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História Flor de Porcelana - Campo de Violetas - parte II


Escrita por: Aniverse e Eustakiah

Notas do Autor


MEUDEUSMEPERDOEMADEMORA
o cap tava pronto há um tempão mas eu enrolei pra enviar pra betar
sorte que o maravilhoso @Neelyna é paciente
(obrigada desde já, anjo perfeito e cheirosoh *me curvando diante dele*)

Enfim, boas-vindas aqueles que chegaram agora e
Boa leitura!
/spoiler sem contexto/: eis aqui o vosso principe favelado, leitore

Capítulo 5 - Campo de Violetas - parte II


Do lado de fora, Kanae contava os segundos no tédio de sua espera. Parecia uma eternidade, talvez já tinham se passado horas, quem sabe? Sua fome parecia digerir a si mesma de tão intensa que havia se tornado, não aguentaria mais ficar de barriga vazia. Não obstante, suas pernas ansiavam por movimento, jamais que havia ficado tanto tempo sem poder perambular por aí. Precisava se esticar, tirar essa dormência de seus músculos.

Kanae cogitava descumprir o trato com seu pai. Não, não poderia fazer isso, trairia sua confiança. Mas, por outro lado, o que os olhos não vêem, não machuca. E assim, descobriu sua cabeça do lençol, isenta de culpa, dando uma espiadela para fora da carroça. Deserto. Ninguém a veria se saísse agora. Era só não demorar muito.

O contraste daquela brisa fria contra suas bochechas rosadas preenchia o peito de animação. Contudo, antes que pudesse pular do veículo, escutou uma correria e novamente abaixou-se. Kanae observava por uma fresta das madeiras o que acontecia. Sentiu o aumento do pulso de seu coração ao ver aquele menino de andar furioso se aproximar. Só com aquela aura tão pesada quanto suas passadas na estrada de terra, ele a dava medo. Não obstante, esse era decorado por dezenas de cicatrizes em seus braços, como desenhos sem significado que corriam a epiderme avisando que ali havia perigo — parecia uma versão mirim das ilustrações de criminosos que via nos livros da biblioteca de casa. Tinha um semblante de desagrado, tipo quem tem um gosto amargo na ponta da língua, e cabelos tão claros que eram praticamente alvos.

— Aquele moleque, onde se escondeu dessa vez? — O garoto falava, olhando em sua volta com punhos cerrados. Kanae prendeu a respiração, assustada, evitando mover qualquer músculo à medida que o menino passou por perto da carroça.

Seus batimentos cardíacos ficaram tão intensos que podia ouvi-los na própria cabeça.

Um ritmo realçante.

Forte.

Constante.

Grave.

E que, acima de tudo, refletia o fio de tensão que circundava a menina. Não ousou sequer pensar em alguma coisa, temendo que, de algum modo, o esquisito pudesse ouvir a voz em sua cabeça.

Por sorte, não demorou para que o rapaz bufasse, em notável decepção, e saísse de cena, seguindo pela próxima esquina da rua. Kanae voltou a sentar-se, suspirando aliviada.

— Ei, por que você está se escondendo também? — Kanae sente um arrepio percorrer a espinha quando ouviu aquela voz aguda vindo de trás. Havia alguém na carroça com ela. Como subiu sem que percebesse?

A menina não sabia como reagir, se respondia verbalmente ou fingia não escutar. Mas se tinha algo a ser feito, era descobrir quem invadiu o veículo sem permissão. Virou o pescoço lentamente, até se deparar com os olhos atentos daquela figura pequena desconhecida. Era só uma criança, um pirralho talvez mais novo que Shinobu, que brincava de se esconder. Não tinha nada de tão assustador, todavia, mesmo assim, a falta de ameaça foi insuficiente e, depois de se encararem por um milésimo de segundo, seus corações ainda receberam o temido impulso de lutar ou fugir.

— AAAAAAAH! —  Alto e em uníssono, berraram, fazendo com que todo o quarteirão escutasse.

—  Shhhhh, fica quieto! — Percebendo a barulheira que provinha deles, Kanae tenta tapar a boca da criança, porém falha.

— Aniki, socorro! Socorro! — Continuou a gritar o menino de moicano — Fui capturado!

Espera, Aniki? Isso não quer dizer "irmão mais velho"? Então significa que...

— GENYA?! — Como se todos os questionamentos da filha dos Kochō fossem respondidos, o garoto sinistro de antes voltou correndo até onde a carroça estava. Ligou os pontos: sem dúvida era o tal "aniki".

— Eita... — Agora a atenção era iminente. Kanae outra vez entra debaixo do lençol, encolhendo-se sob os tecidos antes que fosse notada.

— Ei, ei! Não se esconda novamente, menina! — O pestinha barulhento ameaça descobrir Kanae, só que, antes que pudesse remover as cobertas dela, aquele que lhe procurava o puxou para fora da carroça, carregando-lhe no colo. Kanae rezou pela vida daquele pequeno.

— Genya! O que você estava pensando em se esconder assim de repente?!

— Aniki, aniki! Tinha uma menina esquisita, era cheia de plantas pelo corpo! Eu acho que era um espírito da floresta que tentou me capturar!

— Pare de inventar histórias! Você me deixou preocupado. O que o pai diria se...

— Que barulheira é essa aqui fora? — Algumas pessoas saíram do bar, movidas pela curiosidade e preocupação.

— Minha carroça! — Ubuyashiki correu até o transporte de rodas de madeira, onde o furdunço acontecia. Checou logo dentro e se aliviou ao ver Kanae se cobrindo. Voltou-se aos garotos para dar uma bronca. — Vocês não deveriam ficar gritando assim a essa hora da noite. Onde estão seus pais?

— Genya? Sanemi? — Aquele velho solitário de cabelos grisalhos também saiu do bar. Sua voz grave calou a todos que cochichavam curiosos, e seus lentos passos amedrontaram até Kanae que apenas ouvia.

— Ah, pai! — O menino mais velho colocou o irmão no chão.

— Eu falei para vocês não causarem confusão.

— Não vai acontecer de novo, pai, Genya só… — O albino foi interrompido pelo estrondo do tapa em sua face, caindo sobre o chão.

Por um segundo, houve um suspiro coletâneo retido. Quieta perplexidade dominou a plateia, embora ninguém de verdade parecia pretender tomar alguma atitude.

— Tinha apenas uma função que era cuidar do seu irmão. Nem isso você pôde fazer, Sanemi? — O adulto olhava àquele que deitava na lama de nariz empinado e sobrancelhas levantadas em sinal de desprezo. Sua sombra cobria por completo o corpo do filho que se encolheu mais ainda diante de sua autoridade e da dor que lhe foi provocada por um chute na barriga.

Um monstro, só pode ser um monstro. Quem trataria assim a própria prole, principalmente na frente de tantos olhos curiosos? O estranho, porém, foi ninguém sequer gastar esforços para fazer alguma coisa. Nem o filho mais novo tentou socorrer a quem tinha laços fraternos, e de medo, se escondeu sob a carroça dos Kochō. Kanae, ainda coberta, tapou os ouvidos por instinto e se encolheu — temia inconscientemente o desfecho que aquilo poderia ter. Os outros julgaram a cena com seus frios olhos, porém não a fera e sim ao ferido que cuspia sangue na terra. Afinal, nada teria acontecido se as ordens do pai fossem cumpridas com exatidão. 

Desumanidade naturalizada, Kagaya reflete. Entretanto, no maior ato de hipocrisia, também não fez nada — quedou-se parado como estátua, e tencionava continuar assim, não somente, pois sua prioridade era cuidar de sua própria menina e não de filhos de terceiros, no entanto, também por certa coerção social. Não podia ir de encontro ao comportamento do louco, mesmo que contrário ao que acreditava, já que estava a mercê de sua decisão.

Há poucos minutos, sentavam-se no bar, apresentados por Tamayo. O clima era tenso, o grisalho olhava torto para o pai de Kanae, que usava palavreado rebuscado demais para seu gosto. Kagaya percebeu que se tratava de um homem arrogante, e que se não mudasse sua postura, seu tempo estaria sendo jogado fora porque a conversa não teria nenhum proveito.

Kochō sempre foi bom de língua — contanto que seu racional se sobressaísse sobre o coração, fingir-se de outrem não seria problema. E assim o fez, agora de modo que tornava a segregação entre Kochō, o pai de uma menina amaldiçoada, e Ubuyashiki, o viajante, quase concreta.

Conseguiu converter o diálogo para um monólogo através de bajulações. Parece que, além de arrogante, aquele que agora se auto vangloriava era deveras narcisista. Com o respeito de Shinazugawa conquistado, logo partiu para falar de acordos, e o que deveria ser a parte mais rápida da conversação, fez com que as palavras fluírem por muitos e muitos minutos.

Finalmente chegaram a um consenso, mas pouco antes que pudessem apertar as mãos, gritos foram ouvidos do lado de fora. E então, Kagaya descobriu um pouco mais do que queria sobre o patriarca dos Shinazugawa. Sabia de sua arrogância, sabia de sua vaidade — agora, também era de seu conhecimento sua violência. Mas, Kochō, em forma de Ubuyashiki, não ia fazer nada a respeito.

— Desculpe-me, Ubuyashiki-san, pela indelicadeza dos meus filhos. Espero que isso não atrapalhe nossos negócios.

— Não vai, Shinazugawa-san. Eu que devo me desculpar por incomodá-lo tão tarde da noite com uma proposta como aquela — respondeu Kagaya, como se não visse a crueldade à sua frente.

Teve uma intuição que, sem dúvida, arrependeria-se de ter entrado em acordo com um psicótico. Mas por Kanae, assumiria todos os riscos para mantê-la em segurança.

 

[...]

 

Seguiu as instruções dadas pelo Shinazugawa pouco antes de voltar de vez à estrada. Talvez tivessem chegado mais rápido se a noite não estivesse tão densa, e se as estradas não fossem tão indefinidas naquela mata tão fechada. Todavia, uma hora conseguiram chegar ao tão aclamado destino: um lugar seguro e pacato.

E lá estava a cabana entre as árvores do bosque. Era um tanto simples: a estrutura era completamente de madeira e havia apenas dois cômodos, uma sala principal e um quarto. Kanae e o pai adentram guiados por um lampião, deparando-se com os interiores assustadores de antigos daquela moradia. A poeira era tanta que se tinha o odor de coisa abandonada. Notável foi a diferença dos luxos que desfrutavam da mansão dos Kochō e agora, mas a inocência de Kanae nem permitiu fazer pirraça — engolindo os restos de sobá que seu pai lhe entregou antes de partirem, foi logo explorar o cenário, correndo pelo escuro da casa até o jardim. Quem sabe encontraria alguma árvore tão alta quanto do quintal de sua antiga moradia?

Kagaya observa a filha brincar destemida pela floresta que rodeava o novo lar, sentado no terraço de madeira velha. Deveria estar se preocupando com como pagaria a dívida que fizera com Shinazugawa, mas preferiu aproveitar aqueles poucos instantes de paz. Ver sua família feliz normalmente lhe fazia sentir o mesmo — só que quanto mais olhava Kanae, quanto mais atenção dava aos pequenos brotos que nasciam de seu pequeno corpo, somente percebia o pesar de sua consciência se tornar maior, assim como um perfurar em seu peito. Soube naquele momento, que jamais poderia se sentir pleno outra vez, pois tudo o que era agora é culpado pelo destino terrível que Kanae carregava. E a coitada, brincando feliz sem saber o que passava ou o que lhe aguardava, era de partir o coração.

— Papai, quando é que elas vão chegar? — Kanae se aproximou do pai, ofegante depois de correr por entre todas as proximidades, acordando-o de seus mórbidos pensamentos.

— Elas quem, querida? — Kagaya sorriu com os lábios na tentativa de disfarçar a angústia que guardava.

— A mamãe e a Shinobu!

O homem travou diante da curiosidade da menina. Sentiu como se o buraco abstrato de sua alma se expandisse, sendo aberto por uma espada de melancolia e remorso. Não iria aguentar, já fingiu demais, já desviou demais. Prometeu que lhe explicaria tudo assim que tivessem um local para dormir sossegados, era hora de cumprir sua palavra.

— Kanae, me escute bem. — O pai se ajoelhou diante dela, colocando as mãos sobre os seus ombros. A menina estranhou o tom firme, e seu doce sorriso devagar foi esvaecendo-se. — Seu pai cometeu um erro terrível. E por minha causa, você não vai poder voltar para casa. Nem ver sua mãe ou a Shinobu.

— Ora, por que não?

— Você está doente, Kanae. Se continuasse naquela casa, sabem lá os deuses o que aconteceria com você.

— É por causa da minhas flores? — A menina perguntou, como se já soubesse a resposta, e o pai se surpreendeu com o raciocínio tão exato dela.  — Não acharam cura para mim, não é?

— Isso. Mas flores continuam crescendo onde há amor, e no seu caso não foi diferente. — O homem pegou uma mecha do cabelo da menina e pôs atrás de sua orelha. — Você entende que não havia outro jeito, certo, Kanae?

— Sim, papai — responde cabisbaixa.

— Você é uma boa menina. — Kochō abraça forte a filha, que retribuiu o carinho, acanhada. — Eu só espero que um dia possa me perdoar. — Apertou mais o corpo da menina em seus braços, ao mesmo tempo que falhou em segurar o choro. Kanae momentaneamente ficou estática com a vulnerabilidade de seu pai.

— Eu o perdôo papai — falaou fazendo um cafuné na cabeça dele. — Não precisa chorar, eu estou bem, vê? — A garota se afastou do abraço, revelando um radiante sorriso em sua face.

Seu semblante era alegre, entretanto, naquela noite, Kanae perdeu a vontade de brincar. A verdade é que ficou arrasada, só que, se visava a apaziguar seu pai, sabia que deveria continuar sorrindo, mesmo que de fingimento. Arrumaram-se de improviso para dormir, pegando o único acolchoado da casa para Kanae, enquanto o pai fez de sua roupa o único conforto entre sua pele e o piso.

Kanae nem cogitou fechar os olhos até que soube que seu velho já tinha o feito.  Assim que percebeu a exaustão selar as pálpebras de Kagaya, há para a menina o alívio de poder desfazer-se de sua máscara de falso contentamento, e logo os sentimentos da perda vieram à tona através de molhadas lágrimas que desciam o seu rosto. Tudo que um dia conheceu, toda história que construiu naquela casa, todo amor que compartilhou com seus entes queridos, agora eram somente memórias que se tornariam foscas com o tempo. À partir de então, Kanae não iria mais brincar com Shinobu, não iria mais abraçar sua mãe, não iria mais escalar as árvores do quintal onde ficava horas e mais horas só admirando a paisagem.

Kanae não veria mais o campo extenso de violetas que era o céu de seu antigo lar.

E perceber isso machucou mais do que quando lhe arrancaram os galhos.


Notas Finais


Fatos interessantes:
Durante a escrita eu tinha esquecido que o pai tinha que levar comida pra kanaekkkkkkkkkk
Foi graças a @Eowyn_ me cobrando no discord que eu lembrei de retomar esse fatoh

Muito obrigada por acompanharem até aqui
E conto com vcs no prox cap
Até a próxima <3


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