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História Liberté - O Forte


Escrita por: caulaty

Capítulo 2 - O Forte


02 de fevereiro de 3644

 

Choveu a manhã inteira, sem parar. Eram raros os dias em que não chovia. Agora, ela fora reduzida a pequenos pingos aleatórios que caíam insistentemente em nossas testas e couros cabeludos, apenas para nos lembrar que a chuva jamais teria fim. O céu estava constantemente coberto por uma camada densa e escura de poluição, escondendo as nuvens responsáveis pelo clima rigorosamente feio. Os paralelepípedos estavam úmidos, bem como a parede de tijolos contra a qual eu me encostava. Eu podia sentir a desconfortável umidade também por dentro dos meus sapatos, que já tinham cinco anos de uso diário e as pobres solas estavam descolando, mas era tudo o que tinha. Dei sorte de meus pés não crescerem muito da adolescência para cá. Estaria na hora de aposentá-los, se eu tivesse dinheiro para luxos como sapatos novos. Quase ninguém tinha, especialmente em South Park.

Mas eu não estava pensando em sapatos, não naquele momento. Meus olhos reluziam, fixos nos sapadores de ferro que passavam pelo beco em uma fila interminável; eles não me viam, não tiravam tempo para olhar para o lado, e talvez aquela fosse a nossa sorte sorrindo para nós. Àquela altura, estávamos acostumados: já conhecíamos a rota dos sapadores e quanto tempo levariam para cumpri-la, pois a função deles não era meramente a fiscalização (como gostavam de fazer parecer); tratava-se mais de um movimento de terrorismo psicológico que nos levava ao recolhimento por medo do que poderia acontecer se fôssemos pegos na rua no horário indevido. De qualquer forma, os sapadores eram muito focados em sua tarefa de varrer a avenida principal dos marginalizados e nada os distrairia. Os sapadores eram andróides jovens em sua maioria, fortes e encorpados, homens da lei. Em um raio de 200km ao nosso redor, todos poderiam ouvir o marchar das botas de combate sobre o concreto molhado e todos que ouvissem estremeceriam um pouco por dentro.

Ou talvez nem todos. Stan, certamente, sequer parecia ouvir o eco insuportável daquelas botas. Tinha o rosto mergulhado em meu pescoço, devorando-o com o desespero de um homem faminto, segurando meu corpo em suas mãos com afinco em cada dedo, cravando-os em minha carne coberta pela roupa. Seu nariz estava gelado, mas logo seria aquecido em minha pele úmida do queixo até o colo. Sua boca, ao contrário, parecia ser a coisa mais quente que já existiu.

A marcha foi interrompida junto com o que pareceu ser o som de mais de cento e cinquenta pés esquerdos colidindo contra o solo, fazendo tremer o chão sob os nossos pés. Havia algo de atordoante e maravilhoso naquele som. Stan sempre falava sobre o que julgava ser uma mórbida fascinação da minha parte quanto aos fiscalizadores das ruas. Stan não parecia se preocupar, nem naquele momento e nem no restante do tempo, sobre as coisas que ele não podia controlar. Dizia-me isso o tempo todo. Mas enquanto a sua boca deslizava pela minha pele, a língua grossa e os lábios molhados e carnudos brincando pelo meu pescoço exposto a ele, eu não podia afastar de minha mente o que acontecera no dia anterior. Três alunos de História desaparecidos.

-É tão triste. - Murmurei baixinho, quase sem perceber que as palavras saíam da minha boca, e saíram emboladas em um gemido fraco que resultava em uma mistura tão doentia de excitação pelo corpo quente de Stan junto ao meu e o turbilhão de pensamentos, ambos elevando a adrenalina.

Stan me apertava contra os tijolos, encaixando a coxa entre as minhas pernas, descendo uma das mãos pelas minhas costas para passá-la por baixo da barra da minha camisa. Gemeu distraído em questionamento, sem de fato prestar atenção no que eu havia dito, chupando a minha pele de forma que me arrancasse o ar dos pulmões. Eu respirava como um cachorrinho toda vez que ele fazia isso. Escorreguei as mãos pelo peito dele, apreciando a textura áspera do colete que ele vestia.

-Você ouviu sobre os alunos? - Perguntei, quase sem fôlego, passando um dos braços em torno do pescoço dele e subindo a mão por entre aqueles cabelos negros e grossos, sempre tão macios. Isso finalmente fez com que Stan levantasse a cabeça, escorregando os lábios pelo meu maxilar e encontrando a minha boca no caminho, beijando-me de forma barulhenta. Segurei a nuca dele com firmeza, deixando que pressionasse minha cabeça para trás, contra os tijolos duros e frios.

Quando nossos lábios se separaram, Stan me encarou de perto. Olhava-me com aqueles olhos de um azul escuro que eram mais doces do que os de um animal ou de uma criança, sorrindo torto e gentil, cobrindo minha bochecha fria com a palma da mão.

-Pare de pensar nisso.

-Como?

Ele não sabia como, assim como sabia que qualquer solução proposta seria inútil para mim. Então me respondeu com um selinho carinhoso, alisando a pele do meu rosto com o polegar. Seu hálito era delicioso e sua respiração quente era um reconforto. O frio começava a dar lugar a um clima mais ameno e delicado, embora nunca fosse propriamente agradável em South Park. Eram quase dez e quinze da manhã. Stan deu uma olhadela no relógio e sinalizou que precisaríamos voltar para sala, embora seus braços continuassem me envolvendo e não demonstrassem qualquer intenção de me soltar. Não tínhamos mais que atravessar a avenida principal tomada pelos soldados para voltar à aula, já havíamos aprendido um caminho alternativo pelo beco que levava a uma ruela estreita, bem escondida. Seria preciso pular uma cerca alta, mas desenvolvemos esse hábito quase todos os dias. Ainda teríamos tempo de comer se saíssemos logo.

Sempre me surpreendia o quanto Stan era destemido com essas coisas. Quem nos olhasse de fora palpitaria o oposto, pois eu sempre fui o primeiro a abrir a boca para os enfrentamentos, desde que éramos crianças. Mas eu sempre tive muito mais medo. Medo das consequências da rebeldia, como minha mãe me ensinou a ter. Stan lidava com o burlar as regras – das menores às maiores – com muito mais tranquilidade, pois sempre teve uma certeza incontestável do que era certo e errado. Então não via problema nas linhas acinzentadas entre o preto e o branco. E no mundo em que vivíamos, a flexibilidade dele me era tão necessária. Stan não fazia qualquer ideia do quanto ele me dava segurança. Não sei por onde posso começar a descrever Stan Marsh. Quando falo sobre sua doçura, talvez as pessoas pensem imediatamente em fragilidade e delicadeza. Stan era um homem troncudo, com excesso de pelos, uma ideia de barba aparecendo no rosto jovem, os olhos infantis, dentes muito brancos e abraço tão quente e apertado como ninguém no mundo saberia dar. Esteve na minha vida desde que eu me conhecia por gente, fazendo o papel silencioso de um herói de armadura de latão, sem qualquer pretensão de ser herói de verdade, mas era, acima de tudo. Pelo menos para mim. E eu me apaixonei por ele ainda quando criança, perdida e incontrolavelmente. Estávamos juntos de verdade há três anos. Foi com Stan que eu descobri o amor, o ciúme, o sexo, o que era entregar-se a um outro ser humano de forma tão plena, pura e livre.

Creio que uma orientação histórica se faça necessária. O cenário era a universidade construída no prédio de uma antiga ópera abandonada. Era uma construção de mais de 500 anos, mas o grande lustre do salão de entrada precisou ser restaurado apenas uma vez durante esse meio século. Toda a decoração foi preservada, equipando apenas as salas de aula, demolindo paredes que dividiam as pequenas saletas entre camarins, escritórios e estoques para torná-los salas maiores e habitáveis. O antigo palco era usado como auditório. Todas as manhãs, tardes e noites jura-se lealdade ao presidente e à nação antes do início de cada dia letivo. O ensino é público, mas o diploma não vale muito na nossa condição.

Não sei ao certo como chegamos até aqui. Estudamos a história de nosso país de uma maneira muito tendenciosa, enaltecendo as figuras mais duvidosas, ocultando ou distorcendo fatos. Mas há coisas que eu vivenciei, que ninguém precisou narrar através de livros – e boa parte deles é censurada, de qualquer maneira. Eu estava lá em 3634, quando ainda havia democracia e foi eleito o presidente que decretaria poder absoluto do exército acima da Constituição. Foi o ano em que a democracia foi abolida, um golpe que tinha como fundamento tirar o país de uma crise econômica intensa, mais o ato institucional só entraria em vigor cinco anos mais tarde, dia 02 de novembro de 3639. Eu já era adolescente, já tinha uma compreensão mais ampla do que estava acontecendo. O presidente ditatorial foi descartado, dando início a uma nova era: o líder supremo que exalta o patriotismo perdido dos americanos; decreta que a ditadura servirá como uma “limpa”, pois é garantido que os americanos fiéis estarão protegidos da crise. Como é fácil induzir uma nação através da bajulação. O bom e velho espírito americano. Iniciaram-se as deportações. Em 40, é implantado o genocídio por fome contra os latinos em solo americano. Os europeus continuaram sendo tolerados por acordo político. Movimentos estudantis foram fechados, professores desapareceram, o conhecimento é retido e a lealdade ao partido deve ser absoluta. O ensino público era uma forma de manter os jovens sob controle, repassando o que for interessante para a massa. Estrangeiros não eram bem vistos. 42 provavelmente foi o pior ano, quando a guerra entre Estados Unidos e Canadá eclodiu, um conflito constituído desde que éramos crianças. Professores e alunos começaram a desaparecer da universidade, as guerrilhas começaram a se formar, pessoas eram torturadas. Minha mãe era uma militante ativa na guerra, defensora fervorosa do orgulho americano. Meu irmão – adotivo - era canadense.

* * *

A cafeteria estava sempre cheia, mesmo com o número decrescente de alunos no último ano; diversas pessoas deixavam South Park ou optavam por parar de estudar e aderir ao trabalho manual que sustentava a maior parte das famílias. Eric Cartman sempre conseguia uma mesa para nós, mesmo que fosse através de métodos não muito ortodoxos, por assim dizer. Nenhum de nós concordava, mas não o suficiente para nos recusar a acompanhá-lo. Naquele dia, ele comia uma coxa de frango sem pele que, por vez ou outra, repassava discretamente ao Kenny para que ele desse uma mordida, sempre tão cheio de vontade que era delicioso assistir. Eu tentei oferecer a maçã que trouxe comigo, mas ele graciosamente recusou com um aceno, sorrindo da forma honesta que só Kenny conseguia; não importava a quantidade de horrores que ele já tinha visto, passado, aquele sorriso continuava lá. Esses dois jovens, Stan e eu éramos amigos desde que posso me lembrar. Nunca entendi ao certo o motivo. Era apenas dar uma boa olhada em torno daquela mesa para perceber as distinções entre nós quatro. Sentado à minha frente, ainda havia um outro homem: Gregory arregaçou as mangas do blazer vermelho, puxando também o suéter branco que vestia por baixo. Seus olhos cintilavam, focados nas coisas que dizia especificamente para mim, pois os outros três estavam entretidos em uma discussão baixa sobre centopéias e quantas patas elas realmente teriam.

-É revoltante, simplesmente revoltante. Isso me dá vontade de vomitar. - Ele me disse, voltando a afundar a colher em sua gelatina verde. Seu sotaque britânico era brando, pois vivia nos Estados Unidos desde criança, mas jamais perdera aquela entonação europeia. - Você sabe quantas pessoas desapareceram até agora, só esse ano? Vinte e quatro. Em dois meses, Kyle.

Uni as duas mãos em frente ao rosto e deixei escapar um suspiro pesado, massageando as têmporas com os polegares. Senti a mão de Stan em minha perna, embora ele não tenha parado de olhar atentamente para Kenny, que desenvolvia uma teoria importante, gesticulando com as mãos, parando somente quando Cartman bateu na mesa com sua mão pesada, mandando que escutasse. Eric Cartman era de uma grosseria sublime, e sabia vesti-la com uma elegância extraordinária. Kenny coçou o maxilar em que crescia um vislumbre de barba mal feita, voltando o olhar a Gregory.

-Vocês têm que aprender a falar mais baixo, suas bichas. - Cartman interrompeu. - Se levarem choque elétrico na nuca, não esperem que eu defenda vocês.

-Ninguém esperaria isso de você. - Respondi imediatamente, irritado.

-Ei. - Kenny disse, sacudindo a cabeça como um cachorro e alisando os cabelos dourados para trás, mas não recebeu atenção. - Gente.

Cartman largou a coxa de frango sobre o prato e limpou a mão em um guardanapo, ainda mastigando um resto que ficou entre os dentes, já apontando o dedo na minha direção, apoiando o cotovelo na mesa bamba e estremecendo os talheres na superfície. Kenny roubou o frango ligeiramente.

-Eu não quero ser associado com gente retardada que não sabe a hora e o lugar de falar as coisas. - Ele me disse, sussurrando alto.

-Você não pode estar falando sério, Cartman.

-Gente. - Kenny chamou novamente, com as bochechas volumosas, mastigando.

Gregory se virou para trás, na direção em que ele olhava.

-Como é que você acha que esses idiotas são pegos, Kyle? É gente que fala demais, já passou da hora de você aprender isso.

-Meu Deus, olha a merda que você tá dizendo.

-Tudo bem, se você quer dar uma de Jesus, suba na mesa e comece a se rebelar. É complexo de judeu, isso?

-Cala essa boca, seu gordo imbecil.

Os demais presentes na mesa já não prestavam mais atenção na discussão corriqueira. Eric e eu só nós viramos na direção em que eles olhavam quando o barulho da comoção foi alto o suficiente. Abria um caminho no meio dos alunos que não tinham onde sentar, e o som familiar do passo das botas de combate congelaram a minha corrente sanguínea durante alguns segundos. Não eram os sapadores de ferro – eles jamais entravam na universidade, não tinham autoridade para tanto -, mas sim dois guardas militares que atravessavam a cafeteria, escoltando (ou arrastando) um aluno. Nossa discussão cessou quase que imediatamente.

-Céus. - Gregory murmurou, cobrindo a boca com a mão, arregalando os olhos. - Christophe.

O nome não nos era familiar. Stan franziu as sobrancelhas, virando o rosto em minha direção por um instante, apreensivo. Provavelmente já previa o quanto aquilo seria difícil de assistir, especialmente para alguém que tem dificuldade em se calar. Alguém como eu. Kenny ainda segurava a coxa de frango, agora quase sem carne, com os lábios levemente manchados pela gordura. Passou a língua pelo lábio superior e perguntou em voz baixa, tensa

-Era um detento?

-Você o conhece? - Perguntei logo em seguida.

Mas Gregory não respondeu. Eu quase podia ouvir seu coração acelerado dentro do peito, a aflição transbordando pelos seus olhos cor de caramelo.

-Sim. - Respondeu distraído. Christophe cruzou o olhar com Gregory de longe, mas sua expressão não mudou. - Ele...

Não houve tempo de explicar nada; o homem em questão declarou algo em francês para o guarda com agressividade, pouco antes de colidir o cotovelo contra o nariz do homem que tentou segurá-lo pelo braço. Respingou sangue. Aquilo foi aterrorizante e delicioso, lembrar que os homens da lei sangram como todos nós. As coisas pioraram muito rápido depois disso.

Christophe DeLorne veio, como tudo o que fazia, de forma agressiva e inesperada, arrombando com toda e qualquer – falsa – estrutura pacífica. Ordem nunca foi o seu forte, verdade seja dita, eu não consigo imaginar tê-lo conhecido de qualquer outra maneira que não envolvesse aquela mesa quebrada e o murro que arrancou o dente do homem de branco que tentava segurá-lo no chão. Essa foi a primeira vez que o vi de verdade, já com um olho roxo e inchado ao ponto de não poder abri-lo, o lábio sangrando devido a um corte aberto quando foi atirado ao chão e o sangue escorria pelo queixo, manchando-lhe os dentes de vermelho escuro. Eram dois os homens sobre ele, um para segurar, o outro para bater. Mas falhavam miseravelmente na tarefa de covardemente espancar um jovem desarmado e em desvantagem numérica. Fui levado rapidamente do sentimento de profunda indignação à fascinação atônita, hipnotizado pela fúria animalesca com que Christophe não se deixava cair, não importavam quantos socos ele levasse. Depois de tantos anos sendo ensinado a viver com medo, acostumado a ver todo cidadão que goza de saúde mental se atirando ao chão com a maior facilidade e submissão, era tão fácil esquecer de que nós estávamos sendo covardes. E ver aquele homem estranho lutar como um lobo pela própria dignidade de ficar em pé me perturbou de tal forma, como se a desgraça e a coragem de Christophe refletissem a minha própria submissão.

Levantei-me instintivamente, dizendo a mim mesmo que eu continuava embriagado pela raiva que a injustiça provocava, mas a feia verdade é que eu apenas queria que ele parasse de resistir. Queria que ele fosse como todos nós. Mas ele não era. Erguia-se como um touro, nocauteando o homem de branco com o cotovelo, quebrando o nariz dele com um sorriso de deleite nos lábios.

Ele gostava de ver os militares sangrando, isso ficava bem claro. Não fazia questão alguma de conter aquela satisfação. Deliciava-se com cada porrada, lambendo o lábio superior ensanguentado até finalmente ser atirado de costas no chão, grunhindo.

-Stanley! - Cartman chamou, alterado. - Contenha a sua mulher.

Não que Stan fosse reagir, ele nunca teve a tendência de controlar qualquer escolha inconsequente que eu fizesse. Mas mesmo que tentasse, para a minha proteção, não dei tempo que ele fizesse qualquer coisa. Pulei do banco e dei a volta na mesa, antes que Stan e Kenny pudessem reagir – embora tenham chamado meu nome em conjunto -, mas ao chegar do outro lado, foi Eric Cartman quem se ergueu para passar o braço forte pela minha cintura e me puxar rudemente contra o seu corpo, segurando-me tão apertado que eu mal conseguia me debater.

-Me solta, filho da puta. - Eu cuspi com raiva, arranhando o braço dele. Mas Cartman era um homem grande demais, forte demais, teimoso demais para que eu pudesse fazer qualquer coisa. Aquilo me corroía por dentro, aquele silêncio brutal entre tantos jovens que entendiam sobre opressão e assistiam passivamente a tal cena.

-Eu não vou deixar você se matar, seu viadinho. - Ele me respondeu com impaciência. - Não por qualquer um.

Só então percebi que meus pés não tocavam mais o chão. Virei o tronco na direção de Gregory, que encarava o chão em silêncio, com o corpo virado de lado, o braço apoiado sobre a mesa.

-Você não tem vergonha? - Perguntei a ele. - Você o conhece. Olha a merda que estão fazendo com ele. Como é que vocês aceitam isso?

Quando Cartman se convenceu de que eu não correria impulsivamente – caindo na consciência de que não havia nada que eu pudesse fazer sozinho -, soltou-me. Havia tantas coisas ruindo em minha mente que eu não me dei conta da intimidade daquele momento, como Eric era, apesar de tudo, um amigo de infância que se preocupava. Levariam muitas situações mais dramáticas para que eu me desse conta disso.

Os olhos de Gregory encontraram os meus, pesados.

-É seu amigo. - Eu disse amargamente.

-Por isso mesmo eu não vou piorar as coisas para ele. Quem será punido pela nossa rebeldia é ele. - Gregory me respondeu com calma, tentando conter a tensão na voz. Mal podia respirar. Não olhava a cena que se desenrolava à distância. - Por favor, sente-se.

Eu não me sentei. Rolei os lábios por dentro da boca, engolindo o refluxo que subia pelo meu esôfago, ardendo nas minhas entranhas. Sacudi a cabeça perturbadamente, virando-me para encontrar os olhos reconfortantes de Stan, preocupados. Ele me olhava com as sobrancelhas grossas um tanto unidas, repleto de compaixão, pedindo com as mãos para que eu voltasse a me sentar ao lado dele. Ignorei esse pedido, voltando minha atenção aos militares. Alguém interveio na cena, dois professores da ala de mestres com propriedade para debater a liberdade de ação dos guardas com os alunos. Aquilo não foi nenhum alívio, pois Christophe continuava no chão beirando a inconsciência e tossindo sangue. Os guardas o algemaram e o recolheram como se fosse um farrapo, obrigando que andasse em linha reta para continuar o caminho que faziam antes da comoção. Aproximaram-se da nossa mesa. Christophe ergueu um pouco o queixo, revelando seus olhos afiados por trás dos emaranhados fios de cabelo que cruzaram com os meus. Foi a primeira vez que ele me viu, ali de pé, encarando-o com pesar na expressão e um terrível gosto de impotência na boca. Nossos olhares se cruzaram por não mais de cinco segundos, que se esticaram por horas, na vã tentativa de me compadecer com o que foi feito dele. De perto, eu pude ver os traços daquele rosto ferido que eram tão exóticos e agressivos quanto ele, os cabelos castanhos sem ordem alguma que pareciam ter sido cortados com uma navalha, o nariz reto e o lábio inferior protuberante, machucado, um cordão pendurado no pescoço que não identifiquei naquele momento. Era um homem belo e feio ao mesmo tempo, pois o que ele emanava era tão intenso que expunha e ardia, como ferida em carne viva. Mas aquele olhar me assustou. E quem acabou por cortar o contato visual fui eu, voltando os olhos ao chão de forma intimidada, envergonhada. Porque aquele olhar era tão violento quanto suas atitudes, como se entrasse na alma sem pedir licença, invadindo tudo o que eu pensava e sentia naquele instante. Os alunos já voltavam a comer e conversar em voz baixa.

Foram embora. E voltei a me sentar entre Stan e Kenny. Ninguém mais quis comer a coxa de frango, a maçã ou a gelatina verde. Passamos um bom tempo em silêncio. Cartman não se sentou. Senti a mão suave de Stan pelas minhas costas, fazendo com que eu fechasse meus olhos ao toque dele, como um gato quando é acariciado.

-Quem é esse babaca? - Cartman perguntou, irritado com a coisa toda, colocando uma mão no quadril e esfregando o queixo com a outra. - Ele pediu pra morrer. Mereceu a surra que levou.

-Cala a boca, Cartman. - Kenny respondeu por mim.

Gregory permaneceu sério, a boca em uma linha reta, os olhos sem vida. Tomou fôlego do fundo do âmago, levando sua mão trêmula à testa para esfregá-la, procurando pelas palavras certas para nos explicar.

-Christophe matou uma pessoa. - Ele disse simplesmente. - Eu não sabia quando ele seria solto. Não imaginei que ele tivesse interesse em estudar. Isso tudo é muito estranho.

-Ele matou alguém? - Stan perguntou, genuinamente surpreso.

Eu não soube dizer porquê, mas aquela informação não me chocou em absoluto. Eu não conhecia Christophe DeLorne, não sabia nada sobre ele, mas aqueles cinco segundos em que pude olhar dentro dos seus olhos, assim como a linguagem do seu corpo e a persistência inconsequente, quase estúpida, passional, perturbava-me e me interessava tanto quanto a marcha dos sapadores. Talvez Stan tivesse razão. Talvez fascinação mórbida fosse um dos meus defeitos. Christophe se tornou uma fascinação mórbida.



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