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História Liberté - A Comunhão


Escrita por: caulaty

Capítulo 24 - A Comunhão


26 de maio de 3660

 

Olá. Eu senti sua falta, sabia? Me parece que os eventos do passado tem sido tão intensos ultimamente que eu e você quase não nos encontramos mais. Não me lamento, pois acredito que essa seja a ordem natural das coisas. É preciso olhar para o passado, e assim, talvez você compreenda muito melhor as coisas que estão para acontecer daqui pra frente. Ah, há tantas coisas que você ainda não viu. Estamos nos aproximando de mais um momento forte de eclosão. Mas por enquanto, hoje é um dia de celebração, e você está convidado para a festa (de certa forma).

Está noite, nós acompanharemos o jantar do aniversário de Kyle e dois eventos simultâneos dados em diferentes pontos da casa de Gregory. Encontros importantes acontecerão em breve, encontros que talvez já devessem ter ocorrido há bastante tempo. Não pensemos nas coisas dessa maneira. Comecemos do começo, sim?

Kyle e Christophe caminham pela calçada do bairro residencial histórico de South Park, local dominado por imponentes construções vitorianas que foram remodeladas com o tempo. Gregory vive em uma casa azul de dois andares mais um sótão, com um excesso de sacadas e ornamentos enfeitando a construção, muitas janelas e uma varanda grande na lateral, cercada por colunas trabalhadas em madeira branca. Você poderia dizer que essa é a casa de Gregory olhando para ela. O jardim é vasto e repleto de árvores e arbustos bem cuidados, flores que o próprio Gregory poda com um amor paternal. Kyle, carregando uma garrafa de vinho português branco, caminha um pouco na frente. Christophe tem as duas mãos nos bolsos da calça, uma jaqueta de couro jogada por cima do ombro que ele não tem qualquer intenção de vestir e só trouxe por insistência de Kyle. Faz um calor incomum esta noite, na verdade. Eles estão no meio de uma discussão quando atravessam o portão de ferro aberto.

-Eu não acredito que você concordou com isso. - Kyle disse, uma afetação muito irritada em sua voz.

O Toupeira encolhe os ombros como se não tivesse nada a ver com o assunto.

-Ele falou como se fosse uma coisa que vocês fizessem todo ano, como eu ia saber?

Estão falando da emboscada excessivamente amorosa de Gregory, que não faz convites sem uma certa insistência forçosa. Nem Kyle e nem Christophe são o que você poderia chamar de seres sociáveis.

-Sim, todo ano ele dá um jeito de me tirar de casa contra a minha vontade. - Kyle resmunga, subindo a pequena escada da varanda para tocar a campainha. Em pouco tempo, Christophe se encontra logo atrás dele. Kyle olha por cima do ombro para encará-lo, então abraça a garrafa de vinho e diz, voltando a olhar para frente. - Tudo o que eu queria era passar o meu aniversário em casa tomando margarita e te chupando.

Seu tom é tão casual que leva um segundo para que Christophe encolha as sobrancelhas, surpreso. Eu gostaria muito que Kyle estivesse vendo o rosto dele agora. Antes que ele possa dar uma resposta – embora não faça a mínima ideia do que dizer – a porta se abre.

-Finalmente! - Gregory exclama num tom fino, jogando por cima do ombro o pano que usava para secar as mãos.

Você diria, julgando somente pelas reclamações de Kyle, que ele não gosta de visitar o homem à sua frente. Mas veja bem, não é isso. Ele entra na casa com intimidade, parando bem próximo de Gregory para que os dois troquem um beijo no rosto. Eles se olham com muito carinho. O sorriso de Kyle se alarga quando adentra a sala e vê Kenny caminhando ao seu encontro de braços abertos.

-Achei que teria festa sem o aniversariante. - Kenny exclama, agarrando-o pela cintura para dar-lhe um abraço que tira os pés de Kyle do chão. Os dois riem. Kenny o balança um pouquinho no colo antes de botá-lo no chão, deixando um beijo demorado em sua testa, o que se torna fácil com a diferença de altura dos dois. - Parabéns por sobreviver mais um ano.

Ao mesmo tempo, Christophe entra logo atrás e cumprimenta Gregory com um tapa no ombro, o máximo de carinho que ele é capaz de demonstrar. Gregory pisca para ele, sorrindo, recolhendo seu casaco para guardá-lo no cabideiro ao lado da porta.

-Porra, Gregory. - O Toupeira diz, olhando em volta. - Todo mundo já sabe que você é veado, não precisa se esforçar tanto pra mostrar.

Ele se refere à decoração do interior da sala, desde o papel de parede rosa bebê até as esculturas greco-romanas de corpos masculinos em tamanhos diferentes, o lustre de cristal, os estofados vermelhos de veludo, as obras de arte bordadas de mulheres de vestidos bufantes e crianças com cachorros. Também há uma cristaleira antiga, porcelana distribuída na parede e garrafas de bebida em um pequeno bar. Apesar de tudo, acho que o desgraçado tem certo bom gosto, mesmo que por uma via um tanto barroca. Ele não se ofende com o comentário, naturalmente.

As outras duas pessoas presentes, que estavam sentadas no sofá com taças de vinho envolvidas em uma conversa animada, são Wendy e Bebe. As duas se levantam assim que Kenny coloca Kyle no chão para oferecerem seus próprios mimos, junto com um presente embrulhado em um bonito papel dourado. Elas o abraçam de forma demorada, o que faz Kyle pensar que as vê muito menos do que gostaria. Logo em seguida, Bebe vai até Christophe para se colocar nas pontas dos pés e dar-lhe um beijo na bochecha, o que o deixa um pouco sem jeito, mas ele dá o seu melhor sorriso de canto, quase sem crescer os cantos da boca. Wendy o cumprimenta com um sorriso, sem contato físico, como sabe que ele prefere. Diz que é muito bom vê-lo novamente, e é sincera no que diz.

Wendy agora tem os cabelos negros repicados, longos o bastante apenas para cobrir as orelhas, mas o comprimento não passa do pescoço. Como mulher adulta, retomou o hábito de usar saias de sua própria escolha, livrando-se da sensação de que aquilo a tornaria menos forte. E nessa noite em especial, usa um vestido preto que faz um desenho lindo na sua silhueta, um batom nude tão suave que mal se percebe que está ali. Ela é uma pessoa elegante, de movimentos leves. O tempo a deixou mais bonita, se você me perguntar. Já Bebe continua preservando aqueles cachos loiros cheios e vivos, mas hoje os mantém presos para cima, relevando o seu pescoço longo. Para ela, é como se o tempo praticamente não tivesse passado, pelo menos em sua aparência física. Ainda tem um ar de menina, com aquela melancolia escondida atrás dos olhos de quem teve uma vida muito difícil. As duas vivem juntas do outro lado da cidade, mais próximas à zona urbana, em um apartamento grande de três quartos com uma vista maravilhosa para as montanhas.

Quando Gregory prometeu que este seria um jantar íntimo, apenas com as pessoas que o próprio Kyle convidaria, a verdade é que Kyle não levou muito a sério. Achou que precisaria fazer social com pessoas com as quais não tivesse tanta intimidade. Embora, em algum nível, o ciclo social de todos eles continuasse sendo entre aquelas pessoas com quem compartilharam seus anos de resistência. E não é por não tentarem se conectar com as pessoas comuns. Tentaram, sim. Talvez não seja possível que uma pessoa comum compreenda isso, mas todos eles carregam fantasmas e cicatrizes tão profundas que já não sabem mais como se relacionar com pessoas que nunca viram a escuridão de perto.

Mas mesmo dentre os amigos de guerrilha, Kyle prefere estar com estas poucas pessoas em um dia tão melancólico quanto hoje. Aniversário, para ele, não é exatamente uma data feliz.

Gregory volta para a cozinha, recusando tanto a ajuda de Kenny quanto de Wendy para terminar de cozinhar. Já são quase nove e meia da noite, a mesa da sala ao lado já está posta. Kenny toma a garrafa de vinho das mãos de Kyle e vai até o bar servir as bebidas. Observa, de longe, enquanto Christophe se aproxima de Kyle e sussurra alguma coisa em seu ouvido. Kyle, inconscientemente, leva a mão ao peito dele enquanto escuta. Kenny estreita os olhos enquanto serve o uísque com gelo que Christophe pediu, botando um pouco a mais no copo pela distração. Quando se aproxima dos dois com os copos, Christophe agradece, mas o deixa sobre a mesinha de centro enquanto vai fumar lá fora sozinho. Enfim, Kyle se senta no sofá junto com as meninas, que estão discretamente de mãos dadas, o polegar de Bebe acariciando o dedo indicador de Wendy, as duas conversando baixinho algo entre si. Kenny se senta na poltrona ao lado, apoia um pé na mesinha e dá um gole em seu próprio licor.

-Então. - Diz. - Como é que tão as coisas?

Essa pergunta é tendenciosa para um fim específico e os dois sabem, tanto que a resposta de Kyle é um sorriso quase envergonhado. Ele encolhe os ombros, sem saber direito como responder isso. Talvez porque Kenny tem esse olhar de quem sempre sabe quando ele está falando a verdade ou não. Não sei se os eventos da noite passada ainda estão vivos na sua lembrança, mas para Kyle, tudo acaba de acontecer. Tudo. A volta de Christophe à sua vida, a briga que desenterrou dores antigas, o alívio ardente de senti-lo por completo, a violência daquele ataque noturno. A sensação das mãos que queimavam a sua pele de tanto tesão e, poucas horas depois disso, sufocavam-no a ponto de ele realmente acreditar que fosse morrer. Talvez Kenny sinta o cheiro desse turbilhão, ou talvez ele só esteja perguntando porque Kyle telefonou para ele no dia seguinte à chegada de Christophe, ainda um tanto perturbado.

Kyle e Kenny tem uma relação curiosa. Kyle não consegue entender ao certo porque Kenny se tornou uma pessoa tão solitária com o passar dos anos. Eles ainda são amigos íntimos, e pode-se dizer que Kenny é o melhor amigo que ele tem nesse mundo, mas eles já não se veem mais com tanta frequência. Kyle sente que ele é um tanto nômade e desconectado da raça humana. Ele nunca vai ser capaz de entender o motivo, mas eu entendo, e posso te explicar. Como você já sabe, Kenny é diferente das outras pessoas. Ele já conheceu outros mundos além deste, já morreu mais vezes do que é capaz de contar. Na época da revolução, suas mortas foram incontáveis, a maioria delas para proteger outras pessoas. Às vezes, passa tempos desaparecido andando pelo mundo dos mortos. Eu realmente gosto quando ele vem me visitar. Nós conversamos muito.

Me parece que Kyle e Stan são as únicas pessoas que ainda o mantém conectado à terra. Ele veste, talvez assim como eu, esse papel de cuidar deles e olhar por eles com olhos clandestinos. Esses três sempre tiveram um tipo especial de ligação em que não cabia ninguém mais. Talvez o rompimento de Stan e Kyle tenha doído tanto em Kenny quanto doeu nos dois.

-Está tudo bem. - Kyle diz, finalmente. Acho que isso resume bem a questão.

-É? - Kenny retruca, erguendo as sobrancelhas. É bonito como ele conhece Kyle assim, como a palma da própria mão. - E tem alguma coisa rolando entre vocês dois?

Direto ao ponto.

Kenny gosta de fazer perguntas para as quais ele já sabe a resposta. Kyle não se irrita com isso. Mas algo que muito me entristece é perceber que Kyle já teve muito mais facilidade para falar sobre seus sentimentos, sobre as coisas que acontecem com ele. O tempo fez com que essas coisas parecessem impossíveis, primeiro porque o instinto de auto-preservação é a coisa mais forte que ele tem depois de anos vivendo sem saber se acordaria no dia seguinte. Mas também temos o fato de que a fundamentação de toda a sua história com Christophe tem a ver com a guerra, a ditadura, a tortura, a luta, o medo da morte. De alguma forma estranha, os sentimentos de Kyle por esse homem nasceram de um emaranhado de coisas confusas, com cheiro de fuligem e a perda da sua inocência. Amando Christophe, Kyle aprendeu a lutar e matou seu primeiro ser humano. Foi desse sólido árido que nasceu o amor deles um pelo outro. Então, falar sobre isso pode mexer com coisas tão profundas lá na base de quem ele é hoje.

Em frente a tudo isso, Kyle só se vira para Bebe e Wendy, interrompendo sua conversa com a pergunta:

-E a bebezinha, como está?

As duas abrem um sorriso que não cabe no rosto. No ano passado, adotaram uma garotinha nigeriana chamada Nala. Agora, ela tem dois anos e três meses e é a coisa mais gostosinha desse mundo. Às vezes eu vou visitá-la. Não gostava muito de crianças quando era vivo, mas hoje eu vejo o potencial de vida extraordinário que elas têm e isso me fascina.

-Ai, ela está tão linda! Você precisa ir visitá-la, Kyle, ela já cresceu tanto. - Bebe diz, mexendo o vinho branco no copo. - E tão esperta!

Essas duas são as pessoas daquele grupo íntimo que melhor conseguiram se aproximar de uma vida normal depois do fim da guerra e da revolução. Talvez porque a história de Bebe com relação à revolução tenha sido bem diferente dos outros, a começar pela maneira com que ela aderiu à luta. Ela sempre teve uma luz, um desejo de viver que não se apagou por conta de sua história triste. Wendy se alimenta dessa luz e talvez ela não seria capaz de ter uma vida normal se não tivesse se apaixonado por Bebe assim tão perdidamente. Elas se completam de uma forma tão bonita que me dá vontade de ter vivido um amor tranquilo desses quando era vivo.

Christophe volta para dentro mas não se senta. Em vez disso, fica de pé próximo à janela estudando um vaso chinês sobre a mesinha ao lado. Wendy vai, teimosamente, ajudar Gregory a finalizar o jantar. Esses dois são muito parecidos, é bonitinho vê-los brigando na cozinha enquanto Bebe e Kyle conversam sobre bebês e Kenny se aproxima de Christophe na janela, tentando puxar assunto sobre sua época na Europa, o que dá mais ou menos certo. Em vinte minutos, Gregory aparece na sala tirando seu avental, anunciando o jantar.

Digam o que quiserem sobre Gregory, que ele é arrogante e vaidoso, isso tudo é verdade. Mas ele também é muito devoto e presta muito atenção nas pessoas que lhes são importantes, é cuidadoso nos detalhes. Ele sabe o quanto Kyle ama as suas batatas gratinadas e seu salmão defumado, e Deus sabe que não é fácil conseguir salmão fresco em South Park. Há uma linda mesa posta na sala de jantar, uma toalha bordada a mão pela avó de Gregory, uma zangada senhorinha britânica que morreu há quase vinte anos, vítima de uma infecção não-tratada nos rins. Ele só usa essa toalha em ocasiões muito especiais. Os castiçais de velas, ao contrário, ele acende até para jantar sozinho em uma quinta-feira qualquer.

-Eu gostaria de dizer algo muito breve antes de comermos. - Gregory diz, erguendo sua taça quando todos já estão sentados à mesa. Há um espaço vazio, uma cadeira sem ninguém, um prato sem dono. - Kyle.

-Por favor, não. - Kyle diz, revirando os olhos com carinho e gargalhando ao mesmo tempo. É contagiante. A dinâmica entre esses dois é absolutamente linda, se você me perguntar.

-Eu sou muito grato por você estar aqui. - Gregory o ignora. - Tanto nesse jantar quanto nesse planeta. - Eu não tenho palavras capazes de descrever a maneira amorosa com que Gregory olha para ele por dois ou três segundos antes de prosseguir. - Bem. Temos mais de uma razão para comemorar. O bom filho à casa retorna, não é mesmo? Toupeira. Eu também sou muito grato por você estar aqui.

-Eu bebo a isso. - Kenny diz, puxando o brinde antes que a coisa toda fique emotiva demais.

Essas pessoas comem e bebem e conversam como se nada houvesse. Mesmo depois do fim da revolução, do destrono do Presidente, eles não conseguiram se habituar totalmente à despreocupação de viver o agora e com fartura. É claro que a utopia sonhada durante aqueles tempos de juventude não foi totalmente alcançada, e é possível que jamais seja. A fome ainda existe, a roda continua a girar, o sistema continua o mesmo. Mas hoje, as lutas são outras.

Christophe, sentado ao lado de Kyle, sussurra algo em seu ouvido que o faz sorrir. Talvez essa não tenha sido a intenção, porque Christophe o olha confuso, bem pertinho, e então algo semelhante a um riso escapa de sua boca com a resposta de Kyle. Bebe pega esse momento íntimo de relance, e sorri sem saber o motivo. Ela nota que o Toupeira continua silencioso como sempre, tímido e recolhido, mas há algo muito diferente sobre o homem sentado à mesa agora e o jovem rude que ela conheceu há dezesseis anos.

De repente, o jantar é interrompido pelo som da campainha. Gregory estava enchendo seu prato de salada, mas interrompe o processo para ir atender à porta.

Eu posso ver como o coração de Kyle bate mais apertado de repente, sua boca fica seca e o estômago gela em precipitação. Ele é tomado por um sentimento que quase não habita mais seu peito por esses anos: a expectativa. Ela se confirma – porém não se aquieta – no som surdo da bengala de Stan ficando mais forte, no seu passo tímido e na aparição do seu rosto pálido. Ele carrega um pacote debaixo do braço que, logo, Gregory toma para deixá-lo sobre um móvel de madeira preta.

-Desculpe. - Stan diz. - Eu me atrasei.

-Você chegou na hora certa. Acabamos de começar a jantar. Por aqui. - Gregory o conduz até a cadeira baga com uma mão delicada em suas costas. Ele também diz todas as pessoas que estão presentes. Wendy e Bebe o cumprimentam com afeto; Kenny, sentado ao seu lado, faz um carinho em seu ombro.

Kyle tem um “que bom que você veio” entalado na garganta que simplesmente não sai enquanto ele assiste a Stan se sentar bem à sua frente. Soaria muito fora de lugar dizer alguma coisa; talvez até soasse falso, mesmo não sendo. Ele lança um olhar muito breve para Christophe, que continua comendo como se nada fosse com ele, porque não é mesmo. Eu admiro a habilidade desse cara de se marginalizar. Esse jantar é muito menos constrangedor do que poderia ser, graças às pessoas envolvidas. Existe uma sensibilidade gigantesca nesses quatro – Wendy, Kenny, Bebe e Gregory – para reconhecer que isso não é fácil para nenhum dos três e que eles precisam de suporte e receptividade. Por mais que Christophe não demonstre o desconforto da mesma forma, ele sabe que as coisas seriam diferentes se ele não estivesse presente, e talvez isso faça com que se sinta mais forasteiro do que é. Ele ainda vai demorar muito tempo para descobrir que ele ainda é família para essa gente.

Eles não permitem que haja abismos de silêncio e desconforto. Kyle sente um calor por dentro e tem dificuldade de usar os talheres durante cinco minutos, então ele só bebe. Bebe muito em muito pouco tempo. Logo, relaxa. Fica mais silencioso do que de costume, o que leva Wendy a conversar com ele de forma mais particular, e assim o jantar segue, mais com essas trocas paralelas do que em comunhão, até que o ar tenso se dissipe.

Existem milhões de sutilezas que eu poderia descrever sobre essa cena. Milhões, sem exagero. Os olhos do morto são capazes de ver coisas que ninguém mais vê. Eu vejo Stan esfregando os polegares embaixo da mesa para acalentar a ansiedade, vejo Christophe encarando Stan com a visão periférica sempre que possível como um animal espreitando o outro, vejo Bebe roubando batatas do prato de Wendy porque acha que são mais gostosas quando vêm do prato dela. Também vejo o franzir preocupado entre as sobrancelhas de Gregory quando olha para os três. Vejo Kenny piscando para Kyle com um sorriso tranquilo, numa tentativa de reconforto que Kyle rejeita porque é o rei da negação, então age como se tudo estivesse bem, apesar de seus ombros estarem duros como pedra.

Nesse momento, eu me aproximo da forma mais sutil que posso da cadeira de Kyle e estico minha mão para tocar seu ombro. Os músculos relaxam de imediato sob o meu toque, mas os pêlos de sua nuca se arrepiam de forma desconfortável. Ele franze a testa, mas não chega a me sentir com tanta força a ponto de virar para procurar o nada. Em vez disso, ele apenas bebe mais. Quando estende a mão para pegar a taça, seu braço roça no de Christophe e os dois se afastam um pouco como se tivessem feito algo errado. Não sussurram no ouvido um do outro e nem trocam sorrisos pelo resto da refeição.

Por fim, Kyle é o primeiro a se levantar para recolher os pratos, recusando veementemente a ajuda de Gregory. Christophe se levanta também, procurando o maço de cigarro no bolso da calça enquanto se dirige até a porta da frente. Kenny, Bebe e Wendy continuam bebendo na mesa, entretidos em uma conversa profunda sobre o estado político da China. Wendy, como sempre, fala um pouco mais do que os outros e tem uma sequência de dados numéricos a citar para defender seu ponto. Kenny discorda graciosamente.

Agora, nós teremos simultaneamente dois dos encontros chaves dessa noite que citei anteriormente. É na solidão a dois que as coisas acontecem. Que demos início aos trabalhos:

 

Stan e Kyle

 

Kyle começa a lavar a louça sozinho na cozinha mal iluminada de Gregory. Apenas as luzes embutidas do teto estão acesas, dando uma ambientação quase romântica ao lugar. As cortinas estão bem abertas e pode-se ver pontos distantes de luz nessa noite escura quando se olha através da janela. Não é uma cozinha especialmente grande, e os móveis de madeira escura dão a impressão de que é ainda menor.

Ele não fica especialmente surpreso quando a porta se abre. É uma porta de vai e vem que continua fazendo barulho depois que Stan adentra o ambiente, parado de pé e apoiado em sua bengala. Ele está bonito hoje, e essa é uma das primeiras coisas que Kyle pensa ao observá-lo com sua camisa azul um pouco amassada e o cabelo precisando ser cortado. Talvez a coisa mais bonita sobre ele seja a sua nudez de qualquer defensiva. Stan tem olhos reluzentes de menino e parece estar tão aberto, tão presente, de uma forma que assusta Kyle. Ele volta a olhar o prato sujo se tornando limpo com a pressão da água gelada.

-Ei. - Murmura baixo, sabendo que Stan sabe que ele está ali. E mesmo que não soubesse, Kyle jamais faria algo tão baixo quanto se aproveitar da cegueira dele para não enfrentá-lo. Aqui estão os dois, e isso é um fato. Ele não tem intenção de negar isso.

-Ei… - Stan responde quase no mesmo tom, talvez um pouco mais vago. Continua parado por uns instantes, e nesse meio tempo, Kyle não esfrega o prato e nem respira. Ele só volta a lavar a louça quando Stan usa a bengala para guiar seu caminho até o balcão, aproximando-se dele. Talvez seja intencional, talvez não.

E ninguém sabe o que dizer.

Kyle desliga a torneira, embora ainda faltem dois pratos e uma porção de talheres. Seca as mãos em um pano úmido pendurado na parede e se volta de frente para Stan, analisando o quanto o rosto do jovem que ele conheceu a vida inteira envelheceu de uma hora para a outra. Ele não sabe exatamente onde foram parar os últimos catorze anos.

-Eu não queria te deixar desconfortável. - Stan finalmente começa a tentar botar em palavras o que o motivou a entrar nessa cozinha para começo de conversa.

-Não me deixou. - Kyle responde de imediato, então torce a cicatriz do olho em uma careta breve, pensativa, como quem não quer mentir. - Quer dizer… Você sabe, não é por você, eu só… - Ele esfrega o rosto com as mãos geladas. - Eu me acostumei a não esperar que você fosse aparecer. Seria mentira dizer que não me surpreendeu.

-Eu sei.

-Então o que mudou?

Stan encolhe as sobrancelhas, virando o rosto alguns centímetros para o lado. E vou te dizer, sua estranheza não tem a ver com não saber a resposta para essa pergunta, mas sim o fato de Kyle tê-la perguntado. Ele encolhe os ombros, balançando a cabeça sem dizer que sim nem que não. Ele umedece um pouco os lábios e pensa sobre a coisa certa a se dizer.

-Eu me dei conta de que… Eu não tô mais com raiva. Entende? Durante tanto tempo, essa dor foi a única coisa certa na minha vida. Mas sei lá, eu já nem sabia mais porque eu carregava isso comigo. - Ele faz uma pausa, não exatamente esperando por uma resposta, mas imerso na própria linha de pensamento para que suas palavras sejam as mais honestas possíveis. - Eu não vou mentir, a volta do Toupeira me fez pensar sobre coisas que eu não queria pensar.

Ninguém entende isso melhor do que Kyle, é verdade.

É uma pena que Stan não possa ver com seus olhos o semblante de Kyle agora. Não é um rosto fácil de olhar, tão calejado de sofrimento, a cicatriz sempre se deformando quando ele sente qualquer coisa. Ele olha Stan com olhos transparentes, olhos que brilham no escuro e dão acesso direto ao coração palpitante dele, que bate tão, tão dolorido agora. Ele sente um aperto no estômago e precisa desviar o rosto para a janela; as luzes da vizinhança ficam turvas de repente.

-Você fechou a porta com tanta força na minha cara. - Kyle murmura baixinho, piscando devagar, segurando a beirada de mármore da pia como se precisasse disso para se manter de pé. - Com tanta força…

-Eu sei disso. Era do que eu precisava, eu não espero que você entenda.

Stan é sensível o bastante para saber que tem uma lágrima teimosa escorrendo pela bochecha dele, que logo Kyle limpa com as costas da mão e age como se ela nunca tivesse existido. O choro, porém, não afeta sua voz. Nem chega a ser um choro, ele apenas transborda pelos olhos porque segura tanta coisa dentro dele. Kyle se apoia contra o balcão e leva uma das mãos ao estômago, descendo um pouco até o ventre, fechando os olhos para respirar. Stan, ao contrário, continua em pé feito uma rocha.

-E agora?

-Agora? - Stan pergunta, confuso.

-É. - Ele diz com simplicidade, encolhendo os ombros, quase soltando um riso triste. - O que eu faço com isso?

-Eu não sei, o que você quer fazer com isso?

O estardalhaço da porta sendo empurrada com força faz com que a atenção dos dois se volte em direção ao som. E Kenny, já um pouco embriagado, percebe imediatamente que adentrou um território íntimo, quebrando algum feitiço que acontecia dentro daquela cozinha. Ele para onde está e observa os dois por não mais que um segundo antes de perguntar:

-Tudo bem aqui?

Ele já tem um pé para trás, pronto para sair. Mas os olhos avermelhados de Kyle e o ar inquieto de Stan fazem com que ele sinta o peso da responsabilidade de amar esses dois. É tão difícil saber quando dar espaço a aqueles que se quer bem.

-Tudo. - Kyle é o primeiro responder, porque Stan mente com muito mais dificuldade. - Por que não estaria?

E com isso, feito um animal acuado, Kyle anda em direção à porta como quem diz que já tinham terminado de qualquer forma. Mas ele passa por Stan, que ergue a mão ao sentir seu calor assim mais próximo, chegando a roçar os dedos no braço dele. Kyle hesitou por um segundo, olhou a mão de Stan e seu rosto cansado, mas diante do silêncio, seguiu para porta sem fazer contato visual com Kenny, que se deslocou o suficiente apenas para que ele tivesse espaço para passar.

 

Gregory e Christophe

 

Antes de tudo aquilo se passar na cozinha, Gregory seguiu Christophe até a varanda, fechando a porta atrás de si e parando um momento para curtir a brisa fresca de verão. Agora, ele cruza os braços e caminha até Christophe, que se encontra com os cotovelos apoiados cerca na ponta da varanda, encarando a rua, meio debruçado. A ponta laranja do cigarro brilha no escuro. A luz esverdeada da lua parece um holofote no céu, lançando uma luz fraca sobre eles que torna mais visíveis as nuances do rosto do Toupeira, mas Gregory não o vê antes de se encostar ao seu lado. Sem cerimônias, ele toma o cigarro dos dedos de Christophe e dá uma tragada longa.

-Porra, como isso é bom. - Ele diz com satisfação antes de soltar a fumaça, devolvendo-o.

-Desde quando você fuma?

-Eu não fumo. Não conte ao Kyle, nós paramos juntos.

Agora, o Toupeira encolhe as sobrancelhas e se vira um pouco de lado para encará-lo de frente, parecendo mais interessado. Ele leva o cigarro à boca e traga, os olhos tão expressivos com um brilho que, Gregory repara, só aparece quando o nome de Kyle é mencionado. Algumas coisas realmente nunca mudam.

-O Kyle fumava?

-Catorze anos é muito tempo, Toupeira. - É tudo o que Gregory diz, contemplando seu lindo jardim. Então, virou-se para observar o perfil daquele rosto tão próximo, tentando reconhecer naquela face estranha a pessoa que ele conheceu na adolescência. - Você também deve ter vivido muita coisa que a gente não faz nem ideia.

Ah, viveu sim. E como viveu. Gregory ainda não entende isso por completo, apesar de estar falando em um nível de imaginação. Mas as coisas que aconteceram com Christophe, especialmente as que o levaram a tomar a decisão de voltar, estas moldaram a sua alma de uma forma que Gregory não pode entender. Porque ele não sabe. E o Toupeira, por ora, não tem intenção alguma de contar. Ele apenas encolhe os ombros.

-Acho que sim.

Alguns instantes confortáveis de silêncio se passam. Sempre foi fácil conviver com Gregory porque ele nunca teve a necessidade de preencher o vazio com palavras, e o Toupeira precisa disso. Que respeitem seu silêncio.

-Ei. Está tudo bem? - Gregory pergunta. - Eu sei que voltar pode ser difícil.

Ele sente o cheiro da perturbação emocional de Christophe como um cachorro, é impressionante. A única resposta que ele dá é um olhar de canto e um quase sorriso de quem sabe o que o outro está tentando fazer e não vai dar certo, como se Gregory fosse uma criança. Ele não diz nada. Gregory também não insiste. Ele esfrega um pouco o queixo, olhando o céu coberto de poluição, pensativo. De repente, continua:

-Tem uma coisa que eu queria te perguntar, na verdade.

-Hm?

-Estou preocupado com uma coisa. - Ele ainda carrega sua taça de vinho em mãos, e encara o líquido durante algum tempo antes de dar um gole longo e prosseguir com o raciocínio. - Aconteceu uma coisa tão estranha hoje, quando fui convidar o Kyle pro jantar. Ele tinha esses hematomas horríveis no pescoço… - Gregory toca o próprio pescoço com a mão livre enquanto se lembra, distraído. - Ele não sabe que eu vi, acho. Tentou esconder com um lenço, como fez essa noite, mas eu tenho certeza de que aquilo é marca de estrangulamento. Você sabe o que aconteceu?

Christophe fuma de forma mais compulsiva enquanto ouve esse discurso que parece ser interminável para ele. Tosse um pouco por causa da fumaça, então apenas abaixa a cabeça e continua escutando, evitando qualquer contato visual. Gregory o conhece bem o suficiente para saber que tem alguma coisa acontecendo dentro dele.

-Toupeira? - Ele chama, desconfiado. - Ele te pediu pra não contar?

-Você deveria estar perguntando isso pra ele. - É tudo o que Christophe responde, virando o rosto bruscamente para encará-lo com uma agressividade evidente no olhar.

O contato visual é tudo de que Gregory precisa para lê-lo por completo. Primeiro, ele franze as sobrancelhas, duvidando de si mesmo. Chega a se punir mentalmente por permitir que sua mente vá a um lugar tão obscuro, mas a defensiva em toda a figura do Toupeira é tão forte que o coração de Gregory começa a bater mais devagar. Ele apoia a taça sobre a cerca e se vira de frente por completo.

-Você não teve algo a ver com isso, teve?

Christophe o ignora, esmagando o cigarro na cerca e jogando no gramado. Gregory o teria repreendido por isso em outras circunstâncias, mas não agora.

-Eu te fiz uma pergunta. - Gregory repete, chegando mais perto dele, o tom muito mais denso. Quase violento. - Foi você?

-Por que você não cuida da merda da tua vida?

Veja, tem uma coisa que você deve saber sobre Gregory. Ele é uma pessoa extremamente controlada, mas isso não significa que ele não seja intimidador e capaz de atos tão violentos quanto o próprio Toupeira, apenas de uma forma diferente. Gregory passa alguns segundos apenas o encarando com a expressão dura de uma parede, e é quase impossível dizer o que se passa em sua cabeça. Ele dá o último passo que faltava para que seu peito esteja quase encostando no de Christophe, rangendo entre os dentes:

-Escuta aqui. Eu vou dizer isso só uma vez. Você é a minha pessoa, sim, isso nunca vai mudar. Mas o Kyle? Ele é minha família. E se você fez isso com ele, eu estou pouco me fodendo para os seus motivos, você não espere que eu fique do seu lado dessa vez.

Isso é especialmente pesado vindo da única pessoa que, para o melhor e para o pior, sempre compreendeu Christophe de todos os ângulos, sempre o aceitou e perdoou por todas as coisas. Realmente, catorze anos é muito tempo. E talvez, antes desse momento-chave, o Toupeira ainda não tivesse entendido o tipo de aproximação que aconteceu entre Gregory e Kyle em sua ausência, as duas pessoas do mundo que o tem na palma da mão, pelas quais ele iria até o inferno e voltaria. Olhando de fora assim, ninguém saberia dizer o quão fundo foi essa adagada que Gregory acabou de enfiar nas entranhas dele. E ninguém saberia dizer o quanto isso arde no peito de Gregory, o quão difícil é dizer essas coisas encarando os olhos de lobo ferido de Christophe.

-Eu não espero nada. - É tudo que o Toupeira diz, desencostando-se da cerca, trotando feito um cavalo para dentro da casa.



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