Kanao sempre soube que havia alguma coisa diferente nela.
Não um hobby interessante; ou uma particular habilidade que a colocava a parte das outras pessoas. Não, ela era diferente porque faltava alguma coisa dentro dela. Sua mestra imagina que é uma condição clínica dificilmente vista e pouco catalogada, e talvez seja mesmo isso—ela só sabe que não há cura—. Seu silêncio estranho, sua falta de atenção, seus hábitos mais peculiares e inconsciência para com assuntos alheios… E estava tudo certo até pouco tempo. Não a questionavam por sua falta de expressão ou frieza nas poucas palavras ou total mudeza, dependendo do resultado da moeda. Muito menos tentavam consertar seja lá o que estava quebrado ou preencher o que faltava dentro dela.
Mas isso mudou assustadoramente rápido.
Ele chegou, sorriu, lutou ao seu lado e segurou sua mão abaixo daquele arco cercado de glicínias tão docemente que ela tinha certeza que ia acordar a qualquer momento daquele sonho. Repentinamente, ele perfurou em seu coração e consertou-a… E então ele partiu.
E lá estava ela, toda sua vida tendo sido mudada de um momento para o outro, sozinha para tentar entender exatamente a extensão das mudanças.
A primeira coisa que ela notou foi quão difícil era falar propriamente; sentenças longas, continuar falando depois de outra pessoa parar, exigindo silenciosamente suas respostas, raciocinar um sim ou não a todo momento, lutando contra a vontade de pegar a maldita moeda no fundo do seu bolso, uma promessa de tornar tudo mais fácil. Mas ela perseverou através dessa agonia… por algum motivo. A próxima coisa foi que as pessoas agora esperavam demais dela e, caso ela não conseguisse entregar todas as palavras e raciocínios pedidos, eles iam gritar com ela e ficariam irritados, e então iam reclamar com sua mestra de sua falta de educação.
Ela só não voltou aos hábitos antigos para fugir disso por causa daquela carta contra seu coração, uma promessa que ela nunca ia esquecer.
… Mas por qual motivo?
Por qual motivo ela devia ficar aguentando essas pessoas que esperam tanto dela—palavras, respostas, ações—, por que ela deveria se importar?
As coisas eram tão mais fáceis quando ela, simplesmente, mantinha-se calada e sorridente. Talvez ter sido consertada não era exatamente o que ela precisava em sua vida?
Mas tudo mudou com pura facilidade, seja na bela pintura de um sorriso de diamantes; no beijo rápido e bobo, mas que significou tanto; nas confissões de alguém que tomava o manto de carregar o mundo em suas costas. Deixar o seu antigo eu no passado e aguentar esse mundo tão novo e hostil contra ela valia a pena, caso fosse com ele ao seu lado… Não que as coisas seriam tão fáceis, certo? Rengoku-san pensa que ela é fraca demais para a mão dele, incapaz de acompanhá-lo e que sua estranheza sem nome, seu defeito de nascença, ficaria no caminho de tudo.
Hoje, ela vai prová-lo o contrário, não importa o quê!
E o primeiro passo para isso foi depois de ver ele, praticamente, carbonizando centenas de tentáculos em uma linha reta que foi do último vagão do trem até esse onde ela se encontrava, um mar de chamas ondulando atrás de suas costas e explodindo as janelas no caminho—interessantemente, não afetando nenhuma das pessoas, apenas queimando a carne nojenta do oni… Ela podia ver claramente naquelas chamas que tremulavam tão parecidas com as de Tanjiro um desejo intenso de proteger a vida e manter a paz; é um nível de igualdade na técnica assustador.
– Menina! – ele gritou, sorridente e de olhos arregalados ao derrapar pela madeira do vagão, manchas negras seguindo-o como pneus de carros que ela viu nas ruas de Berlim. – Shinobu e meu garoto estão lutando contra o oni nesse momento, eu consigo ouvir os ataques deles daqui! – ele mal tirou os olhos dela enquanto ria fortemente, abraçando fortemente Nezuko e acariciando sua cabeça ao ser demandado pela menor, instintivamente tirando a lâmina vermelha de perto da pequena oni exigente. – E isso nos deixa com a proteção dos civis! Eu protegerei sete dos vagões, você e Nezuko cuidarão dos dois—
– Rengoku-san!! – o grito firme da Tsuguko do Inseto parou-o em seus trilhos, o sorriso de Rengoku nunca caindo, mesmo que uma nota de irritação e outra de curiosidade lutaram pela dominação de seus músculos faciais. Os olhos vermelhos e dourados do Hashira focaram-se nos da garota, a pressão da força dele sendo exercida a modo de oprimi-la pelo inimaginável desrespeito de falar na frente de um superior… E o efeito foi mais do que claro, suor intenso rolando pela testa dela e o desconforto arrepiando toda sua pequena estatura, tudo necessário para ela começar a gaguejar e arrepender-se intensamente de sua escolha tão desmentada—
Ainda sim… os olhos dela estavam cheios de determinação. Quente, poderosa. Sua natureza interior realmente odiava a ideia de desafiá-lo assim, só causaria problemas e ainda envergonharia a si mesma e Shinobu no final do dia.
Mas outra coisa, algo flamejante incendiou seu coração e a deu força.
A essência da força. Ele sorriu minimamente.
– P-por favor, Rengoku-san! – com esse segundo grito, ela tomou uma pose graciosa com sua espada rósea, o coração a mil apenas piorando quando uma pontada de dor ameaçou impedi-la de respirar tão profundamente o suficiente a modo de alcançar o máximo da Respiração Concentrada Total, os tentáculos mais a frente crescendo com velocidade… Mas ela forçou os pulmões a continuar funcionando em seus ápices, moléculas de ar energizando seu sangue e trazendo dor ao machucado que quase havia a matado! Os olhos de Rengoku notaram essa pequena mudança, sua percepção treinada por anos dizendo-o apenas a superfície da dor que o rosto retorcido dela aguentava—!! E então o ar explodiu para os lados, a espada dela fluindo como uma flor de cerejeira ao vento. –… Me observe!
E então ela avançou, quebrando a resistência do vento e, num show de graça e velocidade que exigia muito mais do que ela teria conseguido com o corpo dolorido como estava, cortou uma multidão de tentáculos em um espaço de três vagões completos, flores seguindo-a e dando-a um aspecto quase etéreo, jatos imensos de sangue em seu caminho de destruição.
Entretanto, o loiro nem gastou outro momento antes de ter chamas novamente cozinhando em suas solas e assim propulsionar-se para frente, alcançando-a em metade do tempo e segurando-a pela nuca do haori… impedindo que a menina espatifasse-se contra a madeira, tendo ido muito além dos seus limites e sofrendo de uma cãibra momentânea.
Não tirou o pequeno sorriso de seu rosto, ainda sim.
– IMPRESSIONANTE!! Ultrapassando seus limites apenas para se mostrar, garota?! Que cabeça dura! – ele sabia muito bem porque dela ter feito isso, agradavelmente surpreso com as distâncias que ela estava disposta a cruzar pela mão do seu protegido—a velocidade não foi um terço da dele; a força também foi desperdiçada na maioria dos tentáculos e ela teria terminado rolando pelo chão com dificuldades a se levantar, mas ainda pronta para continuar lutando!
Esse fogo imenso e determinado de querer mudar sua situação, se provar a partir das ações!
Isso ele respeitava com todo o seu ser!
– Mas ainda não está acabado, garota, há onis para matar e pessoas para salvar… Você pode continuar? – ele soltou seu haori e a deixou de pé após essa pergunta um tanto capciosa, não demorando nada antes dela fluir de volta à pose neutra de sua respiração, Respiração de Concentração Total energizando seus pulmões e abafando o machucado latente.
– Eu pos—
– GRITE BEM ALTO!!
– EU POSSO, RENGOKU-SAN!!
– PERFEITO! Isto te rende apenas uma fração do meu favor, não deixe subir à cabeça, garota! Eu deixarei quatro vagões para você e Nezuko, cuidarei dos outros cinco… Não me decepcione agora! – e, numa explosão de fogo e velocidade, Rengoku já estava longe daqui, tudo restando dele sendo um vendaval de chamas.
Suspirando forte e com uma mão em seu quadril, ela observou-o apenas pela prolongação de um único pensamento… E, com um sorriso alto no rosto por ter algum progresso tangível, ela gritou o melhor que pôde com sua voz levemente rouca—ela realmente não estava acostumada a esse tipo de coisa…
– SIM, SENHOR!!
E, junto da família Rengoku, Kanao lutou pela proteção das pessoas desse trem.
—Enquanto isso—
A teoria de Shinobu-san era verdade. O trem… tinha uma traqueia.
Toda a locomotiva era formada, abaixo do chão de metal do qual Tanjiro despedaçou, de carne e osso duro cercado de cartilagem e variados vasos sanguíneos, além de outros derivados biológicos que não faziam o menor sentido em um trem; o cheiro estrondoso de oni quase o fez desmaiar onde ele estava de pé. Ainda sim, nada podia ser simples, visto pela enorme bacia de carne gelatinosa que havia destruído as paredes de metal da locomotiva e estendia-se para os lados como se servisse para pegar água da chuva, a quantidade de tentáculos que explodiam de lá tornando não só impossível de aproximar-se—caso ele conseguisse, toda a carne se convergia e criava uma proteção nos ossos, afastando Tanjiro e recomeçando o ataque de tentáculos—. Mas foi exatamente quando os tentáculos começaram a criar olhos que as coisas saíram dos trilhos, o ex-queimador de carvão encontrando-se novamente na terra desgraçada dos sonhos.
Seu primeiro instinto foi, o mais rápido possível, gritar.
– O ÚNICO MODO DE ESCAPAR DO SONHO É SE MATANDO— e então ele desmaiou, caindo de joelhos no metal carnudo. Shinobu que desviava com graça dos ataques ouviu isso com um sinal cético de sobrancelha e um pouco de pessimismo entristecido. Se ele descobriu isso por si só e estava acordando agora, isso significa então que ele foi por tentativa e erro… Pobre garoto.
Bem, ela não vai precisar da dica de qualquer modo, considerando que ela acabou de achar a chance de ser útil nessa situação definitivamente não convencional para ela.
Com velocidade supernatural, ultrapassando o oni em léguas infinitas, Shinobu estocou dezenas de vezes no período de menos de um momento, destruindo todos os olhos que tentaram por Kekkijutsu sobre ela, pés rápidos na direção de Tanjiro que, repetidamente, entrava no mundo dos sonhos novamente.
O próximo abrir intenso de olhos dele quase foi encontrado com outro olho de Enmu, mas dessa vez uma ponta de espada furiosamente perfurou o ar com demasiado preconceito, a esclerótica gigante demoníaca preenchendo-se de sangue e a pupila retraiu-se em tensão imediatamente, perfurada e morta. O olho desapareceu em uma gosma cinza e negra logo após.
– Esses olhos estão irritando já… eu cuido deles para você, tudo bem? – ela sorriu doce ao ver os olhos arregalados dele cheios de admiração pela sua técnica e habilidade.
– H-Hai!
Uma combustão abaixo de seus pés e ele já estava voando na direção da bacia de carne, tentáculos imensos surgindo de todos lados a modo de atrapalhar e rasgar sua carne—ou, ao menos, cansá-lo para que outros pudessem fazê-lo—, cada um deles encontrando o fio quente de sua espada—! Olhos… Mortos. Trabalho exímio da veloz Hashira que o seguia com o requinto e silêncio de uma aranha na noite, sua espada sumindo à reflexão das chamas e do luar. O estilo de combate era impressionante além da conta, os anos de treino duro e disciplina infernalmente acirrada que foram postos para alguém chegar em tal posição de poder era… insano!
Simplesmente fazia seu coração entrar em chamas com apreço! Ele queria chegar algum dia a esse nível de poder, pois esse é o nível onde campeões como Rengoku-san verdadeiramente brilham!
Esse é o nível que se tem que ter para enfrentar Muzan…
E só poderia ser alcançado atravessando qualquer limite do agora!
Apertando o punho de sua lâmina e forçando o corpo velozmente deteriorando-se de uma luta que durava muito mais do que o necessário, Tanjiro prendeu o ar restaurador em seus pulmões e espalhou todos para as fibras de seus músculos; cálcio de seus ossos e vermelho de sua corrente sanguínea, as chamas nascendo da fluente em seu coração chegando aos seus punhos marcados por anos de esforço e, finalmente, engolfando sua Espada do Salgueiro nas chamas vorazes do Sol.
– Hinokami Kagura: Enbu!
A Hashira em seu encalço dançou ao redor das suas chamas com dezenas de perfurações nas dezenas de olhos que apareciam, dando-o foco completo em sua própria missão. O inferno que seguia o trem foi o palco de mais uma de seus shows de Kabuki, uma linha de labaredas espalhando-se como aviõezinhos de papel e seguindo-o enquanto ele usava os tentáculos como escadas, rasgando a lâmina na carne macia e usufruindo de todo e qualquer impulso que ele podia produzir através das explosões cronometradas da técnica do anel solar—Asahankei—, abaixo de suas solas, o intuito de chegar dentro da bacia e destruir a traqueia do monstro rapidamente se transformando de missão para resultados brilhantes.
E o oni sabia disso. Ele sabia que Shinobu também não podia cortar sua carne grossa.
Foi quando Tanjiro chegou no chão, já preparado para avançar, que uma cúpula enorme de carne preparada de antemão fechou-o do exterior em um mundo escuro, olhos arregalados já pronto para ativar a técnica do purgatório—Rengoku—e destruir tudo isso…
Mas ele estava cercado de olhos.
… Isso não ia quebrá-lo.
Ele se matou dentro do sonho, voltando ao mundo de olhos arregalados, olhos com a escritura “Lua Inferior 2” sendo suas boas-vindas antes que o sonho voltasse a ele.
O ciclo se repetiu.
Ele não ia ser quebrado! Ele ia se matar quantas vezes fossem necessárias!
Vez após ver, dezenas, centenas talvez, sua lâmina rasgou o seu pescoço no mundo dos sonhos… No mundo escuro dos sonhos. Essa seria apenas mais uma de muitas, quase banal.
Ele ia voltar ao mundo acordado, ele ia proteger a todos.
Ele lutaria até o final.
– … Jabara!!
O que foi esse som? Não importa, deve ter sido apenas um truque do oni.
Apenas rasgue seu pescoço mais uma vez e saia desse mundo de sonhos, volte para o mundo real e tente acordar de olhos fechados—
De repente, seu centro de gravidade mudou.
Uma velocidade assustadora o puxou com força, um grito feminino excruciante estourando em suas orelhas e fazendo seus olhos abrirem-se arregalados… Mas ele não tinha se matado.
Não era um sonho.
Segurando-o pelo haori branco e vermelho de Tsuguko das Chamas e perfurando os olhos apenas com a espada na mão esquerda, Shinobu-san afastou-se da bacia de carne com um olhar intenso em sua face, um cheiro estagnante chegando em suas narinas… Cheiro de sangue humano—e glicínia? Quase em câmera lenta, ele encarou o braço direito dela, os tecidos sempre tão imaculadamente finos da Casa Borboleta, agora em um estado de sangria súbito e entardecido. Os dedos dela estavam quebrados e arroxeando, toda a extensão do braço distendida e tensionada horrorosamente, assim como o cheiro nauseante de osso exposto vinha de algum lugar.
Tanjiro quase empalideceu ao juntar as peças.
De algum modo, ela rasgou a cúpula de carne, utilizando de uma força que ela não tinha e ultrapassando muito além de seus limites apenas para tirá-lo lá de dentro e impedir que ele se matasse, enganado na diferença de realidade e sonho, uma compreensão assustadora de qual era certamente a intenção do oni. Suando em balas e de olhos selvagens, cabelo desarrumado e parte do haori de borboleta perdida, Shinobu pousou com toda a graça possível, soltando-o no metal.
– Essa… é a realidade. Tente não confundir novamente, eu só tenho um braço restante. – seu braço quebrado e pingando sangue foi um contraste mórbido com o doce sorriso em seus lábios e o olhar cansado, uma pitada de humor em suas palavras. – E não se preocupe comigo; vamos tentar novamente a nossa investida, eu consigo usar a mão esquerda tão habilmente quanto a direita—você vai precisar de algo muito mais rápido do que aquela técnica. – os tentáculos já vinham na direção deles, Shinobu erguendo-se com um suspiro alto e apertando a espada fina em sua mão esquerda. Tanjiro, entretanto, não a respondeu.
Tal resiliência em face dos mais terríveis machucados, levantando-se e pondo a vida dos outros a frente da sua imediatamente…
Essa era a mesma pessoa que ele conheceu antes?
Ele não conseguia realmente sentir o cheiro dela, mas quando seus olhos se encontraram, nenhum veneno ou vontade de causar dor por trás daquelas joias, apenas certeza de que suas ações hoje estavam mudando o curso da história—dentro desse trem pode haver um futuro presidente, um médico que salvará vidas, um General que trará glória ao Japão e uma mãe ou pai que trarão uma vida linda ao mundo—, atrás daqueles olhos de uma médica e de uma Hashira, ele viu a verdadeira vontade de proteger tudo isso.
E seu coração se incendiou!
Virando-se na direção da bacia de carne que era a locomotiva, Tanjiro respirou fundo…!! E fogo explodiu ao seu redor, o que sobrou do seu haori levantando-se com a potência das chamas. Todo seu corpo estava dolorido com o uso contínuo de suas técnicas de Respiração das Chamas e Hinokami Kagura, a produção de fogo exigindo mais oxigênio para queimar a cada momento que essa luta tão, tão longa se estendia. Continuar a usar suas técnicas mais poderosas apenas ia cansá-lo mais ainda até o ponto de que ele cometeria erros horríveis… Erros que custariam vidas.
Mas se ele não fizer nada, então ele vai morrer mesmo assim!
… E, nessas situações, a beleza de sua ideologia brilha mais forte, a resposta sendo tão absurdamente simples que podia fazer alguém rir: Ele tem que usar tudo de uma só vez então!
– Hinokami Kagura… – seus músculos se incendiaram. Essa técnica é a mais difícil em todo o alfabeto de Formas da Respiração do Deus do Sol, consistindo em um sapateado imparável, ao contrário de uma dança de dois passos—início e ataque—, como era em Enbu, Yokatotsu ou Shyakkotsu… Mas também era tudo que ele podia chegar sem o auxílio de uma segunda espada, considerando que a maioria das técnicas de Kagura cresciam em força de acordo com a quantidade de ferrugem que deixava a lâmina.
De joelhos tensos e rígidos, chamas comendo o ar ao seu redor com voracidade glutônica, Tanjiro mapeou todo o caminho daqui até a traqueia do monstro em uma baforada, confiando em Shinobu-san para lidar com todo e qualquer olhos que pudesse tentar pará-lo em seu caminho.
E então tudo se conectou.
Ele tinha o caminho adornando no seu subconsciente, Shinobu-san encontrava-se no melhor que ela conseguia da Respiração de Concentração Total, os tentáculos não podiam mudar sua direção.
– Nichiryu Kaburimai!!
E, das brasas que lentavam o seu haori no ar, um imenso dragão de fogo serpentino alteou-se em toda sua ferocidade. Todo tentáculo a frente foi carbonizado, o metal abaixo de seus pés virando lama e o próprio ar tornando-se fumaça, a fera magnânima no fim do fio de sua lâmina rugindo como o soberano que reina acima de todos, como é dito na mitologia que a cerca.
De repente, enquanto ele rasgava seu caminho em um rio colhido da superfície do Sol, o cheiro do trem—até então tomado pelo odor de oni e a queima de carvão—, tornou-se medo.
Nenhum tentáculo foi páreo para o ápice de sua habilidade e força com uma única espada, Shinobu removendo qualquer empecilho que pudesse entrar no caminho e, dessa vez, quando ele alcançou o chão gelatinoso, nenhuma caixa de carne que o oni criasse conseguia segurá-lo, a velocidade de quebrar o próprio fluxo do vento tornando-o um vulto para o oni trem, a tática do demônio mudando de tentar atacar com tudo para defender-se desesperadamente…
Mas quando Tanjiro pulou alto, olhos encarando diretamente o meio da traqueia do oni e um grito de guerra rompendo para fora de sua garganta, foi esse o momento que o oni entendeu o verdadeiro conceito de pesadelo.
Silencioso como a cova; punitivo como o Ceifador e tão assustador quanto o Sol. Tudo isso foi a imagem refletida por Hanafuda quando o dragão que explodia continuadamente como uma piscina de lava desceu em um corte de 180° limpo, ignorando completamente o pequeno morro de carne que o oni conseguira levantar às pressas para se proteger… e cortando a locomotiva ao meio! Puro aço, a carne poderosa e levada a uma dureza que lembrava rochas pesadas que sobreviviam centenas de anos aos elementos erosivos da natureza, dividido em duas partes como se fosse nada além de um pedaço de tecido de assoar o nariz.
A quietude perturbadora quando a parte de trás colidiu com a da frente durou apenas meio momento, todo o trem descarrilando em uma descarga abrasiva, sua fúria de metal fazendo a própria terra tremer violentamente com o resultado.
Tudo aconteceu tão rápido quanto uma piscada.
Em um momento, o mundo era composto completamente de suas chamas justiceiras e a missão era matar o demônio; depois, seu corpo inteiro estava girando no ar e ele queria vomitar; terminando então com uma salva de palmas explosivas, tudo doendo ao ter seu corpo acertando o chão como uma boneca de pano.
A grama fria e úmida contra sua pele e roupas levemente queimadas e rasgadas era um alívio para o aquecimento intenso que ameaçava consumir seu próprio coração e tecido pulmonar ainda mais, o limite de ambas respirações encarando-o nos olhos.
Mas… Ele venceu.
Ele matou outra Lua Inferior.
O cheiro de queimada cessou lentamente, a umidade do ar impedindo o alastre do fogo florestal sem nenhum combustível constante, como era o caso de suas chamas das duas respirações. Depois, o cheiro forte de oni morreu e murchou com velocidade, sumindo desse plano em pouco menos de um minuto, substituído pelo doce cheiro de pessoas acordando, desespero e confusão em massa, choros de crianças e alguns resmungando enquanto massageavam suas cabeças doloridas… Cheiro de vida. E havia o cheiro de Rengoku-san, sua irmã, Shinobu-san e Kanao também, o que era muito bom. Seu otimismo trouxe um pequeno sorriso ao seu rosto enquanto ele trocava a respiração para o seu modo curativo, lento e contínuo, aproveitando o pequeno silêncio que seguia a execução da sua segunda Lua Inferior do mês.
Ele realmente espera que isso não vire um hábito… Ao menos não tão cedo.
Por outro lado…
Ele podia se acostumar muito bem com o travesseiro improvisado que surgiu embaixo de sua cabeça, sua visão enchendo-se de um doce sorriso e olhos perolados tão bonitos quanto, cabelos negros numa cascata luxuriosa que terminava cedo demais. O anjo sorriu quando seus olhos se encontraram, dedos um pouco rígidos pela constante luta correndo através dos seus fios vermelhos e dando-o essa sensação quase paradisíaca de anestesia.
Nem parece que ele acabou de cair de um trem desgovernado. Quem sabe ele não tenha errado o tempo da técnica e espatifou-se no chão do trem e, então, morreu? Como ele é suposto a diferenciar esse momento com ela do próprio Éden?
– Eu acho que quebrei alguma coisa… – ele falou primeiro.
– Que coincidência. – a leve risada dela foi uma sinfonia da melhor qualidade pros seus ouvidos. – Rengoku-san e eu e, bem, Nezuko-san defendemos todo mundo enquanto você e a minha mestra lutavam contra o oni. Nezuko-san foi gentil o suficiente para curar o braço dela. Ela até a abraçou, sabe? Depois ela desmaiou por causa dos machucados—foi uma noite difícil para sua irmã.
– Hum, parece algo que Nezuko faria. Rengoku-san falou algo sobre? – Kanao riu um pouco mais.
– “Hahaha, você está entristecendo minha filha! Abrace-a de volta, Shinobu!” – Tanjiro riu com cuidado da tentativa falha de imitar a voz do seu mestre, muito monótona e toda errada nos picos mais excêntricos dele; mas ainda engraçada.
– E os passageiros, estão todos bem? Houve um que Shinobu-san injetou com um veneno do sono e deixou perto da entrada do vagão antes da locomotiva. – seu sorriso caiu um pouco ao lembrar do olhar desesperado daquele maquinista, louco por um “sonho” perfeito, assim como banhado na tristeza desolada da perda que havia mesclado ao próprio cheiro de sua existência.
Seu coração enchia-se de raiva com a crueldade sem fim desse oni, usando pessoas indefesas com promessas vazias… Mas agora ele está morto, e não há lugar na próxima vida para ele.
– Eles estão todos seguros, Rengoku-san protegeu todo mundo quando o trem ficou desgovernado—foi incrível.
– Perdão por isso… Não estava considerando quão longe eu ia cortar no momento.
– Eu digo que foi um corte que você deveria encher-se de orgulho, meu garoto!! Muito bem executado e estrondoso no departamento de poderio! – a voz vívida e cheia de determinação de Rengoku-san aproximou-se dele, preenchendo Tanjiro com ainda mais felicidade e calma enquanto observando-o aproximar-se com sua Espada do Salgueiro em mãos. – Devo dizer, eu ouvi o rugido do Kiyohime de Kagura e tive arrepios! E cortar uma locomotiva inteira?! Isso é algo que eu consegui apenas ao fazer 18 anos—passo a passo, você se torna mais poderoso do que eu! ESTOU ORGULHOSO! – a energia tão quente dele, junto do conforto de Kanao, simplesmente afastou-o da dor intensa e ajudou em sua recuperação, rindo com gosto ao lado de seu mestre que, de joelhos, colocou a Nichirin do Salgueiro em seu devido lugar na bainha do garoto.
… Houve um pouco de hesitação no rosto de Rengoku, mas que ele forçou-se a engolir antes de virar-se para Kanao exibindo nada além de gentileza e resolução em seus olhos vermelhos.
– Você também lutou com o prestígio de uma grande guerreira, retiro todas minhas infrações à sua honra, menina… Mas você não está aos pés do meu aprendiz! Ainda falta um caminho longo para você trilhar! – ele deu alguns tapas na cabeça de Tanjiro, tudo enquanto olhava cheio de fogo para o nada e ria estrondosamente, chamas imaginárias cercando-o.
– Eu sei! JURO QUE VOU FICAR MAIS FORTE, RENGOKU-SAN!! – com um grito intenso, tentando espelhar o melhor que ela conseguia a vivacidade de Rengoku, Kanao exalou o cheiro mais puro de determinação que ela conseguia produzir, consequentemente deixando Tanjiro de olhos arregalados e surpreso e, bem, genuinamente feliz. Ele pensaria em viver mil anos antes de imaginar uma Kanao gritando cheia de determinação… Mas aconteceu diante dele, impossível de ser negado.
– IMPRESSIONANTE! ESTOU ANSIOSO PARA VER, GAROTA! – ele gritou ainda mais alto, finalmente começando a erguer-se da posição agachada, olhos sob Tanjiro. – Bem, chega de lerdeza, então! Shinobu precisa de nossa ajuda para lidar com os passageiros, menina! Enquanto que você, Tanjiro, precisa de água e sono!
– Eu ainda consigo andar, se eu forçar um pouco… Acho que posso aju—
– Impossível! Você vai descansar, garoto! – os braços cruzados e o olhar no horizonte não deixaram espaço algum para discussão. Bem, ele tinha algumas coisas quebradas, de todo modo…
Não que ele fosse admitir abertamente.
Suspirando ao ser negado a chance de redimir-se por ter criado um monte de perigo desnecessário ao cortar o trem, Tanjiro estava pronto para se levantar-se com a ajuda de uma gentil Kanao, já imaginando que toda essa provação infernal tinha acabado.
Até que algo colidisse com o solo…
E o mundo parou.
O nariz de Tanjiro estava muito tensionado ainda, então nenhum cheiro chegou a ele; portanto, virar o pescoço e ter a visão invertida foi o modo de entender o que foi esse barulho estrondoso…
A fumaça ergueu-se lenta e lânguida, nenhuma promessa enquanto revelava rapidamente a silhueta de um… homem pálido com várias marcas azuis pelo seu corpo, roupas de lutador de rua abraçando-o e sem nenhum chinelo, um sorriso em seus lábios…
“Lua Superior 3”
—E havia um punho na frente do seu rosto—!! Fogo cegou sua visão momentaneamente, o ar engasgando com a definição de poder na forma de uma postura neutra, ombros erguidos e espada pronta, as costas do seu pai adotivo em sua frente….
Seus olhos lentamente enchiam-se de terror ao voltaram para o homem de cabelos salmão, o braço musculoso divido ao meio e sangrando quase sendo um mistério para o ex-queimador de carvão; ele nem tinha visto Rengoku-san cortando-o durante a técnica de respiração—! Ele balançou o braço, e estava curado.
…
…?
Por que ele conseguia ver o lado do rosto de Rengoku-san refletindo-se no ar? Durou por apenas meio segundo, o cérebro mal processando antes de um rápido brilho quase imperceptível para o olho humano acompanhar—
Com um segundo giro de lâmina acompanhado de chamas mais fortes do que qualquer uma que ele pode sonhar em produzir no seu estado atual, Rengoku destruiu a… estaca de gelo? Os olhos de Kanao se arregalaram subitamente, pupilas loucamente escaneando o ar e a mão que segurava a espada tremendo.
Ela…
… Não tinha visto o ataque chegando.
De trás do demônio pálido, sorrindo como se fosse um dia ensolarado e ele estivesse tomando seu sorvete favorito, vestindo roupas brancas leves e confortáveis, a pele tão branca quanto: outro homem fez-se presente como se ele não fosse grande coisa, seus olhos de arco-íris simbolizando o contrário enquanto um leque abanava seus cabelos claros preguiçosamente; “Lua Superior 2”.
A ficha caiu…
E, entre ele e Duas Luas Superiores de Muzan, havia apenas Rengoku-san.
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