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História Liberté - O Adeus


Escrita por: caulaty

Capítulo 29 - O Adeus


Madrugada de primeiro de janeiro de 3645

 

O celeiro era enorme, com um teto incrivelmente alto. Algumas vaquinhas dormiam, ou estavam apenas deitadas ruminando no feno, com exceção de uma, marrom e manchada de branco, que estava de pé (ou de quatro tapas, como preferir) parada próxima à porta fechada do outro lado. Kenny foi o último a entrar, fechando a porta pesada atrás de si da maneira mais silenciosa possível. Os animais provavelmente estavam se abrigando do frio. Christophe caminhou até um canto mais escuro, ao lado de uma pilha de sacos cheios de grãos; o cheiro ali dentro era de coisa velha, talvez pelo inverno não ser uma época fértil para a fazenda. Ele deu uma olhada no braço rasgado pela mordida enquanto se sentava no chão, mas estava tão escuro que eu duvidei que ele conseguisse enxergar alguma coisa.

Eu podia ver a silhueta de uma máquina pesada, mas não muito grande, talvez um pequeno trator. Uns raios de claridade entravam através de frestas no teto. Eu podia ver uma lona cobrindo alguma outra coisa menor que o trator, um pouco maior que uma máquina de lavar. Embaixo de uma pequena escada de madeira, havia três latões. Eu ainda não conseguia enxergar, mas logo depois veria as luvas de borracha amarelas sobre um deles, e os rastelos e instrumentos para manipular feno que estavam apoiados ao lado.

-Deixa eu dar um jeito nisso. - Kenny disse ao Stan, indicando que eles fossem até uma região mais iluminada do celeiro, onde havia um pequeno bando embutido na parede. Eles se sentaram e Kenny jogou a mochila entre as pernas para abri-la, retirando algo de dentro para limpar o corte no rosto de Stan com álcool e algodão. Stan não reclamou, mas devia estar ardendo muito. Ele franziu um pouco o nariz em uma careta.

Desviei meu olhar para trás, buscando Christophe naquele canto escuro. Abracei meu próprio tronco, percebendo o vapor da minha respiração em contato com o ar gelado. Eu vi Ike se afastando de nós para andar na direção dele. Christophe estava rasgando um pedaço da camisa por baixo do suéter usando os dentes e as mãos, depois a faca que levava na bota, a muito custo. Começou a amarrar o tecido em torno da mordida para estancar o sangue, gemendo baixo de dor, puxando a ponta do tecido com os dentes para dar o nó mais forte possível. Meu coração doeu porque ele não deveria estar fazendo isso sozinho, mas eu também sabia que ele seria bastante arisco a qualquer tipo de ajuda.

-Você tá bem? - Ike perguntou.

Eu vi Christophe levantar os olhos para ele, o nariz franzido em uma careta que não era tanto de dor quanto de cansaço. Ele desviou o olhar para mim por um segundo, como se para me informar que sabia que eu os observava.

-Eu tô ótimo, moleque.

-Isso daí tá bem nojento. - Ike disse, apontando para o braço dele.

Eu pude jurar que ouvi Christophe rir um pouco. Talvez ele só tivesse bufado, passando a língua pelo lábio inferior enquanto dava uma boa olhada na ferida.

-É, bom. Vai dar uma cicatriz bem foda.

-Você tem muitas?

Eu pude ouvir perfeitamente a curiosidade excitada na voz do meu irmão. Aproveitei que ele estava distraído para voltar minha atenção a Stan e Kenny, respirando fundo. Stan tinha os olhos em mim, uma pequena ruga preocupada entre as sobrancelhas, enquanto Kenny colocava o esparadrapo em seu rosto, a língua para fora e as pálpebras estreitas, concentrado.

-Eu preciso levá-lo de volta. - Sussurrei. Não era exatamente que eu não quisesse que ele me ouvisse; até porque eu sabia que Christophe não daria muita conversa para ele, pelo menos não durante muito tempo, então logo, Ike estaria de novo ao nosso lado e eu precisaria tomar uma decisão.

-Tudo bem. Amanhã nós fazemos isso. - Stan me respondeu naquele seu tom de “acalme-se”, mas ele nunca dizia para eu me acalmar porque sabia muito bem que isso só me deixava mais irritado.

Então, Kenny mudou a expressão por completo ao terminar de alisar o esparadrapo na bochecha de Stan.

-À luz do dia? - Perguntei. - Nós temos que estar às cinco horas amanhã no aeroporto, quanto tempo vai levar pra andar até a cidade com ele e voltar?!

-Você vai levar o dia inteiro. Eu vou levar umas oito horas no máximo. - Kenny disse. - Pra ir até a sua casa, deixá-lo lá e depois ir até o aeroporto, onde eu sei chegar sozinho, diferente de você.

-Não, Kenny. De jeito nenhum. - Respondi, negando com a cabeça. Já não me preocupava em falar baixo. - Ele é meu irmão, sou eu que tenho que fazer isso.

-Cara, por favor, pensa um pouco. Você nunca foi pra cidade sozinho, não vai nem saber por onde ir. Eu sei os atalhos, eu vou manter ele seguro. E eu sou filho de ninguém, é muito mais perigoso pra você do que pra mim.

-Caralho, eu não aguento mais ouvir isso. Foda-se a minha mãe, pra que eu tô aqui? Pra ficar escondido?!

-Aqui, sim. Vai ser diferente em Nova York, cara. Não faz uma idiotice dessas agora que a gente tá tão perto de ir embora. - Ele se levantou do banco, aproximando-se de mim, tocando meu pescoço com as duas mãos. - Fui eu que fiz a cagada de trazer ele pra cá, deixa eu arrumar isso. Você já pensou no que a sua mãe vai fazer se você aparece lá assim?

Como já era esperado, Ike se aproximou de nós de repente com uma expressão bastante curiosa, seus olhos pretos brilhando no escuro.

-Ele tem razão, Kyle. - Stan disse.

-Sobre o quê? - Ike perguntou.

Eu continuava em um estado horrível de agitação, o que servia como combustível para o meu estado de frustração devido à impotência e inutilidade. Kenny tirou as mãos de mim. Bufando, eu me virei para o Ike e abri um sorriso triste, meu coração latejando de dor por pensar que nós nos aproximávamos de um adeus. Ou um “até logo”, eu ainda não sabia. Ele me olhou estranho, sem entender porque eu o encarava daquele jeito, com os olhos molhados. Segurei seu rosto sem pensar. Antes que eu me desse conta, eu o estava abraçando apertado, gemendo algo que era para ser seu nome, mas saiu inaudível, fino e espremido.

-Kyle? - Ike perguntou, sem retribuir o abraço, mesmo porque eu tinha os meus braços em volta dos dele, prendendo-o sem querer. Eu podia ouvir uma preocupação real na sua voz, e aquilo me doeu, porque tudo o que eu queria era encontrar uma forma de protegê-lo.

-Eu te amo muito. - Sussurrei bem próximo ao ouvido dele, como se realmente contasse um segredo, porque não queria que ninguém mais fizesse parte daquele momento. Bom, em partes, também era muito reconfortante ter o apoio de Kenny e Stan, mesmo de Christophe, à sua própria forma. Mas havia coisas que eram apenas entre nós dois, que ninguém jamais entenderia. Era mais do que simplesmente ser criado na mesma casa, ou aquela obrigatoriedade social de amar seus irmãos. Era muito, muito maior do que isso. Eu aprendi a amá-lo, e Deus sabia que essa não era uma tarefa fácil, porque mesmo que nós não dividíssemos o mesmo DNA, Ike era um Broflovski. Amar um Broflovski é sempre uma tarefa quase impossível. Era por isso que, em meio a todo o caso do mundo, todas as merdas e todas as loucuras dos nossos pais, nós nos entendíamos tão bem. E não fazia parte da nossa linguagem dizer “eu te amo” um ao outro. Eu sabia que aquilo iria assustá-lo ainda mais, mas era incontrolável. Ao contrário do que eu imaginava, Ike dobrou os braços em meio ao abraço apertado para envolver a minha cintura e descansou a bochecha no meu ombro. Porque ele entendia o que estava acontecendo.

Eu podia tentar protegê-lo de tudo, mas a verdade é que ninguém pode proteger ninguém de nada, e eu começava a entender isso naquele ponto da minha vida. Depois que o risco iminente da morte se torna uma coisa natural, você fica com o que é realmente importante. As pessoas. As suas pessoas são a única coisa que realmente importa.

Quando me afastei, levando a mão ao rosto para secar a bochecha, ele me encarava com as duas jabuticabas pretas que tinha no lugar dos olhos. A expressão muito séria.

-O Kenny vai te levar de volta. - Comuniquei.

Ele franziu um pouco a testa, mas seus olhos também revelavam que ele já esperava por isso, apesar de seu peito doer um pouco com a notícia. Ele coçou o olho esquerdo com o punho fechado, de tal forma que me fez enxergá-lo como aquele garotinho de seis anos que ia dormir na minha cama quando tinha trovoada.

-Mas eu quero ir com você. - Ele disse em um tom apático, só para cumprir tabela, porque no fundo ele sabia que aquela não era uma possibilidade. Ele só não queria deixar a coisa não-dita.

-Eu sei. - Respondi, os cantos dos meus lábios se erguendo em um sorriso fraco.

-Ei, olha só. - Kenny interveio apenas quando sentiu que era o momento certo, colocando a mão no ombro de Ike, alternando o olhar entre nós dois como se pedisse pela minha permissão para falar. - Por que você não dorme um pouco? Eu te acordo daqui a umas duas horas. Acho que aí não vai ser mais tão perigoso. É uma caminhada bem longa, você tem que descansar.

Ike não reagiu. Mas para uma pessoa que nunca saía de um quartinho no porão, passar o dia inteiro andando (correndo) como ele fez, eu só podia imaginar o quanto seu corpo devia estar exausto e sua mente a mil. Quando eu olhava seu rosto, parecia que alguém havia cravado uma adaga no meu peito, porque ele não tinha mais aquela expressão viva de juventude, pronto pra tirar sarro de qualquer coisa e me xingar com carinho. Não havia sequer aquela empolgação descontrolada de antes. Ele parecia… Triste. Só triste.

-É, isso é uma boa ideia. - Stan disse, levantando-se também. - Você tem algum arranhão que a gente precise cuidar?

Ike negou com a cabeça. Agora ele parecia um pouco irritado pelo fato de que estávamos todos falando com ele como se fala com uma criança. Então, ele se afastou. Foi se sentar na pilha de feno mais próxima, a princípio não demonstrando qualquer intenção de dormir. Eu fui me sentar ao lado dele, deixando um espaço entre nós para respeitar a bolha raivosa em que ele parecia ter se fechado. Eu sabia que aquilo não duraria muito tempo. Ele abraçou as próprias pernas dobradas e deitou a cabeça sobre os joelhos. Passamos alguns instantes em silêncio. Kenny logo se aproximou, tirando uma garrafa de água da mochila para nos oferecer. Fazia horas que nenhum de nós comia nada, mas a agitação e o pavor nem permitiam que nós sentíssemos fome. Kenny também tinha trazido um pacote já aberto de biscoitos, relativamente protegidos da umidade pelo plástico. Ike comeu dois, depois deitou a cabeça na minha perna e conversou baixinho comigo sobre a fuga antes de cochilar durante quase quarenta minutos.

Eu fiquei esse tempo inteiro ali sentado guardando seu sono, a mão acariciando o cabelo macio dele de vez em quando, especialmente nos momentos em que seu sono parecia agitado por sonhos ruins. Eu tinha as costas apoiadas na parede de madeira do celeiro, a cabeça pendendo um pouco para trás, os olhos pesados quase se fechando de vez em quando. Stan ficou mais próximo das vacas durante algum tempo, fazendo carinho para acalmá-las do rebuliço da nossa presença. Fedia a esterco ali perto delas, mas ele não parecia se incomodar. Tinha mais jeito com animais do que com seres humanos, sempre preferiu a companhia deles. Kenny se aproximou de Christophe, que eu não podia ver de onde estava sentado.

-Vamos limpar isso aí, cara. - Kenny disse a ele, e estranhamente, eu não consegui ouvir o que Christophe respondeu. Franzi o cenho em estranheza pelo comportamento dele; o isolamento não era incomum, mas ele parecia abatido pra simplesmente sentar ali em um canto e não reagir a mais nada. Eu ainda podia ver Kenny de pé em frente a ele, embora os sacos de grãos cobrissem a figura de Christophe. - Meu, isso vai infeccionar. - Kenny respondeu ao que quer que ele tivesse dito. Eu não ouvi nada além de grunhidos.

De repente, Kenny se ajoelhou e eu também o perdi de vista quando ele chegou mais perto de Christophe.

-Você tá bem? - Ouvi uma preocupação peculiar na voz de Kenny. Talvez Christophe tenha respondido com a cabeça, porque eu continuei sem ouvir nada. - Você quer água?

-Não, eu tenho.

-Tá, descansa um pouco então. Mas não deixa isso assim não. Passa uma água pelo menos e a gente faz um curativo depois.

-Não é nada.

-Amigo, um cachorro quase arrancou o teu braço. É alguma coisa sim.

Parecia que Kenny queria dizer mais alguma coisa, mas ele apenas suspirou fundo e se levantou, deixando-o em paz como Christophe parecia querer. Havia alguma coisa estranha com ele, eu podia sentir. Pensei no ferimento da bala que ainda não havia se curado totalmente, pelo menos não por dentro. Ele se jogou de um barranco, foi atacado por cachorros e correu muito mais do que um paciente em recuperação devia. Eu quis ir até ele, perguntar como estava o abdômen, mas não queria acordar Ike quando ele tinha tão pouco tempo para dormir. De qualquer forma, pelo tom da conversa, também parecia que Christophe queria dormir um pouco. Eu não sabia como eles conseguiam. Minha mente não desligaria por nada, mesmo que eu tentasse muito.

Stan veio se sentar ao meu lado logo depois.

Eu dei uma boa olhada nele. Stan tinha sujeira na testa e em boa parte da bochecha, a pele aparentando quase acinzentada no escuro do celeiro. Ele usava um casaco azul volumoso que abraçava seu corpo – me ofereceu várias vezes, alegando que era mais quente do que aquele que eu vestia, mas o meu casaco não caberia nele, então eu neguei – e estava igualmente sujo, agora um pouco mais seco, mas seus cabelos continuavam úmidos colando na pele fina do rosto. Seus lábios não tinham cor. Ele parecia mais forte naquela noite do que eu jamais tinha visto.

-Como tá o seu rosto? - Perguntei.

Respondeu encolhendo os ombros, sacudindo a cabeça como se não fosse nada. Coçou embaixo do queixo; uma barba fina ameaçava começar a crescer, porque ele não tinha tido tempo de se barbear ontem.

Talvez ali eu tenha me dado conta de que nós estávamos muito diferentes de quando tudo aquilo começou. Não havia mais aquela tentativa excessiva de conversar sobre, de falar sobre o estado emocional de cada um, porque ninguém estava bem e ninguém estaria bem tão cedo, então o que nos restava era sempre estar perto e oferecer aquele apoio silencioso, inabalável da irmandade. Eu começava a entender tão bem como Christophe e Gregory lidavam com as coisas desde o princípio, cada vez mais, e esperava que aquilo não estivesse me tornando insensível.

Mas parecia exatamente o contrário. Parecia que eu finalmente estava começando a ver as cores verdadeiras das coisas.

Stan se inclinou e me deu um beijo demorado na têmpora. Eu sorri.

O tempo passou depressa demais. Kenny olhou no pequeno relógio de bolso que carregava, tirando algumas coisas da mochila, organizando outras, o tempo inteiro em estado de alerta. Ike acordou sem que ninguém precisasse chamá-lo, seu rosto corado e quente pelo sono, apesar de o solo gelado do celeiro roubar o calor do seu corpo. Ele sabia que era hora. Todos nós nos levantamos, menos Christophe, que eu não tinha certeza se estava acordado ou não. Parecia que sim, porque eu podia ver seu pé se movendo, inquieto.

-Não é cedo demais? - Perguntei ao Kenny. - Os militares ainda devem estar por aí.

-É mais fácil se esconder enquanto ainda tá escuro. - Ele me respondeu, lutando contra o zíper da mochila que não queria fechar. Ele estava de cócoras no chão. - Confia em mim, vai dar tudo certo. - Ele se colocou de pé, usando uma mão para juntar a mochila nas costas, segurando uma pequena caixa branca com a outra. Estendeu-a para mim. - Toma, primeiros socorros básicos. - Ele sinalizou na direção de Christophe usando a cabeça. - Limpem aquela merda, cara. Ele não vai gostar, mas se esse negócio piora, vocês vão ter que carregar 90 kg de músculo por aí. Não suturem, já tá infeccionado. Ele pode ter uma febre fodida se vocês não cuidarem daquilo. Tem antibiótico aí dentro.

-Vocês não vão precisar disso? - Perguntei, pegando a caixa com hesitação.

-Claro que não. Não vai acontecer nada.

Assenti com a cabeça, embora eu não estivesse tão seguro disso. Todos os cenários possíveis se montavam na minha mente, o primeiro deles sendo os militares de guarda nos esperando fora do celeiro, prontos para fuzilar quem saísse. E, para além disso, se Kenny estivesse certo sobre eles vigiarem nossa casa, nada os impediria de estar lá esperando que eles voltassem, já cientes da existência de um outro Broflovski. Pensar sobre isso me provocava um calombo horrível na garganta. Eu cogitei mil possibilidades de levar meu irmão conosco, mas nenhuma delas parecia menos perigosa. Não havia outra escolha. Entregá-lo à minha mãe era tudo o que eu podia fazer.

-Tá quentinho? - Perguntei ao Ike.

-Mais ou menos.

Ele parecia muito cansado. Estava escuro, mas eu tinha a impressão de que a ponta do seu nariz estava vermelha, como se ele estivesse resfriado. Confirmando, ele fungou, passando as costas da mão por baixo das narinas, parecendo uma criança.

-Tudo pronto? - Kenny perguntou a ele, e quase foi engraçado, porque Ike não tinha absolutamente nada para preparar.

Ele tateou os bolsos, talvez procurando a carta que eu havia escrito para ele. Então, assentiu com a cabeça, mas saiu andando em outra direção ao mesmo tempo.

-Pera aí. - Ele disse. Seus tênis faziam barulho conforme ele pisava no feno, aproximando-se do Christophe. Eu conseguia enxergá-lo agora, e era uma visão muito diferente do que normalmente se associaria ao homem que conheci levando uma surra na cafeteria da universidade, recusando-se a cair a todo custo. Ele se parecia com um animal abatido, o peso todo largado contra a parede do celeiro, sem aquele estado de alerta em que ele parecia estar o tempo inteiro. Lentamente, ergueu o rosto ao Ike e apertou os olhos como se não conseguisse enxergá-lo direito.

-Eu vou embora. - Ike informou a ele, como se ele não estivesse ouvindo absolutamente tudo o que se passou até então. - Eu só… Eu queria agradecer. E dizer que eu sinto muito pelo seu braço.

Christophe o encarou com uma expressão curiosa que eu nunca havia visto em seu rosto antes, um tipo de gentileza que não desmontava aquele muro ao seu redor, mas que transparecia um pouco do que estava do outro lado. Foi impressionante que Ike conseguisse fazê-lo reagir assim em tão pouco tempo. Mas fazia sentido. Ele tinha essa energia jovial que daria esperança a qualquer pessoa.

-Faça o favor de ficar vivo. - Foi tudo o que Christophe respondeu, em uma voz rouca, fraca.

Ike estava de costas pra mim, mas eu quase pude vê-lo sorrindo enquanto concordava com a cabeça. Ele ainda passou alguns segundos parado, como se não quisesse se despedir, porque não sabia quando e se veria Christophe novamente. Alguma coisa em meu peito dizia que sim.

Por fim, ele voltou até onde estávamos e fomos os quatro, juntos, até lá fora. Por mais frio que fosse dentro do celeiro, nada se comparava à temperatura congelante ao ar livre. Até as vacas pareceram se encolher quando abrimos a porta. Kenny e Stan compartilharam um abraço longo, enquanto eu fechava todos os botões do casaco de Ike e ele resmungava baixinho. Segurei seu rosto e deixei um beijo demorado em sua testa.

-Eu achei que fazer parte de um grupo rebelde fosse te deixar menos molenga. - Ele me disse quando me afastei. - Mas só tá piorando.

-Cala a boca, moleque. - Respondi rindo.

Então, nós trocamos. Eu abracei Kenny da forma mais breve que pude, porque algo no calor do abraço de um amigo sempre faz com que a gente desmonte, e eu não podia desmontar. Cada restolho de força que eu ainda tinha servia para que eu continuasse calmo durante mais alguns segundos, pelo menos até que Ike não estivesse mais por perto para ver o quão aterrorizado eu estava de verdade.

Nós não gostávamos de despedidas melodramáticas àquela altura, mas a verdade não-dita que cercava todos os “adeus” daquela época era o fato de que você nunca sabia realmente se teria a oportunidade de rever as pessoas.

-A gente se vê no aeroporto. - Kenny disse baixinho ao meu ouvido, apertando-me ainda mais em seus braços como se pudesse ler meus pensamentos.

Quando nos afastamos, eu vi que Stan havia tirado os pés de Ike do chão ao abraçá-lo, e os dois riam um riso triste. E era isso. Tudo o que sobrou em seguida foram as duas silhuetas ficando cada vez menores ao se afastarem do celeiro, até que meu irmão virou para trás e acenou com sua mão pálida. E eu acenei de volta.

 

Ao contrário do que eu tinha imaginado, a ausência do meu irmão também pareceu levar consigo a minha vontade de chorar. Nós voltamos para dentro do celeiro, Stan e eu, sem dizer nada um ao outro. Ele colocou a mão em meu ombro e me deu um apertão carinhoso de apoio, ao qual respondi com um olhar agradecido, mas aquilo já não parecia mais necessário. Meu corpo havia entrado em um modo de sobrevivência que nem mesmo eu era capaz de entender. O interior do celeiro trazia aquele alívio pela proteção contra o frio misturado ao cheiro desagradável. Stan e eu trocamos um olhar hesitante, mas ele logo tirou a pequena caixa branca da minha mão, como se tomasse, com aquilo, a responsabilidade de fazer qualquer coisa.

Diante de tantas coisas maiores acontecendo, era fácil esquecer a tensão de passar uma noite inteira em um ambiente fechado com os dois. Porque para ser honesto, eu só conseguia sentir alívio pelos dois estarem ali, ao alcance do meu braço e a salvo. Bom, quase a salvo.

Stan arrastou os pés na direção de Christophe e eu segui logo atrás. Ele parecia acoado feito um bicho naquele canto escuro, o braço sobre a cabeça escondida nos joelhos, como se ele tentasse dormir. E eu sabia porquê. Ele parecia grogue.

-E aí? - Foi tudo o que Stan disse a princípio, mostrando a caixinha branca quando ele, muito devagar, levantou a cabeça. Mas Christophe apenas o encarou sem reação, os olhos estreitos, uma expressão irritada por ter seu descanso interrompido.

-O que você quer? - Ele perguntou.

-Você não vai conseguir cuidar do teu braço sozinho. - Stan respondeu com um tom impaciente muito sutil. Era claro em sua voz o quanto ele estava exausto e não queria estar fazendo isso, mas a obrigação ética sempre falava mais alto com ele. Eu me senti mal por não ter tomado a iniciativa primeiro, mas talvez isso fosse ainda pior.

Christophe o encarou, não sei por quanto tempo. Era uma cena esquisita por tantos motivos, vê-lo sentado no chão com essa aparência abatida e fraca, mas seus olhos continuavam com aquela ferocidade de sempre, o queixo erguido para encarar Stanley, que parecia uma torre lançando sua sombra sinuosa sobre ele.

-Eu não preciso. - Ele resmungou baixo, deitando a cabeça contra a parede, parecendo pronto para fechar os olhos.

-Como assim, “eu não preciso”? Você acha que é imune a infecção?!

-Stan. - Eu chamei baixinho, tocando o braço dele. Mas era como se eu não estivesse ali.

-Deixa de ser louco, cara. Eu não quero ter que ficar te carregando amanhã, só me deixa limpar e costurar esse negócio. - Stan prosseguiu, falando um pouco mais alto, mas Christophe cobriu os olhos enquanto ele falava, revelando uma expressão de dor que ele parecia lutar com todas as forças para conter. Era visível que ele só queria que Stan calasse a boca. Stan, naturalmente, não calou. Diante do silêncio, ele disse – Você prefere que o Kyle faça?

-Eu prefiro que você cale a merda da sua boca e me deixe em paz, caralho. - Christophe respondeu no mesmo tom ríspido, afastando a mão do rosto para gesticulá-la, olhando firme nos olhos de Stan. - Você é retardado? Eu já disse que tô bem, eu não preciso da porra da sua ajuda.

-Então tá, cara. - Stan respondeu, dando um passo para trás, empurrando a caixa de primeiros socorros com força na minha mão para que eu segurasse. - Morre aí de mordida de cachorro, por mim que se foda. Vê se eu me importo.

Com isso, Stan saiu trotando para o outro lado do celeiro, próximo aos animais. Eu senti dois impulsos simultâneos e igualmente fortes; um, de ficar, o outro, de segui-lo. Engoli seco, esfregando o rosto com a mão livre, segurando a caixa debaixo do braço. Respirei fundo. Quando botei meus olhos em Christophe novamente, ele apertava a ponta do nariz para tentar aliviar uma dor de cabeça insuportável. Eu tive a impressão genuína de que ele me morderia se eu tentasse falar com ele naquele momento, mas não foi o medo disso que fez com que eu me afastasse. Ele poderia me xingar, me arranhar, me empurrar o quanto ele quisesse, nada disso importaria se eu acreditasse realmente que forçá-lo seria o melhor. Mas tentar tocá-lo naquele momento seria uma violência emocional forte demais, e em respeito a isso, eu o deixei em paz. Era algo que eu ainda estava aprendendo.

Mesmo assim, a voz de Kenny continuava ecoando na minha cabeça: “Ele pode ter uma febre fodida se vocês não cuidarem daquilo.” Parte de mim queria acreditar que ele saberia a gravidade da situação pra pelo menos limpar a própria ferida, mas ele se comportava como um animal encurralado, negando qualquer coisa de qualquer pessoa. Mostrar fraqueza era a coisa mais difícil pra ele, eu já o conhecia bem o suficiente para isso. E não havia forma de ajudá-lo sem violentá-lo de alguma maneira.

Eu não fazia ideia do que fazer.

Quando me aproximei de Stan, ele sussurrou baixo para mim:

-Eu nunca achei que fosse conhecer uma pessoa mais teimosa que você.

Aquilo teria me feito rir em outras circunstâncias. Afastado de Christophe, eu podia ver que o transtorno de Stan não era por conta da raiva, do ressentimento que eles tinham um pelo outro. Ele estava assustado, e por isso não conseguia parar de se mexer, de passar a mão pelos cabelos como sempre fazia para lidar com ansiedade. Então, eu me dei conta de que Stan estava muito mais puto com o fato de haver uma pessoa precisando de ajuda e recusando-a, num contexto em que tantos outros precisaram e nós não pudemos fazer nada. Mas isso, nós poderíamos fazer. Era uma solução simples que, no entanto, estava fora do nosso controle.

-Talvez ele não precise mesmo. - Eu disse, idioticamente.

-O cara não consegue nem levantar, Kyle, ele tá só sendo um imbecil porque… Você sabe porquê.

-E não tem nada que a gente possa fazer sobre isso. - Respondi. Eu tinha uma habilidade extraordinária de falar coisas nas quais eu não acreditava, de forma convincente. Era isso que ele precisava ouvir no momento, era o que me mantinha são. Porque, se eu fosse completamente honesto, teria começado a chorar de pavor pelo que podia acontecer com ele. Ou com meu irmão, com Kenny, com Cartman e todas as outras pessoas das quais nós não tínhamos notícia. Eu não sabia racionalmente porque o meu impulso não foi o de sentar e chorar, como teria sido meses antes.

Como Gregory sempre dizia, nós nos preparamos para o pior e esperamos pelo melhor, nada além disso.

O assunto morreu assim. Havia uma tensão muito grande no ar, até as vacas puderam sentir. Nós tínhamos a noite inteira para passar daquele jeito, nós três, um desconectado do outro, porque havia uma estranheza entre Stan e eu que era impossível de ignorar. Nós não nos aninhamos um ao outro, nem mesmo para nos aquecer. Ele se deitou no feno, a barriga para cima, as mãos sobre o peito, os olhos abertos. Eu me sentei perto dele, tirei os sapatos e as meias úmidas para tentar aquecer meus pés usando o calor das palmas. Depois, vesti os sapatos sem as meias, guardando-as no bolso da calça. Tentei dormir um pouco. Depois de passar uma hora e meia ou duas rolando de um lado para o outro, finalmente encontrei uma posição confortável e meu corpo começou, pouco a pouco, a relaxar. Meus olhos ardiam, era agradável fechá-los. “Não há nada que você possa fazer agora”, eu dizia a mim mesmo quando os flashs da fuga apareciam, quando o rosto de meu irmão aparecia, quando a ferida de Christophe aparecia na minha mente. Respirando fundo, consegui informar ao meu corpo de que nós não estávamos mais em perigo e eu podia (e devia) descansar.

E dormi. Pode ter sido por cinco minutos, pode ter sido por uma hora. Eu nunca soube.

 

-Kyle. - Ouvi uma voz distante me chamando, uma mão grande me chacoalhando gentilmente pelo ombro. - Ei, Kyle.

Levei alguns segundos para me lembrar de onde estava. O sono fez com que eu me desacostumasse com a escuridão, então abrir as pálpebras não me revelou grande coisa. Tudo era preto. Eu podia enxergar a profundidade do teto alto com frestas que permitiam a entrada de luz, e foi isso que me localizou no espaço. Eu fui atingido pela lembrança de tudo o que ocorrera nas últimas horas. O sono foi tão pesado que não houve sonho algum. Eu reconheci o rosto de Stan, que estava ajoelhado, próximo a mim.

Ouvi um som estranho, que me fez pensar que uma das vacas talvez estivesse morrendo ou coisa parecida. Ergui o tronco depressa quando percebi a expressão perturbada de Stan. Os piores pensamentos me atingiram como um trem: os militares nos acharam, Christophe não sobreviveu, algo aconteceu com Ike. Nada fazia muito sentido, mas meu coração já batia a mil.

-O que foi? - Perguntei.

Ele não respondeu de imediato. Umedeceu os lábios, eu percebi, pela forma como as sombras de seu rosto se moviam. Esfreguei um dos olhos para tentar enxergar melhor. Stan virou o rosto na direção em que Christophe estava deitado, o que fez com que eu me levantasse prontamente.

-Ele não tá legal, cara. - Stan disse em um tom preocupado que foi como um punho abrindo as minhas costelas e apertando o meu coração até esmagá-lo.

-Christophe? - Eu chamei, apressando o passo na direção dele, o feno grudando na sola dos meus sapatos e tornando-os escorregadios. Mesmo assim, eu corri até ele. Stan também se levantou e já andava atrás de mim.

Nada nesse mundo poderia ter me preparado para o que eu vi. Era desesperador não conseguir enxergar direito no escuro, mas os sons que ele emitia e a silhueta do seu corpo deitado no chão de forma inerte, fazendo alusão a um cadáver, foi suficiente para me deixar em pânico.

-Ei. - Eu chamei com carinho, segurando seu rosto, observando-o de perto agora. Mas ele parecia transitar entre a consciência e a inconsciência. Ele tremia, coberto de suor. Minha mão ardeu quando eu a trouxe ao seu rosto, de tão quente que sua pele estava. Seus olhos estavam entreabertos, mas eu sentia que ele não enxergava nada. Eu levantei sua cabeça com cuidado para trazê-la ao meu colo, acariciando os cabelos molhados dele. Ele gemia, mas era um gemido baixo e contido, e às vezes falava coisas que eu não podia entender. - Christophe, você tá me ouvindo? Tá tudo bem, a gente vai cuidar de você.

-Mère… - Ele murmurou. Eu franzi de leve as sobrancelhas ao identificar a palavra, erguendo o rosto para olhar para o Stan, que já estava desfazendo o nó do tecido envolto na ferida do braço de Christophe, com alguma dificuldade. O tecido estava encharcado de sangue, já escuro, pelo que eu conseguia enxergar. Christophe respirava pesado, tentando tatear com a mão, mas sem força para mexê-la. - Maman, où es-tu?

-Puta merda. - Stan murmurou baixinho, balançando a cabeça, abaixando o rosto para usar os dentes para desfazer a merda do nó. Eu percebi que ele já havia trazido a caixinha branca, que já estava aberta ao seu lado. - Seu imbecil. - Ele falava ao Christophe, mas seu tom era muito mais preocupado do que agressivo.

-S'il vous plaît… - Christophe continuou gemendo, agora com um tom muito forte de dor, rangendo os dentes enquanto a cabeça caía para o lado e ele reagia ao toque de Stan em seu braço despido. Eu não precisava falar francês para entender que não era conosco que ele estava falando, e sim com a sua mãe. Meu coração latejava.

-Tenta manter ele calmo. - Foi o que Stan disse, percebendo a agitação.

Eu não fazia ideia de como fazer isso.

-Je ne veux pas… Je ne veux pas! - Ele gritava de olhos fechados, recolhendo o braço em que Stan tentava mexer. Não chegava a se debater, mas encolhia os membros como se tentando se proteger de alguma coisa. O tom em que ele falava era completamente diferente de todos que eu já ouvira, como se esse fosse um Christophe de um passado distante, provavelmente uma infância cheia de medo.

-Shhh. - Eu disse próximo ao seu rosto, a mão firme na testa dele, a outra acariciando os seus cabelos sujos de terra e úmidos de suor, falando bem baixo no tom mais calmo que eu tinha a oferecer. - Tá tudo bem, ninguém vai te machucar.

Ele pareceu me ouvir. Alguma coisa na sua expressão ficou mais calma. Ele abriu os olhos devagar, a boca entreaberta e os olhos reluzentes, uma dor silenciosa tomando conta de toda a sua expressão. Eu não fazia ideia do que ele estava enxergando, se ele sabia que era eu ou se ele pensava que eu era a sua mãe, mas isso não tinha a menor importância.

Stan vasculhou a mochila surrada jogada no chão que Christophe sempre carregava nas costas, tirando de dentro uma garrafa de água que usou para lavar a ferida. Estava escuro demais para enxergá-la bem, mas eu podia ver que estava terrivelmente inchada, vermelha e havia pus, embora o sangramento tivesse sido estancado. Era horroroso de se olhar. Stan lavou a superfície com delicadeza, o rosto bem próximo para enxergar o quanto era possível.

-É foda fazer isso sem luz, eu não sei o que tem aqui dentro. - Ele disse de repente, retirando da caixa que Kenny nos entregou um pequeno frasco branco com algum líquido dentro. Ele tentava ler o que dizia.

Então, uma coisa me ocorreu.

Eu me debrucei sobre ele para tentar alcançar o primeiro os bolsos da frente da sua calça, mas os dois estavam vazios, com exceção de algum papel de chiclete amassado. Então eu fui para os bolsos do casaco, torcendo para que não fosse preciso virá-lo e acessar os bolsos de trás da calça.

-Que merda você tá fazendo? - Stan perguntou.

-Ele fuma, Stan. O tempo inteiro. - Respondi, passando a língua pelo lábio inferior enquanto aprofundava a mão no bolso furado do casaco dele, sentindo um objeto esquisito que não se parecia em nada com um isqueiro. Por curiosidade, eu o puxei para fora e dei uma boa olhada, franzindo o cenho. Era um pequeno objeto de madeira, comprido mas arredondado, com um focinho e patinhas. Eu passei o dedo pelo contorno da superfície, reconhecendo que era um pequeno urso talhado a mão. - Que estranho.

-O que é isso? - Stan perguntou.

-É… - Eu não soube responder. Parecia um amuleto, talhado de forma rústica, as orelhinhas um pouco mais quadradas do que deveriam, mas era possível reconhecer pelo tato. Por um momento, eu me esqueci do que deveria estar procurando.

-Kyle. - Stan chamou. - O isqueiro.

-Ah. Sim. - Com alguma hesitação, coloquei o urso de volta no bolso dele, exatamente onde o havia encontrado. Eu não fazia ideia de porque aquela coisa prendeu tanto a minha atenção, mas parecia estranho demais que, de todas as coisas que você se lembra de agarrar durante uma fuga, ele fosse pegar justamente um ursinho de madeira. Não parecia coisa dele. No mesmo bolso do urso, estava o maço de cigarro amassado com o isqueiro dentro. Eu o retirei, colocando o maço de volta, e me concentrei no que estávamos prestes a fazer.

Segurando Christophe no meu colo, usando uma mão para acender o isqueiro próximo de Stan para que ele lesse o rótulo do frasco. Água oxigenada. Ele assentiu com a cabeça, aplicando-a com cuidado direto no ferimento. Sob a luz do isqueiro, eu franzi o nariz de agonia pela aparência assustadora daquela ferida aberta, muito mais infeccionada do que há poucas horas atrás. Christophe reagiu sugando o ar entredentes e apertando os olhos, deitando a cabeça para trás, pressionando-se contra mim, mas não tentou tirar o braço de Stan. Talvez ele estivesse anestesiado de alguma forma, pelo delírio da febre. Ou só estivesse muito acostumado com dor. Ele havia aquietado um pouco, embora ainda grunhisse com certa frequência.

-Nossa, tá muito feio. - Stan disse, fazendo uma careta semelhante à minha. Ele trouxe a caixa para a luz e vasculhou mais um pouco, tirando um pouco de gaze e uma cartela amassada de algum remédio que ele tentava ler sob a luz precária do isqueiro que apagava de tempo em tempo.

-O Kenny disse que tem antibiótico, é isso?

-Acho que é. Mas só tem dois.

-Tudo bem, a gente só precisa que ele melhore pra sair daqui. Depois o Token… - Parei de falar um segundo, engolindo seco, porque a verdade era que eu não fazia ideia de se Token estava vivo ou não. Stan ergueu os olhos para mim, segurando a cartela com as duas mãos, sua íris azul escura brilhando com a pequena chama do isqueiro. - Enfim, depois vão cuidar dele.

Stan assentiu com a cabeça, deixando a cartela de lado por uns instantes para se concentrar em fazer um curativo precário com a gaze em torno da extensão daquela mordida enorme. Eu só podia imaginar qual era o tamanho desse cachorro pra deixar um estrago tão grande, porque eu não cheguei a vê-los, apenas ouvi-los. Se eu tivesse olhado pra trás durante aquela correria, alguma coisa certamente teria dado muito errado. Enquanto ele fazia isso, eu destampei a água e dei água na boca de Christophe como se faz a uma criança, segurando seu queixo para que não escorresse muito. Ele bebeu avidamente. Depois, coloquei o comprimido em sua língua, separando seus dentes com meus dedos, dando-lhe outro gole em seguida. Ele engoliu sem hesitar.

De repente, Christophe reagiu. Sua mão fraca agarrou o braço de Stan e ele congelou no lugar, assustado. Meu dedo escapou do isqueiro e nós ficamos novamente no escuro, mas eu pude ver a silhueta do rosto de Christophe se virando devagar, e ele parecia fazer contato visual com Stan por trás daquelas pálpebras pesadas que ele mal conseguia abrir.

-Me desculpe… - Ele sussurrou, a voz trêmula, mas encorpada o bastante para penetrar meus ouvidos com violência. Eu estremeci. Quando acendi a luz do isqueiro novamente, Christophe já havia fechado os olhos e sua mão soltava o braço de Stan pouco a pouco, caindo pesada no chão. Ele havia desmaiado.

Alguma coisa me dizia que ele não estava mais falando para o fantasma da mãe, mas isso era algo que eu nunca saberia, que eu nunca perguntaria a ele. Porque ele provavelmente não se lembraria de nada no dia seguinte. Eu observei o rosto calmo de Stan através da chama, a forma como ele fechou os olhos e respirou fundo, abaixando a cabeça para retomar o trabalho. Seus olhos pareciam úmidos.

 

 

Ele dormiu como um bebê o resto da noite.

 

 

Perto das oito da manhã, Christophe acordou. Acordou de forma impulsiva e assustada que me lembrou muito aquele nosso encontro no metrô, em que ele cochilava, mas abriu os olhos de repente como se estivesse pronto para esfaquear alguém quando sentiu minha presença. O que o assustava agora, eu só podia imaginar, era justamente o fato de que, naquela noite, ele dormiu de verdade. Eu sabia disso porque não consegui mais apagar. Cochilava um pouco, sempre sentado, sempre perto dele, sentindo sua temperatura, verificando a ferida, observando-o melhorar. Stan dormiu um pedaço da noite, mas também continuou tão inquieto quanto eu.

Quando ele acordou, nós já guardávamos todas as coisas e estávamos prontos para partir. Meu estômago doía de fome, e eu também evitei beber a água dele, porque Christophe precisaria muito mais do que eu. Mas estávamos fortes. Estávamos prontos para a próxima etapa.

Ele nos olhou confuso, os olhos bastante inchados, o cabelo completamente bagunçado, uma expressão de quem tinha um gosto amargo na boca. Ele apertou os olhos com força, incomodado pela claridade, passando uma das mãos pelo cabelo enquanto erguia o tronco com o outro braço. A dor de cabeça continuava ali, eu pude ver.

-Caralho. - Foi a primeira coisa que ele disse. - Que merda aconteceu?

-Você tentou morrer de uma mordida de cachorro. - Stan respondeu antes que eu pudesse. - Nós não deixamos. Sabe, a gente precisava de você pra chegar até o aeroporto. Agora levanta que tem muito chão pela frente.

Christophe grunhiu com um tom de “eu gostaria muito que vocês tivessem me deixado morrer”, mas como sempre, se reergueu como se nada houvesse.


Notas Finais


Assim, terminamos a primeira parte da história. A partir do capítulo que vem, iniciamos um novo ciclo. Muito obrigada axs guerreirxs que chegaram até aqui comigo e sempre me dão apoio.


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