas por quê? A gente não já tem uma casa?
— Bem… É complicado. Eu te explico melhor quando conseguirmos um lugar. — Ele fala, sacudindo mais uma vez as rédeas do cavalo. — Ah, Kanae, eu vou te pedir um favor. Quando chegarmos na cidade, permaneça na carroça.
— E como eu vou comer?
— Eu trarei a comida até você. Enquanto eu estiver fora, não fale com ninguém, cubra-se com esse pano longo que está embaixo de ti.
— Está bem, mas pra quê isso?
— As pessoas podem se espantar com os seus… — O pai sentiu a garganta secar, reformulando a frase. — És uma menina que chama atenção. Não queremos isso, entende?
A filha pegou no lençol, refletindo enquanto sentia o tecido, pois sacara o eufemismo na justificativa do pai. Outrora até se imporia, porém tinha conhecimento da estranheza que causaria se fosse vista. Sem ter outra opção, assentiu — e mais, completa a conversa com uma série de questionamentos:
— Papai… Por que mamãe fez aquilo? Ela... me machucou de propósito? Estava com raiva de mim?
Pego de surpresa, o carroceiro hesitou em responder. Seu pensar calado foi acompanhado pelo barulho do vento que soprava os galhos das árvores da estrada, assim como o constante som irritante das rodas de madeira atravessando a lama. Refletiu com cuidado as palavras que diria, contudo, não estava pronto para explicar os fatos àquela menina tão doce.
— Não, jamais sentiria isso por você. Mas não havia outro jeito.
— Outro jeito de quê?
— Eu explicarei quando tivermos um lugar para dormir, pode ser?
— Tudo bem… — A garota não estava satisfeita com a resposta, mas preferiu se conformar.
Seguiram o resto da viagem em silêncio. Kanae desfrutou do processo, assistindo a mudança das cores do céu que anoitecia. Adorava a aquarela que luz do sol pintava ao se despedir, assim dando as boas vindas aos pequeninos pontos brilhantes do véu noturno — lembrava-lhe de quando subia naquela velha árvore do quintal de casa, só para ver essa obra de arte da natureza. Kanae não via hora de poder fazê-lo novamente.
De tão entretida entre seus pensamentos, nem notou que haviam chegado a um vilarejo — se é que poderia receber esse nome. Parecia quase uma cidade fantasma por conta da quietude das ruas, e assumiria isso se não fossem as janelas que mostravam luzes acesas e famílias reunidas. Talvez fosse alguma espécie de feriado local, ou apenas o horário, mas não havia nenhum indivíduo fazendo sequer um passeio noturno.
Pararam a carroça perto de um Izakaya, e logo o pai desceu, cochichando para sua filha antes de entrar.
— Lembre-se do nosso combinado, Kanae!
— Uhum! — Falou a menina cobrindo-se.
— Volto em breve. Tome cuidado!
Logo o pai ajeitou a postura, olhando em volta numa averiguada inicial, tornou ao estabelecimento. O bar era pouco movimentado, os que estavam lá só o faziam pois não podiam ficar muito tempo sem corroer a garganta. Era de uma estrutura bem tradicional, repleto de lanternas vermelhas espalhadas ao longo do espaço, e cheiro marcante dos temperos baratos que conquistaram de primeira o olfato do homem. Assim que entrou, os olhares dos bebuns e dos funcionários foram voltados para si, o misterioso indivíduo que nunca fora visto antes. Se discrição era seu objetivo, falhara miseravelmente antes mesmo de começar. Caminhou pela madeira que rangia a cada passo até o balcão principal, onde foi recepcionado por uma mulher de cabelos pretos presos, com um olhar calmo e tristonho.
— Boa noite, como posso serví-lo? — A moça perguntou.
— Tamayo-sama, deixe que eu cuido desse forasteiro. — Outro funcionário se aproximou com rapidez. Era um jovem de pele muito alva, assim como seus cabelos. Falou com a mulher com uma expressão gentil, porém quando se voltou ao desconhecido, sua arrogância transbordou. — Estamos fechados, por favor, se retire.
— Yushiro-san, não trate os clientes dessa forma!
— Mas ele não é um cliente, é uma ameaça. Sabe muito bem em que época estamos, todo cuidado é pouco, Tamayo-sama!
— Sinto muito pelo meu funcionário, senhor. Às vezes ele se preocupa demais. — Falou a mulher, dando um cascudo no jovem que era mais alto que ela.
— Perdão, mas posso saber por que eu seria uma ameaça?
— É apenas crendice de vilarejos pequenos. Não precisa se preocupar, senhor...
— Pode me chamar de Ko… — Não, não podia se revelar um Kochō. Aquelas pessoas já desconfiavam dele sem nome, imagina se soubessem que era um membro dos mais prestigiosos. O que infernos um Kochō estaria fazendo no meio de uma vila tão pequena? — Kagaya.
— Kagaya?
— Sim. Kagaya... Ubuyashiki. — O pai de Kanae sibilou, coçando o pescoço e evitando contato visual. Era um nome incomum, viu em um livro antigo certa vez, perfeito para um disfarce.
— Parece-me um nome inventado. — Suspeita Yushiro.
— Yushiro-san! — repreendeu. — Por favor, não ligue, Ubuyashiki-san. Ele fica assim toda vez quando um desconhecido aparece por aqui. Pode ficar à vontade.
— Não há problema, eu entendo sua preocupação. Eu já fui casado também. — O homem fala, puxando uma cadeira para se sentar.
— N-nós não somos casados! — Reagiram simultaneamente, porém Tamayo o fez com um tom surpreso, enquanto o garoto usou um cabisbaixo.
— Oh? Eu sinto muito, devo ter interpretado errado. — Prendeu o riso. — De todo modo, gostaria de saber se oferecem algo que mate a fome de uma longa viagem.
— Acredito que temos algo que lhe sirva. Yushiro-san, mande o chefe preparar!
— Sim, Tamayo-sama! — respondeu exaltado, partindo para os bastidores do bar. A mulher suspirou assim que soube que o rapaz não escutaria.
— Então… poderia me explicar se essas crendices populares têm relação com as ruas vazias? — Kochō perguntou assim que viu oportunidade.
— De fato o senhor deve ser de longe, não é? — Tamayo se aproximou do balcão onde Kagaya estava, oferecendo-lhe um copo com água. — Honestamente, nem eu mais sei a resposta. Acredito, porém, que esteja relacionado ao mito de Douma-sama.
— Douma-sama? O mago?
— Sim, "o mago." — A mulher faz aspas com as mãos. — Dizem que é nessa época do ano que essa tal criatura coleta suas flores. Muitos relacionam tal período com o desaparecimento de mulheres, especialmente aquelas de saúde frágil que "sofrem de Hanahaki". Eu não acredito muito nisso, contudo várias pessoas ainda deixam de sair de casa durante a noite, que é ruim para os negócios se me permite comentar.
— Hanahaki? — Kagaya pega o copo e levou à boca para beber.
— Ah, faz parte do mito. Tem muitas versões, mas em resumo é uma doença misteriosa que envolve amor e... flores nascendo a partir de um ser humano. — O homem se engasgou com água; lembrou-se imediatamente da sua filha. — Nesses meus vinte e quatro anos, porém, eu nunca vi ninguém com esse tal Hanahaki — ironizou.
— Existiria uma cura? Ou uma forma de retardar o processo, reverter, não sei, qualquer coisa? Uma fraqueza, um ponto fraco? — Embolou-se nas palavras, aumentando a tonalidade de sua voz. Tamayo se assustou. — Perdão, acho que me exaltei.
— Não esperava que fosse um entusiasta de contos, Ubuyashiki-san. — Tamayo passou um pano por onde a água foi derramada. — Eu posso te contar o que sei, mas não é nada que não possa descobrir sozinho lendo alguns livros da biblioteca da cidade.
— Contos ou não, melhor precaver do que remediar. — Yushiro voltou com um prato fundo de soba bem quentinho, e serve o cliente com tanta boa vontade quanto faz alguém que joga o lixo fora. — Por isso, prefiro não confiar em desconhecidos perto de minha Tamayo. — O rapaz com os olhos fuzilou a quem serviu.
— Yushiro acredita que Douma pode se disfarçar de um homem qualquer. Não ligue pra isso. — Tamayo sussurrou ao ouvido do cliente. — Aproveite sua refeição!
— Obrigado. Ah, uma pergunta, eu poderia comer lá fora?
— Claro, por que não? — Assentiu a mulher.
Kagaya se levantou e tentou pegar com delicadeza o prato do alimento, porém não tomou cuidado e quase queimou suas próprias palmas ao entrar em contato com a porcelana barata. Tamayo percebeu a problemática, e por dó decidiu sacudir o coitado, trazendo consigo um pano branco para carregar tigela. Com o objeto em mãos, Tamayo sorriu.
— Está com pressa, Ubuyashiki-san? — perguntou, caminhando à saída do bar. Kagaya a acompanhou. — Esqueceu que prato quente queima?
— Um pouco, pretendia partir em breve.
— É bem mais seguro ir durante o dia. Nossa vila tem boas pousadas para que possa passar a noite, e se quiser, podemos oferecer um desconto se vier tomar café em nosso bar. — Chegando na entrada, a mulher passou a tigela com o pano para aquele que a seguia.
— Fico grato pela oferta. No entanto, acho que eu só gostaria de comer observando o belo céu estrelado desse vilarejo antes de voltar à estrada. — Era só uma desculpa na realidade, já que sua verdadeira intenção é levar a comida para Kanae como havia prometido. Contudo, seu plano demorava a se cumprir, já que aqueles que trabalhavam no Izakaya insistiam em continuar uma conversa:
— Ora, de onde vem não dá pra ver as estrelas, forasteiro? — questiona Yushiro, numa tentativa de alfinetar. Kagaya apenas virou o rosto para o rapaz.
— Pelo contrário. Eu tinha a vista mais bela de todas das constelações só do quintal de minha casa. Para ser sincero, a todo o momento a imensidão da abóbada celeste era de tirar o fôlego. Era como se olhasse o mais deslumbrante campo de violetas azuis durante a primavera mais florida, de tão belas as cores que possui. — Deixou-se levar pela poética nostalgia, lado seu que fez os ouvintes arregalar os olhos com a tamanha beleza descrita.
— "Tinha"? O que aconteceu? — Tamayo perguntou, envolvida pela história.
Calado, Kochō pensou numa resposta. Não contaria o verdadeiro motivo, não mesmo — só que também não mentiria.
— Decisões difíceis que me levaram recomeçar do zero, entende? Encontrar um lugar distante de tudo e viver em paz.
— Longe de tudo, é? — Yushiro satiriza. Não era possível um forasteiro ser mais suspeito que aquele.
— Entendo perfeitamente, Ubuyashiki-san! — Tamayo disse com brilho nos olhos, o que faz o queixo de Yushiro cair. Parece que o fato da mulher se identificar com Kagaya havia a cegado de desconfianças. Yushiro rangeu os dentes de ciúme. — Eu mesma tive que largar tudo para poder abrir esse bar. Era o meu sonho ou passar o resto da vida casada com um médico medíocre. Acho que já deve saber qual foi minha escolha! — Ela riu da própria fala. — O senhor Ubuyashiki procura um lugar pacato para recomeçar? Nesse caso, acho que conheço um lugar ideal para você.
— O que queres dizer? — Prometera a si mesmo que fugiria de mais conversas fúteis para que a espera de Kanae não se prolongasse, contudo, aquele assunto talvez fosse útil, não somente para si, mas para toda a situação que sua filha havia se envolvido.
— Está vendo aquele homem ali? — A moça aponta para um senhor sentado sozinho, devia ter por volta de uns trinta e tantos anos, virando um copo atrás do outro. — É o senhor Shinazugawa. A família dele possui uma cabana inabitada em meio aos bosques. Foi lá onde fiquei até poder me restabelecer. Talvez se conversar com ele, consigam chegar a algum acordo.
— Um... acordo?
Parecia improvável conseguir chegar a um combinado satisfatório para o homem emburrado. Só pelo modo que batia o copinho na superfície da mesa, Kagaya previu que era um indivíduo difícil de lidar. As sobrancelhas eternamente rebaixadas, como se tudo o que lhe rodeava o enchesse de desprezo mais rápido do que esse enchia o próprio copo com bebida. O canto da boca contorcido meio as iniciais rugas de idade, como que com câimbra, denotava nojo e tentava disfarçar constantemente a sensação de queimar que o álcool fazia na sua garganta.
Kagaya engole seco inconscientemente, ameaçado pela aura daquele senhor. Pensou em recusar a sugestão com cortesia e apenas rumar de volta para a carroça, mas foi só levar aos olhos a tigela que carregava que mudou de ideia. Observou, entre os fios amarelados de massa, verduras e temperos, seu próprio eu na água quente, assim lembrando que estava ali por um único motivo: sua filha. Se falar com aquele homem fosse de utilidade para ajudá-la, faria-o e faria por Kanae.
Não temeria um bebum qualquer. Afinal, que ameaça um velho de meia idade poderia ser?
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