Incêndio
A imagem piscou brevemente em uma rajada de pequenos pontos de luz que se adequavam para construir a figura de uma mulher de cabelos ordenados, presos num coque alto que, juntamente com as vestimentas que trajava, lhe davam um ar de graça e elegância. Apesar da imagem em preto e branco, suas roupas eram de uma tonalidade azul clara e os cabelos eram loiros, provavelmente tingidos. Em seu pescoço estava pendurado um colar de pérolas de precedência duvidosa enquanto na mão próxima aos lábios um robusto aparato de metal, conectado por um fio e recoberto de um tecido aveludado, captava sua voz marcante.
Atrás da mulher, havia uma fileira de adolescentes que formavam uma fila indiana que se esticava pela rua até adentrar uma grande construção oriental, com as telhas negras e as bordas eram construídas com madeira avermelhada, originária da Nação do Fogo. As paredes eram de tijolos que já haviam sido restauradas diversas vezes ao longo dos últimos séculos, tão firmes e insistentes quanto a própria Nação na busca do próximo Avatar.
Os rostos daqueles jovens remontavam uma série de emoções distintas, que iam desde a confiança excessiva ao próprio medo de ser o próximo Avatar.
— E seguimos, pelo sétimo ano seguido, com os testes para encontrar o próximo Avatar na Nação do Fogo. — Disse a repórter animada. — Com o número de dobradores caindo ano após ano, os órgãos governamentais, aliados com os Sábios do Fogo, passaram a abrir os testes anuais para todos os jovens de catorze até os dezoito anos, nascidos ou que tenham descendência na Nação do Fogo.
— Estou aqui com o Sábio do Fogo, Chizeh Kim, que nos conta sobre o processo. — A câmera vira então para um senhor de cabelos grisalhos e pele acinzentada com manchas escuras que, mesmo denunciando a idade avançada, quebrava qualquer tipo de construção levando em consideração que o mesmo tinha vitalidade no olhar.
— É uma honra para Nação do Fogo ter novamente o Avatar entre nossos cidadãos. Acreditamos que com a queda abrupta de dobradores desde o desaparecimento do Avatar ChenLe, é importante acreditamos que talvez existam pessoas com potencial latente não despertado entre nossos cidadãos.
— E de onde saiu essa teoria? — Indagou a repórter.
— Durante o período da Avatar Korra, muitos dobradores de ar foram descobertos em diversas nações do mundo e acreditamos que esses talvez tivessem a capacidade adormecida dentro de si que veio se aflorar com a abertura dos novos portais espirituais.
— Mas isso não implicaria que talvez haja dobradores de fogo em outras nações também? — A pergunta soara como dúvida e crítica ao mesmo tempo.
— Levando em consideração esse ponto, a Nação do Fogo, por ordem do atual Senhor do Fogo, está colaborando com governos mundiais para financiar buscar pelo mundo pelo novo Avatar, mas acreditamos fielmente que ele está aqui entre os nossos.
A última palavra da frase do velho sábio soou com extrema prepotência, denotada pela repórter que assentia com ele enquanto mudava de assunto, perguntando sobre os processos, sobre a estimativa de pessoas no local e o tempo que durariam as provas. Chizeh respondera cada uma das perguntas, deixando sempre claro sua fidelidade a sua pátria por meio de confirmações em como a Nação do Fogo estava investimento dinheiro nas políticas de procura ao Avatar e em como os métodos que utilizavam para rastreá-lo eram efetivos, mesmo após tantos séculos. No final das contas, o povo da Nação do Fogo era extremamente fiel a suas raízes e a repórter não iria se surpreender se talvez o próprio sábio não acreditasse na possibilidade do Avatar estar do lado de fora.
— Apesar de tudo, mestre Chizeh, qual sua opinião sobre as revoltas populares nos distritos baixos da Nação do Fogo? — Ela aproximou o microfone rústico do homem que fechou completamente a boca, demostrando certo desafeto com a pergunta. Porém, como um gato astuto, a mulher voltou para si novamente a atenção. — Veja bem, com a ausência do Avatar, o mundo se encontra em total desequilíbrio e é possível ver isso com o surgimento da Miasma que afeta a população menos favorecida do país. Acredita que o Senhor do Fogo deveria investir mais severamente na procura do Avatar ou tentar regularizar as condições precárias que os trabalhadores rurais e pescadores, que são uma classe marginalizada e refém de condições precárias de segurança e saneamento?
Não houve resposta do homem, porém, sua expressão estava séria e a qualquer momento poderia explodir ou jorrar labaredas naquela repórter ousada, que não demonstrou fraqueza alguma ou receio enquanto aguardava as perguntas. Visto que não iria conseguir mais respostas, ou pelo menos uma resposta, ela novamente toma para si o microfone e assente para Chizeh, virando-se para câmera.
— O mundo torce para que as buscas pelo Avatar encontrem resultados satisfatórios e ele ou ela tenha as qualidades necessárias para trazer novamente a harmonia ao mundo. De Song Mimi para vocês da Elemental Matutino.
A tela se escureceu completamente e foi possível ver um jovem adulto no reflexo escuro da televisão de tubo que transmitia tudo para aquela lojinha de ferrarias em um bairro mais violento da Cidade da República, um outrora antro de oportunidades que havia sofrido com o crescimento desenfreado da população. O rapaz que estava vendo a televisão tinha uma pele levemente bronzeada, com algumas manchas mais escuras no rosto do que parecia ser fuligem e os cabelos desgrenhados; em suas mãos repousava um aparelho de cano longo e gatilho, uma arma comum da guarda comum da Cidade da República, com o brasão firmado em uma das laterais.
Apesar de cedo, ele já estava trabalhando há algumas horas naquele equipamento e, a maneira que deslizava um pano na superfície gélida do metal, era possível perceber certa familiaridade entre ambos. Claro que Nycolaern, ou apenas Nyco, nunca havia usado aquilo para tirar a vida de ninguém, mas tinha em suas contas um número expressivo de criminosos que havia conseguido neutralizar com as balas de borracha. O trabalho na Guarda Menor trazia consigo alguns benefícios, como livre acesso há diversas áreas da cidade e uma boa remuneração que o ajudava de diversas formas e conduzia uma vida digna ao senhor que havia acabado de passar atrás dele como um vulto no reflexo da TV.
Nyco se quer o olhou, estava parecendo fazer alguns ajustes no rifle e o senhor aproximou-se dele com o que parecia uma xícara de café.
— Esse treco não vai te manter em pé o dia todo, pare de ficar alisando isso e coma alguma coisa antes do trabalho!
— Calma, Daito, eu ainda não estou com fome, então provavelmente vou comer no caminho do trabalho na taberna da Senhora Xin, não precisa ficar preocupado.
— Não precisa ficar preocupado... — Ele repetiu a frase com certo escárnio na forma a tonalidade de sua voz soava mais aguda. — Você morre por ai e lá vai eu ter que cuidar do seu enterro. Sabe o trabalho que dá isso? Será que esse velho não pode ter um pingo de paz na sua vida?
Nyco soltou um suspiro resignado, acostumado com as preocupações excessivas de Daito. Ele sabia que o colega se importava com ele, apesar de expressar isso de maneira brusca e áspera.
— Relaxa, Daito. A cidade está tranquila hoje. Não vai acontecer nada demais.
Daito bufou, mas não insistiu no assunto. Em vez disso, ele deu de ombros e se afastou, retornando às suas próprias tarefas na loja de ferrarias. Nyco observou-o por um momento antes de voltar sua atenção para o rifle em suas mãos.
O aparelho era sua principal ferramenta de trabalho. Como membro da Guarda Menor da Cidade da República, era sua responsabilidade manter a ordem e proteger os cidadãos dos perigos que espreitavam nas ruas. Embora a cidade não fosse tão caótica quanto em tempos passados, ainda havia problemas que exigiam a intervenção da guarda.
— Fico me perguntando quando foi começamos a precisar de armas tão estranhas como essas para nos manter seguros. — Daito, pela sua idade, parecia estar se referindo de maneira nostálgica a uma outra época que viveu quando era mais novo, onde pessoas que eram capazes de dominar os elementos mantinham em segurança a sociedade da própria violência civil e dos espíritos corrompidos.
— Você ficou sabendo do caso do Prédio Camélia? — Nyco virou-se para o idoso que dispunha poucos fios no topo da cabeça.
— Aquele com o restaurante?
— É, aparentemente foi incendiado. Acreditamos que possa ser um dobrador em primeiro momento — A expressão de Nyco era séria com a menção do suposto culpado e aquilo pareceu ofender Daito, como se tivesse testemunhando contra um ser de qualidades superiores. — Mas acabou sendo um incêndio criminoso causado por não-dobradores, sobre a influência de espíritos corrompidos.
— Eu digo para você manter sua mente e espirito equilibrados! Pessoas que faltam com um desses atributos são alvos fáceis para o mundo espiritual. — Ele assentiu com segurança. — Pelo menos ainda não foi o miasma.
— Daito... — Repreendeu Nyco.
— Você é jovem, Nyco. Não viu o que eu vi, quando isso tudo começou... somente o Avatar pode trazer de volta a nossa paz, mas eu temo... — O homem respirou profundamente. — Talvez seja o fim dos tempos, o mundo espiritual está nos punindo e tirou o Avatar e o poder da dobra de nós.
— Olha, o Avatar pode não estar aqui para proteger o senhor, mas eu estou. — Nyco ficou sobre os pés e sorriu. Em comparação com Daito, que tinha seus um e setenta de altura, com as costas levemente curvadas numa corcunda caricata, o rapaz com o rifle parecia uma muralha.
— Você é um rapaz estranho, Nycolaern. — Daito maneou a cabeça negativamente. — Poderia estar vivendo uma vida em paz, com uma garota, ou seja lá o que você goste, quem sou eu pra julgar.
— Daito! — Repreendeu Nyco.
— O que eu quero dizer é que você poderia fazer muita coisa, mas decidiu ser unir a Guarda Menor para proteger esse bairro, que fede a cocô de bisão voador. — Ele deu de ombros. — Com sua idade, eu tinha pelo menos umas duas namoradas...
— Ok, chega. Vou me preparar logo para ir até o quartel receber as ordens da semana. Vou tentar comprar carne para comermos no jantar. O que acha?
— Faz o que você quiser, garoto. Agora anda logo, vou abrir a loja e não quero meus clientes se assustando com um guarda aqui dentro.
Nyco respondeu com um sorriso contra a face emburrada que o velho senhor fizera. Sobre a bancada de maneira estava um sobretudo em tons terrosos que o rapaz jogou por cima do tronco; a outra parte de seu uniforme, como botas e a calça levemente mais clara que o sobretudo, já estavam vestidas. Apesar da falta de olheiras em seus olhos, ele já estava há um bom tempo acordado, talvez antes mesmo do sol nascer.
Seu rifle ficou preso nas costas com o brasão da Cidade da República e da Guarda Menor reluzindo contra a luz alaranjada que despontava daquele alvorecer delicado para dentro do beco acinzentado que ficava locada a loja de ferrarias de Daito, "A Engrenagem Solta", onde o mesmo supostamente era capaz de consertar qualquer produto mecânico com facilidade. A extensão de suas habilidades era desconhecida, mas o que estava iluminado foi responsável por consertar o carro que Nycolaern usava para ir todos os dias ao trabalho.
A pintura azul profundo do carro reluzia sob os raios do sol nascente, destacando os detalhes cromados que adornavam suas laterais e para-choques. As rodas de aço polido adicionavam um toque de elegância ao conjunto, enquanto os faróis dianteiros redondos emitiam uma luz suave que cortava a escuridão da madrugada.
No interior, o carro era espaçoso e confortável, com bancos revestidos em couro desgastado pelo tempo. O painel de instrumentos simples, mas funcional, abrigava um rádio antigo e alguns medidores básicos de velocidade e combustível. Nyco tinha um cuidado especial com seu carro, realizando manutenções regulares e polindo sua carroceria com esmero.
O carro estava estacionado na ruela que dava acesso ao beco, no qual se dispunham várias construções e o cheiro forte e úmido do lixo molhado, além do vapor que emergia das saídas de gás do subsolo. Não era uma vizinhança agradável e o modo que um grupo de homens sentado em uma escadaria olhava ao rapaz, era possível ver que também não era bem-vindo. Não era possível saber se pela convivência ou pela sua alta confiança, mas nem um deles teria coragem de enfrentar um "homem da lei", tampouco fariam algum mal a Daito na sua ausência, mas era inegável que preferia sair mais cedo, quando as ruas estavam menos movimentadas o possível.
Nyco colocou o rifle no banco do passageiro do conversível e sentou no banco do motorista, ligando o motor que roncou furioso, com fumaça saindo de seu escapamento e um tremeluzir grave que indicava que estava pronto para assumir as ruas. Ele então dirigiu pelas ruelas da parte mais baixa da Cidade da República, enquanto regulava a estática do rádio, passando por estações de música e encontrando conforto na voz rouca de um homem do noticiário matutino, mas sua atenção não estava nas notícias sobre o período de alistamento militar em algumas regiões da País da Terra e sim na maneira que a estática do rádio parecia descontrolada, alterando rapidamente entre estações criando uma cacofonia de frases sem nexo algum. Nyco mexia em alguns botões, na esperança de trazer suas notícias de volta, mas foi em vão e com um muxoxo desapontado ele desligara o rádio no exato momento em que o carro performarva uma subida que dava acesso a ponte que conectava a parte baixa da cidade com as regiões mais elevadas.
A ponte se estendia sobre o Rio Hui, que cortava uma parte da Cidade da República e desaguava diretamente no Rio Yue Bei. A água naquela região menos favorecida parecia mais turva que o de costume; era difícil encontrar dobradores de água com talento suficiente para purificar aquelas águas então acabava se tornando função dos moradores locais fazê-lo, ainda que de maneira preguiçosa. Mas na verdade era que dobradores não tinham o menor desejo de realizar uma atividade como aquela, afinal de contas seus talentos podiam ser aproveitados em causas menores. A cidade ignorava a região baixa, tal qual Nyco ignorava o som da estática que havia se voltado a fazer, focando-se principalmente numa sensação de estranheza que havia subido por sua nuca instantes após o carro entrar em uma avenida movimentada.
O trânsito estava mais lento, talvez um acidente? Nyco deveria prestar atenção nos sinais. O carro se movia vagarosamente, enquanto a sinfonia de buzinas furiosas preenchia o ar por todos os lados. Algo estranho estava acontecendo, a estática estava mais e mais confusa, até Nyco não aguentar mais e puxar para fora o aparelho.
Nyco segurou o rádio entre as mãos, examinando-o com uma expressão de perplexidade. A estática continuava a zumbir, preenchendo o interior do carro com um ruído irritante. Ele tentou ajustar os botões novamente, mas nada parecia resolver o problema. Era como se o próprio rádio estivesse agindo de maneira estranha, como se estivesse sendo interferido por alguma força desconhecida.
Enquanto Nyco lutava com o rádio, seus olhos permaneciam fixos na estrada à sua frente. O trânsito continuava a se mover lentamente, e agora ele começava a notar algumas agitações entre os motoristas ao redor. Pessoas saíam de seus carros para ver o que estava acontecendo, e alguns pareciam estar discutindo animadamente.
Uma sensação de inquietação começou a se instalar no peito de Nyco. Algo não estava certo. Ele olhou para o rio abaixo da ponte, observando a água turva que fluía lentamente. Era como se o próprio rio estivesse refletindo o clima tenso que pairava sobre a cidade. De repente, um som estrondoso ecoou pelo ar, fazendo Nyco pular em seu assento. Ele olhou ao redor, tentando identificar a origem do barulho. Foi então que viu uma nuvem escura de fumaça subindo ao longe, na direção do centro da cidade.
Seu coração acelerou. Algo terrível estava acontecendo. Nyco sabia que precisava agir rapidamente. Com determinação, ele jogou o rádio de lado e puxou para perto de si o rifle, saindo de seu carro e atravessando por dentre os veículos imóveis e pessoas que discutiam. A insígnia de sua arma trouxe uma serenidade a quem discutia, ou medo, os fazendo ficar em silêncio e observar o jovem guarda percorrer entre os corredores de carros até o local onde uma densa nuvem de fumaça subia.
Nyco avançou com passos firmes e determinados em direção à nuvem de fumaça, seu rifle balançando suavemente em seu ombro. Ele manteve a calma apesar da agitação ao seu redor, concentrando-se em seu dever como membro da Guarda Menor. Enquanto se aproximava do local, ele podia sentir o cheiro acre da fumaça em suas narinas e ouvir os sons distantes de sirenes e gritos. A tensão no ar era palpável, como se a própria cidade estivesse segurando a respiração, esperando pelo que viria a seguir.
Ao chegar à fonte da fumaça, Nyco ficou paralisado por um momento diante da cena diante de seus olhos. Era como reviver a situação do Prédio Camélia, mas a diferença era o tamanho da estrutura que parecia ser bem maior e a quantidade menor de fogo que estava começando a cobrir o edifício, começando pelos andares superiores. Era um banco.
Houve outra explosão e sem hesitar, Nyco correu na direção do prédio agora em chamas, seu treinamento e instinto assumindo o controle. Ele sabia que não podia ficar parado enquanto pessoas estavam em perigo e até que uma equipe da Guarda Especializada chegasse, muitas pessoas poderiam perder a vida. Em seu rifle estavam equipadas balas semelhantes a pequenos cristais azulados que pareciam remexer algo dentro de si enquanto corria.
Haviam mais civis do lado de fora do prédio, do lado oposto da rua, alguns com partes do corpo enegrecidas pela fuligem e outros desacordados, mas nenhum ferimento grave até então. Havia um homem de cabelos grisalhos e olhos espantados usando um smoking azulado e levemente chamuscado, ao seu lado e uma mulher utilizando roupas formais com um blazer jogado no chão. As mãos no homem seguravam ao redor do braço da mulher uma bolha de água que cintilava um azul belíssimo e foi a primeira coisa que Nyco viu ao se aproximar. A cara da moça, entretanto, denunciava dor e com um ganido ela proferiu:
— Senhor Joon, não está parando de doer!
— S-senhorita Yue, eu estou fazendo meu máximo, mas minha formação nunca foi cura! — Devolveu o médico de maneira nervosa.
— Você está fazendo um bom trabalho, mas mantenha a calma. — Disse Nyco se aproximando.
O homem mais velho ergueu um olhar de desespero, como uma criança que tentava remendar um brinquedo que havia quebrado e fora flagrada pelos pais, contudo, a maneira que esse sentimento abandonou o seu semblante e transacionou para alívio foi cômica. Nyco notara aquilo, sentindo-se ainda mais responsável e com um grande peso nas costas. Ele engoliu em seco.
— Graças aos espíritos! — Disse, fazendo a bolha de cura se desfazer e senhora Yue urrar em dor. — Oh, céus!
Com um movimento exagerado de ambos os braços, a água caída ergueu-se vagarosamente, numa luta interna para retornar a formar de bolha que envolvia o braço de Yue.
— Diga... por favor... que o resgate está vindo! — Disse Joon ofegante e se concentrando ao máximo.
Droga. Pensou Nyco consigo mesmo, ao lembrar-se que havia deixado o rádio da patrulha em seu carro e no calor do momento se quer havia cogitado ligar para quartel general pedindo reforços. Não podia admitir uma falha tão básica na frente de um civil, afinal, era o herói naquele momento. Então firmou-se sobre os pés e voltou a visão para o prédio de labaredas dançantes, que pareciam braços o convidado para adentrar seu inferno interno.
— Tem mais alguém lá dentro? — Indagou Nyco para Joon, que não obteve respostas.
— Tem uma garota lá dentro, ela está... eu não o que ela está fazendo. — Disse Yue respirando profundamente para aliviar a dor. — É uma dobradora de fogo.
— Uma dobradora? Ela causou isso? — A resposta para sua pergunta foi um positivo com a cabeça. — Irei entrar, peço que fiquem em um local seguro.
— Tem alguma coisa lá com ela, tome cuidado, guarda. — Avisou a mulher ferida.
***
A verdade era que a Guarda Menor não deveria se envolver em qualquer situação relacionada a dobradores e quando Nyco disparou seu rifle carregado com balas de elemento condensado, esperava conter as chamas e ganhar algum controle sobre a situação. No entanto, a resposta das chamas foi desafiadora, mostrando que enfrentar um elemento tão poderoso quanto o fogo não seria tão simples quanto apontar e atirar. A explosão de água resultante do disparo foi um vislumbre momentâneo de esperança, mas logo se tornou claro que as chamas não seriam facilmente contidas. O fogo dançava com renovado vigor, desafiando as tentativas de Nyco de detê-lo com uma simples rajada d'água.
Diante do revés causado pela resistência das chamas, Nyco compreendeu que não poderia se dar ao luxo de hesitar. O tempo era crucial, não apenas para sua própria segurança, mas também para localizar e conter a dobradora de fogo responsável por aquela tragédia iminente.
Puxou de seu bolso um par de óculos grossos, no qual ficavam presos por um elástico na cabeça, permitindo ver melhor a cena tão tenebrosa que era aquele inferno. Ao tentar inalar um pouco de ar, a fuligem adentrou seus pulmões de maneira agressiva e voraz, rasgando a garganta ao ponto de fazê-lo tossir. O fogo parecia ter começado dos andares superiores e descido e pela explosão talvez a dobradora ainda estivesse no segundo andar, mas subir as escadas parecia ser uma tarefa difícil. Ele apontou novamente o rifle e a explosão de água abriu um caminho furtivo por entre o fogo.
No interior do prédio em chamas, o cenário era caótico e assustador. A fumaça espessa e tóxica envolvia tudo, dificultando a visibilidade e causando uma sensação sufocante e tornando a mobília local apenas miragens dançantes do que um dia já foram. O som de estalos e crepitações das chamas ecoava ao seu redor, intercalado com o ocasional estrondo de alguma estrutura cedendo sob o calor implacável. Cada passo era cauteloso, como se indo adentro da toca da fera. O ar estava impregnado com o cheiro acre de queimado, misturado com o odor metálico das balas de elemento condensado disparadas por seu rifle.
Foi então que ele a viu. O rosto estava coberto por uma máscara de raposa, mas os cabelos longos e pretos caíam soltos pelas costas, bastante sujos pelo fumaça e fuligem. Utilizava uma roupa grossa e preta, extremamente danificada e um dos braços estava exposto, com um sangramento. De costas, a mulher não notara a aproximação de Nyco. Ignorando novamente os sinais, quem olhasse atento veria que ela estava defronte alguém ou algo, mas a única reação do guarda foi apontar o rifle e gritar.
— Parada! Fique onde você está dobradora! — Ordenou.
A cena diante de Nyco era surreal e aterrorizante. A dobradora de fogo, com seu rosto oculto por uma máscara de raposa e seu corpo coberto de fuligem, parecia indiferente à presença do guarda. Seus cabelos negros caíam desalinhados pelas costas, e seu braço exposto exibia um ferimento sangrento, indício da violência da situação. No entanto, o que realmente capturou a atenção de Nyco foi a figura grotesca que emergia do corredor atrás dela. Uma criatura abominável, composta por tentáculos retorcidos que se contorciam como cipós, conectados a um grande globo escuro adornado com manchas roxas que se assemelhavam a olhos sinistros. Seis desses olhos, frios e sem vida, encaravam Nyco com uma intensidade arrepiante.
Mas o horror não parava por aí. Pendurado no segmento inferior da criatura, como se tivesse sido devorado e incorporado àquela monstruosidade, estava o corpo de um homem. Sua cabeça estava ausente, substituída pelo sinistro orbe negro que agora ocupava seu lugar. Era como se a própria escuridão tivesse se materializado na forma dessa aberração.
Nycolaern nunca havia conhecido o medo realmente. Quando foi abandoando pela família ainda jovem, conheceu a fome e também a angústia, mas de alguma forma serviram como combustível para que tentasse se sobressair além do que o próprio destino havia reservado a ele. Hoje fazia parte da Guarda Menor, era um respeitado funcionário público que tinha sobre suas costas o dever de ser o herói, ou era isso que queria acreditar. Mas quando os heróis têm medo, o que resta da maior da população?
A resposta para quem não conhecia isso era a imprudência. Ele levantou o rifle contra a criatura e o modo que suas mãos tremiam era a indicação que os horrores além do mundo físico podiam ser demais para sua cabeça. Os olhos da mulher escondidos pela máscara de raposa ainda estavam fixos no monstro. Ambos se moviam vagarosamente, assim como os carros na rua; um afastando-se e o outro se aproximando.
O chão cedeu nos pés da criatura, que caiu um andar para baixo. A mulher não hesitou, ao contrário de Nyco, e correu na direção oposta. O guarda foi pego de surpresa pelo ocorrido e seguiu a mulher ferida.
— Espera! — Gritou enquanto tentava acompanha-la.
Nyco sentiu o coração acelerar enquanto observava a mulher mascarada saltar pela janela quebrada, lançando-se para o vazio com uma destreza surpreendente. Ele ficou momentaneamente paralisado, incapaz de acreditar na audácia daquela ação. Enquanto isso, a criatura se aproximava rapidamente, seus tentáculos retorcidos agitando-se como serpentes famintas. Com o fogo crepitando atrás deles e a criatura se aproximando à frente, Nyco percebeu que não havia tempo para hesitação. Ele sabia que precisava seguir o exemplo da mulher e arriscar a queda pela janela para escapar da ameaça iminente.
Com um último olhar para trás, Nyco se preparou para o salto. Ele respirou fundo, bloqueando o medo que ameaçava paralisá-lo. Então, com determinação renovada, ele se lançou para frente, sentindo o vento cortar seu rosto enquanto atravessava a janela quebrada.
Com um último olhar para trás, viu a criatura mais uma vez ceder no piso fragmento enquanto era englobada por mais uma explosão. Então, o impacto chegou, suave e inesperadamente reconfortante. Nyco rolou no chão, absorvendo o choque com destreza treinada, seu corpo respondendo instintivamente aos desafios do momento. À sua volta, o cenário era de caos e destruição, com os escombros do prédio em chamas espalhados por todos os lados.
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