No sábado as coisas começaram a fugir ao seu controle. Vinte e quatro cartas acabaram entrando em casa, enroladas e escondidas nas dúzias de ovos que o leiteiro, muito confuso, entregara à tia Petúnia pela sala de estar. Enquanto tio Válter dava telefonemas furioso para o correio e a leiteria tentando encontrar alguém a quem se queixar, tia Petúnia picava as cartas no processador de alimentos.
— Mas quem é que quer falar tanto assim com você? Até aquela sua irmã havia desistido. — Duda perguntou espantado a Harry.
Na manhã do domingo, tio Válter sentou-se à mesa do café parecendo cansado e um tanto doente, mas feliz.
— Não tem correio aos domingos —lembrou a todos, contente, passando geleia nos jornais —, nada de cartas idiotas hoje...
Alguma coisa desceu chiando pela chaminé do fogão enquanto ele falava e bateu com força em sua nuca. No instante seguinte, trinta ou quarenta cartas saíram velozes da lareira como se fossem tiros. Os Dursley se abaixaram, mas Harry deu um salto no ar para apanhar uma...
— Fora! FORA!
Tio Válter agarrou Harry pela cintura e atirou-o no corredor.
Depois que tia Petúnia e Duda corrido para fora protegendo o rosto com os braços, tio Válter bateu a porta. Eles podiam ouvir as cartas disparando para dentro da cozinha, ricocheteando nas paredes e no chão.
— Já chega — disse tio Válter, tentando falar com calma mas, ao mesmo tempo, arrancando tufos de pelos dos bigodes. — Quero vocês aqui de volta em cinco minutos prontos para sair. Vamos viajar. Ponham apenas algumas roupas nas malas. Não quero discussão!
Ele parecia tão perigoso com metade dos bigodes arrancados que ninguém se atreveu a discutir. Dez minutos depois eles tinham retirado as tábuas para passar nas portas e estavam no carro, correndo em direção à estrada. Duda fungava no banco traseiro; o pai tinha lhe dado um tapa na cabeça por atrasá-lo tentando empacotar a televisão, o vídeo e o computador na mochila esportiva.
Eles viajaram no carro. E viajaram. Nem tia Petúnia se atrevia a perguntar aonde iam. De vez em quando tio Válter fazia uma curva fechada e seguia na direção oposta por algum tempo.
— Para despistá-los... despistá-los — resmungava sempre que fazia isso.
Não pararam pra comer nem beber o dia inteiro. Quando a noite caiu Duda estava uivando. Nunca tivera um dia tão ruim na vida. Estava com fome, sentia falta dos cinco programas de televisão que queria assistir, e nunca levara tanto tempo sem explodir um alienígena no computador.
Tio Válter parou finalmente à porta de um hotel de aspecto sombrio na periferia de uma grande cidade. Duda e Harry dividiram um quarto com duas camas iguais e lençóis úmidos que cheiravam a mofo. Duda roncou mas Harry ficou acordado, sentado no peitoril da janela, espiando as luzes dos carros que passavam enquanto pensava...
Comera cereal velho e torradas com tomates enlatados frios no café da manhã do dia seguinte. Tinham acabado de comer quando a proprietária do hotel aproximou-se da mesa.
— Com licença, mas um dos senhores é o Sr. H. Potter? É que eu tenho umas cem dessas na recepção.
E ergueu uma carta para eles poderem ler o endereço em tinta verde:
Sr. H. Potter
Quarto 17
Railview Hotel
Cokeworth
Harry tentou pegar a carta mas tio Válter afastou sua mão. A mulher ficou olhando.
— Eu recebo as cartas — disse tio Válter, levantando-se depressa e seguindo a mulher que se retirava do salão de refeições.
— Não seria melhor simplesmente irmos para casa, querido? — tia Petúnia sugeriu timidamente horas depois, mas tio Válter não parecia ouvi-la. Exatamente o que andava procurando ninguém sabia. Ele os levou até o meio de uma floresta, desceu do carro, espiou à volta, sacudiu a cabeça, tornou a embarcar no carro e partiram outra vez. A mesma coisa aconteceu no meio de um campo arado, no meio de uma ponte pênsil e no alto de um edifício garagem.
— Papai enlouqueceu, não foi? — Duda perguntou, cansado, à tia Petúnia no fim daquela tarde. Tio Válter estacionara no litoral, passara a chave no caro com todos dentro e desaparecera.
Começou a chover. Grandes gotas batiam no teto do carro.
Duda choramingou.
— É segunda-feira — falou à mãe. — O Grande Humberto vai se apresentar hoje à noite. Quero estar em um lugar que tenha televisão.
Segunda-feira. Isto lembrou a Harry uma coisa. Se era segunda-feira — e em geral podia-se confiar que Duda soubesse os dias da semana, por causa da televisão — então o dia seguinte, terça-feira, era o décimo primeiro aniversário de Harry. Naturalmente seus aniversários não eram lá muito divertidos — no ano anterior, os Dursley tinham-lhe dado um cabide e um par de meias velhas do tio Válter. Ainda assim, não se fazia onze anos todos os dias.
Tio Válter voltou sorrindo. Carregava um pacote cumprido e fino e não respondeu à tia Petúnia quando ela perguntou o que comprara.
— Encontrei o lugar perfeito! — falou. — Vamos! Saiam todos!
Fazia muito frio do lado de fora do carro. Tio Válter apontou para o que parecia ser um grande rochedo no meio do mar. Encarrapitado no meio do rochedo havia o casebre mais miserável que pode imaginar. Uma coisa era certa, ali não havia televisão.
— Estão anunciando uma tempestade para hoje! — disse tio Válter alegre, batendo palmas. — E este senhor teve a bondade de concordar em nos emprestar seu barco!
Um homem desdentado vinha descansadamente em direção a eles, e apontava com um sorriso muito maldoso para um barco a remos velho que subia e descia nas águas cinza-grafite lá embaixo.
— Já comprei algumas rações para nós — disse tio Válter —, por tanto todos a bordo!
Fazia muito frio no barco. Salpicos de água gelada do mar escorriam pelos pescoços deles e um vento cortante fustigava seus rostos. Depois do que pareceram horas, eles chegaram ao rochedo, onde tio Válter, escorregando, levou-os até a casa em ruínas.
O interior era horrível; cheirava a algas marinhas, o vento assobiava pelas frestas nas paredes de tábuas e a lareira estava úmida e vazia. Havia apenas dois quartos.
Afinal as rações de tio Válter eram uma embalagem de cereal para cada um e quatro bananas. Ele tentou acender a lareira mas a embalagem de cereal apenas fumegou e carbonizou.
— Aquelas cartas viriam a calhar agora, hein? — disse ele animado.
Estava de muito bom humor. Obviamente achava que ninguém teria chance de alcança-lo ali, durante uma tempestade, para entregar cartas. Harry concordava intimamente, embora este pensamento não o agradasse nem um pouco.
Quando a noite caiu, a tempestade prometida desabou ao redor deles. A espuma das altas ondas chapinhava nas paredes do casebre e um vento ameaçador sacudia as janelas imundas. Tia Petúnia encontrou uns cobertores mofados no segundo quarto e preparou uma cama para Duda no sofá comido pelas traças. Ela e tio Válter foram se deitar na cama cheia de calombos ao lado e deixaram Harry procurar a parte mais macia do soalho e se enrolar no cobertor mais rasgado e ralo.
A tempestade rugia cada vez com maior feracidade à medida que a noite avançava. Harry não conseguia dormir. Tremia e revirava, tentando encontrar uma posição confortável, seu estômago roncando de fome. Os roncos de Duda eram abafados pela trovoada que começou por volta da meia-noite. O mostrador luminoso do relógio de Duda, que estava pendurado para fora do sofá em seu pulso gordo, enformava a Harry que dentro de dez minutos ele completaria onze anos. Deitado, ele viu seu aniversário se aproximar, perguntando-se se os Dursley e Lil se lembrariam, perguntando onde estaria o remetente das cartas agora.
Faltavam cinco minutos. Harry ouviu alguma coisa estalar lá fora. Desejou que o teto não caísse, embora quem sabe conseguisse se esquentar se isso acontecesse. Quatro minutos. Talvez a casa na rua dos Alfeneiros estivesse tão abarrotada de cartas que quando voltassem ele pudesse surrupiar uma.
Três minutos. Seria o mar batendo tão forte na rocha? E (faltavam dois minutos) que barulho esquisito de trituração era aquele? Será que a rocha estava se desintegrando no mar?
Mais um minuto e ele completaria onze anos. Trinta segundos... vinte... dez — nove — talvez acordasse Duda, só para aborrecê-lo — três — dois — um...
BUM.
O casebre todo estremeceu e Harry sentou-se reto, arregalando os olhos para a porta. Havia alguém lá fora, que batia, querendo entrar.
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