— CAPÍTULO III —
Teach agus gairdín Mrs Ruoy
As duas semanas seguintes que Mary Ann passou no orfanato Santa Walburga não foram tão terríveis quanto a menina esperava, poderia até mesmo dizer que foram dias produtivos. Os colegas do orfanato passaram a atormentá-la ainda mais, puxando seus cabelos com mais força e rindo em voz alta sobre a menina estar indo na verdade para um sanatório, e não uma escola. As freiras, por sua vez, fingiam não ver como tratavam a menina ou, em alguns casos, riam junto e, discretamente, incentivavam as piadas maldosas.
Mary Ann sequer tentou desmentir os boatos. Ocupou-se em conter sua magia o máximo que pôde, apertando as unhas contra as palmas da mão quando sentia os dedos formigarem, até sentir seu próprio sangue lhe melar as juntas.
Aquilo certamente resultaria em algumas pequenas cicatrizes.
Para evitar conflitos, a menina passava a maior parte do dia em seu quarto, atenta aos ruídos do corredor, lendo, sob os cobertores, seus livros didáticos, que eram muitíssimo interessantes, além de, é claro, saborear os bombons que a Sra. Ruoy havia lhe dado.
Gostou muito de Teoria da Magia, de Adalbert Waffling, e Guia de transfiguração para iniciantes, de Emeric Switch, fez questão de decorar cada um dos feitiços e todos os movimentos de varinhas, os quais ela simulava com um pedaço de graveto que havia encontrado no jardim.
Ficou muito impressionada com a quantidade de ervas e fungos mágicos (mais especificamente mil e uma espécies) listados em seu livro de herbologia e comparou cada um dos musgos que encontrou próximo ao poço do orfanato, acreditando que, com sorte, poderia encontrar algum mágico ali, o que não foi o caso.
Passou algumas noites em claro, se arriscando a olhar o céu noturno pela janela e o comparar com as constelações desenhadas em seu livro de astronomia. Conseguiu, sem grandes esforços, encontrar taurus, pisces e scorpius. Alguns segundos antes de encontrar a corona borealis, porém, Marjorie Murphy soltou um ronco alto, que assustou Mary Ann. A ruivinha rapidamente se escondeu entre os cobertores e adormeceu, completamente ciente de que aquela era a madrugada do dia trinta de agosto.
O dia de embarcar estava, finalmente, próximo.
Quando uma freira disparou três fortes batidas contra a madeira da porta, Mary Ann saltou da cama, certa de que eram exatamente seis horas da manhã. Se ajoelhou ao lado das colegas e, de mãos dadas, rezaram por vinte minutos. Ao final da oração, Murphy empurrou a mão de Mary Ann para longe com brutalidade, limpando os dedos no pijama.
Com uma careta provocativa, a menina disse em voz alta: — Você tem sorte de eu deixar que me toque, aberração. Não sei como deixam gente do seu tipo viver.
Mary Ann revirou os olhos, visivelmente cansada, e resmungou: — Você não é muito criativa, Murphy, já me cansei dessa ladainha.
Em resposta, sua cabeça foi jogada contra o piso de madeira. Um punho, muito pesado, acertou seu osso zigomático. Mary Ann apertou os lábios para conter um gemido, sentindo um filete de sangue escorrer vagarosamente pela lateral de seu rosto.
— Quero te ouvir implorando, aberração — Murphy falou pausadamente, distribuindo um soco a cada palavra que saía de sua boca. As outras colegas riam alto, ansiosas para ouvir Mary Ann chorar e pedir que as agressões cessassem.
Jamais, Mary Ann quis dizer, mas um soco particularmente forte lhe atingiu os lábios, causando um rasgo grande devido aos dentes tortos. Dessa vez, ela deixou escapar um longo gemido de dor. Os dedos pulsavam pela adrenalina e a língua estava pronta para disparar a azaração de congelamento que havia lido em seu livro de feitiços, porém a lembrança de McGonagall lhe dizendo que trouxas não deviam se envolver com magia lhe preencheu a mente.
Aguentou cada soco, perdeu as contas após o décimo terceiro. Depois disso, sentiu alguns chutes contra as costelas. Não foi capaz de contar quantos foram, mas se agarrou ao sentimento de alívio quando não ouviu nenhum osso se partir. No final, eram apenas ferimentos superficiais, ela estaria bem o suficiente para embarcar no Expresso de Hogwarts.
Murphy apenas interrompeu as agressões quando a porta do quarto se escancarou, preenchendo o cômodo com o ar gelado que vinha do corredor.
— O que você fez agora, Smith? — a voz da freira foi alta.
Murphy se afastou rapidamente do corpo magro caído no chão, limpou o sangue de Mary Ann no pijama e disparou: — Ela rezou para Satanás, irmã! Eu perdi a cabeça, devia ter chamado a abadessa, mas fiquei tão assustada…
Em resposta, Mary Ann riu, observando o sangue de sua boca manchar o chão de rubro. Deixou escapar um grito agudo quando a freira lhe ergueu pelos cabelos, finalmente podendo ver quem era. A irmã Beulah a encarava com repulsa e a pequena menina fez o que pôde para retribuir.
Lutou para manter os olhos abertos, mas o sangue que lhe escorria pelo supercílio pesava sobre a pálpebra, tornando a tarefa quase impossível. Não conseguiu virar o rosto antes da cusparada de Beulah lhe atingir a bochecha. A menina riu novamente, sem notar que gotículas de saliva avermelhada que tingiram as vestes da freira.
De forma sombria, a menina narrou o trecho muito bem decorado: — “Então cuspiram-lhe no rosto e lhe davam punhadas, e outros o esbofetearam”...
— Silêncio, demônio! — Beulah rugiu, apertando ainda mais os cabelos da menina — Como ousa recitar a Bíblia Sagrada?
— Alguém tinha que prestar atenção nas missas — respondeu, forçando um sorriso debochado, que causou uma ardência ainda maior nas bochechas.
Foi arrastada por um caminho já conhecido, em direção ao sótão, deixando um rastro vermelho por onde passava. As crianças que esperavam na fila para o banheiro arregalaram os olhos quando viram a cena, apontaram e riram, mas Mary Ann quase não percebeu isso. Seus olhos enfim se fecharam e a cabeça pendeu para trás, o corpo pareceu flutuar no vazio.
Quando abriu os olhos novamente, estava sozinha, e agradeceu a Deus por isso. O pequeno cômodo estava banhado pela luz amarelada das lâmpadas incandescentes dos postes da rua, fornecendo uma visão sombria do quarto. Aos poucos, suas pupilas se acostumaram com a escuridão e ela conseguiu distinguir alguns dos contornos que já lhe eram conhecidos. O orfanato estava em completo silêncio, então a menina imaginou que já devia passar das nove da noite.
Sentindo-se exausta, Mary Ann se arrastou até o sobretudo que havia abandonado sob a clarabóia da última vez. Se deitou com extrema lentidão, sentindo cada músculo queimar. Com esforço, abraçou os próprios joelhos. Lágrimas quentes escorreram de seus olhos e aquilo, de alguma forma, pareceu aliviar a dor que sentia por dentro.
Contudo, seu rosto parecia doer ainda mais agora, podia sentir cada corte profundo e, quando levou os dedos até os lábios, sentiu que o sangue seco havia se acumulado ali. Pensou que devia estar deplorável, porém não conseguiu de fato se importar, pois algo lhe chamou mais a atenção.
Como não havia se atentado àquela tapeçaria da última vez, não saberia dizer... Era Cristo na cruz, em seu momento de maior sofrimento, mas algo ali parecia anormal. Algo ali parecia quase… Mágico.
Soltando um resmungo de dor, a menina se colocou sobre os joelhos, aproximando-se lentamente da tapeçaria, como se pagasse por seus pecados. Correu os olhos pela imagem, notando um pequeno furo na altura das costelas de Cristo, como se o próprio tecido tivesse sido espetado pela lança do destino. Sussurros quase inaudíveis vinham dali e, em um momento de loucura, a menina pensou que era o próprio espírito santo que falava.
Mas o espírito santo jamais se faria incompreensível, ela pensou.
Enfiou os dedos nas costelas de Cristo e, com urgência, abriu o buraco ainda mais, dando visão para um grande rombo na parede, dentro do qual, escondida, repousava um misterioso disco de prata.
— Desculpe, Jesus — a menina falou baixinho, empurrando a tapeçaria para longe e tomando em suas mãos o medalhão sussurrante. Parecia vibrar, ansioso, em suas mãos pequenas, e Mary Ann teve a certeza de que aquilo lhe pertencia.
Era magia reconhecendo magia.
Mary Ann voltou, ainda sobre os joelhos feridos, para o canto mais iluminado do quarto, soltando gemidinhos de dor vez ou outra, e admirou o achado.
Tentou sorrir, mas parou assim que sentiu as bochechas comprimirem seu olho roxo. Agora ela via com mais clareza: era grande, rústico, muito velho e antiquado.
O medalhão era maior do que os galeões que a menina havia visto no Beco Diagonal, era com disco de prata que, de um lado, retratava um corvo, segurando-se corajosamente em uma planta repleta de espinhos. Do lado oposto, grafado em letras elegantes, as letras M.A.S.
— Mary Ann Smith — concluiu, sem qualquer dúvida. Sentiu-se então muito irritada, como ousaram esconder aquilo dela? Seria uma pista do paradeiro de seu pai? Qual seria o seu verdadeiro nome? As freiras haviam escolhido Mary Ann Smith apenas por causa das iniciais gravadas naquele medalhão?
Apertou o medalhão entre os dedos, ouvindo os sussurros suaves que ele emanava dali. Sentiu a prata lhe queimar levemente os dedos, mas pouco se importou com isso. Sem se preocupar com o Jesus de tecido esquecido no chão, Mary Ann ergueu o medalhão até a altura dos olhos.
Aquilo era de seu pai, tinha que ser. Aquilo, sem qualquer dúvida, significava que seu pai era um bruxo, não restava dúvidas de que aquela peça estava impregnada de magia, forte e antiga, que lhe sussurrava ao pé do ouvido.
Passou a corrente ao redor do próprio pescoço e escondeu a peça sob a camisola. Sua única vontade naquele momento era ir até o quarto da abadessa, posicionar ambas as mãos em sua garganta e observar enquanto a vida abandonava seus olhos. Lhe perguntaria o porquê de ter escondido o medalhão por tantos anos, lhe perguntaria o que mais havia lhe escondido, e ficaria feliz em não obter resposta alguma, ficaria satisfeita apenas com a morte da mulher.
Mas depois disso, o que faria? Explodiria o orfanato e mandaria todos ali dentro para o inferno? Não conseguiu conter um sorriso dolorido, era uma ótima ideia, afinal. Mas havia Hogwarts, a bela e mágica escola... Matar certamente seria algo grave o suficiente para fazer o diretor Dumbledore recusar a sua matrícula, ela seria encaminhada para a prisão, e McGonagall a olharia por trás de seu nariz em pé, com puro descontentamento.
Podia imaginar a professora lhe dizendo, muito severa e friamente: — Eu lhe disse que um bruxo que faz o mal usando da sua magia seria julgado por seus atos.
A menina torceu os lábios, desgostosa, porém balançou a cabeça positivamente. Resmungou: — Você me convenceu professora, não os queimarei.
Mary Ann passou as horas restantes de sua noite encarando o pedaço da abóbada celeste visível pela clarabóia e tentando engolir sua ira. Encontrou a corona borealis e a boötes dessa vez. Logo, raios alaranjados tingiram o céu e o som de passos e vozes animadas lhe chegou até os ouvidos.
Era dia trinta e um de agosto, seu último dia ali.
Amanhã de manhã McGonagall chegaria e a tiraria daquele sótão, ela tinha certeza.
No entanto, quem abriu a portinhola não foi a professora McGonagall, mas sim a abadessa Ruth. Havia um sorriso excessivamente largo em seu rosto enrugado, os cabelos estavam bem escondidos sob o hábito. A velha estreitou os olhos para a menina após percorrer cada centímetro do quarto.
— O que Jesus faz no chão? — questionou com amargura, sem afastar o sorriso falso do rosto.
— Encontrei algo — a menina falou, forjando uma inocência, que já não mais possuía, no olhar. Enfiou a mão dentro das vestes e puxou o medalhão pela corrente, exibindo-o com orgulho.
O sorriso da abadessa tremeu, seus olhos assumiram um brilho estranho. Ela respirou fundo, tentando se acalmar, antes de dizer: — Vieram te buscar.
E voltou para o corredor.
Mary Ann franziu o cenho, pensara que Minerva só chegaria no dia seguinte, porém não questionou, estava muito feliz em poder se ver livre do orfanato um dia antes do esperado. Desceu as escadas para o hall lentamente, sentindo uma forte ardência nas pernas, porém, o que encontrou não foi o olhar firme da professora, mas sim o enorme e gentil sorriso da Sra. Ruoy.
— Mary! Por Merlin, menina, o que aconteceu com seu rosto?
Mary Ann levou a mão esquerda até a bochecha, quase havia se esquecido da dor aguda que lhe atingia os ossos da face. Tocou sua própria pele e o pensamento de que tocava um pedregulho rachado foi inevitável.
Devia estar ainda pior do que havia imaginado…
— Ela caiu — a abadessa respondeu rapidamente, antes que a menina pudesse abrir os lábios — do topo da escada. Foi bem feio.
A Sra. Ruoy, porém, torceu os lábios grossos para baixo. Havia algo novo em seus olhos, um sentimento que Mary Ann identificou como pena. Sentiu um bolo ardente lhe subir pela garganta. Irritou-se.
— Isso é verdade, Mary?
Ela se lembrava muito claramente de ter dito à Sra. Ruoy que preferia ser chamada de Mary Ann. Sentiu-se ainda mais irritada e, sem medir as palavras, indagou, incisiva: — É você que vai me levar até Londres?
A Sra. Ruoy ergueu os olhos até a abadessa, visivelmente constrangida, porém acenou positivamente com a cabeça.
— Ótimo. Vou buscar as minhas coisas — declarou com indiferença.
A menina subiu as escadas vagarosamente e demorou quase três vezes mais que o tempo normal para chegar até o quarto. Entrou no dormitório, onde apenas Murphy estava. A garota mais velha ergueu os olhos de seu livro de salmos, completamente desinteressada.
— Imaginei que já estivesse apodrecendo no sótão.
— Bem que você gostaria — respondeu com igual arrogância.
Mary Ann ajoelhou-se, contendo um gemido de dor, ao lado da cama e puxou a mochila de couro duro que guardava seus materiais.
— Achei que só iria embora amanhã — Murphy comentou, voltando seus olhos novamente para o seu livro.
— Oh, vai sentir minha falta? — provocou a ruivinha, soltando uma risada aguda e forçada.
— Claro. Em quem vou dar uma surra enquanto não estiver aqui, aberração?
Mary Ann quase sentiu raiva por ser chamada novamente daquela forma, porém, dessa vez, ela resolveu retrucar. Ergueu-se do chão, sentindo os joelhos tremerem pelo esforço, jogou a mochila sobre as costas, e corajosamente falou: — No meu mundo, você é a aberração. Você é nojenta. Uma trouxa imunda e sarnenta que vale muito menos do que bosta de cachorro.
A resposta veio rápida e certeira. Um puxão de cabelo que atirou Mary Ann novamente no chão. Ela não conseguiu segurar um ganido de dor dessa vez.
— Ainda sou mais forte que você, demônio — Marjorie disse de forma teatral, olhando a colega de cima. Em seguida, soltou uma cusparada que atingiu Mary Ann no olho. Sem olhar para trás, saiu do quarto, deixando a colega encolhida ao lado da cama.
A ruivinha demorou pelo menos três minutos para se erguer novamente, esperou que Murphy voltasse com as colegas a tiracolo para testemunhar sua humilhação, porém isso não aconteceu. Aproveitou a solidão do quarto para trocar de roupa.
Passou o vestido escuro e velho pela cabeça, tomando o cuidado de não esbarrar nos ferimentos. Pensou por um momento antes de decidir tirar o medalhão do pescoço, julgando que ele ficaria mais protegido dentro da mochila.
Desceu as escadas para o saguão sem topar com qualquer outro órfão.
— Podemos ir — anunciou, encarando com firmeza a abadessa, que empinou o queixo, pedindo a Deus uma coragem que não possuía.
— Já se despediu de seus amigos? — a Sra. Ruoy perguntou gentilmente.
— Não tenho amigos — a resposta foi imediata.
A mulher mordiscou o lábio grosso, mas nada disse, apenas assentiu levemente, indo em direção à saída. Mary Ann lançou um último olhar à abadessa antes de sair do orfanato.
— Te vejo nas férias, Smith — as palavras da abadessa, aos ouvidos de Mary Ann, soaram como uma ameaça. No entanto, a menina não respondeu, sequer se despediu, apenas arqueou as sobrancelhas grossas, em desafio, para a velha, que lhe devolveu um sorriso cheio de dentes.
Além da sebe mal cuidada do orfanato havia um veículo estacionado. Era comprido e achatado nas laterais, havia um símbolo prateado na frente, um grande W sob um V, ambos dentro de um círculo. A parte inferior do veículo era pintada de azul claro, enquanto a parte superior era branca.
— O que é isso? — a menina perguntou.
A Sra. Ruoy soltou uma risadinha antes de responder: — Nosso transporte. Pedi a um vizinho que nos levasse, vai ser bem mais rápido que o ônibus.
— Certo, mas o que é isso?
O vidro do lado direito escorregou para baixo, gerando um barulho agudo e irritante. O motorista, um senhor de meia idade, com uma cartola verde sobre os cabelos fartos, quase se deitou sobre o banco do carona para responder Mary Ann. Aos gritos, ele lhe disse: — Isso, menina, é uma Kombi original, segunda série, seis portas, de 1961!
Mary Ann não entendeu o que ele quis dizer com aquilo, porém tentou sorrir, em uma tentativa falha de ser gentil. Com um aceno empolgado, a Sra. Ruoy abriu a porta do passageiro e indicou que a menina entrasse primeiro. Em seguida, a ruivinha estava espremida entre Elfrieda e o motorista, que logo tratou de se apresentar.
— Pat Sweeney, a seu dispor, senhorita — ele falou, divertido, erguendo a cartola excêntrica e revelando os grossos fios amarronzados.
— Mary Ann Smith — ela respondeu baixinho. O que se seguiu foi uma risada alta do Sr. Sweeney e dois tapinhas amigáveis no ombro da menina, que lhe causaram dor nos músculos superiores.
O caminho foi muito barulhento para o gosto de Smith e em nada se assemelhou com o dia em que McGonagall a levara do orfanato. A Kombi era muito mais rápida do que o ônibus, então apenas podia enxergar massas coloridas correndo de ambos os lados da estrada, mas não havia nenhum contorno. Vez ou outra, o carro soltava estalos ruidosos e estremecia com ferocidade, o que causava mais risadas ainda no Sr. Sweeney.
Em algum momento, o rádio foi ligado, e o som das harpas, flautas e rabecas preencheu a Kombi, assim como uma voz ritmada que cantava em gaélico irlandês, que logo foi seguida pela voz rouca e grave do próprio Pat.
Mary Ann trocou um olhar rápido com Elfrieda, que parecia estar contendo a risada, mas para a menina aquilo não era engraçado, era apenas irritante. Mordeu o lábio inferior com força, enquanto pensava sobre o quão bom seria se aquela música infernal fosse silenciada.
E então a música foi substituída por um som agudo de interferência. O Sr. Sweeney xingou alto, desferindo meia dúzia de socos no pequeno aparelho acoplado ao painel.
— Essa porcaria — resmungou entredentes —, estou há meses enrolando para levar para o conserto. Sinto muito, pequena Mary, parece que não teremos música para você hoje.
— Mary Ann — a menina corrigiu, quase sem mover os lábios.
— Claro, claro — Pat respondeu risonho, sem desviar os olhos da estrada.
Logo, o borrão verde que Mary Ann acreditava se tratar de árvores, deu espaço aos vultos avermelhados e cinzentos das casas de Dublin, que corriam muito rápido ao lado da Kombi. Aos poucos, a velocidade foi diminuindo e a menina conseguiu reparar melhor nos jardinzinhos bem cuidados das casas, nas pessoas que passeavam nas ruas e nos pescadores próximos ao canal.
Logo entraram na rua da Sra. Ruoy, estreita e sem saída, com várias casas de tijolinhos vermelhos e portas altas de madeira. Estacionaram na frente do portão de ferro negro, que protegia o vistoso e excêntrico jardim de Elfrieda.
Mary Ann desceu da Kombi logo após a Sra. Ruoy, que contornou o veículo e se inclinou em direção à janela para falar com Pat. A ruivinha ouviu quando Elfrieda convidou o Sr. Sweeney para um chá, mas ele logo rejeitou a oferta.
— Sabe como é, a minha filha já está no oitavo mês, não quero me ausentar por muito tempo, nunca se sabe quando os netos vão querer conhecer o vovô, hã?
Elfrieda riu baixinho e assentiu: — Claro, claro. Se cuide então, me deixe saber caso precise de algo.
Pat Sweeney então se foi, gritando pela janela um adeus para a menina Mary.
— Ele é trouxa? — a menina perguntou enquanto observava a Sra. Ruoy sacar um molho de chaves e destrancar o portão. Por que ela não usava a varinha para aquilo, se perguntou. Não havia ninguém na rua que pudesse ver.
— Sim, toda a vizinhança é. Não conheço muitas famílias bruxas por aqui. Existem os O’Flanagan mais ao sul, mas prefiro manter distância, Oisin não é muito amigável com pessoas como eu.
— Pessoas como você?
— Abortos.
Mary Ann franziu as sobrancelhas e comprimiu os olhos. Confusa, perguntou: — O que são abortos?
Elfrieda continuou com os olhos no cadeado enquanto respondia: — São pessoas que nasceram em famílias bruxas, mas não possuem magia. É o contrário de nascidos-trouxa, por assim dizer, que são pessoas de família trouxa, mas que nascem com magia.
— Como isso é possível? Você nasceu com defeito?
Elfrieda torceu os lábios grossos e, com desgosto, respondeu: — Não. Eu apenas nasci diferente e não há nada de errado comigo.
— Mas… Você devia ser bruxa, seus pais são bruxos, McGonagall me disse que sua família é bruxa…
— Escute, Srta. Smith — Elfrieda olhou com firmeza nos olhos negros da menina. Havia uma fúria em seu rosto que Mary Ann achava impossível existir dentro de alguém tão gentil como a Sra. Ruoy —, já passei anos da minha vida ouvindo que nasci com um defeito. Pouco me importo com o que você irá pensar do portão para fora, mas aqui, dentro da minha casa, está proibida de dizer coisas desse tipo.
Mary Ann sentiu algo borbulhar dentro de si, porém se manteve calada. A Sra. Ruoy abriu a porta e lhe indicou que entrasse primeiro.
A casa da Sra. Ruoy não havia mudado absolutamente nada: a sala principal continuava colorida e cheia de objetos, quase não havia espaço para a passagem. Três gatos estavam ali, um deitado sobre o sofá, outro no tapete e outro sobre a mesinha de centro.
— Deixe sua mochila aí no sofá. O que acha de um chocolate quente? — perguntou Elfrieda, muito gentilmente. A menina franziu o cenho, mas assentiu, afinal, estava morta de fome. — Ótimo, volto logo.
Era estranho, Mary Ann pensou, o humor de alguém variar tão rapidamente. Há poucos minutos, a Sra. Ruoy estava irritada com as palavras grosseiras da menina, no instante seguinte era toda sorrisos ao lhe oferecer um chocolate quente.
Smith se sentou no sofá, ao lado de um gato gordo, que lhe ergueu os olhos verdes preguiçosamente e voltou a dormir. Cerca de dez minutos depois, a Sra. Ruoy voltou com uma caneca fumegante na mão esquerda e uma pequena caixinha de papelão na direita.
— Primeiros socorros — ela explicou, sorridente.
— Não é necessário — Mary Ann dispensou com um gesto, a Sra. Ruoy, porém, fez questão de ignorar. Ajoelhou-se de frente para a menina e, após lhe entregar a caneca de chocolate quente, pescou uma bola de algodão com os dedos e a encharcou com soro fisiológico.
— Não acho que vai doer…
E de fato não doeu, mas a sensação era levemente incômoda. A Sra. Ruoy, então, secou o excesso do soro com uma outra bola de algodão, agora seca, e aplicou uma pasta, transparente e grossa, sobre os cortes.
— Essa pomada é ótima, você vai estar bem melhor amanhã — disse enquanto colocava um curativo improvisado sobre o ferimento maior.
Mary Ann bebeu um gole de sua caneca e, em seguida, resmungou baixinho: — Não precisava.
— Claro que precisava — a Sra. Ruoy retrucou com firmeza —, pretendia ir para Hogwarts com o rosto todo machucado?
Mary Ann não respondeu dessa vez.
O dia passou muito mais lentamente do que a ruivinha desejava, o momento de ir para Hogwarts parecia nunca chegar de fato. A Sra. Ruoy serviu um almoço tardio, muito mais gostoso do que a comida oferecida no orfanato, e depois, como a boa inglesa que era, tratou de fazer um bolo de laranja para o chá da tarde.
Quando a noite caiu, Elfrieda conduziu Mary Ann até o banheiro e lhe deu uma toalha limpíssima e um pente de dentes largos, além de um camisolão excessivamente comprido.
— Me desculpe por não ter algo do seu tamanho, não costumo receber crianças aqui.
— Acredite, é melhor do que todas as roupas que tenho no orfanato — a menina retrucou, gerando um sorriso entristecido na anfitriã.
— Imagino que sim. Bom, me chame se precisar de ajuda com o chuveiro, vou estar lá embaixo. Ah, tome cuidado para não molhar o curativo.
A menina assentiu antes de fechar a porta.
Mary Ann podia dizer facilmente que aquele foi o melhor banho de sua vida. Ela tentou desfazer os nós com o pente que a Sra. Ruoy havia lhe entregado, mas não teve muito sucesso na tarefa. Lavou os cabelos demoradamente com um shampoo que encontrou no armário sob a pia e aproveitou a água quente que lhe caía sobre o escalpo.
Saiu alguns vários minutos depois, já coberta com o camisolão, e acabou por encontrar Elfrieda no corredor. A mulher arregalou levemente os olhos gentis antes de perguntar: — Não usou o pente?
Mary Ann, ligeiramente constrangida, respondeu: — Tentei, mas não consegui.
— Entendo, cabelos cacheados são um tanto difíceis mesmo… Vou te ensinar.
— Não é necessário.
Mas de nada adiantou. A Sra. Ruoy segurou no ombro de Mary Ann e a levou até um quarto amplo, com uma cama de casal muito fofa, com dois gatos sobre. Gesticulou para que a menina se sentasse e, em seguida, voltou com um grande pote de creme e o pente de dentes largos.
— É mais fácil pentear quando os cabelos ainda estão molhados, assim os fios não se partem… O creme vai ajudar a desembaraçar… E também vai deixar um cheirinho bom.
O trabalho foi demorado e, na maior parte do tempo, dolorido. A ruivinha passou o tempo todo com os braços cruzados sobre o peito, emburrada. Cerca de uma hora e meia depois, Elfrieda anunciou que havia terminado. Ao final, os fios compridos de Mary Ann estavam desembaraçados, cheirosos e, estranhamente, mais encaracolados do que costumavam ser.
— Como fez isso? — perguntou. Seu tom ficava entre a surpresa e a irritação.
A Sra. Ruoy pegou uma mecha para demonstrar. Enrolou os fios ao redor de seu próprio indicador e depois o puxou com cuidado.
— Os cachos ficam mais definidos se você faz assim.
— Por que não faz isso com o seu cabelo? — Mary Ann perguntou, genuinamente interessada.
— É diferente — a Sra. Ruoy explicou com muita paciência —, meu cabelo não é cacheado como o seu, é crespo. A forma de tratar é diferente.
Mary Ann assentiu, mesmo sem entender direito. Elfrieda se levantou e limpou os restos de creme na própria saia jeans.
— Pode usar esse quarto essa noite, vou descer para terminar o jantar.
Quando se viu sozinha no quarto, a menina se deitou na cama para descansar, sentindo os músculos relaxarem aos poucos contra o colchão fofo. Logo, um gato de pelagem longa e muito gordo deitou-se sobre a barriga funda de Mary Ann.
A menina soltou um suspiro profundo antes de adormecer. Ela sequer ouviu a Sra. Ruoy chamá-la para o jantar.
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