Namjoon definitivamente não estava contando com isso.
Não esperava que em uma de suas únicas tentativas de conseguir comida teria se deparado não somente com uma criança, mas três, o que, consequentemente, significara encontrar o pai delas. Outra surpresa para ele era o fato de Heejin tê-lo reconhecido de imediato; Namjoon até tentara puxar o capuz de seu casaco para esconder um pouco seu rosto quando se deparou com as três aparições no corredor, mas já era tarde. Antes que pudesse fugir, a garotinha já gritava seu nome, alarmando a todos da presença dele. É claro que a pessoa que contara a Seokjin que ele estava indo embora precisava ser a primeira a reconhecê-lo. Se parasse para pensar, não era tão surpreendente assim que tivesse sido Heejin a fazer isso.
Mas o ocorrido era totalmente culpa de Namjoon, afinal. Porque ele poderia ter ido mais longe, poderia ter escolhido outro lugar para se manter escondido e não deveria ter saído do beco que escolhera para chamar de seu refúgio. No entanto, nem ele mesmo podia se culpar por estar com fome e, falando em termos bem objetivos, o minimercado do senhor Choi... era o alvo mais fácil.
O homem de cabelos esverdeados havia permanecido a maior parte do tempo pelas ruas de uma área não tão rica daquele bairro – onde, ainda assim, até os becos eram limpos –, mas dentre todas as mercearias pelas quais passou, a única comandada por um senhor que permanecia no estabelecimento sozinho era aquela e, com tanta coisa em mente, Namjoon sequer percebeu, na verdade, que havia voltado para perto de onde a família Kim morava.
Namjoon absolutamente odiava roubar. E sim, já havia feito isso antes, mas, se ajudava em algo, fora apenas em situações extremas. Roubara porque havia ficado na rua vezes demais para saber que isso podia ser a diferença entre ter uma refeição que fosse ou esperar que alguém se sensibilizasse com um garoto de rua.
Nesse caso, ele não precisara ir até o fim... Coisa que não podia dizer de outras vezes, em que se via correndo desesperadamente rua a baixo o mais rápido possível até despistar quem houvesse percebido o delito.
Dessa vez, o haviam pego antes do ato, tudo porque uma garotinha resolvera reconhecê-lo e exclamar seu nome para toda a mercearia. Honestamente, lá em seu íntimo, Namjoon estava aliviado. É claro que seu ato não era nada pessoal contra o senhor Choi, mas ele estava odiando com todas as forças ter de roubar (e somente roubar, ele nunca machucaria ninguém) daquele senhorzinho adorável. Mas isso não significava que ele não estava com fome, não significava que, se não roubasse ali, não precisaria encontrar outro lugar, quem sabe com um atendente um pouco menos simpático. Mas é claro que, para piorar ainda mais a situação para a consciência moral de Namjoon, ainda precisava se deparar com aquele enfermeiro.
E foi assim que voltou para casa com ele, o que faz tudo retornar para situações inesperadas: em pouco menos de vinte e quatro horas ele estava de volta à casa dos Kim.
Dessa vez, pela porta da frente.
Namjoon não fazia ideia de como agir naquela situação. Apenas entrou com o convite do dono da casa e ficou parado próximo à porta, esperando enquanto o pai da família ditava os comandos para cada filho. Yejan já estava aninhado em seu colo, pronto para dormir, então restou a Jaesung e Heejin subirem aos quartos para organizarem as mochilas com os materiais para a aula do dia seguinte, depois se prepararem para o banho, e então descerem para um lanche antes de irem dormir. As ordens não foram problema para Jaesung, que subiu as escadas sem questionamentos, mas foram um pouco para Heejin – ela lançava a Namjoon olhares que falhavam em sua tentativa de serem discretos, provavelmente tendo muito mais perguntas a fazer do que na primeira vez em que encontrara o homem.
Tanto Seokjin quanto Namjoon possuíam o mesmo pensamento: era até fácil explicar o porquê daquele estranho, “amigo” do pai, ter aparecido pela primeira vez, o complicado agora era encontrar uma explicação plausível para ele ter voltado. De qualquer maneira, isso era problema de apenas um dos homens e este definitivamente não era Namjoon. Problema para o de cabelos verdes seria escapar das perguntas da garotinha, isso sim, mas achava estar seguro, ao menos por aquela noite.
— Vamos, Heejin. Você vai ter tempo para interrogar o Namjoon-ssi outro dia. — Foi o que Seokjin falou, com um tom de riso na voz enquanto apoiava a mão que não sustentava Yejan no ombro da filha, voltando-a na direção das escadas, deixando claro com o gesto que ela não tinha escolha. Isso provava que o homem conhecia os filhos bem o suficiente para lê-los com um simples olhar, apesar das intenções da garotinha estarem um tanto claras nesse caso.
A menina tentou esconder um sorrisinho um tanto malicioso, o que devolveu a Namjoon aquela sensação de que não existia nada mais desafiador do que a curiosidade de uma criança. Seokjin a guiou até as escadas, parando antes do último degrau para observá-la subir, toda contente, provavelmente pensando em infinitas maneiras de encurralar o homem. O pai aguardou até que ela alcançasse o último degrau e andasse um pouco, o suficiente para não poder entreouvir os adultos, e então voltou seu olhar novamente para Namjoon.
— Vem... precisamos conversar. — Seokjin declarou, movendo a cabeça de forma que indicasse as escadas para que eles mesmos agora subissem.
O dono da casa não esperou resposta, logo tratou de fazer o caminho que a filha fizera, deixando o de cabelos verdes processando sua fala por alguns instantes. Observou o mais velho passar a vencer os degraus com um Yejan semi adormecido em seu colo, e algo naquela cena o fez ter uma sensação estranha, causada simplesmente pelo fato de que ele não pertencia àquele lugar. Ficaria ali por quanto tempo? E depois, o que faria? Ele definitivamente não podia ficar para sempre, mas não tinha sequer perspectiva de outro plano. Sentiu que, caso seguisse o homem por aquelas escadas, não haveria mais volta; não sabia o que ou porque, mas foi o que sentiu, mergulhando em questionamentos que não o deixavam esquecer o quão instável sua vida se tornara, o quão perdido estava no mundo.
— Namjoon.
Olhou para o homem parado nos degraus iniciais da escada, retirando-se de suas reflexões, voltando-lhe os olhos um tanto arregalados pelos pensamentos em sua mente. Chacoalhou a cabeça discretamente, permitindo-se apenas um pouco ignorar sua verdadeira realidade.
Seokjin, que não somente oferecera ajuda a alguém que mal conhecia, mas insistira que esse estranho a aceitasse; seus filhos, a casa e aquele bairro...Namjoon tinha um lugar do qual começar, ou algo perto disso. E era o suficiente, ao menos, por enquanto.
Dessa forma, passou a acompanhar o homem, que também voltou a subir o restante dos degraus, mas não sem antes lhe lançar um olhar ligeiramente preocupado. Não fazia ideia de que, segundos atrás, Namjoon se questionava sobre seu rumo na vida. E isso inundava Seokjin de inquietude, pois o de cabelos verdes, em sua visão, era muito sério, e apenas isso. Jin, como uma pessoa a quem todos consideravam – inclusive, ele mesmo – ser muito bom em entender aos outros, deparava-se agora com uma completa incógnita em forma de homem que invadira sua casa no meio da noite. Claro, ele tinha certeza quanto a Namjoon estar falando a verdade sobre o que haviam conversado até então, mas além disso tudo, havia mil outras coisas que Namjoon não estava lhe contando, e isso era o mesmo que ter um quebra-cabeça com partes faltando; como iria chegar ao resultado final, se não possuía as peças necessárias?
É claro que também não se conheciam o suficiente – nem perto disso – para Seokjin ser capaz de ler todas as suas expressões e decifrar cada pensamento, mas o ponto é que Namjoon não entregava nada, e era mesmo esse o objetivo para ele. Nunca deixar seus sentimentos alcançarem a margem... Isso ainda causaria momentos um tanto frustrantes para Jin.
Seokjin guiou-os até o quarto de hóspedes, ligou a luz do cômodo e entrou na frente, seguindo até o armário para pegar lençóis, cobertas e travesseiros. No que começou a esticar o lençol sobre a cama por uma das pontas, Namjoon já alcançava outra para ajudá-lo. Fazendo, é claro, o melhor que podia com seu braço ferido.
— Então... Nós precisaremos decidir o que vamos dizer para os meus filhos... — Jin declarou, contendo-se de concluir sua fala com um cansado “de novo”. Quer dizer, se Namjoon tivesse resolvido invadir a casa de alguém que morava sozinho, tudo seria mais fácil. Mas, já que estavam ali, nessas circunstâncias... — E não deixar nenhuma brecha, dessa vez.
— Ah, sim. É claro... Mas... não podemos somente dizer que vou ficar aqui por uns dias? — A verdade é que Namjoon não via necessidade em pensar em toda uma história, afinal, eles eram crianças. Iriam mesmo ficar questionando o pai sobre todos os detalhes?
— Ah, você não conhece Heejin. — O castanho afirma como se lesse os pensamentos do outro. — Ela sabe que a história do amigo que iria ficar com você é mentira, só para constar. Acho que nunca acreditou, para ser sincero.
Bem, naquele momento Namjoon, deu-se conta de que conhecia a garotinha o bastante para saber que de fato, precisavam pensar em algo muito consistente.
— Certo, então eu menti porquê... não queria dar trabalho, e fui embora, mas... acabamos nos encontrando na mercearia... e você conseguiu me convencer a ficar por uns dias... O que acha? — Namjoon sugere, ao que Seokjin reage inclinando a cabeça para o lado, considerando a ideia.
— Isso tecnicamente não é uma mentira... — Seokjin ponderou. — Acho que está bom... Por enquanto.
— Ótimo... — O de cabelos verdes declarou, exausto somente de pensar no que envolvia aquele “por enquanto”.
— Ótimo... Vou pegar as coisas pro seu curativo.
O castanho saiu de imediato, sem dar chance de Namjoon sequer pensar em dizer algo. Desta forma, sentou-se no que aparentemente seria sua cama, passando a observar o quarto que lhe pertenceria por um tempo.
Não podia estar mais envolto por um universo tão-não-seu.
Não somente a casa, mas a família que nela morava e todo o bairro. Não conseguia deixar de se perguntar se fizera a escolha certa. Algo lhe dizia que nunca saberia realmente, mas suas impressões pendiam mais para uma resposta... e esta não era nada positiva.
O enfermeiro retornou sem o menininho que estava, até então, em seu colo, adentrando o cômodo com sua caixa de remédios, fazendo com que Namjoon percebesse que já perdera as contas de quantas vezes o vira fazer isso. Era uma imagem quase familiar... Isso, é claro, se não considerasse o fato de Seokjin ser um completo estranho.
— Tire seu casaco.
O pedido veio com uma delicadeza que, no fundo, disfarçava uma ordem, um comando. E mesmo com tão pouco tempo de convivência, o de cabelos verdes fora capaz de entender que não deveria contrariar Seokjin quando se tratava de ordens médicas, por mais que quisesse muito.
Quer dizer, ele não ficava incomodado com o jeito de Seokjin de achar que por ser o enfermeiro podia sair lhe mandando fazer isso e aquilo, não exatamente, mas algo em seu subconsciente fazia Namjoon querer cruzar os braços e negar efusivamente, e não apenas por teimosia, mas porque estava acostumado a se virar sozinho. Porque, por quase toda sua vida, havia sido sua própria e única ajuda, e tentar entender que dessa vez não precisava contar somente consigo mesmo o tirava de seu eixo.
Mas então ele fazia um esforço para se lembrar de que estava sendo ajudado pelo enfermeiro, e complicar com suas ordens não era exatamente uma forma efetiva de demonstrar gratidão.
— Namjoon... o casaco. — Jin retorna a dizer, trazendo o homem para fora de seus pensamentos, os quais tentavam consolá-lo pelo fato de que teria de viver com essas ordens por... tempo indeterminado.
Tentando controlar um suspiro impaciente, ele iniciou o processo de retirar uma das peças que o cobria, mas não demorou muito para que percebesse, e Seokjin também, que não conseguiria realizar a tarefa sem ajuda. Isso o fez absolutamente odiar o desgraçado que disparara a arma contra ele, apenas porque o ocorrido o levara ao ponto de precisar do auxílio do todo poderoso enfermeiro para se livrar do casaco. Sim, Namjoon era extremamente grato pela bondade daquele homem, na grande maioria das vezes, mas... Bem, digamos que ele obviamente preferia não estar passando por toda aquela situação.
Ao menos, não precisou verbalizar seu pedido de ajuda, pois Seokjin já deixava a caixa de remédios sobre a cama e se aproximava de Namjoon, colocando suas mãos na barra do moletom, tendo todo o cuidado para retirar primeiro a parte do braço bom e depois o que estava machucado.
O enfermeiro, é claro, estava acostumado com esse tipo de situação, afinal, fazia parte de seu trabalho ajudar pacientes a tirar ou vestir roupas e, por vezes, até mesmo coisas que eram consideradas mais íntimas ou constrangedoras para quem não fazia parte da área. Mas Jin sempre agia com muito profissionalismo e ética, como deveria ser, e aquele momento não estava sendo diferente.
No entanto, enquanto aquilo era algo comum para Seokjin, não era o caso para Namjoon, que, mesmo sem perceber, prendeu a respiração com a proximidade do outro, e conforme ele tomava mais tempo com o cuidado de livrar o braço machucado da manga do casaco, o olhar daquele que era ajudado recai sobre o rosto do enfermeiro.
Seokjin estava concentrado demais para notar qualquer coisa, mesmo sendo observado tão de perto e com muito mais intensidade do que haveria em um simples olhar normal. Mas, a verdade era que o próprio Namjoon não tinha consciência do jeito com que o que seus olhos faziam poderia ser interpretado. Tudo o que se passava por sua mente era pele e nariz e lábios vistos de um ângulo um tanto privilegiado, e não ousava declarar adjetivos às partes daquele rosto, pois corria o risco de entregar demais, de alcançar uma parte de seu subconsciente que não havia emergido nem para ele mesmo, e era melhor que assim ficasse.
Foi para o bem de uma ocasião que já era estranha, difícil e constrangedora o suficiente que Namjoon forçou-se a acordar, piscando os olhos com força, com o quarto voltando ao seu campo de visão outra vez. Ainda assim, em algum momento em que encontrava a saída de seus pensamentos e entre a realidade, pode sentir um resquício da respiração calma do enfermeiro em seu rosto, e a sensação de tranquilidade que isso lhe trouxe passou tão rápido quanto o próprio momento, desfazendo-se quando o outro afastou-se, com seu casaco em mãos.
Entre aquele tipo de pensamento e os que lhe faziam ficar ansioso, Namjoon nunca pensou que escolheria a ansiedade. Assim, deixou que a dor dos curativos sendo retirados e do ferimento limpado o mantivesse com a cabeça no lugar.
Voltou a pensar em sua situação. Em como conseguia apenas sentir que, depois de tudo o que acontecera nas últimas vinte e quatro horas, não havia sobrado muito de seu orgulho, o que, considerando o tamanho deste, era uma grande coisa a se sentir. Ele havia decidido se agarrar aos últimos resquícios, mas ali se iam estes, juntamente com o casaco.
No entanto, também precisaria ignorar isso, por enquanto. Aquele não era o momento de sentir orgulho, e sim de, talvez pela primeira vez na vida, aceitar ajuda. Por mais que fosse difícil e que ele estivesse acostumado a se virar sozinho, aceitaria ajuda...
Até achar uma maneira de poder voltar a contar consigo mesmo apenas.
— Você pode comer algo, tomar banho... Ou, se quiser ir direto para a cama, só me dizer, que vou arranjar uma roupa para você dormir. — O enfermeiro pronuncia após algum tempo de trabalho silencioso, finalizando-o então e se colocando em pé, tratando de organizar suas coisas de volta na caixa de primeiros socorros. Ele oferece sua hospitalidade com certa insegurança quanto à maneira de se dirigir ao outro homem. Não sabia exatamente como tratá-lo, afinal, ele ficaria em sua casa, convivendo com sua família por sabe-se lá quanto tempo, mas, ainda assim, era um estranho. — ...E se precisar de mais travesseiros e cobertas, é só pedir.
Decidiu que, por hora, o melhor era manter certo... distanciamento.
— Eu só quero tomar um banho e ir dormir... Se não tiver problema. — Namjoon respondeu, olhando apenas para o braço onde o curativo agora estava trocado.
— Não, problema nenhum... Você deve estar cansado, não é? — Jin indagou, não exatamente esperando uma resposta, pois dificilmente o homem a daria, mas, por um momento, questionando a si mesmo como teria sido a noite de Namjoon na rua. — Bom, então vamos te arranjar umas roupas e uma toalha.
Assim, os dois seguiram para fora do cômodo, e Namjoon esperou no corredor enquanto Seokjin seguia até seu próprio quarto para guardar o kit de remédios e pegar para o hóspede o que citara. Isso não demorou muito, por sorte, e, após agradecer pelas coisas que recebera, pôde se dar ao luxo de se refugiar da realidade no banheiro por alguns minutos. Não se demorou muito, no entanto, mas o banho foi o suficiente para livrá-lo da sujeira das ruas e também relaxar um pouco seus músculos que, nos últimos dias – últimos anos, talvez –, pareciam estar sempre tensos.
Seguiu para o quarto de hóspedes após deixar o banheiro e, ainda que seu plano fosse dormir, percebeu, já deitado na cama, que mesmo que esta estivesse extremamente aconchegante e quentinha, estava sem qualquer resquício de sono. Desta forma, suas únicas opções eram caminhar em círculos pelo quarto, ou... quem sabe, ir até a cozinha para tomar um copo d’água..? Sim, ele estava com sede. E também, corria o sério risco de enlouquecer caso ficasse mais tempo voltado por aquelas paredes cor de creme e os móveis e a decoração que harmonizavam quase que perfeitamente demais.
Desta forma, deixou o quarto e seguiu pelo corredor até as escadas. Esperava encontrar o dono da casa para avisar-lhe o que estava fazendo, não exatamente pedindo permissão para circular pela casa, mas, meio que era isso. Certamente levaria um tempo até ele ficar à vontade para se sentir livre naquele lugar. Não encontrou o homem, no entanto, e pelos ruídos que vinham do quarto do filho caçula, imaginou que o pai de família estivesse um tanto ocupado.
Sendo assim, alcançou a cozinha, sentindo-se um tanto aliviado por esta estar vazia, e aparentemente não haver ninguém em todo o andar de baixo. Sentia-se deslocado em uma cozinha que não era sua, em um lugar que não era o que considerava sua casa (ou algo próximo disso), mas o sentimento principal era o de estar sendo invasivo, como se estivesse tomando uma liberdade que não lhe fora dada, ultrapassando um grande limite, pelo simples ato de procurar por água. Tentou se convencer, no entanto, de que se Seokjin havia permitido que ficasse em sua casa por um tempo que ambos não sabiam o quanto duraria, não veria problema nisso.
Ainda que aquela fosse uma conclusão bem racional, Namjoon abriu a geladeira com a maior polidez possível. Não demorou muito para encontrar uma garrafa com água gelada e, com o objeto em mãos, girou em seu próprio eixo pela cozinha à procura de um copo, ou qualquer coisa parecida na qual pudesse beber o líquido.
Foi quase aterrorizante a constatação de que teria de abrir algumas portas dos armários para encontrar o utensílio, mas concluiu a missão com tranquilidade; teria sido bem pior se o dono da casa tivesse aparecido exatamente no momento em que estava com um dos armários escancarados e escolhendo a primeira coisa que alcançou lá dentro.
Circulou pela cozinha com sua água, e mais do que a sensação estranha de estar ali novamente, o hóspede perguntou a si mesmo se algum dia se acostumaria a estar naquela casa, ou mesmo, se teria tempo para se acostumar.
Conforme se colocava outra vez em frente à geladeira, observando melhor os desenhos que haviam chamado sua atenção em seu primeiro dia ali, relembrava conclusões que já estavam formadas em sua mente desde que deixara aquela lanchonete, um pouco mais cedo: reduziria sua estadia ao máximo. Tudo bem, ele aceitara a ajuda, mas não dava para esquecer que estava na casa de alguém que mal conhecia, pois era isso o que Seokjin era para ele: um quase completo estranho; não era só porque estava em sua casa e porque o enfermeiro o ajudava que isso os tornava menos desconhecidos do que realmente eram. Além disso, podia até não ter certeza de quanto tempo ficaria ali, mas não iria fazer desse tempo indeterminado um muito longo.
Também porque, Namjoon soube, engolindo amargamente enquanto olhava para os traços infantis do desenho inocente, que ele nunca, mesmo que quisesse muito, seria capaz de pertencer a um lugar assim, e as coisas ao seu redor, a casa bonita e toda a paz e conforto que envolviam aquela família, eram lembretes ambulantes de tudo o que ele nunca poderia ter.
Chacoalhou a cabeça para se livrar desses pensamentos no mesmo momento em que o dono da casa surgiu na cozinha.
— Eu não estava achando os copos. — O de cabelos verdes declarou ligeiramente alarmado.
— ...Por isso está bebendo água em uma xícara...? — Jin indagou, estranhando um tanto o jeito do outro de parecer que havia sido flagrado cometendo um crime.
Só então Namjoon se deu conta de que o que possuía em mãos era, de fato, uma caneca. Virando-a em suas mãos para olhá-la com mais atenção, viu também que havia alguns traços coloridos na cerâmica branca e, ao entender do que se tratava, ficou constrangido.
— Ah, me desculpe... não vi que ela era sua. — Ele leva a mão para a nuca, coçando-a em um sinal de constrangimento. — ...Eu vou lavar e já coloco de volta onde peguei.
— Não, imagina. — Jin o tranquiliza com um gesto da mão, indo até o balcão e pegando uma xícara para si mesmo. Havia colocado uma chaleira de água para ferver. — Eu devo ter pelo menos umas dez assim.
Sem dizer nada, Namjoon voltou seus olhos para o objeto em suas mãos. O ‘Feliz dia dos Pais’ escrito com uma caligrafia infantil indicava um típico presente dessa data; no desenho colorido haviam quatro pessoas, que seriam o pai da família com seus três filhos, e algumas árvores e flores em lugares aleatórios como enfeite. Quando sua atenção se dirigiu para os desenhos no lugar do céu, e se deparou com uma pessoa, mulher, provavelmente, desenhada entre o azul das nuvens e o amarelo do sol, com algo como pequenas asas saindo da parte de trás, não foi muito difícil entender que o círculo dourado acima da cabeça seria uma auréola.
O hóspede levantou seu olhar para o dono da casa, que estava agora terminando de preparar um chá, sem ter a mínima suspeita de que era observado. Namjoon não esboçava reação alguma, mas era como se sua mente tivesse clareado de repente, com inúmeras coisas esclarecidas.
— Amanhã nós vamos fazer um pouco de barulho, lá pelas seis e pouco da manhã. — Seokjin virou na direção de Namjoon de repente, mas não percebeu o de cabelos verdes desviando o olhar, disfarçando rapidamente que o encarava. — Mas não se sinta na obrigação de acordar, é só eu arrumando o batalhão para a escola.
— Tudo bem. — Namjoon respondeu simples, os pensamentos totalmente ocupados pela nova informação. Não foi, no entanto, motivo de estranhamento para Seokjin, que já estava se acostumando com o jeito de poucas palavras.
— Talvez você acorde depois que eu tiver ido para o trabalho, mas meu amigo, o Taehyung, vai estar aqui. Eu já lhe expliquei tudo, qualquer coisa que precisar é só pedir a ele. — Sentou-se também a mesa para tomar seu chá, uma forma de relaxar um pouco antes de se deitar.
O dono da casa bocejou, alarmando Namjoon para o horário. Se o conhecesse melhor, entenderia que estava presenciando uma cena a que Seokjin raramente permitia telespectadores. Aquele era o seu tão esperado momento de se livrar da armadura do dia-a-dia, de se mostrar não um pai, não um enfermeiro, apenas um ser humano exausto das batalhas do dia. Mas é claro, a relação entre eles ainda era muito superficial para que se dessem conta do que compartilhavam.
— Eu acho que irei dormir. — Namjoon anunciou, apesar de não estar com tanto sono. — Tudo bem se eu levar um pouco de água lá para o quarto? — Indaga apontando com o polegar para o lugar atrás de si em que ficavam as escadas.
— Claro, fique à vontade. — O mais velho declarou em meio a outro bocejo.
Namjoon se levantou e seguiu novamente até a geladeira em busca de encher sua xícara. Com isso feito, deu alguns passos e parou na ponta da mesa de jantar, olhando para Seokjin, que sentava na lateral. Teve a atenção dele ao que se ensaiava para falar, tentando disfarçar um ligeiro nervosismo inesperado:
— Eu... só queria dizer... É... Obrigado. — Namjoon, que olhava para o interessantíssimo tampo da mesa, não viu a surpresa tomar a expressão sonolenta de Seokjin. — Pelo curativo, e... Você sabe... Por me deixar ficar.
O hóspede, no fim das contas, também ficara se perguntando sobre como se portar em toda a situação que os envolvia. Havia escolhido, também, certo distanciamento... Mas, naquele ponto, não tinha mais como ignorar a voz em sua mente que o questionava como manter distância do dono da casa na qual estava ficando de favor.
Seokjin não respondeu, mas fitou a Namjoon por um instante, então desviando seu olhar para a caneca de chá em suas mãos. O de cabelos verdes viu o outro acenar com a cabeça e sorrir pequeno; o sorriso, no entanto, não era exatamente para Namjoon, o próprio pode perceber.
A verdade é que Seokjin estava sorrindo por se lembrar, um tanto emocionado, da conversa que tivera com Heejin e de como sua pequena estava certa. Namjoon precisava de sua ajuda.
— Certo, eu... Boa noite.
Namjoon, um tanto sem jeito e com a vergonha da mínima exposição de seus sentimentos de gratidão, girou nos calcanhares na direção das escadas, mas, antes que pudesse dar um passo, ouviu Seokjin dizer:
— Namjoon... eu posso não te conhecer direito, mas conheço sua avó, e tenho muita consideração por ela. Eu confesso que pensei mal de você e de sua família por não a visitarem, mas eu acho que... Acho que entendo os motivos agora.
O mais novo não se permitiu pensar sobre sua família, bloqueando qualquer pensamento sobre isso de sua mente, não podia deixar sua cabeça seguir por esse caminho no momento, não podia dizer nada. Mas podia, e precisava, dizer:
— Se eu pudesse, veria minha avó todos os dias. — A voz do hóspede era neutra. Sua dor, não. — Mas eu não podia... Não posso.
— Tudo bem, eu entendo isso. — Seokjin declarou com tranquilidade, sem perceber o conflito interno acontecendo com o homem parado a sua frente. — E você não deixou de ser o neto amado dela nem por um momento.
Namjoon pôde apenas acenar com a cabeça, encarando o chão; se olhasse para o dono da casa, se tentasse falar... Não iria conseguir controlar as emoções que sairiam de si mesmo.
— Bem, vou deixar você dormir. — Jin declarou, finalizando o que, para ele, era apenas uma conversa.
— Sim... Eu vou indo. — Namjoon conseguiu falar, despedindo-se do anfitrião com um olhar rápido.
— Sabe, Namjoon... — Foi impedido, mais uma vez, pela voz que o chamou. Quase suspirou exasperadamente. Só queria se isolar no quarto. Mesmo assim, parou para ouvir. — Você é bem-vindo aqui... Espero que saiba disso.
O hóspede nada disse, mas, dessa vez, por estar sem palavras. Olhou para Seokjin por um pouco mais de tempo, concluindo que acreditava nele.
Encontrava verdade nos olhos e na voz sonolenta, na expressão suave e sincera. Pela primeira vez na vida, sentiu-se um pouco menos perdido.
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