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História Liberté - O Eterno


Escrita por: caulaty

Capítulo 41 - O Eterno


28 de maio de 3660

 

Quando Kyle entra em casa, não enxerga porra nenhuma. Ele joga a pasta sobre a mesinha ao lado da porta, estrategicamente posicionada para arcar com todos os objetos dos quais Kyle quer se livrar imediatamente ao pisar no pequeno degrau da porta, batendo-a com força. As chaves produzem um escarcéu ao serem lançadas sobre a superfície de vidro da mesma mesa retangular, que também carrega um vaso transparente com gardênias brancas. A água estremece dentro do vaso. O Toupeira levanta os olhos do livro que segura em mãos, acompanhando o movimento do homem que atravessa a sala desabotoando a camisa – apenas os primeiros botões – e esboça um sorriso fraco antes de voltar sua atenção às pequenas letras impressas em uma página amarelada. Todas as palavras do livro estão em francês. Ele passa a mão grande pela folha lisa, acariciando a textura com as pontas dos dedos marcados por rugas nos nódulos, unhas curtas e limpas (uma vez na vida, pelo menos).

Está deitado no sofá, o corpo de lado, apoiando-se no cotovelo direito. Tomou banho há pouco tempo, então o cabelo continua úmido, apesar de ele ter secado com uma toalha. Por isso, os fios estão caoticamente bagunçados. O sofá é grande e cinza, extremamente confortável (parece, pelo menos), do tipo de estofado em que você afunda ao se sentar. Ele tem uma das extremidades mais compridas para se esticar as pernas, como uma espreguiçadeira no próprio sofá, e é ali que Christophe se esparrama como um cachorro velho e cansado. Passou o dia inteiro limpando o acúmulo de folhas na calha, a coisa mais próxima de um serviço doméstico que ele faz em muito tempo.

Isto é, a menos que estejamos contando “cozinhar” como um serviço doméstico.

Apenas o abajur está aceso. Christophe já começa a se aproximar de uma idade em que as letras pequenininhas demais são um problema, e ler no escuro é ainda mais difícil, mas a verdade é que ele não estava, de fato, lendo o livro em suas mãos.

Ergue um pouco o rosto e desvia o olhar para um quadro pendurado na parede, uma pintura de moldura dourada que revela a interpretação de um artista qualquer sobre os confrontos armados da década de 40. É um belo quadro, pelo menos eu acho, mas Christophe o acha idiota porque demonstra a coisa toda de uma maneira bastante romanceada. E Christophe estava lá. Não havia nada de romântico naquilo, você já deve saber a essa altura. É engraçado como a História é reconstruída a partir das produções do seu próprio tempo, as canções, pinturas, escritos que se fazem a partir dos eventos históricos. A imagem exalta a bravura dos jovens que deram a vida para destronar o Presidente tirano, mas quando Christophe olha para ela, estremece por dentro e é incapaz de entender porque Kyle gosta de manter uma lembrança desse tipo bem na sua sala de estar, acima da lareira.

Enquanto o Toupeira encara a enorme bandeira branca manchada de vermelho, pensando em um companheiro de luta específico que perdeu de forma muito sangrenta – e ainda não é cabível dizer quem -, também escuta o estrondo da porta da geladeira se fechando, um movimento inquieto vindo da cozinha. Kyle não demora muito a aparecer na sala novamente, massageando as têmporas com ambas as mãos, arrastando os pés até o sofá para se sentar muito próximo do outro homem, apoiando as costas no encosto como se soltasse todo o peso de uma vez, gemendo de alívio.

-Dia ruim? - Christophe pergunta, folheando o livro.

-Uma merda. - Kyle ainda passa pelo menos quase um minuto em silêncio, de olhos fechados. Eu consigo ver na cara dele a tensão nos ombros se dissipando, a coluna relaxando aos poucos. De repente, ele endireita o tronco e dobra uma perna sobre a outra para arrancar o sapato sem desamarrar os cadarços. - Eu briguei com a minha esposa.

O Toupeira estreita os olhos, soltando o livro, deixando que ele escorregue pelo seu peito, aberto com as páginas para baixo. Pigarreia uma vez e apoia a cabeça na palma da mão aberta, encarando Kyle com um olhar confuso. Em poucos segundos, ele entenderá de quem se trata. E quando entende, solta um riso curto.

-Ah. E por quê? - Ele se endireita para sentar, esticando uma mão até o ombro de Kyle para massageá-lo, mais como uma forma de conforto do que para propriamente relaxar seus músculos. Dobra as pernas, a planta dos pés pressionada contra o estofado, o livro preso entre suas coxas e seu abdômen. - Cansaram de beijar na boca uma vez na vida?

Kyle revira os olhos, cansado demais para rir. Mas oferece um olhar grato a Christophe, colocando uma mão em seu joelho e apertando de leve. Os olhos pousam no livro meio escondido em seu colo.

-O que você tá lendo? - Ele pergunta. Mas mesmo antes de obter uma resposta, identifica a capa dura que contém a pintura de um homem barbudo segurando dois castiçais e roupas de uma época distante demais para conceberem, todos os traços do desenho em variações de azul e vermelho. Kyle usa a mão que antes estava sobre o joelho de Christophe para puxar o livro dele com alguma grosseria (pertence a ele, afinal de contas) e se levanta, soltando o ar pela boca, colocando o objeto de volta na caixa de presente aberta que está sobre a mesinha de centro.

Christophe encolhe os ombros. Não há qualquer traço de culpa em seu rosto. Ele volta a esticar as pernas e descansa as mãos sobre a barriga.

-Tava aberto. - É tudo o que responde.

-Só… Deixa isso aí. - Kyle passa a mão pela própria testa e coloca a outra no quadril, separando um pouco mais os pés. Não se afasta do sofá. Christophe levanta o queixo para observá-lo com uma expressão em branco, mas curiosidade refletida no olhar.

-Você não vai me contar o que aconteceu? - Pergunta em uma tentativa de encurralá-lo sobre assuntos nos quais ele não quer tocar.

-O que você acha que aconteceu?

-Eu acho que você foi um imbécile e fez exatamente o que eu disse pra não fazer.

Eu adoro quando ele joga palavras em francês no meio das frases.

-Eu fiz o que eu tinha que fazer, tá bom? E olha só, isso é entre mim e o Gregory. É algo que eu tinha que resolver com ele.

Christophe pressiona os lábios e desvia o olhar, não de forma evasiva, apenas parece que ele está se arrependendo amargamente de alguma coisa. E, como é esperado, ele franze o rosto antes de esconder os olhos com a mão por um momento breve, balançando a cabeça em reprovação.

-Puta merda, eu não devia ter te contado. - Ele murmura muito baixo. É óbvio que fala mais para si mesmo do que para o Kyle.

-Seria muito pior pra você se eu descobrisse de outro jeito.

Não tem muito como discutir com isso.

Sabe, isso é algo de que eu sinto muita falta em conviver com o Kyle. Quer dizer, não me entenda mal, ele é uma mula insuportável quando quer ser, mas ele se impõe de uma maneira que sempre me dá orgulho. E, nos dias atuais, ele é honesto sobre quase todas as coisas. Christophe solta o ar pelas narinas e encarava a mesinha de centro com uma expressão resignada que é quase hilária de assistir, como se ele estivesse prestes a encolher os ombros e desistir dessa conversa. Mas como você já deve imaginar, Christophe DeLorne não é o que se pode chamar de uma pessoa fácil e pacífica. Ele também se levanta do sofá, mas não há nada sobre a sua postura que pareça exigir um confronto. Sua voz também sai surpreendentemente razoável. Cansada, até.

-Kyle, o cara nem disse nada demais. Pega a porcaria do telefone, se desculpa por ser um cuzão, ele vai entender. Ele só falta babar em você, aposto que ele já esqueceu essa briguinha idiota agora.

-Eu não tô pedindo a sua aprovação pra nada, eu já disse que isso não tem a ver com você. Ou… Não só, pelo menos. É sempre assim, ele sempre acha que eu sou uma criança e que ele precisa tomar conta de mim. E o que ele disse sobre você. - Kyle aponta com o indicador em direção a ele. - Como isso não é nada demais?! Como é que tá tudo bem se o seu melhor amigo achar que você é um monstro?!

Veja bem, aqui acontece uma coisa interessante. Christophe deixa os braços caírem em torno do corpo e move os lábios fechados de forma muito, muito sutil. Quase não seria perceptível se você não tivesse a visão ampla que eu tenho de onde estou, que todos os mortos também têm. Ele engole um pouco de saliva, encarando o Kyle com uma dureza tão proeminente que quase não pisca. É um silêncio que diz bastante coisa, mesmo que Kyle ainda não consiga ouvir todas elas. Mas ouve algumas. Entende que tem coisas aqui, entre os dois, que ele ainda não conhece. E coisas que resultaram nas marcas roxas do seu pescoço.

Como se quebrasse de um transe, com os olhos úmidos -mas não de lágrimas -, Christophe encolhe os ombros e sorri esse sorriso amargo que parece uma faca penetrando o estômago de Kyle.

-Talvez ele só me veja pelo que eu sou de verdade. E é isso que te deixa tão louco.

O que ele diz assusta o Kyle. Isso é fato. Mas se todos os anos de rebeldia ensinaram a ele alguma coisa, foi a reagir com ainda mais vigor diante do medo. Ele nem pensa pra responder, aproximando-se de Christophe no espaço estreito entre o sofá e a mesinha.

-O que me deixa louco é que ele tenha te feito sentir desse jeito por uma merda de um acidente!

Eles se olham bem de perto agora. Quantas vezes eles já fizeram isso na vida? Quantas vezes você já os viu fazendo isso? Pois é. Mas esse Christophe aqui, que é mais velho, mais calejado, que sabe melhor das coisas, ele não parece se abalar com nada do que Kyle diz. Eu não diria que ele permanece calmo, porque seus olhos continuam agitados e há um tremor dentro dele de lembranças muitos vivas, lembranças que eu posso vê-lo compartilhando em algum lugar do que você chamaria de “futuro”. Embora tudo aconteça agora. Já falamos sobre isso, não é mesmo?

Christophe tem olhos bonitos. De onde estou, consigo enxergá-los com muito mais clareza do que poderia quando era vivo, a começar pelo fato de que ele não é uma pessoa fácil de encarar nos olhos. Eles assustam, não importa se você queira admitir ou não. Acho que Kyle sempre foi a pessoa que mais teve coragem de encará-lo bem fundo dentro dos olhos bonitos e enxergar o que tem dentro. A íris é muito escura na margem, depois passa por um tom de verde e, no centro, bem ao redor das pupilas pretas, é uma cor de mel que quase se parece com castanho. E esses olhos descem pelo pescoço de Kyle, pelos hematomas cruéis que as suas mãos deixaram. Parece tão abatido. Traz a palma à lateral do pescoço de Kyle, de uma forma que pode ser interpretada tanto como afetuosa quanto como ameaçadora, segurando-o bem perto.

-Sabe o que eu teria feito com ele se fosse o contrário? - Ele murmura entredentes, fazendo Kyle estreitar os olhos. - Se eu pensasse que ele fez isso contigo? Eu não pensaria duas vezes… Eu não pensaria nem uma vez antes de esfregar a cara dele no chão.

Agora veja bem, Kyle o encara com certo desprezo. Não é tão óbvio na expressão que ele usa, porque mantém a mesma seriedade, a mesma cara rígida feito uma parede, mas o desprezo existe nas sutilezas. Em como ele aperta um pouco o maxilar e as pupilas se movem inquietas. Ele sabe que é verdade. E sabe, também, que não ficaria tão furioso se fosse o contrário. A sua única resposta imediata é afastar um pouco o tronco para que Christophe tire a mão do seu pescoço, o que não acontece. O aperto só fica mais forte. Não é ameaçador, ele apenas quer manter Kyle perto.

-Tem sido só vocês dois há muito tempo. - O Toupeira continua, tentando soar mais calmo dessa vez. - Eu não sou mais a prioridade dele, você é.

Dessa vez, Kyle usa a mão para afastar a de Christophe, não encontrando resistência. Também não tenta dar um passo para trás, continua estático.

-Por que você não contou a ele que foi um acidente?

A pergunta parece pegar Christophe despreparado. As sobrancelhas grossas se franzem levemente, mas logo relaxam. Ele soa muito honesto quando abre a boca novamente.

-Porque eu não sinto necessidade de me defender do Gregory. E eu não sei porque você sente.

Eu não sei se você consegue sentir a diferença entre o garoto perturbado que ele era na época em que conheceu Kyle e o homem de pé aqui no presente momento. Talvez sejam diferenças sutis, traços de resignação, coisas que endureceram dentro dele de tal forma que apenas se tornaram parte, que não explodem mais com tanta força. O mesmo vale para o Kyle. Eles ainda não se conhecem completamente como os homens calejados que são. Boa parte do problema aqui, ao meu ver, é o fato de Kyle tentar desesperadamente fazê-lo sentir que pertence a esse lugar, que ainda é bem-vindo aqui, que essas pessoas ainda são sua família. Que as coisas continuam as mesmas. E nada continua igual, eu não devo precisar te dizer isso. Kyle sabe disso, no fundo. A essa altura, ele apenas é movido pelo pavor de que Christophe desapareça de novo.

Mas ele não sabe como explicar isso. Não sei ao certo se ele já tem consciência total desse medo.

Ele não sabe o que dizer. Abraça o próprio corpo e quebra o contato visual, olhando de relance para a mesinha de centro, afastando-se um pouco do outro por instinto.

-Eu já disse que isso é entre nós dois e você não tem nada a ver com isso.

Christophe encolhe os ombros, indisposto a argumentar contra isso, erguendo os antebraços para comunicar algo muito parecido com um “bom, então que se foda”, mas não há irritação em seu rosto. Ele joga o corpo no sofá novamente com um grunhido aliviado, esfregando os joelhos um pouco doloridos. Parece dar a coisa por encerrada. Kyle, ao contrário, continua de pé com as mãos nos quadris e uma expressão pensativa no rosto.

-Eu tô dizendo que você não tem culpa, só isso. - Kyle prossegue diante do silêncio dele, que incomoda mais do que qualquer outra coisa. - Além do mais, é o Gregory. Eu não vou ficar com raiva dele pra sempre, eu só preciso mastigar essa merda.

Não vem nenhuma resposta imediata, então Kyle respira fundo e esfrega o rosto, virando-se nos calcanhares para andar em direção à cozinha. Enquanto isso, Christophe encara a capa dura do livro grosso sobre a mesa, dentro da caixa de presente. Tem os olhos estreitos, o corpo recostado contra o encosto macio do sofá, o quadril sentado bem na beirada.

-Só não deixa durar catorze anos. - Murmura sob aquela carga de sotaque francês.

Kyle resiste à vontade de olhar para ele, seguindo em direção à cozinha.

 

 

06 de junho de 3660

 

A campainha toca. Tem um som doce, acolhedor, preenchendo todos os cômodos do primeiro andar da casa. Kyle está terminando de escovar os dentes no banheiro de baixo. Não usa sapatos, tem o cabelo muito mais bagunçado do que de costume, os primeiros botões da sua fina camisa branca estão abertos e expõe uma parte do peito. Ele cospe a espuma da pasta de dente na pia, lava a boca com água e fecha a torneira com pressa, caminhando em direção à porta com pés cansados. Kyle é alguém que sempre abre a porta com cautela e nunca recebe muitos visitantes.

Christophe não está em casa, mas a essa altura, ele já tem a chave. Teve no segundo dia em que chegou aqui. E, mesmo que não tivesse, Kyle acharia mais provável que ele entrasse pela janela do que tocasse a campainha.

Não fica imensamente surpreso ao abrir a porta e dar de cara com o rosto bonito que espera do outro lado. O cabelo impecavelmente penteado, que parece muito mais escuro assim somente sob a luz esverdeada da lua, mas é na verdade de um loiro quase branco, amarelado em certas iluminações. Ele usa calças brancas que abraçam bem sua perna de carne, mas são cortadas na altura do joelho na outra para expôr a perna mecânica, um colete preto em um tecido reluzente que parece couro, mas não é, e uma camisa de mangas curtas com minúsculas flores brancas, abotoada até o último botão, a gola muito bem passada. E um sorriso fraco no rosto, os olhos azuis esperançosos, erguendo uma garrafa de vinho branco chileno. Deve ser ridiculamente caro.

Gregory faz apenas um gesto sutil com a cabeça enquanto Kyle apenas segura a porta com uma expressão irredutível, sem cumprimentá-lo ou dar espaço para que ele entre. O gesto é muito claro: “me desculpe”. As palavras não precisam sair dos seus lábios para que Kyle as receba. Então, Kyle deita a cabeça um pouco para o lado, respira fundo e revira os olhos da forma menos dramática que consegue, soltando a porta para entrar em casa novamente.

-Entra. - Ele diz, e Gregory ri.

Ele vai direto para o sofá enquanto Kyle busca o saca-rolhas chique que fica na sala de jantar, mais duas taças de tamanho pouco modesto. Não trocam palavras amenas, não tentam preencher o silêncio com remendos para fazer as pazes, eles não precisam dessas coisas. Enquanto Kyle abre a garrafa de vinho, ainda de pé, pergunta:

-Você sabia que eu estaria sozinho, desgraça?

Gregory levanta a taça para que Kyle despeje o líquido dourado, seu anel batendo de leve contra o cristal. O cheiro doce da uva sobe e invade as suas narinas. Ele remexe o vinho na taça, observando Kyle com atenção.

-Lógico, o Toupeira está na câmara. Foi ele que me disse pra trazer o vinho. - Ele faz uma pausa para beber enquanto Kyle se senta ao seu lado, um espaço pequeno entre os dois. - Não que fosse necessário. Então, a menos que você estivesse trazendo outros homens europeus além de nós dois…

-Como você é engraçado. - Ele responde em um tom sarcástico que faz Gregory soltar uma gargalhada e esticar o braço no apoio do sofá. Kyle também se serve de uma taça, mas não bebe de imediato, esperando pela pergunta inevitável.

Mas Gregory leva alguns segundos, umedecendo os lábios, as pupilas se dilatando um pouco enquanto ele encara Kyle com aquela expressão que nenhuma outra pessoa nesse mundo consegue receber dele. É um olhar calmo, os cantos da boca sutilmente erguidos – mas não o bastante para configurar em um sorriso – e uma angústia quase que paternal, porque Gregory vive há quinze anos esse conflito entre se orgulhar imensamente do homem que Kyle se tornou e, ao mesmo tempo, querer protegê-lo de todas as merdas do mundo, sabendo muito bem que tal coisa não existe. Encara a própria mão durante algum tempo, a que está próxima aos cabelos ruivos, pensando em tocá-los, pressionando os lábios. Escolhe não fazê-lo.

-Você vai me contar o que aconteceu?

Kyle respira fundo e passa a mão livre pelas entradas do cabelo para alisá-los para trás, segurando a taça intocada com a outra, os olhos presos na parede oposta a eles. Encolhe os ombros e, finalmente, dá um gole demorado.

As marcas em seu pescoço já estão bem mais amenas, o inchaço diminuiu bastante. Mas continuam visíveis, levemente roxas e bastante esverdeadas.

-Eu não devia ter gritado com você. - Ele admite com uma voz de derrota, o que surpreende Gregory tanto quanto a mim, se eu já não soubesse tudo que está para se desenrolar. As sobrancelhas de Gregory, tão claras que quase não são visíveis, se encolhem por um momento. Mas ele relaxa o rosto quando Kyle se vira para olhá-lo. - Ele não tá bem, Gregory.

-Como?

Essa é uma pergunta difícil. O próprio Kyle não sabe como explicar, porque ele se sente tão no escuro quanto qualquer outra pessoa. Não está acostumado a isso; gagueja um pouco na hora de falar.

-Ele… Sei lá, isso aconteceu na primeira vez que a gente… - Ele faz uma pausa.

-Que vocês treparam?

-É. A gente tinha bebido, então eu capotei muito rápido depois, eu achei que ele… Eu acho que ele também. Enfim. - Kyle bebe. - Aí eu acordei no meio da noite e… É, foi isso.

Gregory tem um desses rostos que parecem realmente esculpidos em mármore pelos matemáticos gregos que estudavam simetria perfeita. Quando fica sério assim, como está agora, se parece mais ainda com uma estátua. Apenas assente a cabeça com sutileza, bem devagar, a compreensão banhando o seu cérebro; ele se sente imbecil por não ter cogitado essa possibilidade antes. Seu olhar fica muito duro de repente. A mão aperta com força em torno da taça, mas não de forma descuidada o bastante para colocar o cristal em risco. Ele afasta a imagem de sua mente muito rápido, mas o nó que se forma em seu peito não vai desaparecer com tanta facilidade.

-Ele estava dormindo. - Sussurra mais para si mesmo do que para o Kyle.

-Você tinha que ter visto como ele ficou assustado quando acordou, puta merda. - Kyle aperta os olhos por um momento. - Eu não queria que você soubesse porque eu nem queria pensar que aquilo tinha acontecido de verdade. Parece tão cruel, entende? Depois dessa merda toda, de achar que ele tava morto, eu pensei que a gente fosse ter uma porra de um descanso. Que a gente finalmente podia… Sei lá. E com o que você disse pra ele, eu tive certeza absoluta de que ele desapareceria de novo.

Gregory tem vontade de dizer que Christophe não faria isso, dizer qualquer coisa que tire um pouco desse peso do coração de Kyle, mas eles não mentem um pro outro sobre esse tipo de coisa. Até porque, depois que você vê a quantidade de horrores que esses dois já viram, você cria uma dificuldade para acreditar em qualquer tipo de conforto ilusório. É melhor encarar as coisas de frente, pelo que elas são.

-E vocês têm conversado ou…? - Gregory pergunta com delicadeza, agora sim permitindo que as pontas dos dedos rocem muito de leve pelo ombro de Kyle, sem contato com pele.

-Ah. Do jeito que ele consegue, né? Sei lá, toda vez que eu tento dizer alguma coisa, ele só acaba me beijando e a gente transa.

-Que saudável.

O comentário irônico, com aquela elegância britânica que Gregory tem, faz Kyle soltar uma risada honesta. Curta, resignada. Ele esfrega um olho com o polegar, pensativo.

-Eu sei. - O riso se transforma em uma expressão amargurada. Os olhos verdes de Kyle encaram a mesinha de centro, mais bagunçada do que de costume, brilhando como se lágrimas tentassem se formar em suas pálpebras. Mas ele não vai chorar. Ele não chora mais. Apenas encolhe os ombros. - Eu não sei, Gregory, parece que ele tá escondendo alguma coisa de mim.

-Que tipo de coisa?

Kyle entorna um gole da taça de vinho que acaba com todo o líquido antes de responder a essa pergunta.

-Alguma merda. Alguma coisa que deixou ele… Sei lá, diferente.

-O que você esperava? Kyle. - Gregory tira o braço do encosto do sofá e se inclina para frente, deixa a taça sobre a mesinha e se vira para encarar o outro, colocando sua mão no joelho dele. Kyle ouve com atenção, olhos grandes, perdidos. - Todos nós somos fodidos da cabeça, isso não é novidade, mas o Christophe… Sempre foi um pouco mais. E se você passa mais de uma década sem ver alguém, é óbvio que ele vai estar diferente.

-Não, não é isso. - Ele sacode a cabeça, mas a mão quente de Gregory é um reconforto. Agora, Kyle é incapaz de entender porque não contou tudo a ele assim que aconteceu, como passou pela sua cabeça que sobreviveria a tudo isso sem ele. - Você… Você não enxerga também? Parece que ele tem medo de dormir. E não é só pelo que aconteceu, eu fico mais preocupado com o jeito que ele fica quando tá acordado.

-Você não tá dormindo na mesma cama que ele, né?

Kyle lança a ele um olhar irritado, desviando em seguida para pegar a garrafa sobre a mesa de centro e servir seu copo, enchendo mais o de Gregory também.

-Não, ele nem abre discussão pra isso. O que eu acho uma idiotice, não é um hobby novo, foi uma merda que aconteceu uma vez.

É tão bonita a compaixão que transborda dos olhos azuis de Gregory agora. Eu realmente gostaria que você pudesse ver de onde eu vejo. Porque eu consigo perceber tão facilmente como ele afasta todas as preocupações que acarretaram no desentendimento para começo de conversa. É estranho, Gregory tem essa habilidade inigualável de ser exatamente o que Kyle precisa que ele seja, não importa onde ou como.

-Bom, você se sente seguro?

-Com ele?

-É.

Eu esperaria – como Gregory espera – uma resposta imediata, mal pensada, mas em vez disso, Kyle franze levemente os lábios e pondera a pergunta. Não durante muito tempo, apenas o suficiente para buscar em seu corpo qual é a verdadeira resposta para isso. Como eu disse, eles não mentem um para o outro.

-É o Christophe. - É a resposta curta e simples que Kyle oferece, um sorriso fraco brotando nos lábios. Agora, ele tem tranquilidade para falar como e fosse óbvio. - É claro que eu me sinto.

-É, se fosse para escolher entre dar um tiro na própria cara e te machucar de propósito, eu não tenho dúvida de que ele escolheria o tiro. Eu deveria saber disso. - Ele fala com certa culpa que tenta disfarçar. - Mas isso não tá sob o controle dele.

-Nada nunca tá sob o controle de ninguém, Gregory. - Kyle diz com impaciência, o vinho já fazendo certo efeito. Ele bebe mais. - E aí? Ele vai ficar dormindo no sofá como se isso fosse solução? A gente esperou catorze anos da nossa vida pra ficar dormindo separado? Se acontecer de novo, aconteceu de novo e a gente lida com isso.

Em algum momento dos seus anos de resistência, Kyle perdeu o medo. Claro, ele ainda é capaz de senti-lo, como sentiu no dia em que acordou subitamente com as mãos grosseiras do Toupeira em seu pescoço, mas de forma geral, ele tem medo apenas de perigos imediatos e coisas com as quais ele consegue lidar. Hipóteses, forças invisíveis que paralisam a vida, nada disso é capaz de tocá-lo agora. E isso aterroriza Gregory de formas que eu não seria capaz de explicar. É tão humano isso, sentir medo pelo fato de outra pessoa não sentir.

-Você realmente quer que isso funcione. - Gregory murmura com um sorriso, bebericando do vinho de forma automática.

-É. Acho que quero. - Responde como se nem tivesse se dado conta disso até agora. E provavelmente não havia se dado mesmo, porque a presença de Christophe veio de forma tão surreal, depois de Kyle aceitar que ele havia morrido da maneira que quis; em luta. Estava em paz com isso, até não estar mais.

-Mas… Como é que funciona agora, vocês estão… Namorando ou o quê?

Kyle solta uma gargalhada incrédula, visivelmente perturbado pela escolha de palavras. E é uma risada tão feia e nasal que chega a ser adorável.

-Deus me livre, Gregory, não.

Ele responde com um som curioso, curto e pensativo, coçando o próprio maxilar liso pela barba feita há menos de duas horas, dentro do banheiro do seu escritório na câmara. Acha o desconforto de Kyle compreensível, dadas as circunstâncias. Mas ao mesmo tempo, Gregory sempre teve muita certeza de que os dois acabariam nessa situação novamente algum dia. Sabia que era tudo uma questão de tempo. Ele tem uma visão mais clara das coisas.

-Então é o quê, casual?

-Eu não faço a menor ideia. Quer dizer, não, é óbvio que não é casual. Nunca seria, não depois de tudo. Mas eu não consigo colocar um nome, pelo menos não agora. - Kyle dobra uma das pernas e coloca o pé sobre o sofá, abraçando o joelho com o braço que segura a taça, trazendo-a aos lábios sem beber. - Eu não consigo nem fazer o cara dormir na minha cama. - Bebe um gole longo. Gregory apenas espera. - E não é só isso. Eu não sei por quanto tempo ele vai ficar aqui. Nem ele sabe, não adianta perguntar. Eu fico pensando… Caralho, eu achei que ele estivesse morto. De verdade. Ele me deixou pensar isso, ele escolheu não entrar mais em contato. Ele sabia exatamente onde eu estava, eu nunca soube onde encontrá-lo. Catorze anos é… É tempo demais. Talvez ele só não queira isso tanto quanto eu, por que esperar até que eu desistisse?

-Mas você nunca desistiu.

-Desisti sim.

-Kyle. - Gregory diz com um sorriso incrédulo, deitando um pouco a cabeça.

-É sério. Eu acho que você nunca entendeu de verdade quando eu dizia que, pra mim, ele estava morto. Não era metafórico, eu tinha certeza absoluta.

Gregory pressiona a língua por dentro da boca, um sorriso fino ainda brincando em seus lábios, não aparecendo por completo. Ele abaixa a cabeça e estreita os olhos, encarando o chão pela primeira vez essa noite. A mão, distraída, remexe o vinho na taça. A cabeça assente em compreensão, mas é um gesto inconsciente. Ele parece terrivelmente sério. Kyle coloca a mão em seu braço, recuperando a atenção dos olhos azuis tão claros que parecem vidro.

-O que foi? - Kyle pergunta baixinho.

-Nada. - Ele responde com uma tranquilidade honesta, endireitando a coluna para recuperar aquela postura impecável que lhe é comum, segurando a taça entre duas mãos. - Só é engraçado, eu sempre achei que… - As palavras hesitam a deixar seus lábios, revelando uma insegurança tão rara, que só aparece na presença de Kyle e mais uma quantidade muito reduzida de pessoas que tiveram a graça de entrarem na concha desse homem. Naturalmente, quando separa os lábios para continuar, tem a voz muito mais firme. - Eu sempre pensei que eu e você nunca acontecemos porque você continuava esperando por ele.

Ah, pois é. Tem isso também. Você, que anda alternando entre esses dois momentos da vida dessas pessoas, talvez nem pense sobre as coisas que aconteceram nos catorze anos que Christophe passou fora do país. Creio que seja importante que eu abra uma pequena janela para um outro momento no tempo. Não se preocupe, serei breve.

Você pode ainda não saber muitas coisas sobre a juventude de Kyle, coisas que virão com o tempo, mas você já sabe como aquela história termina: em perdas. Kyle perdeu Stan Marsh e Christophe DeLorne quase que simultaneamente, embora a presença de Stan em sua vida ainda tenha resistido alguns meses depois do Toupeira deixar o país. E seria muito melhor que não tivesse, que Kyle percebesse a crueldade que estava cometendo. Mas enfim, isso fica para mais tarde. A questão é que, depois de dois anos com a presença desses dois homens consumindo sua vida, Kyle se percebeu sem nenhum dos dois. Era a coisa certa naquele momento, ele tinha consciência disso, mas não quer dizer que a solidão não o tenha consumido.

O que tornou todo esse processo muito menos doloroso foi Gregory. E durante cerca de seis anos após a perda daqueles dois homens, Kyle e Gregory preservaram exatamente a mesma relação fraternal que construíram lutando juntos pela revolução e pela própria sobrevivência. Até a queda do Presidente. Não entremos em detalhes sobre como isso ocorreu ainda; O importante é que foi a primeira tomada de fôlego, o primeiro momento em que puderam vislumbrar algo semelhante a uma vida normal. Os soldados começaram a retornar para suas casas. E South Park, de alguma forma, ainda era uma referência de lar. Ambos tinham vinte e seis anos. Passaram tanto tempo imersos na vida coletiva dos Monarcas que nem sabiam por onde começar a construir uma vida fazendo qualquer coisa que não fosse rebelião. Esse foi o momento em que estiveram mais próximos, apenas os dois, pois a solidão era inexplicavelmente estranha a eles.

Kyle morava em um pequeno apartamento no centro da cidade, finalmente podendo viver assumindo seu próprio nome após a anistia política que concedeu perdão a todos os rebeldes, todos os sapadores, todos os envolvidos na chacina. Mas era extremamente difícil sair de casa, andar pelas ruas daquela cidadezinha em que passara seus piores momentos de terror. Foquemos agora apenas no apoio emocional que forneciam um ao outro; por mais que Gregory nunca falasse abertamente sobre as angústias de se estabelecer sozinho como um homem adulto comum, o fato de Kyle precisar dele era sua maior muleta.

A essa altura, já compartilhavam de uma intimidade que praticamente não tinha limites. Mas tinha. E uma noite, enquanto tomavam vinho tinto – muito mais barato do que o vinho branco que bebem agora – no chão da sala de Kyle, pois não havia sofá, em uma noite de inverno de 3652, algo quase aconteceu. Cada um se lembra de uma maneira diferente daquela primeira noite; nenhum deles acha que foi o primeiro a se inclinar, mas fato é que inclinaram ao mesmo tempo enquanto se encaravam nos olhos. Gregory chegou a roçar os lábios nos dele quando Kyle sussurrou de olhos fechados: “a gente não pode”, com a voz mais fraca que já usou em toda a sua vida.

Eu consigo ver esse momento acontecendo agora mesmo de onde estou, os dois muito mais jovens, mas já pareciam tão velhos em comparação aos meninos que você tem conhecido em 3645. Posso ver o sorriso fraco que Gregory ofereceu enquanto assentia com a cabeça, fazendo um carinho no rosto dele sem nenhuma culpa, mentalmente responsabilizando o vinho.

Agora olhemos para 3657, o ano em que fizeram trinta e Kyle comprou a casa onde estão nesse momento. Essa já foi uma época mais difícil. Difícil resumir algo tão vasto que poderia dar uma história por si só, mas isso também diz muito sobre quem esses dois são hoje. Nem houve vinho envolvido no primeiro episódio, apenas duas caixas de comida chinesa em uma noite em que nenhum dos dois queria cozinhar. Comeram no sofá, de frente um para o outro, as pernas quase enroscadas, quando Kyle havia acabado de sair de um quase-relacionamento e reclamava sobre como simplesmente não conseguia se envolver com pessoas que não passaram pela guerrilha. Não culpava a ninguém além de si mesmo. Naquela noite, não havia muito questionamento sobre quem deu o primeiro passo. O rosto de estátua grega de Gregory estava próximo demais, os lábios perfeitamente esculpidos somados ao olhar amoroso de uma pessoa com a qual Kyle havia ido ao inferno e voltado. Uma pessoa que, em março de 3645, segurou-o pelos braços e implorou que ele fosse forte, prometeu que tudo ficaria bem. E tudo ficou bem. Estavam ali, estavam vivos. E de repente, não beijar Gregory parou de fazer sentido.

E beijaram. Beijaram muito mais do que deveriam, mas ninguém conseguia pensar nisso enquanto se enroscavam naquele sofá, sem propriamente deitar, com medo de qualquer movimento brusco que fosse quebrar aquele calor úmido que calava qualquer senso de razão. Mas quando Kyle se deu conta do que acontecia, empurrou Gregory como se fosse o próprio diabo. Tudo aquilo tinha gosto de pecado, a coisa mais errada e mais certa que ele já fez na vida. Foi um dos poucos momentos em que Gregory ficou verdadeiramente perturbado, embora tenha dito todas as coisas certas para que Kyle parasse de surtar. Acho que não preciso dizer que eles repetiram esse “erro” mais algumas vezes, muitas com uma sensação de conforto que quase não chegava a ser sexual.

Mas Kyle morria de medo daquilo. Sei que eu disse há pouco tempo que medo já não fazia mais parte dele, mas no que dizia respeito a colocar sua relação com Gregory em risco, Kyle mal podia pensar de tanto pavor. Tinha medo da força e da naturalidade daquilo, de transformar o que tinham, de perder o homem que não era apenas seu melhor amigo, era a sua pessoa, a sua estabilidade, a sua sanidade. A coisa atingiu um limite, o limite de não se contentarem apenas com amassos esporádicos e uma esfregação adolescente que, essencialmente, não mudaria grandes coisas na estrutura da relação, mas partiram para um outro patamar de intimidade; nem souberam ao certo como aconteceu, adormeceram abraçados na cama de Kyle e, no meio da madrugada, ainda meio sonolentos, aquilo fez sentido. Gregory o abraçou por trás o tempo todo, ambos deitados de lado, envolvidos por um êxtase que parecia só fazer sentido na intimidade daquele quarto com todas as luzes apagadas.

Depois disso, Kyle tentou evitá-lo. Como se tal coisa fosse possível. Tinha medo das coisas que sentia quando Gregory chegava perto demais. Mas Gregory consegue ser bastante impositivo com a sua presença, como você já deve ter notado. Apareceu na casa de Kyle, exatamente como fez hoje, mas teve que segurá-lo pelos braços e falar repetidamente: “sou eu”. Foi isso que cessou todos os medos de Kyle. Olhar naqueles olhos e enxergar seu melhor amigo, a pessoa que esteve presente em cada um dos momentos desgraçados de sua vida. Que não iria a lugar nenhum.

-Não teve porra nenhuma a ver com o Christophe. - Kyle enfim responde. - Eu já tinha certeza de que ele não ia voltar quando aconteceu.

-É, mas eu sempre achei que, bem no fundo, você ainda se sentisse… Dele.

“É por isso que você não conseguia se apaixonar”, ele pensa. “Não tinha nada a ver com a guerrilha”. Mas não vai dizer isso em voz alta.

-A gente não aconteceu porque eu teria me apaixonado por você, Gregory. - Kyle responde com firmeza, quase como se pudesse enxergar o que ele pensa. Olha só, eu não duvido nada que possa. Os dois têm dessas esquisitices. - E eu não tava… Eu nunca estive disposto a te perder.

-Nem se você quisesse. - Gregory responde com um sorriso fraco, erguendo a taça de vinho. Kyle ri porque sabe que é verdade, batendo delicadamente sua taça na dele.

Eles não têm mais o que conversar a esse respeito, não existem pontas soltas aqui. Tudo foi resolvido no tempo que deveria ter sido, é simples assim entre Kyle e Gregory. Então alguns momentos de silêncio confortável se seguem, os dois bebem sem necessidade de preencher o espaço com palavras banais.

Esse silêncio só é quebrado quando os olhos de Gregory cruzam com o livro sobre a mesinha de centro. Sim, o mesmo exemplar de Os Miseráveis dentro da mesma caixa de presente, há uma semana no mesmo lugar. Gregory franze o cenho, cruzando a perna de carne sobre a mecânica.

-É o presente do Stan? - Pergunta.

-Ahn? Ah. É, eu ainda… Eu tenho que descobrir como agradecer. - Ele admite com um pouco de vergonha, encolhendo os ombros. - Mas a gente não se esbarrou mais, então eu tô… Sei lá.

-Você não tava atrás desse livro há uma década?

A vergonha sutil no rosto de Kyle aumenta subitamente. Seus ombros ficam tensos, de forma que comunica a Gregory que talvez seja uma boa hora para mudar de assunto, mas em vez disso, ergue a mão para massagear suavemente o ombro duro e sorri fraco, sentindo Kyle tentar afastar qualquer que tenha sido o pensamento obscuro que apareceu.

-Eu ainda não consigo acreditar que ele me deu isso.

-Eu consigo.

Eu também consigo. Stan Marsh é uma pessoa especial. Não é preciso conhecê-lo muito bem para saber disso. O livro que encara Kyle todos os dias desde seu aniversário é nada mais nada menos do que um convite, uma oferta, um chamado. Uma possibilidade de resolver coisas já tão antigas e tão enraizadas que Kyle nem imaginava que pudessem ser resolvidas. “Talvez não sejam mesmo”, ele pensa.

-Eu não quero soar como um merda mal-agradecido, mas não parecia certo só mandar um cartão ou ligar. Eu.. Acho que vou visitá-lo, sei lá.

-Eu acho que é uma ideia maravilhosa.

Kyle apenas bebe. E o gole não termina tão cedo. Gregory chega a soltar uma risada fraca pela velocidade com que ele termina aquela segunda taça de vinho. A sua também já está quase vazia.

-Ei, você tem visitado o Ike?

Ele leva um tempo para engolir, a boca ainda cheia de vinho, mas balança a cabeça negativamente. Umedece os lábios, sentindo o gosto delicioso do líquido remanescente, limpando a garganta.

-Não desde o natal. Eu acho que vou no aniversário dele. Mas… - Sua voz é interrompida pelo som grosseiro da chave adentrando a fechadura. O rosto de Kyle se ilumina de repente, não falha aos olhos de Gregory, que assiste à coisa toda com o mesmo sorriso fraco que eu teria agora, caso eu ainda tivesse lábios para sorrir.

Christophe aparece na porta com uma expressão cansada. Ele veste uma camiseta branca. Acho que eu nunca o vi de branco antes, ele fica tão bonito assim. No braço direito ele carrega uma sacola. Segura a chave na mão distraidamente enquanto encarava os outros dois no sofá, soltando um bufo (que esconde um pequeno riso) antes de sacudir a cabeça e trancar a porta por dentro.

-Que bom, vocês já tão chupando a cara um do outro de novo. - Ele diz sem nenhuma ironia.

Gregory levanta a taça para cumprimentá-lo de longe, erguendo as sobrancelhas.

-Você trouxe jantar? - Kyle pergunta.

-Você mandou, não mandou? - Ele resmunga baixo enquanto coça atrás da orelha com a mão que segura a chave, arrastando os pés até a cozinha para largar a sacola com pequenas caixinhas de comida tailandesa.

-Você pediu o meu sem curry? - Kyle grita para que o Toupeira consiga ouvi-lo do outro cômodo.

-Eu vou mijar na sua sopa se você não parar de me encher o saco.

Kyle solta uma gargalhada alta, trazendo a taça lentamente até os lábios, mantendo o sorriso largo. Ele sente os olhos azuis de Gregory o observando, e quando se vira para olhar, o outro não se mexe.

-Que é?

-Nada. - Gregory responde com um sorriso calmo, sem saber como explicar ao Kyle que ele e Christophe só não estão namorando porque já estão casados.



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