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História Lado Errado - 35 - Lídia


Escrita por: humarojo

Capítulo 36 - 35 - Lídia


Itália, Abril de 1992.

O barulho constante de pessoas se movimentando martela em minha cabeça que não pararia de doer nem se eu tomasse todos os remédios disponíveis por aqui. O gosto ardente da bebida banha meu estômago vazio e embrulhado enquanto olho fixamente para a o balcão de madeira do bar. Sei que minha mala permanece ao meu lado, mesmo sem dar nenhuma atenção ao objeto. Não me importo se me roubarem a mala. Eu já não tenho mais nada que importa.

Olho meu reflexo no vidro bem a minha frente. Estou linda. O fundo do poço realmente me fez muito bem para a pele. Ao meu lado, o homem de boa aparência me olha de relance. Dá pra adivinhar que ele também não está na melhor.

- Onde o senhor deveria estar agora? – considerando minha embriaguez naquele momento, eu realmente me superei ao dizer toda aquela frase em italiano de uma vez só. Parei de conversar em italiano no ano em que minha mãe morreu, mas aparentemente o idioma ficou guardado em algum lugar daí em diante.

Ele solta uma risadinha e me olha. Tomo um gole e espero que ele responda minha pergunta.

- Deveria estar tentando fazer um filho – ele diz num tom desanimado e eu rezo para ter entendido aquilo certo.

- Não sei se dá muito certo fazer essas coisas sozinho... mas boa sorte – balanço meu copo de leve em sua direção como um incentivo.

- Minha mulher teve dois abortos do ano passado pra cá – ele dispara sem cobrar nenhuma reação ou resposta. Claramente só precisava falar naquele momento. Falar até tudo passar – Eu não aguento mais viver nessa expectativa dolorosa... É...

- Triste? – completo.

- Exatamente – ele diz como quem fecha um negócio. Nenhum de nós está muito preocupado com o rumo da conversa, considerando que não nos veremos novamente tão fácil – e a senhora? Onde deveria estar?

Exalo o ar, levando meu pensamento exatamente para o último lugar onde ele deveria ir. Sinto vontade de socar meu próprio estômago ao imaginar como Fernando deve estar se sentindo no momento.

- Eu devia estar no velório da minha irmã – desvio o olhar para o lenço de Elena que repousa no meu colo, a única coisa da minha irmã que consegui trazer comigo.

- Meu Deus... – ele reflete, encarando um ponto fixo longe da minha vista e eu assinto sem encará-lo fixamente também.

O homem pede outro drink e se oferece para me pagar um, eu aceito educadamente tentando me lembrar de quanto tempo eu passei neste bar de hotel.

- E você ainda consegue chegar lá a tempo? – ele me pergunta e eu solto uma risada amarga que embala minha fala.

- Eu não conseguiria mesmo que quisesse... – bebo outro gole para puxar minha mente de volta para o lugar certo – Está acontecendo do outro lado do oceano.

- Americana? – ele pergunta minha nacionalidade casualmente.

- Brasileira – rebato e ele se surpreende por algum motivo desconhecido.

- Cristina também é brasileira... – ele expõe a coincidência de modo delicado.

- E Cristina seria?...

- A pessoa com quem eu deveria estar tendo um filho agora – explica.

- Cristina sabe que você está aqui? – pergunto retorcendo o lenço de Elena em minha mão.

- Ela definitivamente sabe que eu saí, mas não tenho certeza se sabe onde eu estou – ele reflete – Mas passarei a noite aqui de qualquer maneira... Nada como uma oportunidade de fugir das responsabilidades, certo?

Outra risada amarga vinda de mim toma conta do bar.

- Exato! – quase posso ouvir Fernando falar dentro de mim – Eu sou especializada em fugir de responsabilidades... pode até me contratar para um workshop se quiser.

As duas risadas se juntam numa canção bem orquestrada pela frustração e amargura. Tomo um gole do drink e continuo a rir.

- E então a vida deu um jeito de reunir os dois maiores irresponsáveis da Itália no mesmo bar de hotel? – ele debocha num tom engraçado.

- E ela fez um ótimo trabalho – nós dois finalmente nos encaramos e sinto pela primeira vez nas últimas quarenta e oito horas algo que se aproxime de apoio. O homem gentilmente estende o braço em minha direção e nos unimos em um aperto de mão.

- Antonello Santorini – ele se apresenta e solto um sorriso sincero.

- Lídia Baldini.

Brasil, 2017 
Domingo.

É engraçado ver como Fernando está visivelmente irritado com a presença de Antonello aqui. Ele provavelmente percebeu a antipatia gratuita que meu amigo deposita nele em solidariedade a mim. Saímos da mesa em sintonia, ele com Marcelo e eu com Antonello. Meu amigo caminha ao meu lado até a área externa da casa.

- Trouxe o que eu te pedi? – pergunto ao homem, que assente enquanto observa todo o ambiente.

- Sim, estão em uma das malas que eu deixei na sala – ele explica e eu simulo um suspiro de alivio caricato.

- Muito obrigado, Nello. Eu precisava desses remédios mais que qualquer coisa nos últimos dias...

- O que aconteceu? – ele pergunta de um jeito dinâmico, como se soubesse que algo me perturba – Você não me pareceu precisar de remédios pra dormir por um bom tempo aqui. Até me surpreendeu.

Num piscar de olhos Antonello acende um cigarro, quase não consigo acompanhar seus movimentos. Ele caminha alguns passos para longe mim, observando delicadamente tudo que o cerca.

- Eu saí na semana passada – o homem solta um “hm” confuso, mas logo entende o que saí significa – Visitei o túmulo. Visitei a casa. Estava tudo novo, Nello. Tudo inteirinho, tudo bonito até...

- Não é a mesma casa, Lídia – ele corta com uma firmeza impressionante. Uma firmeza que eu não aturaria de qualquer outra pessoa – É a casa de outra pessoa. O lugar é o mesmo, mas a vida continuou lá. A vida continuou em todos os lugares.

- Eu não sou criança, Antonello – me sento em uma das cadeiras e encaro a água da piscina por alguns segundos. Passo a mão pelo rosto e em seguida pelos cabelos – O problema é que a minha vida continuou paralelamente. Eu segui uma vida nova na Itália, mas a vida daqui ficou intacta. Os espinhos permaneceram prontos pra me machucar durante todos esses anos. Dói muito encarar a realidade que eu evitei durante tanto tempo.

O homem me lança um olhar de suporte. O olhar que trocamos desde o dia que nos conhecemos, que nos lembra que em qualquer situação, nós daremos um jeito de nos apoiar. Por mais bizarra que a situação possa ser.

- Isso vai fazer bem pra você, Lidi – sorrio para mim mesma ao ouvir o apelido reconfortante. É o jeito que Elena costumava me chamar. Me sinto verdadeiramente bem pela primeira vez em dias – Um dia você iria ter que encarar essa realidade de frente e entender o que ficou da vida sem sua irmã. Você pode até não acreditar, mas aquela vida paralela estava matando você aos poucos...

- Tanta coisa mudou em tão pouco tempo – Nello se aproxima se mim, colocando o braço em volta do meu corpo. Encosto minha cabeça no seu ombro e passamos a dividir confortavelmente aquela cadeira. Reflito em como minha vida ficará daqui em diante, sem o casamento de Marina que me mantinha aqui e sem nenhum motivo restante para estar na casa de Fernando. Penso se seria bom se eu realmente continuasse a viver no Brasil.

- Vai ficar tudo bem, Lidi... – ele me acaricia com a mão que envolve meu corpo e eu solto um suspiro, relaxando cada um dos meus músculos. Permanecemos alguns minutos em silêncio apenas olhando partes aleatórias da paisagem, cada um pensando nas próprias questões.

- Você não vai, certo? – pergunto, ainda aconchegada nos ombros do homem. Meu tom sai levemente autoritário mesmo com o clima tranquilo que paira entre nós.

- Pra onde? – ele sai do transe de pensamentos em que estava e inclina a cabeça para o meu lado.

- Pro sul. Atrás da Cristina.

- Eu vou ver minha filha, Lídia – ele protesta.

- Eu posso trazer a Catarina até aqui se você quiser, querido. Eu até pago a passagem – afirmo num tom quase maternal e ele bufa – E o senhor não precisa arrastar essa bunda italiana até o relacionamento bizarro que você tem com aquela mulher...

- E você quer me falar de relacionamentos saudáveis? Tem certeza? – ele debocha. E com razão.

- Eu não disse que estou melhor que você... Mas não dá pra negar que eu estou certa – solto uma risadinha e ele balança a cabeça em negação.

- Eu só vou concordar com você porque desisti de ir para o sul assim que cheguei aqui – finjo me render e dou um sorriso vitorioso – Não fique achando que tem todo esse poder sobre mim...

- Bom... se isso é poder meu ou não, pelo menos você tomou a decisão certa – dou tapinhas leves nas suas costas antes de me levantar e ele escapa um risinho reflexivo.

Antonello decide partir para o hotel e eu o levo até o taxi, planejando o próximo encontro no dia seguinte. Nos veremos no hotel para acertar as últimas reuniões com nossos clientes brasileiros e a vinda de Catarina para São Paulo. Tomo um dos remédios que Nello me trouxe e caio num sono pesado e escuro no sofá da sala, sem me preocupar muito com o que acontece a minha volta.

Sou acordada por Fernando acariciando meus cabelos suavemente. Não tenho certeza de quanto tempo se passou mas posso ver que já escureceu. Também não posso dizer que me sinto descansada. Acho que “mais-acordada-que-antes” é o termo certo. Ele me cumprimenta com um apelido antigo que me faz sentir confortável até no meio da bagunça que a presença dele significa nos últimos tempos.

- Boa noite – solto meio sonolenta e o homem sorri. Ele observa meu rosto com uma concentração grande a ponto de me deixar meio constrangida – O que foi?

- Nada. Só estou te olhando um pouquinho – ele explica de um jeito meio bobo e me sinto uma adolescente apaixonada pela milésima vez nesse ano.

Fernando se senta ao meu lado no sofá enquanto eu me ajeito.

- Nunca te vi cochilando desde que você chegou. Foi a chegada do seu amigo que te deixou relaxada assim? – ele pergunta, botando uma ênfase mínima na palavra “amigo”.

- Eu não estou relaxada – repreendo um pouco mais seriamente que eu esperava – Eu tomei um remédio, que aliás, foi meu amigo quem trouxe pra mim.

- Vocês são bem próximos pelo o que eu notei...

- Nós já fizemos – atropelo sua fala e ele me olha confuso. Não mudo de expressão ao explicar – Já fizemos sexo, se é isso que você quer saber. Uma vez. Estávamos muito bêbados no meu quarto de hotel da Itália.

- Eu não queria saber, Lídia. Obrigado – ele rebate, sem nenhum rastro de humor na voz.

- Agora sabe, querido – dou uma piscadinha pra ele, que faz questão de desviar o olhar.

- E agora? Vocês fazem sexo casual no escritório da vinícola? – ele questiona e eu quase rio. Penso em mencionar que ele foi o único homem com quem transei num escritório mas desisti. A última coisa que desejo fazer essa noite é alimentar o ego de Fernando com uma exclusividade imaginária.

- Por que você quer tanto saber, hã? Está fazendo uma pesquisa sobre mim? Quer o meu endereço italiano também? – não altero o tom de voz, mas faço questão de transmitir meu incomodo com o questionário.

- Só curiosidade – ele mexe com suas mãos inquietas em algum objeto, me deixando extremamente irritada – Queria saber um pouco de como é a relação de vocês dois...

Me levanto do sofá e sinto seu olhar me seguir. Penso no próximo cômodo da casa a me dirigir e tento me lembrar de onde coloquei os remédios.

- Nossa relação é ótima, obrigado – ele percebe minha confusão momentânea, e antes que eu possa perceber já está parado na minha frente com as cartelas de remédio na minha direção – Ah... obrigado.

Quase saio dali, mas Fernando me impede.

- Lídia... – ficamos a poucos centímetros de distância, nossos corpos se encostando no ritmo da respiração – O que está acontecendo, hã? Tem alguma coisa errada. Essa semana toda... o que aconteceu?

- Não aconteceu nada, Fernando – desvio dele de uma vez e me repreendo por rejeitar a distância repentina – Me dá licença...

- Você não vai me contar, certo? – ele me encara, ainda estamos próximos, mas dessa vez tenho a oportunidade de desviar o olhar – Você não pode me contar nada... É tudo um mistério. Tudo uma questão nova pra resolver.

Torno meu olhar para homem novamente e mal consigo ter controle da minha expressão.

- Você acha que tem algum direito de saber alguma coisa? – minha voz não vacila em nenhum momento, mas desejo profundamente escapar dali.

- Pelo o que eu vi hoje, você mantém bem estreitamente a linha de quem merece saber da sua vida...

- Ah! Pelo amor de Deus! – exclamo, já sem paciência pra carência patética do homem – Você já acabou?

- E o que eu tenho que fazer pra ter uma única conversa honesta com você, hã? – ele ignora completamente o que eu digo e continua falando. Assume um tom provocativo que me dá vontade de enfiar todos esses comprimidos em sua garganta – Vou ter que falar em italiano?

- Cala a boca, Fernando – tento pela última vez não alterar o tom de voz.

- Ou melhor! Eu posso consultar Antonello!! – nesse ponto eu poderia falar qualquer coisa e ele não ouviria uma palavra sequer. Sinto tanta raiva dele nesse momento que juro sentir meu sangue esquentar dentro do corpo – Ele deve saber o que acontece, não é? Ele deve saber de tudo... O que ele deve ser, hein!? O irmão substituto?

Os dois param ao mesmo tempo depois disso. Deixo os remédios caírem sem querer, mas meu olhar parou no rosto de Fernando. A expressão do homem congelou por alguns segundos. Ele sabe que me machucou e eu senti a dor. Sinto como se meu corpo tivesse dado um giro completo e minhas pernas vacilam por um momento, mas não deixo nada disso aparecer.

- Você não vai crescer, não é Fernando? – minha voz sai abafada. Um grito desesperado de dentro que por sorte escapou pra fora – Quando você conseguir expressar a porra da sua frustração sem tentar me machucar desesperadamente, aí sim nós vamos conseguir ter uma conversa honesta. Até lá eu vou ficar sozinha com os meus fantasmas...

- Não dá pra conviver com você desse jeito, Lídia... – ele diminui seu tom de voz notavelmente, falando quase num sussurro arrependido.

- Não vai ser um problema. Eu estou indo embora – disparo, recolhendo as cartelas do chão e me dirigindo ás escadas da casa – Eu tenho que me agarrar ás minhas próprias coisas, certo?

Subo as escadas rápido demais, chegando ao quarto rápido demais e arrumando minhas malas rápido demais. Tudo o que eu faço em seguida acontece muito rápido, até o instante em que me sento nua na cama macia do hotel e tomo mais um comprimido com um gole forte de whisky. E logo tudo fica devidamente escuro novamente.



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