- O que é isso?- Pergunta Emma ao agarrar as grades do portão .
- Um portão que conecta o lado de dentro com o lado de fora.- Responde Ray parecendo estar entediado.
- Fora? Nós nunca estivemos do lado de fora...
- É porque estamos aqui desde que nascemos.- Conclui Norman.
- Então é isso que a Mama sempre diz: "Nunca cruzem o portão nem a cerca detrás da floresta, porque é perigoso!"
- Ela diz isso, mas não é verdade.- Diz Ray com o olhar fixo no outro lado do portão.
- Não é?- Questiona Norman, ligeiramente surpreso.
- Ei Ray! O que você faria lá fora?- Anima-se a ruiva.
- Eu não sei... E você?
- Montaria em uma girafa!
- Boa sorte.- Deseja o moreno, desanimado.
- Esse portão... Do que ele realmente está nos protegendo?- Pergunta Norman, pensativo.
"É uma pena que não exista nenhum lado de fora para nenhum de nós" penso, observando de longe o trio encarar as grades.
Ouço o sino tocar no "orfanato". Seis horas, hora de acordar. Desço da árvore habilmente e começo a correr segurando com força o braço do meu ukulele. Droga, eu perdi a noção do tempo.
Eu não dormi absolutamente nada essa noite. Eu nunca consigo dormir na véspera de "adoção" de alguma criança. Então fugi do dormitório às duas da manhã com o meu ukulele e passei as últimas 4 horas no topo de uma árvore cantarolando.
Eu devia ter voltado para o dormitório às cinco, agora eu vou ter que pensar em alguma desculpa pra dar pra Mama e as outras crianças. Droga! Droga! Droga Mia!!
Assim que entro no dormitório escuto Thoma e Lani gritando enquanto correm de um lado para o outro. É tão bom ver todos felizes logo de manhã.
Rapidamente guardo meu ukulele embaixo da cama e começo a arruma-lá, tentando passar despercebida. É, eu acho que consegui. Estão todos tão animados e eufóricos que nem notaram minha presença.
Eu acho que posso adicionar invisibilidade na minha lista de super poderes.
Espero todos saírem e vou logo em seguida até o refeitório, me escoro na parede em frente as mesas e fico observando as outras crianças, até que dou de cara com um emo parado na minha frente.
- Bom dia, Mia.
- Bom dia...- Digo quase sussurrando.
- Bom...- Engulo seco quando ele se aproxima da minha orelha para cochichar.- Eu vi você passar correndo pela biblioteca em direção ao quarto, depois do sino tocar, você devia ter mais cuidado e não devia dormir lá fora, é perigoso.
- Eu não dormi.- Respondi seca.
- Pior ainda. Você precisa se manter saudável.- Retruca com um sorriso de canto. Ele tá falando sério?
- Sarcasmo? Logo de manhã? Sério Ray?
O moreno me responde com uma risada gostosa, antes de caminhar e se sentar ao lado de Nat.
Eu não sei se odeio ou simplesmente amo esse jeitinho dele: sério, sarcástico, irônico, zombeteiro e um pouquinho chato. Só um pouquinho.
Mas o que eu posso dizer? Nós somos farinha do mesmo saco. Os únicos que sabem a verdade sobre a Casa.
- Mia? O que você tá fazendo na biblioteca à essa hora?
- Eu poderia fazer a mesma pergunta...- Digo olhando a noite escura através da janela.
- Vêm. Vou te levar pro seu quarto, você precisa dormir, nem que seja por algumas horas.- Diz o pequeno Ray pegando no meu braço delicadamente.
- Pra que dormir? Você já se fez essa pergunta Ray? Por que nós fazemos o que fazemos, todos os dias, se vai todo mundo morrer afinal de contas?- Pergunto virando meu rosto para encará-lo com os olhos marejados.
- Mia... O que aconteceu?- O moreno pergunta, preocupado.
- Eu fui até o portão hoje. Eu sei que é proibido, a Mama sempre diz: "é perigoso". Mas... Eu queria me despedir... Eu... Eu vi...
- Ei, tudo bem...- Pronúncia o mini emo com os olhos arregalados.- Tudo bem... Você não precisa falar, eu sei que é difícil... Eu sei...- Continua, agora me dando um abraço apertado, me permitindo chorar no seu ombro.
- É isso o que acontece com todos que são adotados, não é? Eles... Eles... Todos...- Digo entre soluços, com meus abraços ao redor do pescoço do mais velho.
- Sim... Mas nós não podemos fazer nada Mia... Ainda não...- Responde Ray, acariciando minhas costas.
- Fazer o quê?- Questiono o soltando.- Não tem nada que possamos fazer. Somos só crianças contra a Mama e aquelas coisas, Ray.
- Tem sim Mia. Eu prometo. Um dia nós vamos sair daqui.- Diz o moreno com um sorriso angelical nos lábios.
Acho que essa foi a primeira e última vez que eu o vi sorrir assim, mas a imagem nunca mais saiu da minha mente.
- Agora vamos pro quarto okay? A Mama não pode desconfiar de nada.
Ainda hoje, depois de todos esses anos, me pego imaginando o porquê dele ter dito o que disse naquele dia.
Claro que nós éramos apenas crianças e eu tinha acabado de ver demônios colocarem o meu amigo morto, com uma flor vermelha cravada no peito, dentro de um caminhão como se fosse lixo.
Eles poderiam ter me visto e eu tive que sair correndo de lá, o mais rápido possível, eu sabia que teria que fingir que nada tinha acontecido e que provavelmente era assim que todos iríamos acabar: com uma flor cravada no peito.
Eu sempre fui uma criança muito inteligente, então na hora de dormir, eu deitei na minha cama e comecei a ligar os pontos, fazia todo o sentido. Éramos todos gado, bem alimentados e numerados. Carne sendo preparada desde cedo pro abate. Eu estava pronta pra aceitar aquilo, de uma forma ou de outra.
Então eu fui até a biblioteca. Muita coisa se passava pela minha cabecinha, não tão infantil como o esperado, mas que ainda continha uma certa inocência que se foi perdida, depois do ocorrido.
Eu esperava absorver toda a situação e terminar de chorar o que tinha pra chorar ali, sozinha, em silêncio. Mas ele apareceu e prometeu que um dia nós sairiámos dessa maldita fazenda.
A verdade é que eu não sei se quero, não sei se acredito que isso seja realmente possível. E nada disso importará quando eu estiver dentro daquele caminhão.
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