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História Liberté - A Coragem


Escrita por: caulaty

Capítulo 15 - A Coragem


    10 de novembro de 3644

 

Coloquei as mãos nos bolsos do sobretudo em uma tentativa vã de aquecê-las. Meu coração batia descontrolado dentro do peito porque já eram quase onze da noite e eu não deveria estar atravessando essa rua. Eu sabia muito bem as consequências do que eu estava fazendo, não culparia ninguém por me chamar de idiota. Se algum homem de branco estivesse fazendo sua ronda noturna e me pegasse ali, a melhor coisa que poderia me acontecer era ser espancado até a morte. Então eu corri um pouco. Um clima muito sinistro tomou conta da cidade - da nação, talvez - com os noticiários vinculando possíveis ataques terroristas dos Monarcas. Minha mãe não estava brincando quando disse que o Governo começava a preparar medidas graves de prevenção. Todos os dias, ouvíamos histórias de pessoas que eram pegas na rua no horário errado e não sobreviviam para contar. Era a primeia vez em que eu realmente começava a sentir pavor por estar devendo alguma coisa.

Eu estava na rua durante aquele horário indevido por conta de um episódio que aconteceu na manhã daquele mesmo dia, no galpão de treino. Eu socava um saco de pancada com vigor quando Christophe chegou por trás de mim, bufando no meu cangote, falando baixo e calmamente:

-Me encontre em frente à Catedral hoje à noite. Às onze.

Ele não explicou nada. Só me jogou essa frase num sussurro que deixava muito claro que aquilo era um segredo. Eu demorei alguns segundos para sequer imaginar uma reação; não nos falávamos direito há algumas semanas, ele apenas me ignorava, não fazia contato visual e não abria possibilidade para conversa. Eu pensei que isso fosse o melhor para nós dois, acreditei até mesmo que eu tivesse superado aquilo que nem chegou a acontecer. Mas foi só ele chegar daquele jeito por trás de mim, na surpresa, invadindo um momento distraído de vulnerabilidade com uma ordem tão esquisita… Meu coração parecia estar prestes a sair pela boca. Minhas pernas amoleceram.

Sempre fui relativamente bom em segurar minhas fragilidades. Disfarcei imediatamente com uma expressão confusa, espiando o rosto dele por cima do meu ombro. Mas não teve impacto algum nele. Era como esperar que uma parede reagisse à sua expressão facial. Eu ainda não entendia Christophe a esse ponto, mas já esperava que ele fizesse o que fez: saiu andando como se nada houvesse, socando o próprio punho. Fiquei focado durante algum tempo naquelas costas cobertas de suor, como os músculos se moviam por dentro da carne firme dele, como um animal.

O filho da puta sabia que eu não perguntaria nada. Sabia que a presença de Stan a poucos metros me travaria de qualquer reação. Foi uma atitude tão pretensiosa que me irritou profundamente na hora, e decidi ali mesmo que não iria à Catedral porra nenhuma. Não preciso dizer que acabei mudando de ideia. Não consegui pensar em outra coisa durante aquele dia. Até o momento em que me deitei na cama pra dormir, eu ainda não tinha certeza do que faria. Mas Stan adormeceu tão rápido, o relógio iluminava o quarto escuro me provocando com seus números. A curiosidade me corroía. Por que diabos ele marcaria um encontro tão esquisito a uma hora dessas?

Não o vi imediatamente, porque ele era esperto o bastante pra não ficar bem em frente à Catedral fazendo exposição da própria figura. O fato de não vê-lo ali congelou o meu sistema nervoso durante alguns segundos. O que me acalmou foi o pontinho de luz laranja do cigarro na ruela lateral, um ponto onde havia pouquíssimos postes. Nunca entendi exatamente porque chamavam Christophe de Toupeira; sei que ele tinha uma afeição imensa pela sua pá e gostava de lugares escuros, de cavar buracos. Estava sempre entocado em algum lugar, observando o movimento. Ele sabia que eu me aproximava sem precisar olhar para mim.

Quando cheguei perto o suficiente, ele jogou o cigarro no chão e pisou em cima com sua bota esgaçada. Limpou a coriza do nariz com os dedos e ergueu um pouco o queixo para mim, descansando as mãos nuas nos bolsos do casaco militar. Christophe me encarou com seus olhos castanho-esverdeados tão agressivos, passou a língua pelo lábio superior e me entregou a frase:

-Eu pensei que você não viesse.

Sua voz era mastigada, contida. Sabia que não poderíamos falar alto.

-Acho que eu não deveria mesmo. Mas… - Eu não soube como terminar a frase, porque não fazia ideia do que estava fazendo ali. A ideia de ficar sozinho com ele fazia meu estômago revirar. Ainda mantive uma distância segura, quase como se tivesse medo de que ele me machucasse. Bem, não era isso que me assustava. Apenas encolhi os ombros.

Ele meteu os dedos grossos na boca como se tentasse tirar algum fiapo de frango do dente, virando de costas para mim e seguindo pela ruela escura como se tivesse certeza de que eu o seguiria. Aquilo me irritou profundamente. Bufei baixo, sacudindo a cabeça antes de apertar o passo para acompanhá-lo.

-Seu namorado sabe que você veio?

Então eu pensei que ele estivesse me provocando deliberadamente. Franzi a testa, expressando a minha irritação com aquilo, mas ele não estava olhando na minha direção. Mantinha os olhos fixos no caminho escuro, andando bem no meio da rua. Não havia uma alma viva à vista. Eu me pus ao lado dele, só que um ou dois passos atrás.

-O que você acha?!

-Foi o que eu pensei. - Ele respondeu sem comoção, fechando o zíper do casaco antes de recolocar as mãos nos bolsos folgados.

-Onde é que nós estamos indo?

Ele não me respondeu imediatamente. A minha paciência tem um limite muito curto. Agarrei o braço dele sem medir força; Christophe não estava acostumado a ser tocado, especialmente de forma repentina. Parou de andar tão bruscamente que eu quase esbarrei no seu corpo, que mais parecia uma parede de tijolos naquelas circunstâncias. Ele não era absurdamente mais alto do que eu, mas parecia. Não havia iluminação naquela rua. O poste mais próximo estava uns vinte metros à frente, na esquina. Mesmo assim, cada linha da face dele era tão clara diante de mim… Talvez eu já estivesse familiarizado demais com aquele rosto. Christophe me encarou com o maxilar rígido, os olhos parecendo enxergar através de mim, ou dentro de mim, estudando coisas que eu jamais mostraria a ninguém.

Soltei seu braço por instinto, voltando a encher os pulmões de ar quando me dei conta de que não estava respirando.

Ele quase sorriu quando viu esse relance de hesitação em mim. Ou meus olhos estavam pregando peças no meu cérebro. Sei apenas que Christophe separou os lábios para falar, segurou as palavras por um instante, então respirou fundo.

-Escute, não temos muito tempo. Não sei o quão rápido você consegue correr se algo der errado, então serei direto aqui. - Seu dedo indicador se aproximou do meu rosto. Ele tinha uma cicatriz enorme nesse dedo. Eu não podia enxergá-la no escuro, mas conhecia de cor as cicatrizes em seu corpo que estavam sempre à mostra para quem quisesse ver. - Só vou te pedir que ande enquanto escuta, pode ser?

Em vez de responder com palavras, apenas retomei uma caminhada mais lenta ao lado dele, encarando o chão e mordendo meu lábio inferior, com receio do que poderia vir em seguida. Christophe colocou as duas mãos atrás da cabeça e olhou para o céu sobre nós dois, todas as nuvens grossas e a poluição que escondia as estrelas. Ele se espreguiçou um pouco, soando terrivelmente exausto.

-Então, o que você quer comigo?

-Gregory disse que você é bom com computadores.

Estreitei os olhos em desconfiança, incerto do que responder. Aquilo ainda não era uma explicação em nível algum. Esfreguei minhas duas mãos enluvadas para tentar aquecê-las um pouco, trazendo-nas para o meu rosto, soprando o vapor da minha boca nas palmas.

-Eu sei usar um computador, o que é mais do que a maioria aprende. Por quê?

-Você pode nos ser muito útil se deixar de lado as suas crises de consciência.

Eu não gostei do rumo que aquilo estava tomando, mas não interrompi o passo. Chegamos à parte mais iluminada e atravessamos a rua, cortando pelo beco estreito de uma fábrica imensa. Christophe olhou para trás duas vezes durante essa conversa, o que me fez virar também, mas não havia qualquer sinal de sapadores ou guardas mecânicos. Estes seriam ouvidos muito mais facilmente.

-O que você quer de mim?!

Ele continuou em silêncio. Lançou-me um olhar severo e preocupado. Após quase dez segundos, decidiu fazer o favor de me responder:

-Preciso que me prometa que não vai contar nada ao Stanley. A nenhum dos seus amigos.

Certo, aquilo estava passando do meu limite - que, diga-se de passagem, podia ser considerado muito flexível. Parei de andar bem abaixo de um foco de luz de um poste antigo; uma das lâmpadas estava queimada. Paramos em frente a uma construção de tijolos vermelhos que parecia ser uma casa, mas era usada como banco.

-O quê? De que merda você está falando?

Ele também parou, já prevendo que seria mais difícil do que ele havia inicialmente planejado. Aproximou-se de mim tentando forçar uma calma que ele não tinha; estava visivelmente impaciente com a coisa toda. Falava muito baixo:

-Ouça aqui, há dois Monarcas de Nova York que chegaram essa noite. Eles estão em um apartamento não muito longe daqui. Com o aniversário do Presidente tão próximo, eles acreditaram que nós precisaríamos de ajuda. E eles tinham razão. - Ele falava muito baixo, com uma mão no bolso e a outra em frente ao peito, gesticulando. Mesmo naquele tom contido, sua voz soava grossa e firme, como se ele nunca tivesse dúvidas sobre o que dizia. - Agora, não há tempo para que você surte, mas é melhor eu te dizer isso antes de nós chegarmos. Eles trouxeram uma bomba.

Eu não sei se o que me atingiu com mais força foram as palavras de Christophe propriamente ou se foi a frieza com que ele as disse. Senti o ar escapar dos meus pulmões. Abri a boca para responder, mas nada saiu. Antes de me dar conta, estava dando um passo para trás e erguendo uma mão aberta em protesto, os olhos arregalados, balançando muito sutilmente a cabeça de um lado ao outro. Estava perturbado demais para conseguir colocar palavras naquela situação surreal; eu não fazia ideia de como havia ido parar ali. Já era aterrorizante o suficiente estar exposto ao ar livre no horário indevido, já era inconsequente e perigoso o bastante fazer parte de uma rebelião, mas… Mas terrorismo?

As palavras de minha mãe eram tudo que ecoava em meus ouvidos. “São todos uns selvagens, terroristas malditos sem fé e sem mãe, desgraçados delinquentes sem alma, tiram vidas e bebem o sangue de gente inocente”. Não, isso não era verdade. Eu sabia que não era. Então por que eu sentia vontade de vomitar?

-Não, Christophe… Não, isso…

-Ei. - Ele farejou o meu pavor de imediato; me segurou pelos ombros com uma firmeza maldita, chacoalhando meu corpo um tanto sem querer. - É para o parlamento. Estará vazio no dia, mas nós precisamos dessa distração. Isso é um recado. É para deixar claro que eles não querem foder com a gente.

-Não! - Falei muito mais alto do que deveria. - A cidade inteira vai estar na rua, vai estar cheio de crianças, isso… Não, Christophe. Isso é perigoso demais.

As mãos dele caíram dos meus ombros. Minha pele gelou ainda mais com a maneira dele de me olhar, respirando profundamente, como se estivesse tentando compreender um enigma impossível. Ele não estava apenas confuso, parecia também decepcionado em algum nível. E eu me senti tão mal. Por quê? Porra, aquilo não era culpa minha, eu não tinha que justificar a minha ética pra aquele homem.

-Eu não entendo. - Ele disse de repente, rolando os lábios por dentro da boca em seguida, sacudindo a cabeça em reprovação por qualquer motivo que fosse. Deu mais dois passos para trás, saindo do foco de luz. - Não entendo porque você insiste em ceder ao pacifismo barato dele como se você acreditasse nisso.

-Dele quem? Stan?

Christophe não se deu ao trabalho de confirmar. Encolheu os ombros e desviou o olhar para o outro lado da rua. Havia uma bicicleta encostada na parede de um prédio, parecendo velha e abandonada. A sombra lançada sobre o rosto dele o tornava quase assustador, a silhueta do seu rosto agora projetando uma imagem desconhecida. Ele parecia tão sério.

-Você é diferente, Kyle. - Ele prosseguiu, ainda sem olhar para mim. - Você é diferente de todos eles. Eles querem justiça, quem é que não quer? Mas as cabecinhas pequenas dessa cidade de merda não estão prontas pra pagar o preço. Você está. - Enfim, lentamente, os olhos ferinos se voltaram em minha direção. As pupilas dele estavam dilatadas, tornando a íris esverdeada muito fina. Os olhos de Christophe tinham estranhas manchas amareladas em volta das pupilas, mas estas só apareciam no sol. Eram lindos, aqueles olhos desgraçados. Era como se eu não pudesse esconder coisa alguma deles. - Você… Eu não te traria aqui se você fosse ordinário. Se eu não tivesse certeza de que você é capaz. Tão diferente daquele seu namoradinho, aquele fracote que tem medo da própria sombra.

Eu fui tomado por um ímpeto tão forte de mandá-lo calar a boca, mas tudo que ele disse antes me anestesiou por completo, como ele soube que faria. E eu quase o odiei por isso. Fechei minhas pálpebras e deixei que aquilo me machucasse, sem reagir imediatamente.

-Você não faz ideia do que está dizendo. - Respondi após uma longa pausa, abrindo os olhos para perceber que ele estava mais perto de mim. - Seu filho da puta arrogante, que direito você tem de falar assim do Stan?! De qualquer pessoa? Essa merda é errada e você sabe disso, você não é… Você não quer matar mais gente, Christophe. Eu sei que não quer.

Mesmo quando o xingamento deixou meus lábios, era como se minha voz não carregasse raiva nenhuma. Ele também não pareceu se ofender. Talvez fosse a adrenalina, o medo de que alguém nos pegasse assim, expostos no meio da rua. Ele não levantou a voz também.

-Eu já disse que ninguém inocente vai morrer. Não pelas nossas mãos, pelo menos. Porque eles vão estar armados, assim como nós.

-E isso é suficiente. Não precisa de uma porra de uma bomba! Você não pode me pedir pra guardar isso dos outros, nós somos um grupo. Olha a merda de posição em que você está me colocando.

A essa altura, quanto mais eu absorvia o que ele estava me dizendo, mais nervoso eu ficava. Comecei a andar sem sair do lugar propriamente, de um lado ao outro, esfregando minha própria cara.

-Porque eu confio em você. - Ele disse de repente. Aproximou-se para agarrar o meu pulso e me fez parar para encará-lo bem de perto. - Eu confio em você. Eu preciso de você. Da sua paixão, da sua inteligência... - O aperto da mão dele no meu pulso chegou a machucar um pouco, mas eu não senti nada no momento. Estava anestesiado por aquele rosto, próximo o suficiente pra sentir o cheiro da pele dele. Eu não podia sentir minhas próprias pernas. Então, ele me soltou. - Aquelas crianças não têm noção do que está por vir, Kyle. Eu não sei quantas delas vão ter a coragem de olhar nos olhos de outro ser humano e arrancar a vida dele pra defender a causa, mas eu sei que você consegue.

-Pare de falar como se eu fosse um assassino, como se isso fosse uma coisa bonita!

-Você não tem medo. - Ele continuou como se nem tivesse ouvido o que eu disse. - Eu vejo como você bate, como você atira, o tesão que você tem quando treina, como você está pronto. Eu vejo o sangue nos seus olhos, Kyle. E eu fico tão puto que você fique se segurando, boicotando esses instintos por causa dele… Você tem uma coisa que não se ensina, uma porra de um fogo que… - Christophe começou a se afastar de mim, desviando o olhar por um segundo. - Que não pode ser desperdiçado. Isso me deixa louco.

Eu não sabia mais do que ele estava falando, mas também não me importava. Continuei parado ali de pé, dopado, com o coração prestes a sair pela boca, querendo cavar um buraco no chão e desaparecer. Eu não sabia o que responder a ele, como reagir. Foi o silêncio e o frio que nos trouxeram de volta à realidade. Christophe balançou um pouco a cabeça e continuou a andar no caminho que fazia antes, compreendendo que eu não responderia nada, que eu não tinha mais protestos a fazer.

Novamente, corri para seguí-lo.

-Ei, espera. - Falei baixinho. Percebi que estava sem fôlego, mas não sabia a razão. Ele virou o rosto por cima do ombro, desacelerando o passo sem parar totalmente. - Tudo bem, eu vou com você. Eu já vim até aqui mesmo… Mas eu não estou concordando com nada disso. Quero conversar com os Monarcas também. Saber o que eles estão planejando.

Ele não disse nada. Assentiu com a cabeça e continuou olhando para frente. O único som que ecoava na ruela era o dos nossos passos na calçada. Só após cerca de dois minutos em silêncio que eu entendi que ele já sabia que eu cederia ao final daquela discussão. Passavam-se mil coisas na minha cabeça de uma vez só.

De repente, ele diminuiu a velocidade e abaixou um pouco a cabeça. Isso engatilhou algo que já estava se desenrolando na ponta da minha língua; as palavras saíram antes que eu pudesse pensar a respeito:

-Eu também confio em você.

E era verdade. Era uma das coisas mais reais que eu já disse a alguém.

Como falei sem pensar, não tinha expectativas acerca da reação dele. Mas certamente não estava esperando que ele fizesse o que fez. Christophe levou o indicador aos lábios como se pedisse silêncio, e menos de um segundo depois estava me empurrando violentamente para o beco que eu nem havia percebido que estávamos cruzando. Ele me pressionou contra a parede lateral do prédio e quase tropeçamos em um saco de lixo que estava jogado no beco, mas Christophe tinha o braço em torno da minha cintura e me segurou com firmeza. Ergui os olhos para encarar o rosto dele, angustiado com aquela proximidade, levando as mãos ao seu peito por instinto, sem saber se eu deveria empurrá-lo ou puxá-lo contra mim. Me movi desconfortavelmente entre o corpo de Christophe e a parede, sentindo que a mão rude dele cobria a minha boca assim que fiz menção de esboçar qualquer tipo de reação. E ele não me encarava como eu havia esperado; esticava o pescoço para olhar para fora do beco, como se esperasse pela aparição de alguém.

Foi só aí que eu comecei a ficar genuinamente assustado. O sangue bombeava descontroladamente em minhas veias. Christophe finalmente virou o rosto para mim como se só então se lembrasse de mim, e levou sólidos dois segundos para descer a mão pelo meu pescoço, levando mais tempo do que o necessário para afastar a palma da minha pele. Seus dedos continuaram tocando meu queixo por algum tempo, indecisos; esse toque arrepiou todos os pelos do meu corpo. E nós continuávamos com os olhos presos um no outro, a respiração pesada e o coração batendo forte.

Puta merda. Eu nunca havia sentido coisa do tipo. A minha vida inteira, desde que podia me lembrar, fui apaixonado por Stan. E entre nós, sempre foi muito seguro e confortável. Sempre houve amor. Eu nunca havia experimentado esse tipo de brasa devastadora de dentro pra fora que me fizesse mover o corpo contra a minha vontade racional, como se eu não fosse dono da minha própria carne, flertando com o descontrole a todo momento. Só a maneira com que ele me olhava já me deixava completamente duro e aterrorizado.

Até que ele sussurrou:

-Tem alguém vindo.

E com isso, ele desenroscou o corpo do meu. Uma brisa gelada acentuou ainda mais a perda do calor dele. Eu fui tomado por certo alívio e desapontamento, mas não pude alimentar nenhuma dessas duas sensações porque meu cérebro estava focado demais no que ele acabara de me dizer. Christophe sacou um canivete da bota de forma assustadoramente silenciosa e aproximou-se da beirada da parede em sentinela, pronto para atacar.

Apertava o cabo do canivete no punho com tanta força que as juntas dos dedos ficavam esbranquiçadas. Eu sabia que ele tinha um revólver por dentro daquela jaqueta, mas o barulho de um disparo certamente pioraria a nossa situação. Não havia para onde correr, o beco não tinha saída. Antes que eu pudesse pensar em qualquer outra possibilidade além do confronto físico, uma sombra surgiu projetada no chão bem ao nosso lado. Christophe chegou a pegar o impulso para avançar sobre o que parecia ser a silhueta de um homem, mas freiou com a habilidade extraordinária de um felino quando uma voz muito conhecida chamou pelo meu nome.

-Puta merda! - Christophe esbravejou, levando a mão livre à testa. Ele já enxergava a figura pelo ângulo; eu ainda não. Mas não precisava vê-lo para saber quem era. A voz me foi suficiente. - Eu quase furei teus olhos, seu demente!

O Toupeira não chegava a falar alto, mas houve um descontrole na voz durante alguns instantes. Ele parecia genuinamente assustado pelo que poderia ter feito.

-Você me seguiu?! - Perguntei, empurrando Christophe para tomar a frente, enfim enxergando Stan parado com as mãos nos bolsos da cara e uma expressão fechada, sem reagir à minha presença repentina. - Stan, mas que merda…?!

Eu honestamente não podia dizer que estava aliviado. Só era um tipo de demônio diferente do que eu havia planejado enfrentar naquela noite.

-Você saiu de fininho escondido no meio da noite, tem certeza que quer me acusar de alguma coisa? - Ele perguntou sem parecer abalado. Sequer parecia puto. Suspirou fundo. - Eu estava preocupado. Que diabos vocês estão fazendo?

-Trabalhando. - Christophe interrompeu antes que eu pudesse. Deu uma boa olhada em Stan, de cima abaixo, provavelmente tentando entender até que ponto ele nos ouviu conversando. Parte de mim gostaria que ele apenas tivesse ouvido tudo para que eu não precisasse esconder coisa alguma. Mas a outra parte tinha pavor demais do que ele podia pensar. Por fim, o Toupeira olhou em volta, procurando por outras presenças, então fez sinal para que atravessássemos a rua. Ele estava mudando o caminho. - Agora você também está, Marsh.

Stan ainda me olhava, e como havia dor e mágoa naqueles olhos. Eu o encarei de volta como se não devesse nada. Isso só foi fácil porque eu ainda estava puto em saber que ele me seguiria. Nós teríamos uma conversa forte depois daquilo e eu já estava cansado de pensar a respeito.

Stan foi quem fez a primeira menção de seguir Christophe. Caminhamos um ao lado do outro, relativamente próximos, enquanto Christophe se manteve a uma certa distância à nossa frente. Eu não reconheci o caminho que ele estava guiando, mas fingi que estava muito seguro de tudo.

Após um minuto de silêncio tenso, deixei escapar um pensamento em voz alta:

-Você não confia mesmo em mim.

Estava escuro para ter certeza, mas pensei ter visto Stan revirar os olhos.

-Essa foi a coisa mais hipócrita que já saiu da sua boca.

-Você sabe o que eu estou fazendo quando eu não durmo em casa.

-Sei, Kyle? É muito engraçado que você exija confiança enquanto esconde as coisas de mim.

Eu considerei me afundar mais ainda na mentira, dizer que eu não estava escondendo nada, que ele estava dormindo e eu apenas não quis acordá-lo. Mas nem eu era cara de pau a esse ponto. E não havia motivo; eu confiava em Stan, mesmo que Christophe não.

-Eu estou tentando te proteger aqui. - Respondi enfim, e foi com honestidade.

-O que isso quer dizer?! - Stan perguntou aflito.

-Ei. - Christophe disse de repente, olhando para trás. - Se algum sapador ouvir vocês brigando, não contem comigo pra salvar o rabo de vocês. Falem baixo.

Com isso, Stan se fechou. Bufou irritado e apertou a ponte do nariz como sempre fazia quando tinha que forçar a paciência. Podia ver claramente como ele estava desejando que não tivesse vindo.

Foi uma caminhada de menos de dez minutos até uma loja de brinquedos abandonada no lado pior da cidade. Era uma das nossas sedes, embora essa eu ainda não conhecesse. O acesso era pelos fundos; pelo vidro quebrado de uma janela grande que dava para um beco. Eu já estava habituado a viver pelos becos a essa altura, depois de meses atravessando clandestinamente essa cidade em horários indevidos. Aliás, é algo que eu já fazia antes.

Dentro da loja, estava escuro. A única fonte de luz era uma lamparina ardente pendurada no teto por um gancho improvisado. Ainda havia alguns brinquedos nas prateleiras, mas a maioria estava vazia. Tudo era coberto de poeira. Não era um espaço muito grande; havia um balcão central com algumas armas e munição, uma garrafa de rum e outra de água, alguns papéis.

E para a minha surpresa, Tweek se encontrava de pé em frente a esse balcão, mexendo em um troço muito semelhante a um rádio cilíndrico. Pela iluminação porca, eu ainda duvudei dos meus próprios olhos. O que o Tweek estaria fazendo ali?

-Tweek? O que você faz aqui? - Stan perguntou, parecendo ainda mais confuso do que eu. Ele estava evitando me olhar.

Mas Tweek não deu muita atenção a nós. Largou o “rádio” de forma barulhenta e juntou as mãos, dando a volta no balcão correndo para se aproximar de Christophe. Só um pouco, não muito. O Toupeira largava a mochila no chão e tirava o casaco, deixando o revólver sobre a bancada, franzindo as sobrancelhas grossas para toda aquela agitação.

-Alguém viu vocês?! - Tweek perguntou, agarrando o próprio tecido xadrez de sua camisa com angústia, na região esquerda do peito. Estava todo descabelado e parecia não pegar no sono há semanas.

-O que deu em você, imbecil?! - Christophe perguntou. - Ninguém nos viu.

-Eu pensei ter ouvido… Tinha alguém ali fora, eu juro!

Sempre tinha. Para Tweek, o governo já sabia de tudo o que planejávamos, havia espiões no grupo e nossos cérebros eram monitorados. Ele sempre embarcava nesse tipo de paranóia com qualquer fiapo de evidência. Christophe apenas bufou baixo e coçou a cabeça.

-Escutem aqui. - Falou, voltando-se para nós. - Vamos dar um tempo. Eu vou limpar as facas e estudar o mapa subterrâneo da prefeitura. Ocupem-se ou durmam, eu não dou a mínima. Só não inventem de ir embora, já forçamos demais a nossa sorte.

Com isso, ele se dirigiu a uma portinha dos fundos, que devia dar para algum tipo de escritório minúsculo como todo estabelecimento tem.

Stan me olhou de canto, com os braços cruzados.

-Você não veio trabalhar? Agora ele está dispensando a sua ajuda?

-Os planos mudaram. - Respondi baixinho, contendo minha impaciência.

Tweek literalmente andava de um lado ao outro, fazendo a volta naquele balcão sujo. Era estranho vê-lo tão perto de armas. Stan se aproximou dele sem me responder, repousando uma mão gentil em seu ombro.

-Cara, o que você está fazendo aqui?

-E-eu? Ah… Ajudando. - Ele esfregava os próprios dedos, afastando-se rapidamente da mão de Stan para pegar o eletrônico estranho em que mexia antes. - Ajudando, é. Eu pedi pra ele me deixar trabalhar, e… O Toupeira tem me ensinado muitas coisas.

Era esquisito como Tweek agia de forma tão defensiva, como se tivesse sido descoberto em um lugar indevido. Stan o encarou durante alguns segundos, mas deve ter percebido o mesmo que eu e não quis forçar situação nenhuma. Deu um passo para trás e deixou que ele continuasse cutucando o objeto com uma chave de fenda.

Eu me sentei no chão e cobri a cabeça. Não levou muito tempo para que Stan se sentasse ao meu lado - sem encostar em mim, mas próximo o suficiente. Esperei por um interrogatório que não veio. Aliás, levou quase vinte minutos para que ele me dirigisse a palavra.

-O que vocês realmente iam fazer? - Stan perguntou baixinho, com uma voz bem menos irritada do que antes.

Primeiro, eu o encarei. Depois, enchi os pulmões de ar. Todas as palavras apropriadas desapareceram da minha mente.

-Eu não sei. Ele não me disse. - Fiz uma pausa, tentando me convencer de que aquilo não era mentira. - Stan… Eu não estou te enganando. Há coisas que talvez seja melhor não saber.

-Você não tem noção do quanto me assusta ouvir isso da tua boca .

Eu separei os lábios e cheguei a começar uma frase da qual nem me lembro, porque toda a conversa foi interrompida. A loja foi invadida por tudo o que você não quer ouvir a essa hora da madrugada; uma sequência aterrorizada de gritos. Eram de uma mulher e pareciam vir direto do beco ali fora, do outro lado da janela de acesso.

Tudo aconteceu muito rápido. Tweek se desesperou imediatamente, largando o aparelho pesado sobre o balcão, que tremeu. A coisa emitiu um estrondo enorme e Tweek começou a gritar também, andando para trás, tropeçando nas próprias pernas enquanto segurava a cabeça com as duas mãos. Stan foi quem se levantou primeiro, fazendo “Shh” violentamente, gesticulando com as mãos para que ele se acalmasse.

Mas Tweek não se acalmou. Tremia descontroladamente. Fugiu correndo em direção à porta do escritório, esbarrando com Christophe, que saía ao mesmo tempo para entender que merda estava acontecendo. Lá fora, a mulher pedia por socorro. Poucos segundos depois de Tweek entrar na salinha para se esconder, um rosto estranho apareceu na janela. O Toupeira ainda permanecia de pé na porta. Havia uma faca em sua mão. Ele a escondeu atrás do próprio corpo discretamente, mas foi pego de surpresa; o homem apontava o gatilho da arma bem na direção dele, mirando entre os olhos.

A essa altura, eu também estava de pé. Nem sabia exatamente como chegara a essa posição. Devia ter pulado feito um gato quando me dei conta do que estava havendo. Agarrei-me ao braço de Stan quase sem perceber. Não trocamos olhar algum, não desviamos a atenção do homem com a arma que trajava branco da cabeça aos pés. Mas eu senti a mão quente de Stan sobre a minha.

Eu pensei que meu estômago fosse sair pela boca. O cano daquela arma fina apontada diretamente para Christophe era como levar uma surra; todos os piores cenários possíveis cruzaram a minha mente como tiros de bala. Se aquele homem morresse bem na minha frente… Se tudo o que aconteceu até aquele momento não significasse porra nenhuma, se aquela vida tão preciosa terminasse de forma tão estúpida, tão banal, por descuido. Era isso que significava ser um clandestino? Que a juventude realmente não signifique merda nenhuma. Talvez fosse isso mesmo. Gregory sempre dizia que nossas vidas eram pertencentes à causa, que aquele era o único jeito de morrer. Para nós, pelo menos. E que nossos anseios e angústias eram muito pequenos diante do valor do nosso sangue derramado; acho que é assim que se faz uma revolução: sobre uma pilha de cadáveres.

Tudo isso era tão bonito na teoria. Mas quando você está ali, frente a frente com a morte de um ser amado, você trocaria qualquer revolução pela vida desse alguém. Mente quem diz que não.

O homem de branco não era muito mais velho que nós; batia na casa dos 30, mas não passava disso. Ele tinha uma pinta na bochecha, lembro-me bem. Seus olhos eram escuros. Ele sorria com dentes amarelos, tirando um deleite infantil da ocasião. Usava um pequeno rabo de cavalo e tinha a cabeça muito larga.

-Roy! Ei, Roy! - Gritou, alternando o olhar entre nós três, mas o gatilho continuava mirado em Christophe. Ele devia ser bem treinado para farejar a presença do mais forte. - Larga essa puta e vem dar uma olhada no ninho de ratos que eu encontrei aqui. Olha só que belezinha…

A mão de Christophe apertou tanto o cabo da espada em suas costas que pensei que ele fosse se romper. Não se moveu. Até respirava diferente agora.

O homem de branco apontou para ele como se a arma fosse um dedo indicador, num gesto que logo mais se desfez. Enfiou a cabeça pela janela da loja, inspecionando o ambiente, os cacos de vidro no chão, o revólver de Christophe sobre o balcão, tudo o mais que poderíamos usar em defesa. Stan e eu estávamos longe demais para alcançar qualquer arma.

Foi a primeira vez que eu tive real noção de que não importa em quantas garrafas se atire, você nunca estará pronto para atirar em outro ser humano antes de fazê-lo realmente. Talvez nem depois disso. Minhas mãos eram limpas de sangue naquela época.

-Cacete. - O sapador prosseguiu. - Mas vocês se espalham feito uma praga mesmo. - Fez uma breve pausa. - Eu estou vendo esse brinquedinho na sua mão. Você vai querer largar isso agora. A menos que prefira chumbo no crânio.

Christophe mordeu a parte interna da bochecha, estreitando os olhos. Eu quase pude ouvi-lo rosnar. Meu coração batia estourando no peito, o que deixava minhas orelhas quentes.

Ele não era idiota. Soltou a faca. E eu fiquei indescritivelmente grato quando ouvi o som do metal caindo no chão. Christophe não deixou de encará-lo com ódio inflamado no olhar. Não disse uma palavra, continuou imóvel, mas sua expressão era gritante.

-Bom menino, não precisa dificultar nada. Agora me digam: quantos mais tem aí dentro?

-Não tem ninguém. - O Toupeira respondeu, não nos dando tempo de sequer esboçar uma reação. O que pode ter salvado nossa vida, mesmo que eu não tivesse noção clara disso na hora. - Somos só nós três.

-Estrangeiro, ainda por cima? - O homem sorriu para o sotaque de Christophe. - Muito bem. Então eu posso vasculhar o quanto eu quiser no seu covilzinho e não vou encontrar outro rato?

-Fique à vontade. - Ele respondeu, levando as duas mãos à cabeça antes mesmo que o sapador ordenasse. Parecia apreensivo, mas suficientemente calmo, como se nada daquilo fosse novidade. Pensar nisso me embrulhou o estômago. Eu não fazia ideia do que ele planejava. De qualquer forma, Stan e eu seguimos o movimento. O cara gostou do que viu.

Por algum motivo, os berros também cessaram. Eu podia ouvir que rolava uma conversinha baixa, a mulher agora lamuriando desesperadamente para o filho da puta que estivesse fazendo coisas medonhas com ela. O tal de Roy. Minha atenção passeava entre tentar identificar o que ela dizia e rezar. Sim, rezar. Nunca me ensinaram como, o conceito de religião era algo distante que se estudava nos livros de história. Mas as pessoas ainda olhavam para o céu e clamavam silenciosamente por ajuda naquilo que não podiam controlar. Então eu pedi: não sei a quem, mas pedi por tudo que fosse mais sagrado que aquele homem não encontrasse Tweek em posição fetal chorando apavorado.

E pedi também por aquela pobre mulher, que nada de terrível lhe acontecesse. Parecia tão vão pedir isso a forças superiores. Talvez por isso que a religião tenha sido abolida. Rezar só carregava mais a minha impotência.

Fizemos como o homem de branco ordenou. Fomos os três até a janela, um atrás do outro, Christophe na frente, depois Stan, por último, eu. Vimos mais uma cena corriqueira desenrolando-se naquele beco; o outro sapador segurava pelos cabelos uma mulher loira que estava caída ao solo, com a roupa rasgada nos seios, apenas farrapos cobrindo sua intimidade. Seu rosto estava sujo de lágrimas negras que escorriam com a maquiagem. Tinha hematomas. Estava escuro, mas era visível. Puta merda. Eu fechei os olhos e virei o rosto de lado, mas os gemidos agonizantes dela não me deixavam esquecer a imagem, a presença.

-Roy, caralho, já falei pra largar essa vagabunda estarrada um pouco. Tem coisa mais importante aqui.

-O que é?! - Ele respondeu. Não vi o que ele fez, mas a mulher gritou. Eu só apertei os olhos com mais força. Stan estava bem próximo de mim, prendendo a respiração. - O que eu vou querer com esses daí?

-Você é trouxa ou o quê? Não sabe o que eles são?

-E eu lá quero saber?! Quero mais é que se foda. Apaga eles de uma vez.

-Tá louco, Roy? Presta atenção aqui um segundo. - Abri os olhos porque senti a mão do homem branco bem próxima do meu rosto. Ele apertou meu maxilar com força, forçando-me a olhar para frente, gesticulando com a mão que segurava a arma antes de pressionar o cano contra a minha têmpora. Estava gelado. O vapor saía da minha boca devido ao frio; comecei a respirar mais pesado, sentindo um fervor amedrontado de dentro pra fora. Pisquei devagar. Eu sabia que isso aconteceria em algum momento. De alguma forma esquisita, o toque dessa arma na minha pele era menos angustiante do que se ela estivesse ameaçando Stan ou Christophe. - Não se engane só porque eles são meninos limpinhos. Vai dar uma olhada no que eles têm lá dentro, isso aqui é uma mina de ouro. Eles são rebeldes. La Resistance, não é assim que chamam? - O homem imitou o sotaque de Christophe para falar.

Finalmente, Roy soltou a mulher contra o chão e colocou as mãos no quadril, passando os dedos pelo cabo do revólver guardado na calça. Não sacou a arma. Roy parecia ainda mais jovem que o outro, apesar de já ter entradas e de ser um pouco mais encorpado.

-E aí? A ordem não é atirar assim que encontrar um merda desses? O que você está esperando?

-Atirar, só se for na perna. Querem pegar esses canalhas bem vivos. - O homem de branco voltou a me encarar, a arma ainda bem pressionada contra a minha cabeça. Engoli seco. Tinha dificuldade de respirar. Minhas pernas tremiam. Ele sorriu ao perceber. Senti a inquietação de Stan ao meu lado, o passo à frente que ele deu, mas não tive coragem de virar o rosto para ele. Não queria mover um músculo. Sei que ele fuzilava o sapador com os olhos. - Escutem. - O homem disse em um tom curioso. Percebi que os olhos dele sempre se voltavam para Christophe, mas ele ainda mantinha uma certa distância. - Vocês sabem o que vai acontecer com vocês? Tão sabendo o que acontece quando a racinha de vocês é pega? Na melhor das hipóteses, mas melhor mesmo, vocês vão lembrar de mim e pensar: “poxa, bem que ele podia ter sido piedoso e estourado o meu crânio ali mesmo”. Morrer agora é o que tem de melhor pra vocês, seus desgraçados. Só que vocês não merecem.

De repente, Christophe fez o primeiro movimento brusco. Trotou como um cavalo para se colocar entre mim e o homem de branco; demorou alguns segundos para que eu acreditasse que ele faria algo tão estúpido. Era exatamente o que eu temia que Stan fizesse. Por um instante, eu tive certeza de que acabaria assim. Que ele já era. Por algum motivo, o sapador soltou uma gargalhada amarga e abaixou a arma, tentando parecer no controle da situação. E estava, de fato. Era um bom disfarce para o quanto ele estava assustado também. Christophe chegou a me empurrar um pouco para trás, fazendo um sinal com a cabeça para que Stan também desse um passo de recuo.

-Olha só, alguém é corajosinho.

-Franklin, para de graça. - Roy disse.

Espiou a mulher aos seus pés, que havia se encolhido em posição fetal, abraçando com força os joelhos, rastejando um pouco para longe dele. Ela também nos encarava com olhos imensos, ainda úmidos. Tinha os cabelos loiros mais armados e longos que eu já vi; ela era a única pessoa que não deveria estar nessa situação. Eu e ela fizemos contato visual durante o que pareceu uma eternidade. Não conseguia enxergar qual era a cor dos seus olhos. Tudo o que eu via era pavor e talvez um pouco de piedade. Ela não devia ser mais velha do que nós, era só uma menina. Dezoito anos, dezenove, no máximo. Era tão bonita. Perguntei-me se ela tinha mãe pra chorar sua morte caso nenhum de nós saísse vivo daquele beco. Perguntei-me também que mentira minha mãe inventaria para encobrir o fato de que seu filho teria morrido como um traidor da pátria. Seria tão criativa quanto a que ela inventou para o meu irmão?

Não quero fazer parecer que eu estava mentalmente distante enquanto tudo acontecia ao meu redor. Não há como se ausentar diante do risco da morte, ou o que houvesse de pior. Mas o tempo pareceu se esticar a tal ponto que as coisas já aconteciam em câmera lenta, a conversa entre aqueles dois homens indisciplinados que pareciam não ter ideia do que estavam fazendo.

-O que eu faço com a puta, hein? - Roy perguntou, o que fez com que a garota escondesse o rosto nos próprios joelhos.

-Mata de uma vez, é uma a menos pra poluir a rua. Temos que chamar reforços.

-Mas eu nem dei uma metidinha ainda!

-Não… Não, por tudo que é sagrado! - Ela gritava, agarrando-se à perna do tal de Roy. Havia cabelo em seu rosto. Ela tentava cobrir os seios com os braços, arranhava a coxa dele de tanto apertar, dizendo coisas sem sentido, gaguejando. - O senhor tem mãe, eu sei que tem! Por favor, faça o que quiser comigo e me deixe ir embora, eu juro pela minha mãe que nunca mais ando na rua fora do horário, nunca mais vou incomodar ninguém! Eu juro!

-Cala a boca, miserável, estou tentando pensar. - Franklin respondeu, enquanto Roy dava com o joelho na cara da menina. Ela cobriu o nariz e gritou de dor, contorcendo-se no chão.

Como era doloroso ver outro ser humano atingindo esse ponto de desespero, de atirar-se aos pés de um estuprador filho da puta daquele gênero. Mas a menina não estava pronta pra morrer. Ela ainda tinha impulso de vida, esse fogo ficava cada vez mais claro. Eu preferiria levar um tiro bem entre os olhos antes de implorar qualquer coisa daqueles homens.

Foi então que eu ouvi o disparo. Era tudo que eu não podia ouvir. Tudo que eu não queria. Foi ensurdecedor, por mais que eu já tivesse começado a me habituar com o som da arma. E aí houve outro, quando eu já estava me jogando no chão, olhando desesperadamente de um lado ao outro, meu cérebro criando as imagens mais macabras de Stan deitado em uma poça de sangue ou… Céus. Eu pensei que fosse vomitar.

Mas eu vi os pés de Stan. Ele também estava agachado, erguendo o tronco lentamente para entender o que havia acontecido. E me procurando com os olhos. Nós nos encaramos em terror durante não mais de um segundo, antes de ouvir Christophe correndo feito um demente na direção de Roy. E gritos. Muitos gritos, gritos familiares. Não mais vinham dos pulmões da mulher. Não, ela estava no mesmo estado catatônico que nós.

Eu senti sangue quente escorrendo por baixo da minha mão que apoiava no concreto do chão. Olhei para baixo. O homem de branco se debatia enfraquecidamente a um metro e meio da mim. Sua roupa, antes imaculada, agora era tingida de vermelho. Havia um buraco no seu estômago, de onde jorrava sangue ininterruptamente, e outro que não podia ser visto. Na nuca? Não, ele já estaria morto se fosse. Era muito sangue. Sangue escuro, sangue grosso. Eu me sentia tonto pelo zumbido do estouro. Tentei me levantar, apoiando minha mão besuntada pelo sangue dele em meu joelho. Os gritos ficaram ainda mais altos, logo atrás de mim. Vindos da janela.

Olhei por cima do ombro. Caralho, aconteciam muitas coisas de uma vez só. Lá estava Tweek, com os olhos mais arregalados do que nunca, com as mãos em frente ao rosto, não mais segurando o revólver que, agora, estava caído ao seu lado no chão. Eu não vi isso naquele momento, mas compreendi na hora. Ele estava tendo um ataque de pânico. Hiperventilava como um louco, parecia não enxergar nada em frente aos seus olhos, segurava-se no peitoril da janela e gritava repetidamente: “o que eu fiz?”

E no mesmo instante, Christophe correu para cima de Roy - que continuava desarmado e não conseguiu sacar a arma a tempo - e o derrubou no chão com o peso do próprio corpo, os dois caindo em cima da perna da moça. Stan gritou o nome de Christophe, como em um aviso, mas foi inútil. Ele já estava com as duas mãos na garganta do infeliz, que se debatia sob seu corpo e quase conseguiu derrubá-lo duas vezes antes de perder as forças. Eu não vi a coisa toda acontecer porque corri na direção de Tweek, embora não faça ideia de como minhas pernas conseguiram me carregar até ele. Cortei a mão num caco de vidro que havia no peitoril da janela quando pulei para dentro e o segurei com força.

-Shhh, está tudo bem. - Eu dizia a ele, mentindo até para mim mesmo. - Está tudo bem, fique quieto.

Assim que Tweek sentiu um corpo no qual podia se apoiar, ele desabou. É assim que funciona. Deixou todo o peso cair nos meus braços e eu fui para o chão junto dele, muito perto do revólver de Christophe. Tweek agarrava a minha roupa com desespero, num choro esganiçado, apertando a cabeça contra o meu peito, sacudindo-se como um demente. E eu apenas o segurava, tentando evitar que ele se ferisse nos cacos de vidro do chão. Lá fora, eu ouvia horrores acontecendo. Aquilo parecia não ter fim. Christophe dava com a cabeça de Roy no concreto repetidas vezes, emitindo sons medonhos até o crânio quebrar, enquanto Stan gritava que era suficiente, para que ele parasse. Ele não parou. Acho que foi só então que eu comecei a sentir lágrimas escorrendo pelo meu rosto.

-O que eu fiz? - Tweek murmurou baixinho, com uma voz fina de choro preso, com o rosto amassado em meu peito. Eu apenas o acolhi como minha mãe fazia quando eu me ralava, na infância.

-Você fez bem, Tweek. Você… - Parecia não haver ar nos meus pulmões. Fechei os olhos. Ouvi Christophe e Stan esbravejando um com o outro. Eu nem ouvia mais que palavras eles usavam. A adrenalina corria com tanta força pelo meu corpo que meus sentidos pareciam todos alterados. Eu só sentia calor. Estava coberto de suor, mesmo com aquele frio desgraçado. E sujo de sangue. Minha mão manchada também espalhava o vermelho pelos cabelos de Tweek conforme eu os acariciava, como se faz com uma criança. - Você fez muito bem.



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