Londres,UK
Memórias de Setembro de 1976
— Pelo bom Deus, Delilah… Você se faz muito de difícil! — Madalena falava em um tom de voz choroso, puxando meu tornozelo numa tentativa falha de me tirar do sofá.
— Desista, Madalena! Eu não sairei deste sofá por nada! — Exclamei um pouco cansada esparramada sobre o sofá e meu bom e velho livro sobre anatomia em mãos.
— Ah Delilah! Você é uma vadia sem coração. Se ame mais, e faça o favor de ir a esse show.
— Tenho que estudar.
— Não mais…
Madalena puxou o livro de minhas mãos e ficou balançando-o em minha frente feito uma criança sapeca. Para seu desgosto, não reagi, apenas fiquei observando-a com desprezo, o que fez ela bufar chateada.
— Qual o seu problema? — A moça de cabelos esvoaçantes perguntou,
— Faço essa pergunta para você…
— Delilah… Esquece o lance da cafeteria… Esquece Freddie Mercury… Você só trabalha e estuda feito uma condenada. Dê para si o lucro de curtir um pouco.
— Da última vez que você falou isso, acabei debaixo de um homem e não estou a procura disso…
— MAS… Veja por esse lado, você conheceu o Bruce… Melhores amigos… Não é?
Ela me lançou um sorrisinho ameno, o qual retribui com uma virada de olhos, deixando Madalena descontente.
— Vamos Delilah… Você precisa se divertir…
— Já me diverti demais para uma vida.
— Então se diverte por duas vidas e meia.
Respirei fundo, meus ânimos começavam a dar sinais de desestabilidade. Pelo visto, já foi bem notório que sou um ser explosivo, uma dinamite pronta para explodir… E eu não queria perder as rédeas, não ali, com a pobre Madamaluca (como Bruce diria).
— Curta por mim, Madalena!
— Deli, mas...
— Mada… Apenas vá! Leve um amigo ou qualquer coisa que queira. Eu não vou sair desse apartamento. Desculpa, amiga… Mas hoje é apenas um sábado qualquer.
— Você não larga o osso! — Madalena exclamou um pouco irritada. — O puro rancor.
— Rancor, meu nome do meio.
— Saiba que Lúcifer foi expulso do céu para as terras sombrias por ser orgulhoso, viu Dona Delilah “Grudje” Simons.
— Que bom… Foi assim que surgiu o capitalismo! — Falei brincando, mas mesmo assim mantendo meu ar sério por conta do cansaço.
Levantei em um pulinho do sofá, dirigi-me até aquela moça devastada em minha frente e coloquei minhas mãos em volta de seu rosto, fazendo assim eu segurar aquela cabeça perdida em algum lugar dos seus extravagantes cabelos.
— Divirta-se!
— Jura que não…
— Juro!
— Ok! Desisto… Hyde Park lá vou eu!
Madalena saiu pomposa pela sala em rumo a porta, eu não tinha dúvida que aquela bolsa que ela carregava estava repleta do maior portal para um mundo alternativo de alucinações… Ela era desse ramo… Óbvio que não deixaria de resgatar um ouro. Todavia, a morena tinha um outro ar, estava de fato feliz, cantarolando alguma música bem provável do Queen.
— Quem sabe, eu conheça Roger Taylor esta noite! — Ela exclamou lançando-me um olhar cheio de malícia e depois disso, com um simples aceno, partiu eufórica rumo ao show.
“Ela de fato gosta dessa banda!” — Pensei cruzando os braços e soltando um sorriso cansado.
Eu não sei ao certo dizer o que eu estava a sentir no momento. Pensei que a calmaria preencheria a minha atmosfera, porém senti o inverso. O silêncio no apartamento era ensurdecedor e o vazio era de certa forma tumultuante. Senti-me aflita e incompleta, olhei para o meu redor e não encontrei nada além de um minúsculo apartamento bagunçado.
Sentei-me no sofá novamente, decidi voltar aos estudos, mas minha cabeça flutuava a cada parágrafo que eu tentasse ler.
“Então você recusou, senhorita Simons, uma noite virada em um grande show no camarim de uma banda de rock?” — A voz do meu subconsciente mais sujo invadia minha mente em um blefe atormentador. — “Quem é você, não reconheço…”
— Preciso focar! — Falei tentando voltar aos meus livros.
“A vadia de Howshaw prefere aos livros? Isso te preenche agora? Claro que não. Você sente minha falta...”
— Oh meu Deus! Faça parar… — Gritei comigo mesma, tampando os ouvidos.
“Ah, meu brotinho, você quer esquecer quem te manteve viva… Quem te deu forças…”
— Você é apenas eu…
“Eu sou sua máscara, sua máscara preferida… Eu te mantive de pé, eu que te fiz sorrir quando tudo ao seu redor explodia…”
—CHEGA! — Gritei pulando do sofá.
Minhas mãos tremiam e minhas pernas mal se mantinham firmes, meus olhos se desesperaram em lágrimas… E mais uma vez, eu me via na estaca zero. De frente ao meu pior eu, ao meu mais sujo subconsciente, à Devil’s Pepper.
Corri ao banheiro, eu sentia o coração acelerar e a respiração cair. Goliath estava dormindo na pia e minha presença o acordara de alguma forma preocupado.
— Onde está os calmantes? — Indaguei para mim, mesmo sentindo a grande dificuldade de respirar.
Vasculhei as prateleiras até achar aquele potinho de comprimidos, os quais não hesitei em engolir um ou mais… Quando senti meu coração se acalmar e minhas pernas se estabilizarem firmes, tive a coragem de me olhar no espelho e não vou mentir que me assustei com o que eu vi: apenas uma garotinha.
— Uma garotinha que viu o seu pai, homem da sua vida, morrer… Uma garotinha sem mãe… Uma garotinha infeliz... Apenas uma… garotinha! — Exclamei em alto e bom tom de voz.
“Eu sou sua máscara, sua máscara preferida…”
Aquelas palavras rondavam me minha mente outra vez.
Não é fácil perceber cedo que estamos sozinhos no mundo. Criamos máscaras para nos proteger, para nos esconder da realidade infeliz. O problema é quando preferimos viver com as máscaras, escondendo e mentindo para si mesmo, chegando ao ponto de não saber nem quem somos.
Devil’s Pepper era nada mais nada menos eu mesma, mas uma máscara… Uma máscara que ousei em usar por muito tempo. E a imagem de minha face no espelho, aquela imagem assustadora da garotinha espantada, era o meu verdadeiro ser despido aos meus gigantes olhos claros.
— Quem sabe, eu sinta falta de minha máscara!
“Meow” — Goliath me interrompeu com um leve miado, esfregando seu narizinho em uma de minhas mãos apoiadas na pia. Ele sabia como me confortar, ele me conhecia muito bem, ele me fazia sorrir — “Meow Meow”
— Oh meu garoto! Acho que você tem razão, um banho de espuma lendo alguma história cairia tão bem.
“Meow”
— Qual história você quer que eu leia?
“Meow”
— Admirável Mundo Novo, outra vez? Boa, Goliath! Você é muito inteligente, rapaz.
“Meow”
Corri até a estante da sala, vasculhei ela até achar o Admirável Mundo Novo. Eu amava aquele livro, sempre fui muito fissurada em ficção científica e tecnológica do futuro bem distante.
Não demorei muito para preparar um bom banho de espumas.
Cigarro entre os dedos, livro na mão, Goliath atencioso às minhas palavras e o corpo submerso em uma água relaxante espumada.
Perfeito! Era o que eu precisava…
Narrei atenciosamente aquela magnífica história, sempre comentando algo que fazia Goliath me responder com um singelo miado despreocupado.
— Imagine, Goliath, uma sociedade com robôs, aparelhos que só em apertar um botão manda uma carta virtual e conexão via ar de aparelhos ultra modernos. Isso é a loucura mais sensacional.
“Meow”
— Sim… Sim… Mas imagine se toda essa alta tecnologia se virasse contra você…
“Meow”
— Ah, que medo… Mas isso é uma profecia que Aldous Huxley escreveu em Regresso ao Amirável Mundo Novo…
“Meow”
— Tanta tecnologia seria de fato legal, mas viver aos comandos de uma máquina… Uuuuh! Eu não gostaria… Mesmo que eu… Eu… Vivo as ordens de uma máquina, só que uma diferente dos livros.
Goliath sentiu meu semblante cair outra vez, em um pulo calculista, pousou no chão do banheiro todo charmoso e fez questão de passar seu pelo macio em uma de minhas mão.
— Você sabe me fazer feliz, Goliath!
“Meow”
— Você tem razão garoto, já está na hora de sair do banho.
Corri estremecida da banheira até o quarto, Goliath sempre aos meus pés, miando e roçando seu pelo macio como uma mensagem de conforto, era incrível quando ele sabia que eu precisava de uma doce companhia, era meu doce anjo da guarda.
Vesti-me com uma leve camisola de cetim de um tom rosado, eu até me sentia uma princesa naquela coisinha tão delicada, algo que minha consciência se conformava por saber que não era de minha natureza ser um princesa.
— Sou uma bêbada em abstinência!-- exclamei sem animação, olhando-me no espelho — Olha essas olheiras, Goliath! Estou um trapinho!
“Meow”
— Não fale bobagem, Goliath. Estou sim um trapinho!
“Meeeow”
— Ah meu anjinho! Te amo tanto!
Eu tomei Goliath em meu colo, abraçando em um mimo de meus carinhos. Pus-me na cama, levando-o junto comigo, passei alguns segundos olhando aqueles olhos tão amarelos me observando, enquanto eu passava meus dedos por detrás de suas orelhinhas.
— Um bom sono, é o que precisamos, meu anjo. — Falei num leve sorriso sentindo o conforto de Goliath.
Restava-me naquela noite qualquer, em uma Londres de caos, dormir em minha cama ao lado de meu gato. Estiquei o braço para desligar o abajur, os olhinhos de Goliath ainda brilhavam intensamente mesmo na escuridão de meu quarto e eu… Bem, eu… Lutei para dormir. Virei de um lado, revirei-me de outro, bolei de cá para lá no meu pequeno espaço, contei ovelhinhas e cheguei a me desfazer do meu travesseiro. Mesmo meu corpo e mente cansados, eu não conseguia dormir, nem ao menos fechar os olhos para uma tentativa. Definitivamente, eu me encontrava na pior situação possível: um ser com sono sem sono. A insônia contraditória sem ao menos me dá uma explicação.
—-Merda! — Exclamei para mim mesma, enquanto meus olhos miravam o teto vazio de meu quarto.
“Meoow”
— Também não consegue dormir, Goliath? — Voltei-me ao meu gato, o qual me olhava indiferente.
“Meow”
— Hoje a noite não está sendo nossa companheira… Mas tudo bem, temos a companhia um do outro, não é?
Goliath pulou da cama, indo diretamente para a porta numa tentativa que eu não sabia se era de me mostrar algo ou fugir de mim.
Obedeci os comandos daquele ser independente, assim que abri a porta, Goliath jogou-me um olhar convidativo para seguí-lo, e em poucos segundos já nos encontrávamos na cozinha.
— Está com fome?
“Meow”
— Tudo bem, vou pegar leite para nós.
Foi simplesmente o que fiz, enquanto eu observava os ponteiros do relógio demarcar que já se passava das duas da madrugada. Madalena ainda não estava em casa e sei que não chegaria tão cedo (pelo menos eu achava). Goliath esperava ansioso em sua tigela por um pouco de leite.
— Aqui estar, leite para nós! Quem diria, Delilah Simons numa noite de sábado tomando leite… Um brinde para os sem sono.
“Meow” Goliath miou dando duas lambidas no leite e saindo em disparada para o sofá da pequena sala, a gêmea siamesa da cozinha.
— Que gato safado! — Exclamei vendo sua tigela ainda completa de leite e caminhando em direção a uma boa espreguiçada no sofá junto de Goliath.
Olhei para tudo que nos cercava naquele momento, era uma sala muito pequena de fato. Livros e vinis lutavam por um espaço na pequena estante, a televisão quebrada só me deixava mais frustrada por não ter nem um pouco de entretenimento gratuito, algumas mandalas espalhadas pela sala só ressaltava que duas dopadas viviam ali, as bitucas de cigarro esparramadas sobre o tapete colorido só confirmavam a interpretação anterior e a mesinha de centro era enfeitada por uma toalhinha de tricô amarela, junto com um imenso narguilê e um telefone vermelho berrante.
“Espera… Telefone?”
— Que tal a gente ligar para alguém, Goliath? — Perguntei animada tomando em meus braços Goliath e roubando o telefone vermelho da mesinha para meu colo.
“Meeeoww”
— Dependendo para quem ligarmos, não está tarde, meu anjinho.
“Meow”
— Hmm… Que tal para o Bruce? Não é uma má ideia, não acha? Ele nunca dormi cedo e ele nunca deixaria de me atender… Vamos lá!
Girei a roleta dos números suavemente, já mais calma por achar uma descontração. O som de uma só frequência tomou meu ouvido na minha espera angustiante para que ele atendesse.
Cheguei a pensar em desligar,mas fui interrompida de meus pensamentos quando o leve som da espera se quebrou em um doce chiado. Havia alguém na linha além de mim.
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