1. Spirit Fanfics >
  2. Greaser (Bakudeku) >
  3. Devia cortar esse cabelo

História Greaser (Bakudeku) - Devia cortar esse cabelo


Escrita por: Linesahh

Notas do Autor


OIOIOI!!!, tô com pressa, gente, mas se eu não postar esse cap hoje, provavelmente ser mais uma semana sem att pra vcs, então vou ser boazinha (de nada). Esse cap foi de longe o que mais me custou revisar, pois praticamente tive que reescrever várias cenas que na minha (nada) humilde opinião estavam fodidamente rasas.
Uma boa leitura <3

Capítulo 14 - Devia cortar esse cabelo


— Segura essa porra direito, Sero. 

Bakugou podia jurar que era a décima vez que dizia aquilo em menos de vinte minutos. Sero, atarantado, bem tentou firmar as mãos um pouco melhor, mas o tremor indiscutivelmente débil pregado a elas persistiu, assim como as falhas tentativas em contê-lo. O tique irritante das sobrancelhas hirsutas só corroborou ainda mais a aura desmazelada que parecia acompanhar aquele cara desde os primórdios de sua patética existência.

Bufou. Bêbado maldito. Enfiar dois litros de água e um sanduíche de queijo goela abaixo não adiantou de muita coisa... bem, ao menos ele não parecia prestes a cair duro no meio da oficina. 

Porque, querendo ou não, precisava de ajuda. 

— Tô tentando… — ele se engasgou com a saliva por um segundo, mas logo restituiu a fala: — Pronto, aí. Conseguiu agora?

O timbre comumente arrastado cingiu boa parte do recinto de forma igualmente paulatina, cujo alongar exacerbado das fricativas implicava certo incômodo aos ouvidos. Reconheceu também algumas poucas notas de preocupação vazando sob o sonido; certamente temia receber outra dura do chefe. Provando isso, o agarre ao corpo da moto tornou-se notavelmente mais rijo. 

— … Pronto. Finalmente, caralho.

Katsuki desabou no chão. As panturrilhas queimavam pelo tempo que passou agachado; um formigar insuportável, oriundo da alteração do fluxo sanguíneo em razão da posição adversa de outrora, varria desde as coxas até o dedinho do pé. Pôs a chave de fenda e o óleo mineral acima de um pano desbotado à direita e fisgou o cigarro à esquerda, pousado sobre a latinha de Coca. Deu uma longa tragada. Suspirou. Num movimento lânguido, jogou a cabeça para trás enquanto o pulmão expelia uma generosa batelada de fumaça para o teto.

Ótimo. Mais um serviço completo. Faltava pouco agora. Mais três consertos e poderia descansar.

Ergueu-se e tomou a direção da bancada. Estalou os dedos num “crac” alto antes de fisgar uma caderneta cuja aparência anosa poderia facilmente evocar o espectro decrépito de seu bisavô. Seguiu a lista de pendências até o fim da página e, ao detiver os olhos onde queria, riscou a moto­­­ do desgraçado que distribuía drogas na praça principal do bairro. Aquele serviço foi mais trabalhoso do que pensou que seria, mas teve uma puta sorte por já ter em mãos todas as peças necessárias. Aquele projeto de embusteiro capcioso não teria outra alternativa senão pagar muitíssimo bem.

Deku não acharia nada ético os tipos de clientes que atendia; sabia disso, mas não era como se pudesse escolher mediante um “dedo eclesiástico”: para Katsuki, serviço era serviço, e enquanto não tivesse conflitos ou refregas, estava tudo liberado.

Sero, ali perto, aboletou-se numa cadeira e lá permaneceu. Parecia enjoado. Considerando a quantidade de água que bebeu, não foi surpresa. Ele tinha ido mijar nos fundos da oficina duas vezes em menos de dez minutos e, pela forma específica que unia as pernas, acompanhado do raspar inquieto dos calcanhares sobre o piso, não duvidava que ele fosse aliviar o joelho de novo dali a pouco. Antes, porém, precisava da ajuda dele para pegar umas caixas no depósito e trazer até ali.

Não pararia agora. Ainda podia dar início aos reparos à caminhonete enferrujada do dono do barzinho da esquina. O velhaco o havia cobrado no dia anterior mesmo e não deu a mínima se a oficina estava passando por um conflito-interno-intricado-para-um-caralho, reiterando o trato que tinham.

Bakugou sentiu vontade de mandá-lo à merda? Sim, mas sabia que o cara estava certo. Tinha um compromisso para com ele e, sendo um adulto responsável, o cumpriria com a mais alta excelência que aquele mundo de merda — somada a sua aptidão nata e à qualidade das ferramentas — poderia dispor. E não era como se a falta de Kirishima e Ashido fosse deixá-lo no fundo do poço. Eles quebravam um galho? Pra caralho. Kirishima sabia de motores tanto quanto Katsuki? Até demais. Ele era um dos melhores motoristas que já viu em ação? Também. 

Mas foda-se.

Não voltaria atrás. Estava acabado. Ele e Kirishima não tinham mais nada a ver há muito tempo. No início, o achou irritante, depois até meio legal e maneiro, mas nas vésperas do fim… viu que ele não passava de um babaca. E a maldita cisma que ele tinha com Deku só terminou de foder com tudo. Já tinha falado mil vezes para ele, deixava claro diariamente o quão importante o nerd era para si e que nada que ele fizesse acarretaria um afastamento entre Katsuki e seu amigo de infância; porra, frisou tudo isso uma caralhada de vezes!

Mas, como sempre, Kirishima decidiu mandar todas as advertências para a casa do caralho e fazer o que bem entendia. Parecia uma criança. Katsuki odiava ser disputado feito um boneco, e era exatamente assim que se sentia quando aquele merda o mandava cortar os laços com Deku. Izuku não chegava a ser tão persuasivo… sim, ele reiterava com frequência querer uma desunião sua com Kirishima, mas nunca realmente deu um ultimato definitivo — talvez por saber que ganharia de lavada?

Deku… era gentil. Até demais. A ponto de achá-lo um idiota total, às vezes. A princípio, teve certeza de que ele acharia o fim de sua amizade com Kirishima uma ótima notícia. “Antes tarde do que nunca, Kacchan”, era a frase que deixaria a boca dele, acompanhada de um véu anuviado na fulgente verdolenga tomada por desafogo.

Mas não. Ele não o fez. Muito pelo contrário; Deku parecia desconfortável pelo rumo que as coisas tomaram. Quase como se sentisse culpa. 

Tsc. Que besteira dele. Izuku não tinha porra de culpa nenhuma, quem cavou a própria cova foi Eijirou e mais ninguém. Aquele nerd que nunca deixava de ser um idiota sensível… 

Mas sabia que não seria Deku se ele agisse de outra forma senão essa. Era o jeito dele. Seu traço intrínseco. Sua personalidade congênita. Dono de uma natureza gentil e altruísta que tirava Katsuki do sério, mas que, no fundo, gostava pra caralho; uma que se preocupava com todos antes de olhar para o próprio nariz, cuja tendência inculta e boçal o enfiava em diversas roubadas, mas isso era a última coisa que importava para aquele cabeça dura; uma dotada de confiança e imponência nas horas certas, capaz de deixar até mesmo Katsuki sem argumentação; uma que não se envergonhava em mostrar seus verdadeiros sentimentos, desde os mais singelos aos mais intrincados e reveladores. 

Uma… que não tinha medo de expressar amor.

A sucessão de batidas o arrancou abruptamente dos pensamentos. Batidas fortes e sem ritmo, vindas da entrada principal da oficina. Sero e ele se entreolharam. Antes de tudo, parou e raciocinou. Era de tarde. O arrombado da moto só passaria para pegá-la na manhã seguinte. Não esperava por ninguém.

Por um momento, pensou em Kaminari. Teria aquele puto finalmente resolvido voltar...? 

— Bakugou! Abre aí, caralho, porra! 

Ah. Kirishima. O outro puto. 

Não deu outra: o doce sentimento de cólera percorreu, num rompante, suas veias. Tomou posse do corpo e injetou adrenalina em todas as células; da “hercúlea” à mais mefítica. Uma coceirinha familiar atiçou os nós dos dedos. 

Sabia o que era isso. Aquela palpitação sadista nos punhos, quase análoga à toxicomania, significava apenas uma coisa:

Estavam louquinhos para encher de porrada a cara de um filho da puta.

Sem emitir uma palavra, pegou um pé de cabra apoiado na parede e seguiu em direção às portas de entrada. Antes que passasse pela máquina de bebidas, porém, foi parado por Sero. 

Corrigindo: surpreendente, Se­­ro foi capaz de lhe parar.

— P-Pô, Bakugou, que isso, cara? — o coitado fazia uma força sobre-humana para firmar os pés no chão. A despeito da erraticidade de seus dedos flácidos, porém, o agarre à barra da camisa de Katsuki portava uma firmeza atípica. — Deixe que eu vou lá falar com o cara, precisa ir não...  

— Ele tem que aprender a não voltar aqui e parar de encher a porra do meu saco. 

Sero engoliu em seco, mas insistiu: 

— Porra, não vai estourar os... os miolos do cara e aí ser preso depois, pensa nisso — o timbre ainda soava meio arrastado; no entanto, a urgência do momento o fez incrustar maior ímpeto em seus gestos. — Deixa que eu chispo ele, vai. 

A pressão dos dedos em volta do cano maciço afrouxou-se um pouco; os músculos tensionados dos braços defrontaram um desagradável processo de atenuação. O cedimento bateu à porta no momento em que um alto suspiro escapou dos lábios de Katsuki. 

— Um minuto pra fazer ele vazar — sublinhou, tom e feições empedernidas. — Ou nem precisa voltar.

Sero saiu, e Bakugou, ainda colérico, dirigiu-se para a caminhonete estropiada no canto oposto da oficina. Ela era a próxima da fila. Ouviu a porta de entrada abrir e fechar. Ótimo. Sero não vacilou e não deixou aquele porra entrar. Pelo menos uma coisa de útil aquele bêbado conseguiu fazer.

Buscando esfriar a cabeça, pegou a chave de fenda e enfiou-se no motor daquela coisa feia e enferrujada. Pelo que lembrava, o dono tinha reclamado sobre a bomba d’água ou alguma merda do tipo. Enquanto as mãos exerciam sua incansável — e escorreita — labuta, os ouvidos não se mantiveram inertes: colhiam cada particularidade e entoação das vozes dúbias, lá na frente. Pareciam discutir. O timbre dominante de Kirishima predominava, como sempre. Ele era o tipo de cara que achava que gritar e estufar o peito feito um gorila faria os outros lhe obedecerem feito franguinhos acuados… ok, isso até funcionava com uma gama considerável de perdedores, mas Katsuki estava longe de ser um fracote que se deixava intimidar. Já Sero… 

Ele teria que ser firme. 

É claro que estava blefando. Não mandaria Sero embora — não obstante o fato de ter proferido a ameaça há apenas dois minutos de uma forma nem um pouco jocosa, sim, mas relevaria o detalhe —, por mais que ele lhe desse nos nervos com aquele vício exacerbado pelo álcool. Ele era ótimo com máquinas e números. Cuidava das planilhas e gerenciava cada ganho e perda do negócio. Surpreendente? Talvez. Mas era assim que ele era. Uma parte pequena — e possivelmente tola — de Katsuki acreditava que todas as pessoas tinham algo de bom, mesmo que fosse o serzinho mais miserável da face da terra. 

A crua verdade era que precisava dele ali. Por mais “foda-ses” que proferisse a torto e a direito, sabia que era tolice fechar os olhos para a real situação em que se encontrava: não tinha mais ninguém. Kirishima saiu definitivamente de sua vida. Mina nem se fala; Bakugou nunca a considerou do grupo. Kaminari encarnou um criminoso de segurança máxima e estava fugindo incansavelmente de algo que não fazia a menor ideia do que era. Ok, tinha a ver com a garota do rock, isso era claro, mas até ela parecia ter desistido de procurar por aquele imbecil como uma tira psicótica. Fazendo as contas, havia completado uma semana que não a via por ali, enchendo o saco. O que rolou, afinal? 

Foda-se. Como se estivesse se importando com o que aquele merda fazia ou deixava de fazer. Se ele tivesse um pingo de consciência — o que achava improvável — não apareceria ali tão cedo. Todas as pendências daquele bosta tiveram que ser resolvidas pelo resto do grupo. Kaminari não ajudou em porra nenhuma. Se ele estivesse morto em uma vala, nem se incomodaria em mandar flores. Um cartão, talvez. Melhor: escreveria bem grande na lápide “descanse em paz, seu merda”.

É. Com certeza faria isso. 

Suspirou e limpou a testa com um pano úmido e meio fedido. Precisava trocá-lo o quanto antes; estava uma imundice. Em meio à pausa para um trago demorado, seus olhos, num vagueio, perderam-se sobre a oficina.

Ela não era ruim. Estava crescendo. Adaptando-se e evoluindo aos poucos. Mas… foi uma decisão precipitada. Uma ideia empolgante cujo combustível consistiu numa péssima fusão de imaturidade e inconsequência, compartilhada por ele e Kirishima deliberadamente. Porra, haviam acabado de sair do exército; nem conheciam a região e muito menos as pessoas daquela cidade, apenas tacaram o foda-se e foram atrás de seu objetivo. Não pensaram no futuro. Não pensaram que não eram profissionais e que não tinham responsabilidade suficiente para conviver em harmonia. Agora, deu no que deu.

O horizonte era incerto. Não sabia bem o que faria. Planejava terminar os últimos serviços e manter a oficina fechada até que tomasse uma decisão. Querendo ou não, era um investimento conjunto. Sabia que precisaria encarar Kirishima mais cedo ou mais tarde para resolver isso. Era inevitável. Mas não precisava ser agora. Que aquele merda sofresse mais um pouco. 

Só queria fechar logo essa etapa. Quanto mais tempo passava, mais pressionado era pelos muros invisíveis da decadência. Cobravam-lhe sem parar. Queriam que encontrasse uma solução viável. Estava na casa de Sero por agora, mas isso não seria eterno. Precisaria arrumar um jeito de se manter.

Faltavam apenas três consertos por agora: a caminhonete, outra moto e… a lata velha de Deku. 

Porra. Até hoje não deu um jeito naquele carro. Deku devia achar que era um merda total, só era educado demais para falar isso. 

Mas não era totalmente sua culpa. Muita coisa rolou naquele meio tempo, coisas que deixaram a oficina totalmente em segundo plano: o acidente com a Cara de Lua, a festa de merda na casa dela, o retorno dos boatos sobre Deku — principalmente esse último.

Sem embargo, consertaria aquela porra, nem que fosse a última coisa que faria no mundo. Apenas escolheu deixar por último por dois motivos simples: primeiro, os outros clientes estavam pagando, Deku não; segundo, queria focar cem por cento nos reparos àquela caranga ultrapassada e fazer um serviço perfeito. 

Além de que, uma parte sua — uma orgulhosa demais para admitir — queria fazer de tudo para agradá-lo.

Sim. As coisas estavam meio estranhas desde que deixou os dormitórios, há quase duas semanas. Viram-se várias vezes na biblioteca, jogaram e conversaram sobre coisas aleatórias, e até passou duas vezes no dormitório para pegar uma camisa que esqueceu por lá e o pente que havia evaporado. A camisa foi devolvida sem maiores incidências; estranhamente, porém, Deku garantiu não achar pente nenhum. Katsuki pouco se importou. Comprava outro em qualquer lojinha de conveniência por um dólar.

Parecia normal. Tudo indicava que sim, mas...

Eis a questão de merda: não conseguia dizer em detalhes ou apontar o que estava errado, mas podia sentir. E havia uma diferença.

Deku… estava mais distante. Ainda tentava se convencer de que o motivo derivou do fato de não ter ficado quando ele lhe pediu naquela vez, no estacionamento; quando ele insistiu que poderiam dividir o dormitório sem problemas, usando argumentos supérfluos (mas autênticos) primariamente concatenados ao quanto se divertiram juntos naquela uma semana compartilhando o quarto… 

Não poderia negar que foi bom. Ficar com ele lá, passar horas conversando e jogando como se voltassem à infância… foi bom. Muito bom. Tudo que envolvia Deku não poderia ser diferente de bom. 

E era justamente aí que estava o problema.

— Pronto, consegui mandá-lo embora.

Foi arrancado da intensa digressão com a entrada repentina de Sero.

Aliviou-se. Bem na hora. 

— Ele não tentou entrar? — apoiou o quadril na caminhonete, inspecionando o rapaz meio-bêbado. Nenhuma marca de soco. Menos mau.

— Tentar, tentou, mas eu disse que você ia estourar os miolos dele, então… — Sero deu de ombros. Voltou a sentar na cadeira encostada ao carro de Midoriya, soçobrando o corpo como se tivesse corrido uma maratona. Permaneceu de olhos fechados por um tempo até limpar a garganta rouca: — Vocês não vão se resolver nunca não? 

Bakugou voltou a mexer no motor. Uma sobrancelha loira avergou consideravelmente.

— Eu e Eijirou? — quis confirmar se ele realmente fez a pergunta imbecil que pensou ter ouvido. Sero assentiu. Num alto estalar de língua, redarguiu: — Porra, o que tu acha, sua anta? Eu não quero mais ver esse cara na minha frente nem pintado de ouro, quem dirá voltar a ser amiguinho daquele merda. Já deu. 

— Bem, ele foi um idiota. Ele é um idiota, na verdade — Sero corrigiu-se em meio a uma risadinha malbarata. Findado o desdém, o cenho franziu-se cadenciadamente. — Mas, sei lá. Ele… parece arrependido. 

— Que ele enfie o arrependimento no cu. 

A oficina caiu num extenso silêncio depois disso. Observava a silhueta de Sero em intervalos esporádicos. Aquele imbecil parecia estar em órbita, mas o comportamento não carregava traços esperados de embriaguez; não, ele só estava pensativo. Bakugou não lembrava da última vez que mantiveram uma conversa — se é que podiam chamar tal interlocução composta de frases lacônicas e ríspidas de “conversa” — tão longa e com algum sentido. O milagre da abstinência da bebida era real, quem diria. E haviam passado poucas horinhas desde a última vez que ele enfiou álcool na boca.

— Então você realmente não vai voltar pro seu apartamento?

— Não. 

— Tipo, nunca? 

— Não, eu tirei todas as minhas coisas daquele buraco porque estava com vontade de brincar de ser retardado — o sarcasmo foi um pouco agressivo demais, sabia. Forçado, amenizou num bufar: — É, nunca. 

Mais uma rodada de silêncio apático. Depois de cinco minutos, acreditou que Sero tivesse apagado na cadeira, mas o prorrogar posterior do assunto provou o contrário.

— Eu fiquei surpreso quando você voltou atrás e aceitou meu convite pra ficar lá em casa — Sero falou de repente. Assistia uma aranha escalar a perna da cadeira com olhos dispersos. — Achei… sei lá, que tinha odiado a ideia. 

— Não foi a melhor, mas era o que tinha pra hoje — resmungou.

Mais uma pausa. 

— Achei que você ficaria nos dormitórios, mesmo. 

Bakugou lançou um olhar para ele. As emoções presentes no ato beiravam à irritação e curiosidade com onde diabos ele queria chegar estendendo aquele papo.

— Eu nunca ficaria lá. Odeio aquele lugar de merda — disse, devagar. 

— Mas e o Midoriya? 

Agora sim, parou. Uma alfinetada irritante na nuca corroborou a escassez prematura de sua paciência. 

— O que tem ele?

Sero o olhou de um jeito estranho. Sob o formato triangular e a lume embriagada inamovível ao ônix, Katsuki reconheceu uma evidente aura de obviedade. 

— Ué. Achei que ficaria lá, com ele. Vocês são amigos do peito ou coisa parecida, não são? Até, tipo, mandou o Kirishima à merda por causa dele. 

— E daí? 

— E daí… — os ombros se encolheram. — Que é só isso.

Katsuki encarava-o, esperando por mais. O mais não veio. Sero voltou a fechar os olhos; provavelmente daria um cochilo cuja ruína viria na forma de um berro do líder, mandando-o levantar o traseiro dali e vir lhe ajudar. Mas ele não parecia ligar. E Bakugou também não o chamou.

Que cara estranho. Que conversa estranha. Por que aqueles caras simplesmente não cuidavam da vida deles e faziam o favor de parar de dar pitaco em sua relação com Deku? Sempre foi assim, sem exceção. Desde que Deku chegou na cidade, Katsuki não tinha mais paz; era a raiva de Kirishima, a malícia de Mina em cima do relacionamento dele com a burguesinha e a equanimidade volúvel de Sero e Kaminari. O último, admitia, era o menos pior. Denki tratava Midoriya bem quando o via. Não ficava com aquele pé atrás só porque Deku não era do “meio greaser” e dividia contatos com os mauricinhos e os jogadores. Nesse ínterim, o treme-treme conseguia ser mais sensato que os outros palermas. 

Bem, isso antes de decidir virar um fugitivo e desaparecer da face da terra.

Os reparos à caminhonete necessitaram um longo tempo. Sem perceber, a noite já havia caído. Sero lhe ajudou na última meia hora, o que foi bom, pois puderam terminar com aquilo. Beleza, mandaria uma carta no dia seguinte para os respectivos donos virem buscar suas tralhas — de preferência, com o pagamento bem à mostra. Só faltavam dois agora, graças a Deus. Trancou a oficina com mais vigor do que quando chegou pela manhã. Pegaram seu carro mesmo; considerando o fato de estar morando temporariamente com Sero, era mais prático — e seguro — ele pegar carona consigo, já que também não ia muito à faculdade. E ainda fazia um precinho camarada: dois dólares por viagem.

A saída do bairro foi feita em meio a um silêncio monótono. Incontível, ligou o rádio. Tocava um rock meia boca, de algum grupo novo que não conhecia, mas preferia isso a se perder em pensamentos sobre Kirishima, Deku, oficina e a porra toda. Precisava de paz de espírito. Sero, ali ao lado, parecia já tê-la conquistado: nem bem fechou a porta e embarcou no mundo dos sonhos. Maldito. Era a mesma coisa no apartamento:  quando não estava na oficina, o resto da vida dele parecia se basear em beber e dormir. 

Levou vinte minutos até chegarem. Como bem disse a Deku, a localização do apê de Sero aludia exatamente o meio da distância da universidade até o “bairro greaser”. Por estar mais perto, poderia até chegar mais cedo para as aulas, mas não conseguiu muitos ensejos de testar a novidade durante a semana, considerando a obrigação com a oficina…

O bairro de Sero não era sinônimo de um “mar de flores”, isso garantia. Ok, não chegava a ser pior que o seu, mas não queria dizer que era menos perigoso.

Isso, é claro, tinha motivo. E um não muito agradável.

O pessoal de Shigaraki ficava em peso naquelas bandas. Desconfiava que até Sero devia comprar bebida com eles sem saber. Nem contou isso pra Deku — aquele nerd teria um belo surto. Aí sim ele insistiria para Bakugou não ficar naquele lugar e o caralho todo. E queria evitar dor de cabeça; seja de Deku, seja dos caras de Shigaraki.

Obviamente que não demorou para que todos os greasers da redondeza descobrissem que “Bakugou Katsuki estava no pedaço”. Querendo ou não, era famoso por muitas bandas; senão pela perícia com as máquinas, pelo invejável talento em meter porrada. Ao menos, não entrou em nenhum conflito até então. Já havia visto pela janela alguns caras observando o apartamento lá da rua, talvez para certificar de que ele estava lá mesmo — só a presença do carro já era prova suficiente, mas quem disse que eles tinham cérebro? —; de resto, nada mais que isso. Pela primeira vez, todos optaram pelo bom senso: Katsuki ficou na dele, e, talvez por não representar nenhum tipo de ameaça ofensiva — por enquanto —, eles também ficaram na deles. Um ponto positivo. 

Para ser sincero, não queria intrigas com aquela gente. Levar um tiro era a última coisa que estava precisando no momento. 

O apartamento situava-se exatamente numa esquina “badalada”. Não conhecia nenhum vizinho, mas passava qualquer oportunidade: certamente não seria bem acolhido em nenhum sentido. Pelas frestas das portas, reconhecia vultos fuxiqueiros e bolorentos espiando-o quando subia e descia as escadas. Nas ruas, carrancas feias e cinzentas albergavam-no. Olhares do tipo “aqui não é tua área, desgraçado” abarcavam a tradução mais “garbosa” no ato. O máximo que Katsuki fazia era olhar feio de volta, arrojado em assumir sua aura mais intimidante. Agora sim podia afirmar que andava usando e abusando da brilhantina: embora não gostasse, o cabelo puxado para trás lhe dava uma estética mais ameaçadora que nunca. 

Não planejava ficar ali por muito tempo; era o que repetia a si mesmo, como um bordão acalentador. Logo iria embora.

Saíram do carro e, mesmo contra a vontade, ajudou Sero a entrar e subir os lances de escada até a porta correspondente. As espiadas fuxiqueiras estavam em falta naquele horário; um oferecimento do reality das nove. Katsuki até seria mais grato, não fosse a tarefa bosta de carregar aquele peso morto. Sero estava meio grogue, mas só de sono mesmo. Usou a chave que mandou fazer no início da semana, e adentraram o recinto escuro e abafado. A tia dele não estava, que bom. Não gostava de ver a cara daquela mulher. Atravessou a cozinha e foi direto para a sala, deixando Sero no sofá. Ambos os cômodos não possuíam divisória, salvo um pilar bem no meio cuja compleição, a seus olhos, era dispensável; não devia nem estar ali. 

Abriu uma janela ao lado da enorme prateleira de livros mofados. Queria um ar fresco naquele ambiente abochornado. Colérico, cingiu os olhos sobre as capas dos livros, a maioria deteriorada pelos fungos. Até as extremidades das folhas amareladas foram comidas pelos cupins. Aquilo comparava-se à visão do apocalipse para pessoas como Deku. Aparentemente, ninguém se importou em ler merda nenhuma, só em acumular e estragar. Deixavam um cheiro ruim na casa, mas não podia fazer grande coisa para reverter o cenário: a tia de Sero o proibiu de tocar em qualquer lugar que não fosse seu quarto. Algo como posse ou superstição. Bruaca burra. Katsuki deixaria aquele lugar brilhando como ela nunca viu em toda a vidinha de merda dela…

Enfim, estava com pressa. Era terça, dia de ver Deku. Não que tivessem um calendário com tudo marcadinho; Bakugou aparecia lá quando bem entendia, mas terças-feiras sempre representaram uma exceção. Não havia motivo, só era assim e ponto. Caso não pudesse aparecer por um longo intervalo, ao menos não faltava nesse dia da semana em específico — a não ser que estivesse muito doente ou, na pior das hipóteses, morto. 

Tomou um banho rápido e foi direto para o quarto. Virou automático permanecer o mínimo possível nos outros cômodos da casa. Tudo era virado, uma bagunça sem fim, roupas, sapatos e brinquedos antigos de Sero quebrados floreando cada maldito canto. A cozinha, puta merda; um cenário de terror. Nos armários, nada além de garrafas vazias, pela metade ou lacradas. Sempre teve um palpite, mas somente ao chegar ali Bakugou entendeu o porquê de Sero beber daquele jeito infrene: o exemplo veio da tia “responsável”, uma fodida tão bêbada quanto.

Vestiu uma camisa preta — que novidade —, jeans e a jaqueta de couro. Dessa vez, optou por descartar a brilhantina; afinal, havia acabado de tirar o produto no banho e não queria ter que lavar de novo quando fosse dormir. Lenço no bolso, carteira, isqueiro, cigarro e chaves. Beleza, estava pronto.

O horário que mais gostava da faculdade era à noite. Não havia tantos extras por perto para lhe encher, principalmente por ser início de semana. Podia estacionar em sua vaga habitual sem estar rodeado por mauricinhos metidos, jogadores nauseabundos ou nerds bizarros. Podia andar sem ser incomodado por um filho da puta que puxaria briga de graça ou ser parado por uma garota qualquer que mendigava trocados para impedir que um curso extracurricular de merda não afundasse. Era tudo mais silencioso e calmo. Noite abafada, daquelas quase etéreas, cujas notas de umidade e bafejos zéfiros prometiam uma garoa fina na madrugada. 

Uma noite perfeita. Pelo menos, torcia para ser.  

Funcionava como um passo a passo. Katsuki não entrava mais na biblioteca de forma abrupta. A alguns passos de distância da sala, diminuía o ritmo e aguçava os ouvidos. Até a respiração tornava-se morosa, requestando um silêncio cabal. Às vezes ouvia vozes; em outras, a mudez imperava; e, se não fosse nenhum dos dois, o tec-tec da máquina de datilografia regia o domínio. No primeiro caso, prestava muita atenção para saber com quem Deku estava falando. Dependendo da pessoa, nem entrava. No segundo, tinha que esperar um pouco mais e checar discretamente o que ele estava fazendo lá dentro para estar tão silencioso. Às vezes, Deku simplesmente afogava-se ao remanso, organizando livros, jogando sozinho ou até mesmo lendo esparramado num grande puff. De toda forma, bandeira verde. O terceiro caso era igualmente benéfico: Deku nunca gostou de ter companhia enquanto digitava naquela máquina estranha, temendo perder a concentração e errar um caractere, então era certo que ele estava sozinho. 

De todas as opções, a noite atual elegeu o terceiro caso. Sendo assim, de ombros relaxados, Bakugou entrou.

Agora, o motivo de fazer todo esse passo-a-passo só para entrar na porcaria da biblioteca? Katsuki não gostava de pensar. Mas sabia que o vezo teve princípio no dia em que pegou Deku e a Cara de Lua aos beijos. Depois daquilo, foi incapaz de não oscilar um pouco antes de ir entrando como se a casa fosse sua. Ficou cauteloso. Discreto. Ojerizado.

E não queria, de jeito nenhum, pensar no porquê. 

Deku não o notou de primeira. Ele tinha uma boa desculpa: estava de costas. Bakugou acendeu um cigarro e não se incomodou em anunciar sua presença. Ao menos, não ainda. Escolheu zanzar pela sala, examinando o que estava diferente. Nada, praticamente. Deku trocou as ficções-científicas pela astrologia nas prateleiras laterais e optou por botar a fantasia em ribalta; bem no centro. Contou dois puffs a mais. 

Observou-o de longe. Assim como a biblioteca, Deku parecia o mesmo de sempre: cabeleira verde-escura patuscada, estatura sadiamente compenetrada e ombros meio curvados acima da máquina. Tec-tec. Tec-tec. Podia sentir o cheiro de concentração a quilômetros. Sabia, porém, que outro cheiro passaria a prevalecer, e Izuku também estaria ciente dele em exatos… 

— Kacchan — ele nem se preocupou em virar o rosto; continuou digitando. Katsuki sorriu, cigarro sustido entre os lábios. Contou dez segundos. — Tá aí há quanto tempo?

— Cheguei agora. 

— Ah… — referiu que ele não estava prestando muita atenção, então contornou a mesa. A biblioteca constava de pouca iluminação naquele horário, mas sabia que Deku gostava assim. De toda forma, nem a maior concentração de caligem o impediria de ver os óculos horrorosos que aquele nerd usava. Eram de leitura, mas ainda assim ele evitava usar na frente dos outros. Bakugou, como sempre, era uma exceção; a despeito de não poupar zoações sobre o assunto. Os olhos verdes galgaram além das teclas e páginas, fixando os vermelhos logo acima. Como que lendo seus pensamentos, Izuku avisou de pronto: — Nem vem me chatear. Minha visão é péssima à noite. 

Um sorriso sacana abriu-se no rosto, por hora, poluto. Defendeu-se:

— Eu nem falei nada ainda, Deku. Só tô aqui pensando como você parece o rei dos nerds neste momento. Dá até pra criar uma gangue de merda e te botar como líder… — fingiu refletir. 

— Uau, que gozado — Izuku pouco ligou.  O semblante apático, porém, mudou um pouco ao olhá-lo novamente. — Ei, Kacchan… pode pegar água pra mim? 

Franziu o cenho.

— Por quê? 

— Porque estou com sede. 

— E a sua garrafa? — apontou. 

— Tá vazia, e eu tô a mais de uma hora aqui… 

— Não sou teu empregado, Deku. 

— É logo ali, Kacchan, você só tem que virar dois corredores... — ele insistiu. 

Em seus dias normais, reclamaria com Deku, diria que ele era preguiçoso pra caralho e iria pegar a porcaria da água. Todavia, por algum motivo ábdito, outras palavras saíram de sua boca antes que pudessem processá-las: 

— E o que eu vou ganhar com isso? 

Não soube se foi pelo sentido da frase em si ou a intensidade imposta na articulação dos fonemas; o caso é que, talvez, tivesse soado mais sério do que pensou. Os dedos de Deku brecaram sobre as teclas. Os olhos encontraram os de Katsuki, de novo. Um véu de ínfima confusão perpassou o verde-vivo quando ele inclinou a cabeça. 

— Hum… você quer algo específico? 

Bakugou esfriou. Total. O coração, outrora quietinho e gozando da labuta dos pulmões em inspirar e expirar a fumaça tóxica, passou a bater um pouquinho rápido demais. Sentia as sovadas lestas ao pé do ouvido. Uma vibração estranha percorreu seu corpo, tipo, cada pedaço dele. Teve início nos pés, subiu à coluna e alcançou o último fio de cabelo; este já arrepiado. Uma ansiedade atípica dimanou no centro do peito. As palmas suaram.

Que desgraça era aquela? 

Incapaz de encarar aqueles olhos redondos por trás daquelas lentes mais redondas ainda, limitou-se a dar-lhe às costas e soltar, num resmungo encalistrado: 

— Vou pensar. 

Enquanto pegava a água, a mente perdia-se sobre as opções de desejos que tinha à disposição. Mas o que pedir a Deku? E que valesse um copo d’água? Talvez estivesse levando aquilo meio a sério demais...

Quando retornou, foi com um fulgor decidido que requisitou os olhos de Deku. Já tinha sua resposta. 

— Você vai pausar essa merda e jogar uma partida comigo — apontou para o tennis for two por cima do ombro. — Esse é meu pedido. 

Deku, a um passo de entornar o copo, brecou o movimento. Por um instante, pareceu que ele recusaria quando desceu os olhos ao trabalho ainda incompleto, mas acabou por apenas suspirar. Tomou a água e ergueu-se. Os óculos foram retirados. 

— Tá bom. Mas vamos rápido com isso. 

— Só se você me vencer. 

— Eu te venço na maioria das vezes, Kacchan — ouviu a voz dele à suas costas enquanto ocupava-se em arrumar os assentos em frente ao jogo. Deku voltou com o cinzeiro. Porra, tinha quase esquecido. Ligeiro, perscrutou o chão. Por um milagre, não sujou nada.

Começaram a jogar. Nos primeiros minutos, tiveram apenas o silêncio como companhia. Ok, não totalmente: a trilha sonora jocosa do joguinho e o pio distante de uma coruja advindo de uma janela escancarada integravam a composição tais como instrumentistas coadjuvantes. Impacientes, reclamavam seu maestro; no caso, o diálogo, mas nem ele ou Deku pareciam dispostos a concedê-lo por hora.

Não se importou. Só pediu para jogarem a fim de não ir embora logo. Quando Deku precisava usar a máquina, o serviço normalmente demandava todo seu tempo, pois tinha a ver com o jornal da UA, e as coisas tinham que ficar prontas bem rápido. Longe de querer atrapalhá-lo, é claro — apenas queria permanecer mais alguns minutos com ele, mesmo que quietos e vagando por seus próprios pensamentos enquanto aproveitavam o jogo; comandos esmagados pelos dedos ágeis, respirações amenas, olhos presos à telinha. Tinha coisa melhor que isso?

Obviamente, porém, que Deku tomaria seu lugar de tenor mais cedo ou mais tarde.

— Como foi seu dia? Parece cansado — Katsuki foi espiado de soslaio.

— Oficina — limitou-se a responder. Droga, quase perdeu um ponto. Tinha que se concentrar. 

— Isso eu sei. Mas o que você fez? 

— O que será que se faz em oficinas de automóveis, Deku? Tomar chá? — ironizou, mas logo voltou ao timbre normal. Já era usual de sua pessoa dar uma resposta impolida e depois amenizar, mas só com Deku. Com o resto, estacava na grosseria e foda-se. — Cuidei de uma moto e uma caminhonete, nada tão complicado. E antes que você pergunte, eu vou terminar sua lata-velha — acrescentou assim que Deku abriu a boca. 

— Ah, eu não ia perguntar isso — ele sorriu, sem graça. — Leve seu tempo, Kacchan, não estou com pressa... bem, mesmo já fazendo mais de um mês… — murmurou a última parte. 

— Quê? 

— Que o quê? — ele piscou. 

— O que você murmurou aí? 

— Nada. 

— Fala na minha cara, Deku, não fica nos murmúrios. 

— Mas eu não disse nada — ele reiterou, usando aquela voz irritantemente inocente.

— Então foda-se — resmungou e voltou a atenção ao jogo. Odiava quando Deku fazia isso. 

— Então, eu ia perguntar do Kirishima — Izuku mudou de assunto naturalmente, para a crescente cólera de Katsuki. Notou que ele quis esconder a hesitação, mas transpareceu em seu tom de qualquer jeito: — Ele… foi lá de novo? 

— Foi. Sero o mandou embora. Sorte a dele, ou eu teria enchido a cara daquele puto de porrada. 

Deku ficou quieto, sem olhá-lo. Por dois minutos inteiros, a composição sonora ambiente foi incumbida à orquestra natural-artificial outra vez, sem maestros ou tenores.

Depois, um suspiro. 

— Eu sei que você não quer falar disso, mas eu acho que… 

— Deku — o cortou. — Nem tente. 

Mas ele tentaria. Ah, se tentaria. 

— Tá, eu sei que ele foi um imbecil, e que pra você foi a gota d’água, só que você não acha que seria melhor… 

— Deku, esquece. 

— Mas...

Es-que-ce

— Me ouve, Kacchan!

— Porra, qual é o seu problema? — pausou o jogo. Foda-se se estava prestes a fazer um ponto. Queria olhar diretamente para os olhos daquele que, no momento, não estava tendo a maldita capacidade de compreender. — Por que tá mostrando compaixão justo por esse cara que só te fez mal? Você sempre me pediu para me afastar dele e do resto, e agora vem com essa conversa de merda? Eu juro por Deus que não tô entendendo você. 

Os lábios de Deku se comprimiram. Ele voltou os olhos para o jogo, evitando de toda forma o vermelho ardente. Os ombros caíram e o agarre ao controle esmoreceu de um segundo para o outro. Katsuki não gostava de vê-lo daquele jeito. Era Deku em sua forma desventurada; fraca; impotente. A forma que ficava quando algo não saía como planejado, quando o problema da vez excedia, em peso e volume, sua infindável gama altruísta.

E estava certo. As próximas palavras que saíram da boca dele foram ditas num tom extremamente baixo: 

— Eu só... não quero ver você assim. 

Franziu o cenho. Que conversa era aquela agora?

— Assim como? 

— Sozinho. Sem nenhum amigo para quando precisar. 

— E você não é a porra do meu amigo? 

— Sim, eu sou!... — Izuku tratou de assentir. — Eu sempre estarei aqui para quando você precisar, mas sei que não posso suprir tudo que gira em torno de você. E… você é tão difícil, Kacchan — admitiu num suspiro. — Você não confia em ninguém e trata mal qualquer um que te dá um oi.

— Então você quer que eu me torne amiguinho de todos os extras que cruzarem o meu caminho? Ou que eu ignore tudo que o merda do Kirishima fez e volte a falar com ele como se ele não tivesse tentado te bater? É isso que tá dizendo? 

Izuku respirou fundo. 

— Eu só… estou preocupado que você se sinta só. 

— Eu não estou sozinho, Deku. Eu tô com você aqui — odiava depender de truísmos, mas o momento estava pedindo. — E quando você não tá perto, eu prefiro me virar sozinho, não preciso de ninguém me enchendo. 

— Ok — ele desistiu. — Eu só queria ajudar. 

— Então me ajude de uma forma que realmente me interessa. 

Deku não respondeu mais. Continuaram a jogar. 

Não era como se estivessem brigados. Ele e Deku discutiam e se desentendiam em praticamente 80% dos diálogos trocados, mas tais refregas incômodas nunca passavam de um bufar impaciente ou uma cara chateada. Não durava nem cinco minutos. Naqueles quase dois anos, a briga mais séria que tiveram foi na época em que a Cara de Lua estava hospitalizada e passaram uma semana inteira sem se ver — isso até o dia da festa, onde, na teoria e prática, salvou Deku. 

Mas era chato. Entrar em qualquer conflito com Deku era chato, mesmo quando a razão estava sob seu poder. Ambos eram tão diferentes... e ainda assim não conseguiam se desprender daquela amizade. Nunca. Se sonhar indeliberadamente com a hipótese já era razão suficiente para bloquear o ar que os mantinha vivos, pensar nela equiparava-se a um verdadeiro infarto fulminante — quem dirá praticá-la. Sim, os seis anos que passaram separados podiam ser usados como argumentos para afirmações do tipo “vocês conseguem viver longe um do outro, sem problemas”, todavia, ele e Deku sempre continuaram amigos, ainda que regrados com a distância e a falta de contato. Porra, era isso que não podia faltar: o laço de amizade. Um laço cujo nascimento deu-se naquela cidadezinha reles de fim de mundo, ignorada nos mapas e insignificante demais para qualquer um dignar-se a citar o nome; mas, ainda assim, um laço com nome, cor, cheiro, tato e, o principal, significado.

Tudo começou lá. E sabia que, não importasse quanto tempo passasse, nunca se esqueceriam se tudo que viveram naquele lugarzinho que chamavam de lar. 

A trilha característica a demarcar o fim da partida ecoou pela biblioteca silenciosa. Katsuki perdeu. Não se moveu de imediato. Deku também não. Ficaram quietos. Apenas quietos.  Respirações morosas. Olhos presos à frente. Mãos inertes sobre o colo, cujo domínio ainda abarcava os controles. Lentamente, pousou o seu no piso. Era sua deixa. Mas... não se levantou. Não queria. Não ainda. O relógio apontava pouco mais de onze horas. Era tarde. Deku precisava terminar suas obrigações, mas também não manifestou um mero sinal de que sairia dali. 

— Kacchan — Deku falou primeiro. — Pode me prometer uma coisa? 

— Depende. 

Deku fez uma expressão cansada, mas não se deixou estressar: umedeceu os lábios e limpou a garganta:

— Não bata no Kirishima se o encontrar — fez seu pedido. — Isso só pioraria as coisas. E não quero que se meta em apuros ou que se arrependa depois. 

— E o que te faz pensar que eu ficaria arrependido de bater naquele merda? 

— Kacchan… — ele não queria suplicar. — Só faça isso. Prometa pra mim. 

Katsuki não desviou os olhos. Deku também não. O famigerado embate teria seu início, mediante o desafio cujo perdedor se daria pelo primeiro a desviar.

Mas... não foi bem o que aconteceu. Por algum motivo, seus ouvidos se abafaram. Não captavam ruído algum. O cantar dos grilos, o piar contínuo da mesma coruja, a tração distante de um pneu sobre o asfalto desnivelado... nada. Não ouvia nada. O desafio já não mais existia. Não para Katsuki. A luminosidade da biblioteca, como bem observado quando entrou, era tênue, mas não completamente obscura a ponto de incomodar a vista; poderia contar cada sarda do rosto à frente se quisesse, uma a uma. 

Não pensou no pedido dele. Era como se não importasse. Sua raiva por Kirishima não importava. Nada importava além do rosto de Deku, tão próximo e tão nítido, cujos traços guarneciam aquele toque de inocência que nunca desapareceu desde seus longínquos tempos encarnando um pirralho chorão. O pontilhar de sardas no rosto alvo era delicado e ao mesmo tempo facultava-lhe um charme que não saberia explicar nem que o pagassem. O verde dos olhos, vívido e brilhante em contato com a vermelhidão devassa que cobria os seus próprios, interpretavam a seiva oculta sob o tecido das folhas mais recônditas e airosas, cujas árvores magníficas sobrepunham até a mais desesperada fome em arrancá-las. As mechas verde-escuras e rebeldes, com uma ou outra recaída sobre os olhos, assumiam a culpa por tão traiçoeiro delito cujo teor presenteava-lhe daquela estética mesclada entre infantilidade e tentação, tão fodidamente atraente aos olhos das garotas…

E aos seus, também. 

Não pensou no que estava fazendo ao erguer a mão direita e capturar uma mecha entre seus dedos. Não era a primeira vez que os tocava; já havia puxado aqueles cabelos mais vezes do que podia contar em seus tempos encenando um pirralho babaca, mas os detalhes, as esmiúces do tato de agora, representaram uma gustação puramente inédita. O raspar acidental das unhas sobre a ossatura zigomática da maçã incitou um tremor incontível à toda palma; ameaçou perecer, mas sustentou-a. A maciez dos fios contra as tampas calejadas de seus dedos o fez sentir como se não fosse digno de tocá-los; de manuseá-los. Mas o fez. Afastou-os para trás, além da ponta da orelha avermelhada, abrindo caminho para que seus olhos contemplassem o rosto do estudante de jornalismo sem barreiras, vedações ou empecilhos.

Cada pedaço de seu corpo vibrava. O fenômeno tinha origem justamente em seus dedos, cujo contato com o cabelo de Deku oscilava e flutuava numa delicadeza símile ao dedilhar celestial que um anjo consagra à harpa. O coração? Perdeu o ritmo há tempos. A mente? Vazia. Turva e oca. Pensamentos zero.

Mas a própria mão o parou. E se afastou daquele rosto. Podia jurar que a pele passava por um processo de derretimento, tamanha a causticidade que a engolfava, como se a tivesse mergulhado numa piscina de ácido. Não checou, porém. Só tinha olhos para Deku; para seu rosto febril, para as pupilas dilatadas, sem desviar das suas. Ele estava paralisado. Os lábios jaziam entreabertos, perceptivelmente ofegantes, buscando dizer alguma coisa. Nada saiu. 

Bakugou, por fim, suspirou baixo:

— Teu cabelo cresceu demais. Devia cortar. 

Ergueu-se e deixou a biblioteca. Sem dizer mais nada. 

 

▪️▪️▪️

 

Mais tarde, deitado seminu sobre a cama, Bakugou não conseguia manter-se quieto.

Deviam ser perto das onze horas, mas não sentia um pingo de sono. Mesmo depois de ter passado o dia todo ralando na oficina, coluna toda fodida depois de horas recurvado sobre aqueles motores pútridos, as pálpebras sequer triscavam. Porra, precisava dormir. Amanhã seria outro dia cheio. Tinha que levantar-se cedo para impedir Sero de virar uma garrafa inteira no bucho antes do café da manhã. Tinha que passar no mercado para comprar mais brilhantina. E ainda tinha que terminar a lata velha de Deku… 

Ah, Deku. Sempre Deku. 

Claro que ele seria o principal móbil de sua atual insônia. A mente simplesmente não conseguia parar quieta. Recapitulava cenários distantes e atuais, conversas divididas entre eles desde pirralhos até a vida adulta, num atolado de reminiscências cuja origem e razão desconhecia, acompanhadas de toques amigáveis e olhares complexos comutados em cada ocasião. 

Não conseguia. Simplesmente não conseguia tirá-lo da cabeça. 

O que estava acontecendo? Achava que podia superar isso, que era capaz de manter-se apático, mas errou fodidamente. Acumulou uma confiança que não seria propriamente concretizada. E agora ficava naquela agonia. Tentava não pensar no motivo de estar ali, no apartamento de Sero dentre todos os lugares, mas a maldita consciência parecia disposta a atormentá-lo até as entranhas.

Sim. A princípio, tinha recusado a oferta de Sero. Nem fodendo que ficaria com um cara bêbado como ele, foi o que pensou ao ouvir a proposta. Naquela época, surpreendeu-se ao pegar-se sinceramente cogitando continuar sua rotina com Deku nos dormitórios, e isso, pela primeira vez, não foi ironia. Realmente considerou a ideia. Mas... tudo acabou no momento em que o viu naquela noite, na biblioteca.

Quando o pegou beijando Uraraka Ochaco. 

Não soube. Não soube o que sentiu, mas não foi bom. Foi... foi tão ruim, tão forte e sufocante, tão fodidamente venenoso, que a primeira coisa que desejou, no fundo da alma, foi se afastar de seu melhor amigo, a pessoa que mais estimava naquele mundo. Queria-o longe, longe de si e de sua vida, algo que nunca, porra, nunca desejou antes.

E isso o assustou pra caralho. 

Não conseguiu pensar em outra alternativa senão soltar que iria morar com Sero. Não saberia o que aconteceria caso não o fizesse. Foi a melhor escápula que pôde usar como fuga naquele momento. Ou, talvez — e muito provavelmente —, teria dito algo que magoaria Deku profundamente. Ir embora foi a melhor opção, sabia disso, mas... não esperava que ele pediria para que ficasse. Aquilo lhe desarmou. Não esperava. Realmente não esperava. E a cambalhota que o coração deu, seguida de um sentimento quente e elétrico ao constatar que Deku queria sua companhia, o fez fugir de novo. Fugir de medo. Fugir antes que algo acontecesse, algo que não fazia ideia do que era; uma coisa intangível, mas ao mesmo tempo amedrontadora. Lá no fundo, a certeza que tinha era apenas uma: caso a coisa eclodisse, as chances de reversão seriam nulas e as consequências prescritas à relação deles, eternamente indeléveis.

Remexeu-se na cama. Desvencilhou o lençol das pernas e o jogou no chão. Queria ficar livre. Clarear os pensamentos. Um copo d’água viria a calhar, mas não queria passar pela sala e ver o peso morto no sofá que era Sero. Estragava seu ânimo ver alguém numa situação tão fodida. Ficaria ali mesmo. 

Por que os pensamentos mais inoportunos eram os mais recorrentes? Queria socar o próprio cérebro por fazê-lo passar por essa situação de merda. Não importa o que pensasse, não importa o quanto fechasse os olhos e tentasse apagar a maldita memória do consciente: lá estava a cena que antecedeu sua saída da biblioteca, horas antes.

Ainda conseguia sentir o peso místico e inescrutável no ar. A sensação etérea de estar flutuando num sonho. A carícia dos fios macios em contato com seus dedos. Sua respiração presa e a parcialmente ofegante de Deku. O dilatar patente dos olhos verdes, encobertos pelo véu abissal da atmosfera anômala. Conseguia sentir as batidas desenfreadas do próprio coração, cujo prelúdio antecedeu o arrepiar violento na nuca antes de murmurar uma merda qualquer sobre cortes de cabelo e deixá-lo sozinho.

Que merda foi aquela? Sério, que merda foi aquela?

Esfregou os olhos copiosamente. Os braços desabaram sobre a cama em sincronia com o suspiro longo que lhe escapou os lábios. Fixou o teto feio, cheio de manchas escuras na tintura branca-sépia, descascada nos extremos. O peito subia e descia num ritmo rápido. Estava ofegante de novo. Isso só de lembrar. Imagine se Deku estivesse ali agora? Estaria tendo um infarto. Ou até… algo pior. 

Não deu outra. O corpo esquentou. Nasceu no peito, desceu pelo estômago e por fim dominou todo o baixo ventre. Uma onda de calor o atingiu.

Não, não, não. Não deixaria isso acontecer.

Sentou-se e saiu da cama. Foi em direção à janela minúscula ao lado do armário. O vidro era emperrado demais para subir, mas conseguiu ao menos metade. Inspirou todo e qualquer ar puro que os pulmões pudessem engolfar. Uma garoa fina recaía sobre as ruas sujas, conforme especulou mais cedo. Foi bom: serviu para trazer um frescor ao clima abafado. Mas isso não chegou nem perto de aliviar seu corpo.

Sempre foi um cara muito quente — no sentido literal e figurado da palavra —, então não era surpresa dispensar camisas e calças quando se recolhia para dormir. Só ficava nu quando tinha certeza de que não seria incomodado. Foi o que aconteceu quando a velha lhe deu chaves para trancar seu quarto, ao completar doze anos. No apartamento com Kirishima, o fazia poucas vezes, pois lá não tinha tranca e — como bem relatou a Mina semanas antes — não eram poucas as vadias que via circulando por lá na madrugada. Já aconteceu de ser surpreendido às três da manhã por uma mulher completamente bêbada, que disse ter se perdido a caminho do banheiro. Puto pelo sono interrompido, expulsou-a no ato.  

O quarto atual sofria do mesmo problema: não havia trancas. Qualquer um podia entrar quando bem quisesse, mas ao menos tinha o consolo em saber que, ali, não tinha problema. Sero estava sempre dormindo e a tia dele mal dava as caras. 

Assim, tirou a peça íntima e retornou para a cama. Deitou-se lentamente, de costas, e ficou parado. Olhos no teto. As mãos não se moveram: permaneceram quietinhas sobre o acolchoado.

Quem dera a mente fizesse o mesmo... 

Aquilo tudo era o quê? Abstinência sexual?

Pensou em Camie. Ela o interceptou no estacionamento, logo após deixar Deku na biblioteca. Meio aéreo, Katsuki mal notou a figura esguia apoiada em seu carro. Fazia um bom tempo que não se viam. A última vez foi na festa da Cara de Lua, se não se enganava. Fizeram umas coisas não muito éticas num dos quartos de hóspedes, mas com toda a confusão rolando lá embaixo, não chegaram na parte boa. 

Ela comentou que ficou sabendo por uma amiga sobre sua mudança de endereço, e Katsuki retrucou que ela estava atrasada nas novidades. Mandou-a sair dali e já foi entrando no carro. Não queria papo. Ainda era vítima do atordoamento visceral oriundo do que aconteceu minutos antes, entre ele e Deku. A mão direita, a mesma que o tocou, não parava de suar. Esfregava-a no tecido do jeans a cada dois segundos. Um cigarro foi prontamente aceso. 

— Tô livre agora — a mulher apoiou-se na porta, bem no vão onde o vidro jazia rebaixado. O brilho sugestivo nos olhos dela só não era mais malicioso que os lábios cheios, pincelados de um vermelho intenso e principais responsáveis por deixar qualquer cara louco para prová-los das mais sórdidas formas. — Não tá afim?

Infelizmente para ela, naquela noite Katsuki estava longe de ser um desses caras.

— Se eu quisesse, teria te procurado — replicou, paciência zero. — Desencosta.

— Pode ser no carro mesmo. Você parece tão tenso, Bakugou… — a mão esbelta deslizou por seu braço, unhas floreadas num tom carmesim puxado para o vinho. — Vamos para aquele lugar onde não têm luzes na via. 

— Camie, desencosta da porra do meu carro. Agora.

Seu tom devia ter soado bem assustador, pois ela obedeceu de imediato. Bom para ela, ou não se importaria em pisar no acelerador e levá-la junto. A boca dela abriu para dizer uma última coisa, mas não lhe deu tempo: a ré foi bruta e logo acelerou, deixando aquele campus que, no momento, transmutava seu pior carcerário.

Agora, se questionava se não teria sido melhor aceitar a oferta daquela vadia. Embora negasse, seu corpo bem começava a sofrer as consequências pela seca que já durava boas semanas. Em verdade, não pensou muito no assunto ultimamente, ocupado demais com a merda toda dos boatos sobre Deku e sua briga com Kirishima. Mal lembrava da última vez em que se tocou. Talvez devesse fazer. Afastaria aquele calor que certamente não vinha só do clima. A mão direita, instigada pelo pensamento, até se moveu. Deslizou lentamente pela coxa, subindo em direção à virilha.

Mas… hesitou.

Lembrou da noite no drive in. Mais especificamente, um cenário onde havia ele, uma cama, mãos ativas e movimentos erógenos do quadril num travesseiro. Sabia o que vinha depois. E se ocorresse o mesmo agora? 

Seu corpo não pareceu ligar. Depois de cogitar a ideia, não tinha volta: já estava desperto. Todos os membros queimavam, claramente necessitados. Sentia um calor familiar envolver seu baixo ventre. Mais abaixo, pulsava. 

Engoliu em seco. Estava sozinho. Só ele e o quarto. As luzes não estavam acesas. Estava escuro. Estava escondido. Ninguém saberia. E poderia esquecer tudo na manhã seguinte. Seria só desta vez. A última de todas. Definitivamente. Não precisava sentir culpa. Não precisava sentir nada. Não… não haveria problema. 

Ficaria tudo bem. 

Primeiro, acariciou a base. Um arrepio gostoso percorreu sua coluna. Usou só os dedos, cofiando a extensão com as pontas. Um raspar de unhas o fez gemer bem baixo. A glande já começava a umedecer. Esfregou o polegar sobre ela. O quadril impulsionou no automático. Bem de leve. Soltou o ar. Desceu um pouco mais, em direção aos testículos. Deu uma ínfima atenção a eles. As pernas se afastaram. Dobrou um pouco a direita. O corpo relaxou. Voltou ao membro ereto. Após algumas carícias suaves, enlaçou-o. 

Por fim, fechou os olhos e deixou a mente vagar.

A primeira visão foi o verde vibrante. Vívido e radiante como tinta fresca. Depois, o sorriso gentil. Fulgente e embriagante. Em seguida, nos confins da massa amorfa cuja mente jazia instaurada, reconheceu os cachos cor de fauna e as sardas que mais pareciam estrelas salpicadas num horizonte plano e macio. Porra, que nostalgia...

A mão se movia mais rápido conforme as lembranças evocadas tornavam-se mais nítidas. Focou-se nos toques — tanto os que ofertava ali, no presente, quanto os congelados no passado. Um movimento simplista da mão bagunçando fios sedosos com chasco e carinho. A urgência de um enlace preocupado em seu braço quando ele o impedia de fazer algo idiota. E então, a mais recente: um abraço. Um corpo menor. Tremores que exibiam pura vulnerabilidade, protegidos em seus braços. A respiração quente e soluçante em seu ombro. O raspar acidental dos lábios macios em seu pescoço ao findar do contato. 

Os pés esticaram, veias saltadas, vítimas das contrações de prazer que percorriam todo o corpo viril do rapaz sobre a cama. Os olhos não se abriam de jeito nenhum, cerrados e concentrados. Os gemidos saíam baixos, meio sufocados, mesmo que ninguém fosse ouvi-lo. Enquanto uma mão se movia sem parar, a outra circundou a glande inchada e gotejante. Encharcou-a e subiu para o tórax. O mamilo esquerdo foi capturado pelos dedos grudentos. Acariciou e esfregou. Sentiu-o eriçar. Fez o mesmo com o outro. Aumentou o ritmo lá embaixo e gemeu com o estímulo duplo. Estava chegando ao limite. O baixo ventre queimava como o inferno, borbulhando, fervendo em excitação. 

Não conseguia parar. Era como antes. Quando adolescente. A época em que se sentiu sozinho e abandonado, sofrendo pela falta do melhor amigo. Deku, Deku, Deku, era só nisso que pensava. Dominava sua consciência. Tirava sua razão. Os quadris moviam-se para cima, de encontro à mão lépida. Delirava. Ofegava. Gemia hora baixo, hora alto. A voz doce e bondosa preenchia seus pensamentos. Ecoava em sua cabeça. Os sentidos embebidos pelo prazer distorciam o timbre inocente, fazendo o amigável “Kacchan” soar de uma forma arrastada e erótica. O nome se repetia. Seu nome. Na voz de Deku. Chamando e gemendo. Implorando por ele. Várias e várias vezes. 

Atingiu o limite. Fogos de artifício explodiram atrás de seus olhos. O quadril estremeceu e o prazer desmanchou em volta de sua mão. Ensandecido, continuou a movê-la. Grunhia contra o colchão, dentes cerrados e pernas contraídas. A intimidade parecia carne viva, mas apertou a glande até que a última gota saísse, esfregando-a, surrando-a, delirando pelo orgasmo... 

E então, a porta abriu. 

— Porra! — o corpo sofreu um solavanco. Sentou-se. As luzes foram acesas e seus olhos arderam. Completamente indefeso, a única coisa que pôde fazer foi fisgar a ponta do travesseiro e cobrir seu pênis destruído. Adiante, ancorada na porta, uma mulher com cara de morta o encarava. 

A tia de Sero. 

— Sua desgraçada, não sabe bater? Mas que caralho de casa que só tem gente mal-educada! — gritou, bem puto. Uma onda de ódio o atingiu; adrenalina pura percorria suas veias.

Estava ofegante. Suado. O rosto devia estar todo vermelho e os lábios mordiscados. Pupilas do tamanho de bolas de gude. Suas pernas ainda sofriam os tremores da explosão de prazer que o atingiu; espasmos contínuos e incontinentes na região das panturrilhas. Além disso, jazia nu da cabeça aos pés. Era óbvio o que fazia ali. 

Sentiu medo. Mas não da tia de Sero. Não era como se fosse o fim do mundo ser pego se masturbando por uma mulher qualquer. O motivo de seu susto era outro. O motivo de seu coração estar a um passo de explodir em meio ao ritmo freneticamente violento de batidas era outro. 

Sentia como… como se tivesse sido pego no flagra cometendo um pecado gravíssimo.

Maldição. Era para tudo ser mantido em segredo. Só ele, a escuridão e o silêncio seriam testemunhas de seu ato devasso. Planejava dormir imediatamente após gozar, para assim esquecer o que foi feito e acordar na manhã seguinte, convencendo-se de que tudo aquilo, aquela recaída insânia, não passou de um sonho.

Agora já era. 

Praguejando dezenas de palavrões, jogou o travesseiro longe e levantou-se da cama, pouco se importando com a nudez. Nunca foi um cara tendencioso ao pudor, então foda-se. Foi até a janela, onde sua cueca estava caída. Enquanto a vestia, sentia os olhos da mulher — vermelhos de ressaca, é claro — percorrendo seu corpo sem o menor escrúpulo. 

— Eu já vi muitos homens pelados, se quer saber — ela disse sem muito interesse. 

— É claro que já viu — retrucou, grosseiro, segurando-se para não a chamar de um nome nem um pouco educado. 

Ela não se importou. Virou-se e foi saindo. 

— Tem um rapaz lá embaixo querendo te ver — comunicou. — Disse que é seu amigo. 

O coração de Bakugou parou. Total. Conseguiu até mesmo sentir a alma deixando seu corpo. O medo, ponderou minutos mais tarde, tinha tendência a deixar as pessoas meio burras, pois ignorou todos os motivos que apontavam que não era a pessoa que estava pensando que era. Naquela hora, apenas um nome ecoava em sua cabeça. Um que lhe fazia querer morrer. 

Deku. 

Caralho, não podia ser ele. Não agora; não assim; não depois do que acabou de fazer...

Por que ele estava ali? Teria vindo tirar satisfações pelo que aconteceu na biblioteca? Questionaria que porra foi aquela, assim como Bakugou fez a si mesmo? Estaria bravo? Enojado? Ou, talvez, preocupado consigo? Achando que Katsuki estava com algum problema de cabeça? Porra, o que ele veio fazer ali? Como chegou no apartamento de Sero se não tinha porra de carro nenhum? Usou a bicicleta toda fodida? Conhecendo Deku como conhecia, não duvidava nada...

Não podia vê-lo. Não agora. Não enquanto ainda estivesse com as mãos e o abdômen sujos de seu pecado. Meu Deus, foi uma péssima ideia, uma ideia burra e insana, onde estava com a cabeça para ter se deixado levar pela própria loucura? Não conseguiria esconder. Seus olhos o entregariam. Deku saberia. E sentiria nojo. O abominaria para sempre. Não, não podia vê-lo.

De jeito nenhum. 

— Como ele é? — sem pensar, saiu atrás da mulher, vestindo o short e a camisa sincronicamente num timing impressionante. Ignorou a figura de Sero ainda inconsciente no sofá. — Ô, velha — chamou-a. — Como é esse cara que tá lá embaixo?

Ela estava parada diante da bancada. Abria uma cerveja. Os olhos fundos de ressaca perderam-se em divagações.

— Hum… motocicleta e cabelo vermelho.

Alívio. Puta que o pariu. Não era Deku. Graças a Deus. 

Mas também não era como se fosse a melhor notícia do mundo.

— Que porra o Eijirou tá fazendo aqui? — praguejou, murmurando consigo mesmo. — Será possível que vai me seguir até o quinto dos infernos? 

Decidido, foi em direção à porta, farto daquela perseguição. Daria um basta naquela putaria, de uma vez por todas. Se Kirishima não entendia a expressão “cai fora”, seus punhos apresentariam o significado com o maior prazer, com demonstração e tudo. Quando colocou a mão na maçaneta, porém, uma voz invadiu seus pensamentos:

“Não bata no Kirishima se o encontrar. Prometa pra mim”. 

O corpo tensionou. O impasse foi profundo. Deku. Só ele para lhe fazer parar, mesmo longe. Até sentiria raiva desse poder que ele tinha sobre si, mas já era acostumado demais para reclamar. O que faria? Descer e descontar sua frustração na cara daquele filho da puta ou ouvir o pedido do nerd? A primeira opção deixaria sua amizade com Deku ameaçada, sem dúvidas… E sabia que não teria autocontrole o suficiente para permitir-se apenas conversar com Eijirou. 

Desistiu. A mão largou a estrutura metálica. Não faria isso. Não o magoaria. Nunca teria coragem de fazer isso. 

Reprimindo a vontade que tinha de descer e dar na cara de Eijirou, tudo que fez foi girar nos calcanhares e se afastar da porta. Quando passou em frente ao sofá, cujo espaço era preenchido pela tia de Sero — sentada sobre as pernas do sobrinho —, limitou-se a dizer:

— Não atenda. Se ele insistir, jogue um balde de água ou alguma merda do tipo. Só não deixe ele subir. 

Ocupada em desfrutar de sua cerveja enquanto ouvia o rádio chiado acima da mesinha de centro, ela só deu de ombros.

— Tá bem.

Voltou para o quarto. Fechou a porta e nela permaneceu encostado por longos minutos. Fixava a cama desfeita e os resquícios de esperma sobre os tecidos pastéis, provas de seu crime.

Suspirou. Claro que a maldita culpa viria lhe atormentar. Por que foi fazer aquilo? Por que cedeu de novo, depois de tantos anos? Prometeu que nunca mais se tocaria pensando nele, prometeu isso no dia em que deixou a antiga cidade e ingressou no exército. Aqueles três anos de ensino-médio pensando em Deku de forma estranha quando se aliviava não passaram de um delírio que, felizmente, conseguiu superar. 

Não podia deixar voltar. Não agora. Não com ele estando tão perto e não a centenas de quilômetros de distância. 

Não. Não seria vencido. Era mais forte que isso. Não deixaria esse deslize estragar tudo. Fodidamente, não deixaria.

Marchou até a cama e arrancou tudo dela: lençóis, travesseiros e fronhas. Jogou-os no chão e pegou novas roupas de cama no armário. Levou as sujas para o banheiro, enterrando-as no cesto que seria mandado à lavanderia no fim de semana. Lavou o rosto e mijou. Não encarou seu reflexo, sequer uma vez. Não conseguia. Limpou com cuidado seu “amigo”. O maldito estava acabado depois da sessão violenta com as mãos. Exagerou um pouco, admitia. Mas amanhã estaria normal. 

Voltou ao quarto. Fechou a porta e apagou as luzes. Caiu na cama. Permaneceu de roupa dessa vez, só… por precaução. O cheiro característico de fluidos almiscarados sumiu após espirrar um pouco de colônia no quarto. Estava tudo certo. Amanhã, não passaria de um passado distante. Não tinha feito nada. Nada de errado. Deitou e dormiu. Apenas isso.

E, com tais pensamentos rebobinando repetidas vezes, finalmente pegou no sono.


Notas Finais


O próximo capítulo, gente... eu juro que tô sem coragem de revisar, juro de verdade. Se o negócio atrasar um mês, vcs já sabem o motivo: foi a minha covardice.

Favoritem e coloquem a fic na biblioteca pra n perder atualização (pareço uma matraca repetindo isso? sim, mas vou continuar :D).
E antes que eu esqueça, vcs viram a one-shot que a sahh postou no feriado??? Tá LINDA, uma obra de arte, vão lá dar amor pra ela:
https://www.spiritfanfiction.com/historia/steampunk-bakudeku-23964126

Até um dia~


Gostou da Fanfic? Compartilhe!

Gostou? Deixe seu Comentário!

Muitos usuários deixam de postar por falta de comentários, estimule o trabalho deles, deixando um comentário.

Para comentar e incentivar o autor, Cadastre-se ou Acesse sua Conta.


Carregando...