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História Gringa Grudenta - A concentração de Aglaia


Escrita por: BriasRibeiro

Notas do Autor


Traduções nas notas finais.

Eu literalmente fiz meu amigo sueco traduzir uma entrevista em sueco da Pia Sundhage para escrever esse capítulo e os próximos. Sabem o que isso se chama? Dedicação.
Não minha, do meu amigo sueco. Ele é muito dedicado e eu sou preguiçosa.

Capítulo 12 - A concentração de Aglaia


As alterianas demoram mais do que Crista previra para chegarem, o que acontece bem quando ela está retocando o protetor solar nas costas de Camila. Lumia vem até as duas com um olhar todo malicioso.

– Para de me olhar assim, porra – ela reclama, dando uma última esfregada no ombro da portuguesa e, sem ninguém esperar, Lumia se joga deitada de bruços na canga das duas.

Ei, Crista! Vem passar a mão em mim também – ela simula um tom manhoso, arrancando risadinhas de Camila e um olhar confuso de Crista.

– Cê entendeu que que ela disse? – Camila assente, abre a boca para dizer algo e volta a rir, escondendo o rosto entre as mãos – que que ela disse? Eu num falo gringuês direito não.

O olhar malicioso de Lumia dá uma boa dica a Crista, mesmo que Camila se recuse a responder. Ela chega até a imitar um ahegao por um momento, antes de cair na risada, rolar pra fora da canga e se levantar. Os outros se juntam ao trio logo depois, todas carregando algo grande nas mãos: Aglaia e Carmen com uma caixa de isopor, Kyveli com uma bolsa grande e dois guarda-sóis, Storm com algumas cadeiras de praia. O grupo rapidamente monta acampamento e se introduzem à portuguesa, que fala um inglês perfeito. Faz Crista sentir inveja, se sentir burra, por ser a única do grupo que não fala inglês. Ela se encolhe, de cara fechada e irritada consigo mesma debaixo do guarda-sol, enquanto Carmen retoca o protetor solar nas suas costas.

Tá tudo bem, Cris? – ela indaga, percebendo a postura da outra.

Sim.

Nós... interrompemos algo? – Carmen torna, inocente.

– Quê? Não – Crista tenta traduzir uma frase em sua mente. Como se diz “vocês” em inglês? É realmente “you”, a mesma palavra que no singular? Crista tem a impressão que já ouviu Stergios explicar sobre isso, mas ainda é tão estranho... como ela faz para especificar que está falando de mais de uma pessoa, e não somente de Carmen? Ela decide que é melhor parar de tentar criar teorias para algo que simplesmente não sabe a resposta e manter o diálogo simples – you are nice.

Não vê por estar de costas, mas Carmen tem os olhos brilhando igual um filhotinho de cachorro.

Você também é legal – diz ela e se levanta, tendo terminado de passar o protetor na garota.

– Não, tipo... everyone – tenta esclarecer.

Todas elas te acham legal também – Carmen diz, docemente. Ela enfia a mão na caixa de isopor e tira uma latinha de Sprite – aqui, você não bebe álcool, né?

Crista assente com a cabeça, agradecendo e aceita a latinha, enquanto Carmen pega uma de cerveja para si. Elas assistem enquanto Lumia e Aglaia se divertem como duas crianças, jogando água uma na cara da outra, por vezes tentando se empurrar na água, enquanto Storm flutua relaxada na água não muito longe delas e Kyveli... onde está Kyveli?

Subitamente, ela se levanta no água às costas de Aglaia, gritando “SHARK ATTACK!”, abraça ela por trás com força e se joga na água de novo sem lhe dar chance de reagir. Crista ri baixinho. Ela fica de olho até as duas voltarem à superfície, Aglaia com cara de assustada, ofegante e tossindo água, o rabo-de-cavalo parcialmente desfeito e completamente ensopado, enquanto Lumia e Kyveli riem da cara dela.

– As tuas amigas parecem crianças – comenta Camila, rindo baixinho.

– Elas são engraçadas.

Por fim, Kyveli vem até a areia buscar aquela sua bolsa enorme, tira uma bola branca de vôlei de dentro e volta para a água sinalizando às outras que venham também. Crista, Carmen e Camila a seguem e logo todas estão jogando vôlei na água, com Aglaia, Lumia e Kyveli de um lado e Camila, Carmen e Crista do outro. A única a não participar é Storm, que continua flutuando com as ondas do mar, totalmente alheia ao que acontece ao seu redor. De vez em quando Crista olha na direção dela, preocupada se ela não desmaiou e está se afogando.

Ao final de quase uma hora, uma Crista cansada decide sair da água e ir descansar. As outras continuam sua partida de vôlei, dessa vez brincando apenas de dar toques uma para a outra e tentar manter a bola no ar o máximo de tempo possível. A brincadeira é interrompida não muito depois por uma Kyveli dando uma cortada na direção de Storm e acertando a cara da colega, que levanta furiosa da sua sessão de flutuação e dispara atrás da outra, gritando irritada algo que Crista não entende enquanto as outras riem como hienas e Kyveli, a mais desvairada do grupo, tenta fugir.

Por fim, Aglaia começa a sair da água e andar numa linha reta na direção de Crista, que engole em seco, surpresa. A visão de uma loira malhada e tatuada caminhando como uma deusa da sensualidade em sua direção é simplesmente estonteante. Faz Crista ficar um tanto consciente demais do seu físico magrelo, bem diferente das outras garotas do time. Ela quase considera começar a botar mais esforço nas sessões da academia. Quase. Aglaia torce o cabelo enquanto anda, distraída, deixando a água escorrer pelo seu corpo e vem se sentar numa das cadeiras de praia que seu grupo tinha trazido, bem ao lado da canga onde Crista descansa.

Precisa de alguma coisa? – ela pergunta, fazendo Crista notar que passou os últimos minutos babando nela.

– Tô de boa. Não – ela responde, mas sua mente grita “meu deus arranca a minha calcinha”. Ela tem vontade de se dar um soco na cara por isso. O pior é que não consegue cortar contato visual: fica ali secando as pernas definidas, o corpo escultural, as feições suaves e inocentes da estrangeira, que lhe sorri gentilmente e não parece ver nada de errado com a situação.

Eu nem cheguei a perguntar. Você gostou do bolo?

“Que bolo?”, se pergunta Crista, distraída demais com o... sutiã da outra. Ou melhor, o que há debaixo deles.

– Ahn... quê...? – tenta dizer algo, mas todos os seus pensamentos viraram um grande peido mental. Aglaia segue o olhar de Crista até o próprio corpo, e então torna a olhar para Crista.

Ah, essa é a Alma Luce e seu fiel corcel, Kiki!

– É... quê? Quem?

Os personagens da minha tatuagem – ela explica, sorridente – vi que você tava olhando pra eles. Se chamam Alma Luce, a deusa-guerreira, e Kiki. Eu costumava amar os gibis deles quando criança! Ah... agora você deve estar me achando infantil, mas eles foram realmente muito importantes para mim, eu...

Aglaia segue num longo monólogo sobre como as aventuras de Alma Luce nos gibis a ajudaram a construir seu caráter e desenvolver apreciação pela arte e pela leitura, ao que Crista não entende nada. Ela apenas sorri e assente na maior parte do tempo, perdida demais para tomar qualquer outra atitude. E não é como se Aglaia a estivesse incomodando: é fofo vê-la tão animada assim. A última vez que a vira, ela estava toda tímida e agindo tão retraída por causa do seu pedido atrapalhado de desculpas, mesmo quando foram dividir aquele bolo, ela... “Ahhhhhhhh”, Crista compreende, abruptamente. “Aquele bolo”.

E também teve aquele episódio em que... – enquanto Aglaia descreve, Crista percebe seu rosto levemente umedecido. “Ela tá chorando?”, se pergunta, surpresa, e começa a fazer um esforço maior para entender, tentando decidir se é um choro “positivo” ou “negativo”. Quando Aglaia finalmente se dá um segundo para respirar, Crista pergunta:

Você tá bem?

– Estou ótima! Porque a pergunta? – ela diz e sorri daquele seu jeito doce.

– Huh... okay – Crista continua encarando a garota, atenta. Aglaia, por ainda esperar uma resposta à sua pergunta, não diz nada e assim, as duas ficam ali, se encarando em silêncio por um bom tempo, como duas tontas.

E então? Porque a pergunta? – Aglaia finalmente repete. Crista tenta se lembrar de como se diz “chorar” em inglês.

Você estava... huh... tipo... – ela tenta fazer uma imitação barata de bebê chorando, esfregando os dois olhos com os punhos de maneira falsa enquanto imita um “unhéééé” numa voz exageradamente aguda. Aglaia solta risadinhas.

Chorando? – pergunta – desculpe, eu me esqueço que você não fala inglês muito bem... hã... deu pra entender que eu disse? – Crista assente, confirmando – ah, que bom! É só que, você sabe... A Alma Luce é realmente importante pra mim.

– Aham.

Aglaia oferece um sorriso largo, o que faz o coração de Crista errar uma batida. É incrível como a cada nova vez que se veem, ela tem uma impressão diferente da loirinha: a princípio, era a maldita gringa irritante que não largava do seu pé e em quem teria adorado meter um tapa na cara, principalmente depois dela ter arrebentado seu tornozelo. Depois, era a garota mais linda e estilosa que já havia visto, que mesmo sem tentar parecia uma modelo, ou uma protagonista badass de cinema, e de quem teria adorado levar um tapa na cara. Então, uma garota atrapalhada, tímida, insegura e gentil, tentando fazer o pior pedido de desculpas do mundo por algo pelo qual ela já tinha sido perdoada, de maneira que mais parecia um pedido de casamento. E agora, é uma menina alegre falando sobre... Crista não sabe bem o quê, mas sabe que ela parece tão inocente quando fala, chega a ser fofo, senão assustador pelo fato de começar a chorar sem aviso, e é ao mesmo tempo ingênua e gostosa pra caralho. Seu jeito faz Crista pensar em uma criança contando sobre os seus desenhos preferidos – algo ao qual ela estava muito acostumada em casa, tendo sido a irmã mais velha de três, especialmente com Luana.

Hey. Tudo bem se eu te adicionar lá no facebook?

– Huh... eu não... facebook – ela gesticula um grande “não” com os braços, querendo explicar que apesar de ter uma conta no facebook, nunca entra lá e só a mantém pelos outros aplicativos que pode logar rapidamente usando sua conta abandonada do face – eu... huh... tenho Messenger.

E twitter? Instagram?

Ah, pode crê. Sim – Crista busca seu celular no meio das coisas de Camila e envia seu user do Instagram e twitter pelo Messenger privado de Aglaia, ao qual ela tem acesso através do grupo e praticamente imediatamente recebe notificações em ambas as redes sociais de uma nova solicitação de seguidora. Crista a aceita e segue de volta e, no momento seguinte, Aglaia se pendura em seu pescoço com a câmera do próprio celular aberta.

Hora da selfie! Sorria! – ela anuncia, pegando Crista de surpresa e tira várias fotos em sequência.

Crista sai com cara de confusa ou piscando em metade delas e só nas últimas tem tempo de ajeitar a expressão do seu rosto.

[...]

O Sol já começara a se por quando Crista retorna ao hotel, não por vontade própria: havia recebido mensagens de Renata em seu whatsapp falando sobre uma reunião pré-torneio ou algo assim. Quando chega ao seu andar, logo percebe uma aglomeração no final do corredor e é fácil reconhecer que algumas das garotas estão usando jaquetas da seleção brasileira. Mesmo sem essa dica, Crista teria entendido que é ali que a tal reunião está acontecendo. Silenciosamente ela se junta à pequena aglomeração.

Esther Stormare, a treinadora da seleção, faz um discurso em inglês, por vezes botando alguns termos em um português com sotaque no meio, enquanto sua assistente traduz o que é dito nas pausas da treinadora. Crista passeia os olhos pelo ambiente apertado enquanto ouve o discurso, procurando ansiosamente por alguns certos rostos conhecidos. A treinadora expõe o calendário dos jogos e treinos, chama a atenção de Crista quando começa a dar as boas-vindas às estreantes da seleção. Ela explica que as exibições das novatas nesse torneio amistoso podem ser decisivas para que sejam convocadas para as Olimpíadas de Tóquio, mais para o meio do ano, e que a Algarve Cup será importante para que as jogadoras mais novas adquiram experiência e conheçam melhor o estilo de jogo da seleção. Crista reconhece o próprio nome, assim como o de Renata, entre as estreantes citadas.

“Eu quero ir para Tóquio”. O pensamento se apodera da mente da garota e nesse momento, ela decide que vai dar o seu sangue em cada segundo de jogo que tiver a chance de jogar.

Quando a treinadora dispensa as atletas, Crista logo dá espaço às outras passarem. Procura por Matilde, Cristiana, Abelha, Débora, Andreia Alvares entre as atletas. Sente o coração apertar com a chance que pode ser única em sua vida.

– Gisele, Renata, Crista, Mariângela, Vick. Vocês ficam. Gostaria de falar com vocês – a treinadora chama, bem no momento em que Matilde passa bem na sua frente, conversando com outra jogadora veterana. Se ouve gritar “nãããããão!” dramaticamente dentro da sua mente. Quase morrendo de ansiedade, ela espera todas as jogadoras saírem do quarto para conseguir entrar, onde encontra as outras quatro atletas chamadas.

– Opa – Crista cumprimenta Renata e a encara maliciosamente – e aí? Como foi?

– Como foi o quê? Cê sumiu do nada e me deixou com a conta, sua vadia cara-de-pau – a zagueira dá um tapa na mão estendida de Crista e revira os olhos, fazendo a amiga rir baixinho enquanto resmunga um “eita porra, verdade”. Não demora muito para que a treinadora norueguesa e sua assistente se acerquem do grupinho.

– Então, meninas – Esther começa, num português quase tão cheio de sotaque quanto o de Aglaia naquela vez que tentou ler um texto de desculpas para ela – primeira vez em a seleção, no é?

– Sim, senhora – uma das garotas confirma, com um sorrisinho eufórico contido. Crista só espera que o fato do seu coração estar praticamente entrando em colapso não esteja tão visível em seu rosto quanto está nessa garota.

– Eu já vem observando vocês por muito tempo. Muito técnica, muito talentosas. Esse torneio ser chance de se provarem – a mulher fala lentamente, como se tentando se lembrar das palavras enquanto as diz – primeiro jogo, Gisele e Renata começam. Tática defensivas em o treino amanhã. Mariângela e Vick, atentas também.

“Todas essas garotas são defensoras?”, se pergunta Crista, incerta de ter realmente compreendido.

– E eu, psôra?

– Teste físico e treino de jogada ofensiva. Preparar para substituir Matilde.

– MATILDE?! – Crista quase explode, sobressaltando Renata e a outra garota ao seu lado. “Puta que pariu, eu sou reserva da FODEROSA MATILDE?!”, e uma pressão que ela nunca conheceu antes para jogar futebol recai sobre os seus ombros, seguido pelo momento da realização de que provavelmente não jogará ao lado da sua heroína. A decepção ao perceber isso afunda em seu âmago.

Isso significa que Matilde estará jogando como meia em vez de atacante nesse torneio, não é? Significa que no Brasil de Esther Stormare, Matilde é meio-campista. De repente, ela vê suas chances de ter alguma oportunidade no campo diminuindo até quase desaparecer. Se fosse qualquer outra pessoa no mundo, teria desejado uma contusão para a companheira, mas não consegue desejar isso logo para a rainha Matilde.

Quando Crista volta a si, percebe uma norueguesa a encarando com as sobrancelhas levantadas e um meio-sorriso divertido.

– Psôra, cê tá falando que eu num vou jogar, né? Nem fodendo que cê vai tirar a MATILDE do jogo – Crista sente os olhos das outras garotas, da treinadora e da assistente, todos fixos nela.

– Precisamos jogar em equipe, preparar próxima geração – ela explica – sua técnica, refinada, preciso saber como usar, tática pode mudar. Nesse torneio Matilde joga de meia-atacante, com o tempo descobrimos onde, como você encaixa melhor, mas por enquanto usamos sua posição original. Não se preocupa, você joga.

Crista assente, ainda atônita pelo peso da responsabilidade recém-descoberta e as garotas são dispensadas. Ela ouve as outras novatas cochichando sobre irem pegar um autógrafo de Matilde e das outras estrelas, mas não as acompanha. Precisa deitar, urgente.

Ao adentrar seu quarto, ela joga a bermuda e as roupas íntimas úmidas na pia, toma um longo banho para se livrar do sal e da areia no corpo, se seca com a toalha branca e felpuda disponibilizada no banheiro do hotel e veste uma roupa velha de lã para dormir. Crista se deixa cair sobre a cama pensando nos acontecimentos de hoje. Ela foi chamada de última hora para integrar o elenco da seleção brasileira na Algarve Cup. Sua primeira vez com a camisa canarinho. Retomou contato com a pessoa mais próxima de uma amiga que ela tinha no São José. Conheceu uma portuguesa bonita. Beijou uma europeia pela primeira vez na sua vida e uma gringa pela segunda. “Será que isso vai virar tradição?”, se pergunta, achando graça. Viu e foi abraçada pela loira odonto mais gata de todas as faculdades de odontologia, DE BIQUÍNI – detalhe importante.

Havia sido um dia bom, exceto por aquela última parte: “substituta da rainha Matilde”. Como alguém no mundo pode esperar que uma pessoa como Matilde possa ter uma substituta? Ela é uma dessas jogadoras insubstituíveis. O Pelé de Saia. Não que ela use saia no campo, quem inventou esse apelido era meio lelé das ideias, mas a comparação é válida.

Talvez com o tempo a treinadora mude de ideia.

E tendo isso em mente, Crista logo adormece.

A brasileira acorda cedo no dia seguinte. Cedo até demais, o Sol sequer nasceu. Ela tenta voltar a dormir, mas não sente sono algum. Impaciente, pega seu celular na mesa de cabeceira e checa a hora: 5 e meia da madrugada. Bufando de raiva de si mesma por não dormir, ela se levanta, se troca e desce para o restaurante do hotel, mas o café da manhã ainda não começou a ser servido. Suspirando em decepção, ela procura por alguma padaria ou lanchonete aberta nas redondezas usando o google maps. Encontra algumas que abrem às 6 horas. Marca a que parece mais perto no mapa e decide ir andando para lá.

Ela ainda espera por uns vinte minutos na porta do estabelecimento, impaciente pela falta de conexão com a internet, e ouve suas músicas baixadas no cartão de memória para passar o tempo, até um homem de bigode grisalho, touca de cozinha e avental abrir a porta e olhar para Crista com a sobrancelha levantada, como quem pergunta o que ela está fazendo sentada no chão bem à frente da sua porta, espantando a clientela. A brasileira se levanta e adentra o estabelecimento, murmurando um “bom dia” ao homem e não ouvindo o que ele diz em resposta devido aos fones estourando uma série de funks cariocas dos anos 90.

– Morro do Dendê é ruim de invadir, nóis cos alemão vamo se divertir... – cantarola a garota, indo direto ao balcão. Aquele mesmo homem que abriu a porta vem atendê-la e ela tira o fone de um dos ouvidos – opa, e aí mano. Sussa?

– Bem-vinda à...

– Eu dô maior conceito, pra os amigos meus... – ela sem querer interrompe o homem cantarolando o trecho da música – opa, foi mal. Me distraí. Cêis têm pão de queijo aqui, por acaso?

– Perdão, não.

– Af mano. Tem o quê?

Crista acaba pegando um sanduíche de um tal “fiambre” com queijo e um copo de cappuccino, além, é claro, do wifi da padaria. Ela considera que o sanduíche parece muito com um misto-quente e se pergunta o que diabos deve ser fiambre. Quando termina de comer, relaxa contra a poltrona e resolve checar suas redes sociais.

Crista nunca havia visto tantas notificações no instagram num único dia. Ela fica encarando a tela boquiaberta, tentando entender que merda deve ter acontecido enquanto dormia. Ela abre a aba de notificações do Instagram e começa a descê-las. Várias pessoas pedindo pra seguir, like, comentário...

 

@05aglaia.mccartney marcou você em uma publicação.

 

Num estado de desespero interno, Crista clica sobre a notificação e aquelas selfies que tirara com Aglaia no dia anterior aparecem num álbum.

 

05aglaia.mccartney vejam só quem eu encontrei em Portugal!!!! @agrandecomedoradecasada vamos pra praia mais vezes qdo voltarmos pra Alter ;* #novaamizade #garotastalentosas #futebolfeminino #momentosdepaz #selfie #praia #AlgarveCup2020

 

São mais de 30 mil likes e 300 comentários.

 

Ethanstuart eu achava que elas se odiavam?????? todos os jornais tavam dizendo isso depois daquele jogo, ROLOU ATÉ DEDO DO MEIO CARA

thatmitchelguy vamos falar a real, essa crista é bonita pra caramba, meu senhor olha esse cabelo

_megan_love lindas, meninas!!!!! ^^

clairetheedgygirl e vcs vão só esquecer q quase quebraram uma a outra da primeira vez q se viram? Lol

bigdyke além de talentosa, é linda e popular <3 <3 <3

JinnTheGenius ME LEVA PRA PORTUGAL TBM AGLAIA VC É MINHA CRUSH ;-;

 

Crista fecha o Instagram e desliga a tela do celular quando sente seu coração batendo forte demais no peito. “Era por isso que ela pediu meu Insta ontem”, conclui, sinalizando ansiosamente para o homem do balcão.

– Traz uma água gelada – ela cospe as palavras.

Depois de esvaziar o copo inteiro com um gole e fazer um exercício de respiração por vários minutos, Crista consegue se acalmar. Ela torna a abrir o instagram e rejeita todas as solicitações, uma a uma – e são MUITAS solicitações. Quando finalmente termina, manda uma mensagem para Aglaia no Messenger.

 

Crista

Hey Aglaia

por favor remove meu nome do seu post

conta privada

pessoal

tipo, so familia e amg ta lgd

so amigos e familia

 

Ela começa a guardar o celular no bolso, mas logo ele vibra. Crista torna a ligar sua tela para ver Aglaia a metralhando de mensagens.

 

Aglaia

Ai meu deeeeeeeeeeeeeus desculpa

Eu não sabia!!! ;-;

Desculpa!!!!

Eu sou um desastre ):

Espero não ter te incomodado demais

Desculpa ):

Crista

ta de boa

não se preocupa

Aglaia

Você não está brava cmg, está?

Eu te incomodei? Por favor, me diz se sim ):

Eu vou te compensar

Crista

não se preocupa

eu tô bem

Aglaia

Mesmo?

Desculpa de verdade

Se tiver algo que eu possa fazer...

Crista

meu deus mina rlx

vai te um infarno com 30 anos

*infarto

eu estou bem

não se preocupa

Aglaia

Tudo bem então, acredito em você

Mas se eu tiver incomodado me avisa, tudo bem?

Da próxima vez eu pergunto antes de te marcar

Crista

blz

ok

[...]

Algumas horas depois.

Aglaia se posiciona numa fila ao lado das melhores jogadoras de futebol da República de Alter, todas em seus uniformes brancos com detalhes em amarelo e vermelho. Ela é a segunda da fila, logo atrás da capitã, a camisa número 10 Asta, a atleta mais velha da seleção, com 35 anos de idade e 19 anos de experiência como jogadora profissional. Na fila ao lado, onze belgas em uniformes vermelho-escarlate fazem seus rituais pré-jogo de concentração.

Aglaia não precisa desses rituais para ter apenas o jogo em mente: para ela, é natural. Seu coração, seus nervos, seus pensamentos, tudo está sob controle, tão calmo quanto se ela estivesse na sua cozinha num sábado à noite, preparando sanduíches para ver filmes com Jay e Lumia. Pelo canto do olho, ela vê a figura de Jenny Coman, meia-atacante das belgas a quem sua treinadora a havia responsabilizado de marcar. Assim como a Aglaia, ela também é a segunda da fila, logo atrás da capitã.

[...]

A volante alteriana encara a meia-atacante belga do outro lado da linha do meio-campo, esperando que a árbitra autorize o começo da partida e, assim que ouve o apito, dispara na direção da jogadora, que numa infeliz coincidência para as belgas fora justamente quem recebera a bola após o toque inicial, sendo alcançada por Aglaia em uma fração de momento. A alteriana chega a identificar surpresa no rosto da belga antes de deslizar num carrinho preciso na direção da bola. Jenny ainda tenta tocar para outra jogadora mas Aglaia chega primeiro e trava o passe, o que faz com que Jenny perca o equilíbrio e cambaleie para frente, enquanto se levanta agilmente, protegendo a bola e procurando por suas companheiras. Mira é a primeira a aparecer, correndo pelas costas de Jenny e é pra ela que Aglaia toca.

A Bélgica não conseguira manter a posse nem por dez segundos.

E durante todo o primeiro tempo, a seleção belga se vê enclausurada em seu campo de defesa. A seleção alteriana não tem o estilo de defesa tática e jogo cauteloso das Royal Foxes, nem usa a pressão constante e agressiva da Red Phoenix, em vez disso misturando os dois mundos das duas melhores equipes do país. Para Aglaia, isso significa pressionar mais e mais ofensivamente, fornecer mais suporte no ataque ao custo de abrir mão da segurança e cautela com a qual está habituada nas Royal Foxes. Significa uma tendência maior a cometer faltas e tomar cartões ou deixar a defesa desprotegida em contra-ataques, mas um melhor desempenho ofensivo e mais pressão psicológica nas adversárias.

O primeiro gol das alterianas vem com meia hora de jogo, quando Asta recebe de Brigitta pelo meio e dá um toquinho por cima da zaga belga. Storm usa sua velocidade para superar a marcadora na corrida, domina nas costas da defesa, dá dois passos para dentro da área e quando a goleira começa a sair do gol, fuzila no canto esquerdo.

E mesmo depois do gol, o estilo de jogo de Alter em nada muda. Aglaia percebe o jogo delas: tentam abrir mais, escapar pelas laterais, e em vez disso começam a esbarrar na velocidade de Lumia pela esquerda e no posicionamento de Flaur pela direita: Aglaia não é a única cão-de-guarda de Alter. Nos acréscimos, Storm quase marca seu segundo gol, cobrando uma falta que acerta a trave e vai pra fora. A goleira cobra o tiro-de-meta buscando Jenny, a estrela belga marcada por Aglaia, mas esta sobe muito mais que a veterana europeia para cabecear a bola na direção de Daisy Forest, mais uma vez tomando a posse para Alter. Em seguida, a juíza apita o fim do primeiro tempo.

O placar de 1 a 0 não transmite a real dominância das alterianas sobre as belgas, que partem para o vestiário desmoralizadas, como se já tivessem perdido a partida, enquanto as garotas de branco se sentem mais confiantes do que nunca. Mantiveram nada menos que 68% da posse de bola nos 45 minutos iniciais.

– Belo jogo meninas, assim que se faz! – a treinadora, uma mulher durona de mais de 70 anos chamada Tonya Dorsey, as parabeniza e ri baixinho, em seguida socando um quadro-negro com o campo desenhado onde as alterianas organizam sua estratégia – agora, para o segundo tempo: Lumia e Flaur, eu quero mais pressão ofensiva! Aglaia, Brigitta, quero que revezem em se posicionar mais ofensivamente, enquanto a outra dá cobertura. E eu não quero ver mais NENHUM passe pra trás, a não ser no caso mais extremo! Só quero ver passe pra frente! Quero que essas belgas terminem o jogo aglomeradas na pequena área e chorando pela mamãe!

Algumas risadinhas preenchem o vestiário.

– Tão achando graça de quê, suas miolo-mole?! – berra Tonya, socando o quadro-negro mais uma vez – ou vocês devoram aquelas belgas desgraçadas vivas, ou eu mesma devoro vocês!

Às vezes, a treinadora Tonya realmente dá medo, mas depois de algum tempo, Aglaia passara a acreditar que tudo não passa de um personagem dela para motivá-las.

Quando as alterianas voltam para o segundo tempo, Aglaia tem as palavras da treinadora marcadas a ferro quente no cérebro. Dessa vez, é Alter quem começa com a bola e, ao apito inicial, Kyveli toca para Mira. A pressão da equipe de branco é crescente, chegando ao ponto que as belgas só dão chutões pra frente a cada vez que conseguem a posse da bola, desesperadas por um espaço pra respirar e, a cada um desses chutões, Aglaia, Amer ou Daisy Forest vencem no jogo aéreo contra as atacantes belgas e recuperam para a posse para Alter. Aos 13 minutos do segundo tempo, o segundo gol das alterianas chega: Kyveli dá um belo drible na lateral adversária, deixando-a toda torta no chão, tabela com Mira na entrada da área, avança para a linha de fundo com três defensoras no seu encalço e na última fração de segundo antes da goleira agarrar a bola aos seus pés, dá um toque rasteiro para o meio da área, onde Mira, completamente sem marcação e sem goleira, toca de primeira para o fundo do gol: 2 a 0.

Com a Bélgica cada vez mais acuada, Lumia e Flaur atuando praticamente como pontas e Storm e Kyveli fechando mais para dentro da área, Aglaia começa a jogar de forma mais ofensiva, aparecendo na entrada da área ou dando apoio às laterais quando a equipe tem a posse da bola. Aos 25 minutos, Lumia vira o jogo para ela, que conduz a bola perto da ala direita e toca nas costas da defensora no momento da arrancada de Kyveli, que recebe a bola, dá um passo pra frente e chuta de bica para o gol. A bola passa entre os braços da goleira, abrindo 3 a 0. Depois desse gol, a treinadora substitui Storm por uma volante de nome Lucyn e Mira por Carmen, compactando ainda mais o meio-campo. Aglaia é ordenada a passar a atuar como uma meia-central em vez de volante, com Kyveli se tornando uma meia-atacante pela direita e Asta sendo movida um pouco mais à esquerda.

A Bélgica tenta tomar a iniciativa do jogo na saída de bola, sem sucesso. Alter, compacta demais no meio-campo, deixa as laterais como único espaço possível para suas rivais jogarem, mas a marcação em área das volantes e a pressão das laterais mantém as belgas trancadas no campo de defesa.

Deve ser o dia mais entediante da vida da goleira alteriana, que não precisou fazer nem uma defesa até agora.

Aglaia ainda rouba a bola mais três vezes da volante belga quando ela tenta sair jogando, antes do quarto gol das alterianas sair, faltando cinco minutos para acabar. Ele vem numa cobrança de escanteio cobrada por Kyveli pela direita que encontra um cabeceio preciso de Carmen. Quando a juíza apita o final do jogo, Aglaia sente aquela concentração absoluta se dissipar. As jogadoras de branco comemoram a bela vitória no caminho para o vestiário. Kyveli é cercada por suas companheiras, sendo parabenizada por todos pelo belíssimo jogo, e Aglaia não faz diferente.

– Jogou demais, mulher – elogia Mira, dando um soquinho no ombro dela e indo ao vestiário.

– Valeu, mana.

– Belo jogo, Kyveli! – Aglaia aparece logo atrás da ponta, que sorri de um jeito metido.

– Valeu.

Com um gol e duas assistências, ela com certeza seria considerada a melhor jogadora da partida nas análises pós-jogo.

Após Aglaia tomar sua merecida ducha, ela busca seu celular na mochila. Mensagens de Jay, Isolde, sua mãe e outros amigos lá de Alter a parabenizam pela bela vitória. O nome que ela não esperava figurar na lista era o de Crista. Aglaia abre a conversa com a brasileira.

 

Crista

jogo pa krl pqp

nice game

vai se fude

craque da partida na moral

crack of the match

deu nem chance praquelas branquela

 

Embora Aglaia fique contente com as mensagens e sorrindo toda felizinha pelo resto da noite – algo que Lumia não deixaria passar, ficaria questionando a razão e fazendo piadas – ela não consegue deixar de se perguntar o que será que a brasileira quis dizer com “rachadura da partida”.


Notas Finais


E aí, o que acharam do user da Crista no Instagram? @agrandecomedoradecasada DAHBDSAHJDASHBJASD

"Alma Luce" é uma personagem que eu inventei que seria, culturalmente, para Alter, o equivalente à Turma da Mônica para o Brasil, gibis e desenhos nacionais que fazem um sucesso estrondoso há muito tempo, muito acima de qualquer super-produção dos Estados Unidos, apesar de serem historinhas bem diferentes da Turma da Mônica, mais voltadas para fantasia e aventura. A Alma Luce em si é inspirada na She-Ra dos anos 80.

Esther Stormare é uma referência direta à Pia Sundhage. Como já expliquei antes, quis evitar ao máximo incluir pessoas reais nessa história por não me sentir confortável escrevendo pessoas reais. E relembrando caso tenham esquecido: Matilde = Marta, Abelha = Formiga, Cristiana = Cristiane. Débora é uma referência à Debinha e Andreia Alvares, à Andressa Alves.

Jenny Coman é uma referência direta à Janice Cayman, uma jogadora real e uma das mais experientes da seleção da Bélgica (é a jogadora regular da Bélgica com mais jogos pela seleção da atualidade). Ela joga pelo Olympique Lyonnais (time francês) na vida real, o qual foi por muito tempo o melhor time de futebol feminino do mundo, embora a Janice seja reserva até onde eu sei, é um grande feito. Recentemente elas foram tetra campeãs consecutivas da UEFA Champions League (campeonato continental da Europa) e nada menos que 14 (QUATORZE) vezes consecutivas campeãs da liga francesa feminina, sendo q agr em 2021 o Barcelona finalmente acabou com a hegemonia delas.

TRADUÇÕES:
"Shark attack" = ataque de tubarão

Fiambre = "presunto" em português de Portugal. Eu passei exatamente pela mesma experiência da Crista qdo tava lá, me serviram um sanduíche de "fiambre" e queijo, fiquei comendo e pensando que parecia um misto-quente e me perguntando q krl era fiambre, aí dps perguntei pro dono do bar, ele notou q eu era brasileira e disse "presunto".

“Crack of the game” – “crack” significa “rachadura”, “fenda”, etc. A Crista acredita que a palavra tem o mesmo significado que “craque” em português, por isso a confusão, ela é enganada por uma falsa cognata. A palavra em inglês com significado mais próximo de “craque” que eu consigo pensar seria “ace” ou “star player”, apesar que “ace” eu traduziria para português como “ás”, mas pode funcionar dependendo do contexto, e “star player” é na minha opinião uma tradução muito melhor. “Craque da partida” especificamente, costuma ser dito como "MOTM" ("man of the match") e também existe o termo “MVP” (“most valuable player”, “jogador mais valioso”) normalmente utilizado para se referir ao melhor atleta de um campeonato inteiro ou uma temporada em vez de uma única partida, mas pode ser adaptado com contexto.

VOCABULÁRIO:
Cão de guarda: jogadora defensiva “implacável e agressiva”. Quase sempre é usado para descrever volantes (posição de Aglaia).

Virar o jogo / inverter o jogo: quando uma atleta está numa lateral do campo e dá um passo longo para a outra lateral.

Meia-central: posição no meio campo que atua mais à frente da volante e mais atrás da meia-armadora, tendo um papel de suporte tanto para a defesa quanto para o ataque.

Meia-atacante / segundo-atacante: posição que atua um pouco mais avançada que uma meia-armadora e pouco mais recuada que uma centroavante. Normalmente são jogadoras que equilibram habilidades úteis às duas posições.

Formação padrão de Alter:
https://i.gyazo.com/c5a0d2f96392591b778dbd00ed371fd5.png

Formação de Alter após as substituições:
https://i.gyazo.com/a82779ca05548163df02bc99b780966e.png


- [PAPO DE TÁTICA DE FUTEBOL, NÃO PRECISA LER SE NÃO TIVER INTERESSE] a ideia por trás dessa formação é avançar ainda mais a pressão da marcação da Aglaia, enquanto mantém boa cobertura defensiva e dá mais liberdade para as laterais atacarem. Dessa forma, em vez de marcar uma atacante ou armadora que trabalharia na criação, ela fica em cima das volantes adversárias, que trabalhariam na saída de bola da defesa, e assim Alter consegue prender a Bélgica na defesa ainda mais, mantendo elas sufocadas.


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