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História Liberté - A Prisão I


Escrita por: caulaty

Capítulo 46 - A Prisão I


Quaisquer dias de Março, Abril e Maio.

 

Na primeira noite, as ondas eram um conforto. Pareciam bater diretamente na parede externa, lambendo e acariciando as pedras com seu vai e vem constante, certeiro, confiável. A cela tinha cheiro de mar. Cheiro salgado, de areia, de praia. Deitado sobre o meu colchão fino do beliche de cima, com meu rosto tão próximo do teto, eu me perguntava sobre o que havia lá fora. Não havia som de cidade, de carros, de civilização. Nada além das ondas e de pássaros que podiam ou não ser gaivotas. Me virei de lado. Não havia travesseiro no qual apoiar a cabeça. Meus ossos estavam doloridos e a cicatriz em meu rosto ardia um pouco, mas os pequenos desconfortos físicos eram uma deliciosa distração do que havia dentro de mim. Pisquei algumas lágrimas salgadas, tentando fazer meu coração desacelerar há horas, sabendo muito bem que eu não pegaria no sono. Nem hoje, nem amanhã, nem no dia seguinte, até que todos os dias se tornassem apenas um longo e interminável dia que duraria até a minha morte.

Eu tentava chorar baixo, e estava fazendo um bom trabalho nas últimas horas, com pausas alternadas de estranha calmaria em meu peito. Era apenas o alívio do choro, fugaz e inconstante. O que me entregava era a respiração, as tomadas bruscas de fôlego que eu fazia com a boca quando meu nariz estava congestionado demais. Cobri minha própria boca e apertei os olhos, deixando as lágrimas quentes rolarem pelo meu rosto e pescoço, quase fazendo cócegas. Era difícil conter os espasmos dos meus músculos.

-Kyle. - A voz fraca veio do beliche debaixo.

Merda.

-Eu tô bem. - Respondi rapidamente, sem abrir os olhos ou tentar conter aquele tremor filho da puta. Nem sobre mim mesmo eu tinha controle.

-Vem cá. Deita aqui comigo.

Até aquele momento, eu nem sabia que a voz de Gregory podia ser tão… Tão íntima. Acho que não existe outra palavra para descrever a maneira com que ele falava comigo, o tom quente e paternal que usava. Era impressionante. O homem foi torturado durante horas, mas ainda encontrava uma maneira de falar comigo como se eu é que estivesse sofrendo. Os únicos ferimentos físicos de Gregory eram superficiais, resultado do espancamento. Não foi nada grave, segundo ele, estavam apenas “brincando” para mostrar quem é que manda. Não quis falar sobre os choques. Limpou a urina que escorria das pernas e enxaguou a boca depois de vomitar sabe-se lá quantas vezes. Me disse para dormir como se isso fosse possível.

Mas ele também não havia pregado os olhos, eu sabia.

-Eu não sou uma criança, Gregory. Já disse que tô bem, eu não preciso dormir com você. - Respondi, tentando soar agressivo, mas a minha voz dizia o oposto das minhas palavras.

-Não é por você, é por mim. Eu tô muito abalado, não quero dormir sozinho. - Ele disse de forma tão séria que eu levei alguns segundos para entender que essa era a sua forma de me fazer rir quando eu realmente precisava. Não cheguei a erguer os cantos dos lábios, mas soltei o ar pelas narinas em algo parecido com uma risada morta, esticando o pescoço para tentar enxergá-lo no beliche debaixo.

Desci com cuidado, tocando o chão frio com meus pés descalços antes de engatinhar sobre a cama dele. Gregory se aproximou da parede para me dar espaço. Havia algo de mais confortável na cama debaixo, não apenas por ele, mas porque se parecia com um ninho. Deitei a cabeça no ombro que ele me ofereceu, manchando o tecido preto com meu rosto molhado. Mas o calor que senti em minha bochecha assim que me aninhei contra ele, a facilidade de fechar os olhos cansados ao abraçar aquele corpo familiar e sentir sua mão quente no copo da minha cabeça, aquilo era exatamente do que eu precisava. E senti vergonha por isso. Me senti fraco por me apoiar em alguém que havia acabado de passar pelo inferno que ele passou, sendo que meu corpo continuava intacto. Mas eu não pude evitar. Não pude. Me afundei na familiaridade, no conforto dele.

Apenas isso foi suficiente para me fazer parar de chorar.

Após algum tempo em silêncio, o suficiente para minha respiração normalizar e meus olhos pararem de escorrer, ajeitei minha cabeça no peito de Gregory e fechei os olhos. Ele cobria minha nuca com sua mão.

-Você acha que o Clyde está vivo? - Murmurei.

Eu conhecia Gregory muito bem. O silêncio que se seguiu era uma resposta, um “não” em alto e bom som que nem mesmo ele teria coragem de falar. Pude senti-lo estremecer um pouco sob mim, mas seu coração continuava batendo no mesmo ritmo calmo. Seus dedos fizeram um pouco de pressão em minha nuca.

-Dependendo de onde ele estiver… - Foi a resposta cuidadosa de Gregory. - Eu espero que não.

Apertei meus olhos, trancando a respiração. Eu não sabia ao certo o que ele queria dizer com isso, mas não precisava. Podia entender a essência. Sempre nos disseram, existem coisas muito piores do que a morte. Meu coração latejava ao imaginá-lo passando por isso sozinho, onde quer que estivesse, se eu nem bem conseguia dormir em minha própria cama. Ainda era estranho pensar naquele beliche frágil como “minha cama”. Mas clandestinos nunca podem se dar ao luxo do apego.

-Ele não devia ter vindo. - Sussurrei com uma voz apertada, com dificuldade de espremer as palavras.

-E nem você.

Ergui o rosto para encontrar seus olhos azuis instintivamente, ao mesmo tempo em que Gregory abaixou o rosto e apertou um pouco mais o braço que envolvia a parte superior das minhas costas, pressionando-me contra o seu peito sem perceber. Franzi o cenho de leve, desviando o olhar para a parede de pedra que roubava o calor dele. Gregory era bom em mascarar sentimentos, manipular expressões, mas não ali. Ali, foi como se eu o visse pela primeira vez em sua forma genuína, humana, vulnerável. No escuro da cela, ele me permitiu ver tudo. A culpa corrosiva nos olhos, a tensão no maxilar que delatava o medo e a batalha interna, a respiração contida que revelava todo o arrependimento.

Engraçado. Convivi com Gregory desde criança, compartilhei um apartamento com ele, estudei com ele durante anos de minha vida, mas antes de nos unirmos à resistência, eu nem sabia exatamente se gostava dele como pessoa ou não. Foi naquela primeira noite no inferno que eu soube que o amava. Que ele não era somente um conhecido, não era somente um amigo ou companheiro de guerrilha, mas sim um irmão. A pessoa mais forte que já conheci. Foi isso que fez com que eu erguesse um pouco a cabeça, dobrando meu cotovelo com dificuldade, encarando-o de perto sem piscar. Ele umedeceu os lábios antes de voltar o rosto para mim, e eu sabia o que estava fazendo. Usando aqueles segundos para neutralizar tudo que estivesse fora de seu controle.

-Isso não foi sua culpa. Nada disso foi sua culpa. - Eu disse com firmeza. Até então, de forma inconsciente, nós sussurrávamos o tempo todo como se estivéssemos sobre vigilância o tempo inteiro. E estávamos. Mas isso não me importava nesse momento. Não falei com bondade, com gentileza, com compreensão, nada disso. Porque essas coisas não funcionavam com Gregory. Não era disso que ele precisava para me escutar. E Deus, como era importante para mim que ele escutasse.

Os seus dentes roçaram pelo lábio inferior enquanto os olhos fugiam de mim, buscando o estrado da cama de cima. Nada mudou em seu rosto, nada além das íris inquietas que se moviam de um lado ao outro enquanto ele pensava.

-Eu fui arrogante. - Respondeu, finalmente, sem olhar para mim. - Eu tinha tanta certeza de que sabia que merda estava fazendo. Tanta certeza. Eu nunca teria…

Minha mão envolveu sua bochecha e, delicadamente, forcei que ele olhasse para mim. Foi a primeira vez que segurei o rosto de Gregory desde a noite em que nós dois pensamos que Christophe fosse morrer. Acho que foi ali que as coisas começaram a mudar entre nós, naquele primeiro momento de fraqueza em que ele me permitiu entrar em sua concha. E era sempre pelo mesmo motivo, sempre pela culpa. Gregory achava que podia carregar o mundo nas costas e se odiava toda vez que não conseguia.

-Para. - Foi tudo o que consegui dizer diante da maneira com que ele me olhava, os olhos úmidos pedindo perdão, um perdão que eu jamais seria capaz de oferecer. Porque não havia o que perdoar. Não era culpa dele.

-O Toupeira tinha razão. - Murmurou de forma trêmula, quase entredentes, com dificuldade de falar. - Se ele tivesse vindo, ele saberia.

-Ninguém podia fazer nada, Gregory. Ninguém podia saber. Mesmo que nós tivéssemos dado meia volta com o carro assim que chegamos no museu, você acha que impediria aquele batalhão inteiro de alguma coisa? Nós nos condenamos no segundo em que entramos naquele carro. E isso não é culpa minha, não é culpa sua, é culpa do filho de uma puta que nos entregou de bandeja.

Eu praticamente cuspia ao falar, desenroscando-me um pouco dele porque o ódio era tão sufocante em minha garganta que impedia a passagem do ar. Ele segurou meu braço como se percebesse isso, alisando a parte nua da minha pele sem pressa, assentindo com a cabeça apenas para me acalmar.

-Eu sei.

Ainda gastei alguns segundos encarando-o de volta, esperando por uma discussão que simplesmente não aconteceria. E diante disso, voltei a me deitar em seu peito. Já não abraçava seu tronco com a mesma angústia, fechando meus olhos para respirar fundo, acalmando meu próprio corpo. Era tanta raiva. Tanta raiva. Eu não fazia ideia do que fazer com tudo aquilo que borbulhava, que encontrava o caminho até a superfície dos meus olhos, abrindo um buraco dentro do meu peito. Antes que eu pudesse me dar conta, estava chorando de novo. Mas era um choro diferente. Era a merda do conforto que me fazia perder o controle; a sensação de que, se eu caísse, Gregory estaria ali para me segurar. E foi exatamente isso que ele fez. Escondi o rosto em seu peito e contraí todos os músculos do meu corpo enquanto ele me abraçava apertado.

-Me fizeram assistir. - Murmurei baixinho aquilo que nem queria que ele soubesse, mas o choro dominou as minhas palavras muito além do meu juízo racional. - O tempo inteiro, enquanto faziam aquilo com você, me fizeram assistir.

Houve um ou dois segundos de silêncio, hesitação, talvez surpresa. Eu não o enxergava, mas podia sentir o horror na ponta dos seus dedos.

-Kyle… - Ele me disse em uma voz espremida que me lembrou exatamente porque eu não deveria ter contado. Mas parecia inútil querer poupá-lo de alguma coisa àquela altura. Gregory deitou o rosto contra o topo da minha cabeça, sua respiração quente tocando meu couro cabeludo. O “eu sinto muito” estava implícito, mas as palavras nunca deixaram seus lábios, e fiquei muito grato por isso. Só tornaria a culpa ainda pior. Essa culpa não me largaria nunca mais.

 

Quase todas as noites, eu sonhava com a praia. Não nos primeiros dias. Não, nos primeiros dias, se é que eu conseguia pegar no sono, era sempre cru e pesado demais para conseguir projetar um mundo inteiro dentro da minha própria cabeça. Acordava suado e hiperventilando de dez em dez minutos, como se estivesse tendo um pesadelo, mas não estava. A realidade era o estado constante de terror. E, cada vez que eu acordava, esperava me encontrar em um lugar diferente. Pouco a pouco, dia após dia, meu corpo começou a se ajudar àquele estado. A aceitá-lo como o novo “normal”. Então, eu voltei a dormir. Voltei a sonhar.

 

As ondas do mar encharcavam a barra da minha calça. Tudo era mar. A areia estava distante demais para ser vista, e ainda assim, parecia que eu estava pisando na beirada da praia. Uma brisa quente com cheiro de sal soprava em meu rosto. Eu tinha cabelos. E eles estavam molhados. Olhei para baixo, meu cenho franzido e boca entreaberta, enxergando meus sapatos imersos na água cristalina que ia e voltava, afundando na areia branca submersa. O céu sobre minha cabeça era vermelho, vermelho ardente que ficava cada vez mais rosado no horizonte. Só havia céu e mar. E um chamado. Uma voz. E eu conhecia essa voz, mas não sabia identificá-la, não sabia nem mesmo ser pertencia a um homem ou uma mulher, jovem ou velho. A voz me chamava do nada absoluto. Levei alguns segundos – podem ter sido anos no tempo dos sonhos – para perceber que a pessoa estava debaixo d’água. E eu comecei a andar, as pernas empurrando a água com dificuldade, os olhos arregalados procurando por todos os lados, porque alguém precisava de mim. Alguém que eu amava, mas não entendia. As nuvens sobre minha cabeça se abriam, dando lugar ao sol quente que queimava meu couro e minha pele, o sol mais vermelho do que qualquer coisa que existisse. Brilhava sobre a superfície em movimento da água. E, do nada absoluto, senti uma presença atrás de mim. Quando me virei, lá estava o rosto pálido de Butters. Ensanguentado da cabeça aos pés. No lugar de seus olhos, havia apenas duas cavidades vazias e pretas. Ele tinha a cabeça enfaixada, os cabelos brancos também sujos de sangue, parecendo tão jovem quanto sempre foi. Não gritei, mas suguei o ar pela boca sem emitir som algum. Estávamos Butters e eu no meio da água. “Você não pode salvá-lo”, ele me disse. “Não tente. Você não pode.”

 

Foi aí que eu acordei.

 

-Eu conheci o Presidente.

Eu estava deitado no beliche de cima. Não demorou muito para que o rosto de Gregory aparecesse do meu lado, quando ele se levantou da cama e apoiou os pés no estrado para ficar mais alto, apoiando os braços no meu colchão. Não tinha o cenho franzido, não parecia confuso ou surpreso, apenas me encarava.

-Você conheceu o Presidente. - Ele repetiu. Não era exatamente uma pergunta, apenas uma constatação duvidosa, como se ele precisasse mastigar as palavras.

-Conheci.

-Aqui?

-É.

-O Presidente?

-Sim.

-Dos Estados Unidos?

-Sim, Gregory, dos Estados Unidos. - Respondi com impaciência, deitando-me de lado.

Foi aí que ele começou a rir. Era um riso incrédulo a princípio, um que o fez cobrir a boca e sacudir a cabeça. Eu achei que o riso fosse morrer logo, mas não. Continuou. Continuou por tempo suficiente para me fazer rir também, porque Gregory nunca ria, era estranho e contagioso.

-O Presidente dos Estados Unidos quis falar com você? - Ele continuava gargalhando, agora segurando meu braço, um aperto angustiado que quase trancava a minha circulação. Meu riso enfraqueceu por conta daquele aperto, mas ainda era constante. - O país está caindo aos pedaços e a merda do Presidente arrumou tempo para…?

Não era engraçado. Não era nada engraçado, mas quando nós trocamos um olhar silencioso, começaram a escorrer lágrimas de tanto que eu ria. Gregory deitou a cabeça no colchão, os ombros se movendo por conta da risada silenciosa. Ele sacudia a cabeça. Era surreal demais. Falando em voz alta, eu podia entender isso. O motivo de não ter contado mais cedo foi justamente por achar que aquilo havia sido um sonho, uma alucinação, mas não era. O próprio Diabo me prestou uma visita. E eu só conseguia rir de nervoso.

Aos poucos, o riso foi morrendo. Eu descansei a mão sobre minha barriga e rolei de costas, descansando a cabeça contra o travesseiro, encarando o teto. Gregory também secava os olhos, suspirando satisfeito. Nenhum de nós disse nada durante algum tempo.

Eu senti um gosto amargo na boca. Meu rosto se contraía em uma careta de dor.

-Eu acho… - Virei o rosto para encontrar os olhos azuis. - Que minha mãe teve algo a ver com isso.

 

Os primeiros três meses foram os mais gentis. Eu ainda não sabia que aquilo era gentileza, mas céus, como era. Passaram-se dias sem que nada acontecesse. Gregory falava muito sobre a importância de criar uma rotina, independente de onde você viva ou em quais circunstâncias. Quanto piores as condições, mais importante é a rotina. Quanto mais restrita a liberdade, mais restrita é a rotina. E foi isso que fizemos. Dormíamos juntos quase todas as noites, às vezes abraçados, às vezes com um espaço significativo entre nós de que Gregory precisava, mesmo que não quisesse admitir. Falávamos pouco. Éramos acordados sempre por um som estrondoso de música clássica que durava, pelas nossas contas, dez minutos. Assim que terminava, chegava o homem de branco com a primeira refeição do dia. Era sempre algo intragável, difícil de identificar, com cheiro de remédio ou bolor, mas era comida. Não levei nem uma semana para entender a importância de comida, qualquer comida. A minha família e a de Gregory eram distintas dentre as famílias dos revolucionários, nenhum de nós soube o que era crescer passando fome. Não fomos ensinados a lidar com isso, a dominar a mente, a entender as necessidades do corpo acima das vontades.

-Se você não comer, eles vão parar de trazer. - Gregory me disse desde o primeiro dia. - Vão te castigar.

Havia uma câmera no teto da cela. Apenas se livrar da comida não era uma opção. E eu tentei, tentei de verdade, mas enquanto minha resistência era alta e meu corpo estava nutrido, ele se dava ao luxo de regurgitar aquele bolo de sabe-se lá o quê. Se parecia com carne, mas era esponjoso demais. Eu vomitei nas primeiras duas refeições. Então, veio a punição. Durante os próximos três dias, não ganhamos nada além da mesma vasilha com água. Vasilha. Como se fôssemos cachorros. E pouco a pouco, era isso que nos tornávamos.

A parte perigosa era sempre a arrogância. Eu já havia passado tempos consideráveis sem comer nos momentos de fuga, na escassez da casa de Token, eu pensei que soubesse o que era fome. Mas eu não sabia. Eu não fazia ideia. O problema não é o corpo. No segundo dia em que não recebemos nada, Gregory dizia repetidamente que o ser humano aguenta de trinta a quarenta dias sem receber alimento. O problema é o desgraçamento mental. É isso que potencializa a dor nos músculos, no estômago, que te faz sentir tonto o tempo inteiro e te convence que você vai morrer, mesmo que todas as suas reservas estejam cheias. É isso que te deixa inquieto, que te faz andar em círculos para não enlouquecer porque parece que você está sendo comido de dentro para fora, que os seus órgãos estão se consumindo para te manter vivo. Não é isso que acontece. O seu corpo se utiliza da gordura dos músculos primeiro, você praticamente nem chega a perder peso. Três dias não eram nada. Mas três dias foram tudo. Foram mais do que suficientes para eu nunca, nunca mais negar nada do que eles me davam. Para eu engolir qualquer urgência de gorfar, porque aquele bolo grotesco se tornou o nosso único meio de sobrevivência. E a primeira refeição depois do castigo, eu devorei no chão com o rosto enfiado no prato, exatamente como um cão faria. Gregory era muito mais contido. Não reclamou nenhuma vez, como se nada estivesse acontecendo com ele. Não me culpou. Pelo menos não em voz alta.

Assim, integramos o alimento à rotina.

Gregory fazia flexões. Todos os dias, trezentas flexões. Eu contava. Contava, sentado no canto da cela com os olhos grandes e as mãos perto da boca, coçando minha pele por conta das mordidas dos insetos que moravam no colchão. O espaço era imundo, mas imundo de verdade, imundo como nenhum ser humano deveria habitar. Você se acostuma com isso. Você se acostuma com tudo. Com a sujeira em sua pele, com não escovar os dentes, com o confinamento, com a solidão a dois. Ele tentava estabelecer sua rotina para mim também, tentava me fazer levantar e exercitar o corpo naquele espaço minúsculo, tomar banho naquela pia escura com a água amarela que saía dela, tentava me manter funcionando. E deu certo, durante algum tempo. Mas eu tinha pavor de relaxar. Porque uma rotina significava que essa era a minha vida agora, que aquilo era o normal, que nós ficaríamos ali.

Um dia, ele interrompeu as flexões bruscamente e andou aquele espaço mínimo com fúria para chegar até mim, abaixando-se para me segurar pelos ombros, os olhos azuis arregalados e o rosto pingando suor, rangendo os dentes, dizendo:

-O Toupeira vai nos tirar daqui. Tira esse olhar do rosto. Você não vai morrer aqui dentro.

Ele parecia furioso comigo, mas eu sabia que não era isso. Sabia que ele estava tentando me convencer do que ele mesmo não tinha certeza, e a falta de controle o aterrorizava. Gregory não usava a única camisa imunda que tinha para se exercitar, então tinha os músculos do tronco completamente expostos, me lembrando de que ele era maior e mais forte do que parecia.

Dormimos separados naquela noite.

 

Não havia outros prisioneiros, não de onde eu podia enxergar através das barras da cela. Era apenas um corredor escuro, sem sinal de outras celas vazias, apenas homens de branco guardando a nossa existência. Eram dois, mas eles alternavam. Um era grandalhão, rechonchudo e mal encarado, Maury. Era assim que o outro guarda lhe chamava. Quando Maury vinha entregar comida, sempre vinha um pouco mais. Não parecia ter nem dois anos a mais do que nós. O outro devia estar beirando os cinquenta, um homem impossivelmente ruivo (e isso vale algo vindo de mim) com um bigode farto e uma expressão constantemente insatisfeita. Gregory tinha razão sobre a rotina. Ela se forma, queira você ou não. Você conhece os guardas, seus padrões, o lugar, torna aquilo a sua casa. Os sons estranhos que vinham de uma sala distante, como uma serra elétrica que podia, ou não, vir acompanhada de gritos.

Encostado contra as barras de ferro, meu rosto contra a superfície áspera e enferrujada, murmurei:

-Já faz duas semanas. O que eles estão esperando? Por que eles não encostaram mais na gente?

Gregory tomava banho na pia, de costas para mim, esfregando os genitais com água. Não havia mais constrangimento para isso, ou para cagar, ou para qualquer outra coisa. Passamos desse ponto no momento em que eu fui obrigado a assisti-lo sendo torturado. Moralidades pararam de fazer sentido a partir dali. Muita coisa parou de fazer sentido.

-A espera é parte da tortura. - Ele me disse com essa voz silenciosa que eu odiava.

 

Eu estava me afogando, mas não estava. O medo de morrer me consumia junto com a água que me puxava cada vez mais fundo. Eu podia ver a superfície lá em cima, o céu ardendo em chamas através do espelho da água em movimento, mas quanto mais eu nadava, mais longe a superfície parecia ficar. Foi então que percebi: eu podia respirar embaixo d’água. Meus olhos não ardiam pelo sal marinho, eu havia me tornado parte do grande oceano. Foi o primeiro momento em que senti paz. Tudo ficou estático. Tudo. Parei de nadar, parei de lutar, apenas… Apenas deixei que o movimento delicado das águas levassem meu corpo para o nada absoluto, porque tudo em volta era azul. O sol penetrava a água e deixava tudo iluminado. Eu era minúsculo, mas estava tudo bem. Isto é, até abrir meus olhos novamente e me deparar com Standish. Ele estava bem ali, a dois palmos do meu rosto, mas tinha os dois olhos na face e parecia mais jovem do que o homem de que me lembrava. Seus cabelos longos flutuavam sob a água de forma tão bonita, os raios do sol fazendo com que os fios parecessem mais loiros do que eram. Sua barba era farta, tinha um rubor sadio no rosto e um sorriso tranquilo nos lábios. Queria dizer algo, mas eu não entendi. Então, a superfície da água estava tão próxima que pude erguer a cabeça com facilidade e respirar o ar da terra novamente, apenas a cabeça para fora da água. Ele fez a mesma coisa.

-O quê? - Perguntei.

-Você não tá ouvindo?

Quando olhei para o céu, era noite. Eu nunca tinha visto a luz verde da lua brilhando tão forte, sem qualquer camada de poluição que a bloqueasse, nem mesmo uma nuvem naquele céu gigantesco, repleto de estrelas luminosas. Segurei a mão de Standish debaixo da água sem perceber. Na lógica dos sonhos, achei que ele também não perceberia. Eu senti medo de repente. Todo o mar parecia verde sob o brilho intenso da lua. De novo, o chamado. A voz que dizia meu nome.

-Ele te espera, Kyle. Você não vai decepcioná-lo, vai?

Voltei meu olhar a Standish, mas não era mais Standish. Era a mão do Presidente que eu segurava, seus óculos encharcados pela água salgada, um sorriso demoníaco nos lábios.

-Ele vai morrer sem você. - Ele me disse com prazer enquanto eu tentava desesperadamente soltar sua mão, mas não conseguia.

 

Acordei.

 

Na terceira semana, começaram a pegar Gregory de novo. Foi aí que eu comecei a definhar de verdade. Comigo, não acontecia nada. Muray e Harrison – esse era o nome do ruivo, fui descobrir muito mais tarde – vinham, arrastavam Gregory pelos braços, batiam a porta da cela, vinha o silêncio. E eu me sentava diante das grades, no chão, as mãos segurando as barras como se minha vida dependesse disso, esperando. Esperando por gritos, por sons, por qualquer coisa que me dissesse que ele estava vivo, que ele voltaria. Qualquer coisa. Qualquer som.

Eu achava que nada poderia ser pior do que assisti-lo ser torturado, mas por Deus, como eu estava errado. O silêncio… O silêncio era muito, muito, muito pior. O silêncio me fez bater com minha própria cabeça contra a parede de pedra que rasgou a pele fina do meu escalpo onde cabelo voltava a crescer com abundância, fez escorrer sangue pela minha orelha e pescoço, porque o silêncio me comia de dentro para fora e a dor física aliviava. Mas isso só aconteceu depois que chorar se tornou inútil. Eu não chorei pouco. Nas primeiras vezes, chorei até beirar a inconsciência, chorei de raiva e de medo, de pavor da solidão, de pavor pela vida dele. Porque eu estava imerso em um mundo onde só existíamos Gregory, eu e as forças malignas que manipulavam os fios do lado de fora. Eu não havia me esquecido de ninguém, é claro; ainda amava Stan com todo o meu coração, amava Christophe tanto que doía, pensava neles do momento em que acordava ao momento em que deitava minha cabeça no travesseiro. Mas aqui, eles não existiam. Aqui, eles se pareciam muito com uma coisa confortável que eu inventei. Assim como o amor materno, como o abraço do meu irmão, como a mão de Kenny em meu ombro. Aqui, Gregory era tudo. Tudo que eu tinha, tudo que eu era, tudo que me fazia acordar todos os dias e não morder meus próprios pulsos até alcançar a veia certa por genuíno pavor do que eles fariam comigo. Conosco.

Pelo menos assim, eu morreria pelos meus próprios termos.

Mas ele sempre voltava. E cada vez que voltava, parecia um pouco mais trêmulo, um pouco mais apagado, um pouco mais endurecido. Cada dia que Gregory sobrevivia, um pouco da luz dos seus olhos deixava de existir. Era sutil. Sutil o bastante para que nem ele percebesse, ou pelo menos eu pensava. Ele nunca voltava com ferimentos explícitos, porque as coisas que faziam com ele não deixavam marcas na pele. As marcas eram por dentro. Eram no espírito. No psicológico. Gregory se contraía um pouco mais e levava horas para conseguir ser tocado, eu fui aprendendo com o tempo. E eu sabia que ele se continha até o limite para não dar a eles a satisfação dos seus gritos.

Ao mesmo tempo, cada vez que atiravam Gregory de volta ao chão de nossa cela, ele se erguia mais forte. Mais determinado. De forma que chegava a me assustar.

 

Em algum ponto, em um episódio muito vago em minha lembrança, agarrei as barras de ferro e comecei a gritar todo tipo de idiotices. Fiquei com calos na garganta durante dias para me lembrar do ocorrido. Nem sei ao certo o que disse, mas eram coisas em torno de “me peguem também, seus merdas, por que vocês não encostam em mim?! Deixem ele em paz, seus covardes sádicos, vocês já não tiveram o suficiente?!”

É difícil lembrar de um momento em que eu estava completamente fora de mim. Mas uma lembrança muito clara é a dos braços de Gregory envolvendo meu corpo e me puxando para trás com violência, de forma que nós dois despencamos no chão, mas ele amaciou a minha queda. Sua mão cobria a minha boca e as pontas dos dedos apertavam a carne do meu maxilar de maneira descontrolada, seu peito subindo e descendo com desespero, enquanto ele dizia repetidamente:

-Cala a boca, seu imbecil, cala essa boca.

Passamos quase um minuto deitados no chão, parte das costas de Gregory apoiadas na parede, eu encaixado entre as suas pernas, o suor secando em nossa pele, as mãos levando um bom tempo para pararem de tremer. Não houve resposta dos guardas, eles eram treinados a ignorar isso. Então, Gregory se ajoelhou rapidamente e segurou meu rosto assim que eu me sentei, trazendo-me para perto dele, as unhas cravadas nas minhas bochechas. Parecia tão assustado.

-Você nunca mais vai pedir pra eles te machucarem. Nunca mais. Entendeu?

Foi como acordar de um pesadelo. Eu me sentia uma criança novamente, a sensação corrosiva de decepcionar minha mãe e preocupá-la ao mesmo tempo. Assenti devagar com a cabeça, engolindo seco. Ao receber sua resposta, Gregory me abraçou. Apertado, sufocante, a sujeira de nossas peles se mesclando. Os pelos faciais cresciam, eu sentia os dele roçando contra os meus. Seu coração batia acelerado. Eu conseguia ouvir.

 

Eu fingi que não senti medo na primeira vez que eles me pegaram. Me arrancaram da cama, do calor de Gregory, me jogaram no chão para me algemar e me arrastaram pelos braços presos em frente ao meu corpo. Eu ouvi Gregory gritando alguma coisa, mas estavam fazendo exatamente a mesma coisa com ele. Deram-lhe uma pancada na cabeça para que ele ficasse quieto. Lembro de cruzar o olhar com ele enquanto nós dois tínhamos o rosto pressionado contra o piso imundo e frio; seus olhos me asseguravam, me diziam que ficaria tudo bem. E eu fingi não ter medo enquanto me arrastavam pelo corredor que eu nunca tinha visto, tão longo que parecia eterno. A fricção do peito do meu pé contra o chão quase queimava, mas eles não me deixavam caminhar. Meus braços doíam, como se meus músculos já começassem a definhar pelo confinamento. E eu fingi não ter medo quando veio aquela luz branca que fez meus olhos lacrimejarem imediatamente, então apertei as pálpebras e virei o rosto, porque eu não enxergava luz há meses. Dois, três meses? Talvez nem fizesse tudo isso. Gregory contava os dias, de vez em quando eu perguntava, mas parecia sem sentido. O tempo é inventado.

Aquela luz que parecia tão forte era, na verdade, projetada por uma luminária de teto pendurada por um fio. Eu respirava fundo, tentando me preparar para qualquer coisa que viesse, mas a sala não tinha nenhum equipamento de tortura. Me puseram de pé, finalmente. As paredes eram de concreto, havia quatro pequenas telas de TV na parede oposta, uma mesa com uma cadeira no centro da sala. E um homem fardado com as mãos nas costas. Um senhor de pelo menos setenta anos, o rosto gordo o suficiente para parecer que ele não tinha pescoço, a pele flácida e a barba malfeita, cabelos grisalhos nas laterais da cabeça. Um charuto enorme na boca.

-Sente-se, Broflovski.

Minhas pernas trêmulas levaram algum tempo para me obedecer. E eu fingi não ter medo enquanto me acomodava naquela cadeira vermelha de plástico, minhas mãos algemadas em meu colo, os ouvidos abertos e os olhos atentos como os de um falcão. Eu já não tinha mais postura, mas foi um alívio apoiar as costas no encosto, meus músculos agradecendo silenciosamente. Meus ombros pesavam. Meu olhar era duro. Eu sempre tinha uma coriza maldita por conta da umidade daquele lugar. Funguei, sem tirar os olhos do militar à minha frente. Havia um pequeno crachá dourado em seu paletó verde-oliva que dizia “General Plymkin”. Eu já sabia para onde isso caminhava, mas minha expressão era feita de pedra. Não esboçava coisa alguma, com exceção, talvez, dos meus olhos irritados pela luz. As lágrimas nasciam sem que eu pudesse secá-las, mas não eram abundantes o suficiente para deslizar pelo meu rosto, então apenas se acumulavam nas minhas pálpebras.

O General fumava o charuto sem pressa. Os guardas continuavam na porta, eu podia sentir sua presença, apesar de estar de costas para eles. O velho apoiou uma mão na mesa e afastou o charuto da boca, a fumaça dançando lentamente pelo ar. Cheiro de fumaça tinha cheiro de casa para mim. Os cantos dos meus lábios quiseram se erguer porque meu corpo se lembrava de Christophe, apesar de o charuto ter um cheiro de cravo muito distinto dos cigarros dele. Mas eu não sorri, de qualquer forma.

Havia uma pasta amarela sobre a mesa.

-Muito bem. Vamos fazer isso rápido e indolor, que tal? Eu faço as perguntas, você me responde. - Com a mão livre, ele alcançou a pasta que produziu um som irritante enquanto deslizava sobre a mesa até a beirada, finalmente prendendo o charuto na boca para abri-la com as duas mãos. - Assim, nós não desperdiçamos o tempo um do outro. Isso vai ser um problema?

Não respondi. Ele aceitou meu silêncio como um sim, sugando o charuto até que a ponta se iluminasse, retirando-o da boca para soltar a fumaça mais uma vez. Retirou um maço de folhas da pasta, puxando a primeira para bater com ela na superfície da mesa. Era uma foto. Henrietta, talvez dois ou três anos mais jovem, o cabelo muito mais curto. Foi tirada de relance em uma rua escura, mas era nítida o bastante para que eu pudesse ver até os poros do seu rosto. Ela não sabia que estava sendo fotografada.

-Você conhece essa mulher?

Silêncio. Os olhos do General eram quase pretos e me encaravam em expectativa. Ele apagou o charuto na mesa antes de guardá-lo no próprio paletó, passando a língua pelos dentes. Eu olhava diretamente para ele, sem encarar a foto de Henrietta. Veio outra em cima: uma foto em preto e branco de Michael em um dos confrontos de rua, enquanto ele puxava a bandana enrolada no rosto para gritar alguma coisa. Era uma linda foto, na verdade. O fundo desfocado com chamas subindo, pessoas correndo, seu rosto reluzindo determinação como era raro de ver. Lentamente, meus olhos escanearam a fotografia e voltaram ao General.

-Você conhece esse homem? - Me perguntou com firmeza, empurrando a fotografia para mais perto de mim. A lâmpada sobre nós refletia na superfície da foto.

Respirei fundo e ergui meu queixo para encarar o velho com olhos vazios.

-Esse é o Corvo. Ele é da sua unidade? Sabe me dizer o nome dele? - Ele prosseguiu.

Eu nem sequer pisquei. O General sorriu por um segundo, estralando o próprio pescoço antes de espalmar as duas mãos sobre a mesa de madeira e se inclinar para mais perto de mim.

-Escuta aqui, garoto. - O tom de voz do homem, surpreendentemente, não parecia ameaçador. Nós nos encarávamos de perto, a ponto de eu poder sentir o bafo de charuto que vinha da boca dele. Seus dentes eram amarelos e a pele era marcada por minúsculos buracos. - Você tem direito de não dizer nada, eu não posso te obrigar. Mas é bom que você entenda as consequências. Eu não estou pedindo pela localização de ninguém, eu estou perguntando se você é da mesma unidade que essas pessoas. Eu vou perguntar de novo. - Ele segurou a foto de Michael e a aproximou do meu rosto. - Você conhece esse homem?

Até os movimentos da minha respiração eram curtos. E enquanto isso, o tempo inteiro, eu fechava meus punhos para fazer minhas mãos pararem de tremer debaixo da mesa. Porque nessa época, eles ainda não haviam quebrado o meu orgulho por completo. O General ofereceu um suspiro impaciente e assentiu com a cabeça, afastando as duas fotografias. Eu continuei a encará-las na beirada da mesa durante algum tempo, contendo a ardência dentro do meu próprio peito. Segurei o ar nos pulmões e não me movi.

-Certo. - Ele começou a procurar entre as fotos por alguma específica, franzindo as sobrancelhas grossas enquanto pensava. Enfim, encontrou o que estava procurando. Retirou aquela imagem familiar e a colocou no centro da mesa para mim. Eu encarei meu próprio rosto congelado na fotografia. Meu estômago ficou pesado e um arrepio percorreu minha espinha diante da cena familiar que assisti na televisão da casa de Token, poucos meses atrás. Parecia uma eternidade. Eu mal reconhecia aquela pessoa. O desespero em meu rosto, as lágrimas que molhavam minhas bochechas, a boca aberta que gritava… Apesar de ser uma foto, eu sabia exatamente o quê. “Tweek”. E atrás de mim, me segurando em seus braços e me puxando para trás, eu enxergava o rosto de Christophe. Não encarei o General dessa vez. Meus olhos continuaram imersos na fotografia. - Ah, seria irrelevante perguntar se você conhece esse homem, não seria?

Eu cometi um erro. Mesmo que por alguns segundos, cometi o erro de deixar que o homem à minha frente enxergasse fraqueza em mim. Apertei meus olhos úmidos, ainda sem levantar a cabeça, forçando os punhos fechados ao extremo. Nada mais existia, nada além daquela foto. O cheiro de charuto ficou mais forte, mas eu não precisaria disso para saber que ele voltava a se inclinar para perto de mim, agora como um predador espreitando um animal ferido. Sua sombra me cobria. As pontas dos seus dedos tocaram a foto.

-Você sabia que esse desgraçado é responsável por três ataques terroristas na Europa? Dois na Inglaterra, um na França. Bombas que o Toupeira plantou pessoalmente. Ele adentrou a nossa nação com uma identidade falsa, mas algo me diz que você sabe o nome verdadeiro dele. Então me diga, Broflovski. Apenas me diga o nome dele.

Eu queria tocar a foto. As palavras do General pareciam um grunhido distante de uma língua que eu não falava. Quando movi minhas mãos, lembrei que elas estavam presas. Fechei os olhos durante alguns segundos.

-Sabe, eu não quero te machucar. - O General endireitou um pouco o tronco, espalmando as mãos afastadas na mesa. Seu olhar queimava sobre mim. - Eu não gosto de machucar crianças. Eu não tiro nenhum prazer sádico disso, como vocês rebeldes sempre parecem pensar. Eu cumpro com as ordens que me são designadas, eu não quero que isso fique mais feio do que já é. Eu sei que você se enfiou num buraco sem saber qual era a profundidade, mas eu posso te oferecer uma saída, filho. Eu posso imaginar o que eles fazem com traidores de onde você vem. Eu te coloco num avião pra fora do país, te ofereço abrigo político aonde você quiser, contanto que você me ajude a limpar um ninho. A prender criminosos.

-Você… - Eu murmurei sem vida, piscando algumas vezes enquanto aquela foto parecia se mover diante dos meus olhos. - Você sabe o que estava acontecendo quando captaram essa imagem?

Surpreso, o General se endireitou. Fez sinal para que um dos homens de branco trouxesse uma cadeira que estava no canto da sala. Sentou-se à minha frente, parecendo pateticamente entusiasmado por conseguir algum tipo de reação, indisposto a perder isso.

-Por que você não me conta?

Fiz uma pausa demorada. Ergui meus olhos pesados para encarar o homem do outro lado da mesa.

-Eu estava vendo meu amigo de infância ser pisoteado. As pessoas passavam por cima dele… E cada uma fazia com que ele se parecesse mais e mais com uma pasta que nunca foi gente, que nunca existiu. - Umedeci meus lábios rachados, franzindo um pouco o nariz, descendo o olhar pouco a pouco para encarar minha própria expressão. Minha voz era fraca e arrastada. Eu abria e fechava meus dedos, tentando não me esquecer de como respirar. Eu não podia chorar. Me recusava a chorar. Tomei fôlego e segurei o ar até reprimir a vontade de transbordar pelos olhos. - Sabe o que o Toupeira está fazendo nessa foto? Ele… Mesmo baleado, mesmo mal conseguindo ficar de pé, estava me impedindo de correr para o meio da multidão e ser pisoteado até a morte também.

-Baleado? O Toupeira está morto?

Fechei meus olhos por não mais que um segundo, deixando que um pingo de dor transparecesse em meu rosto.

-Sabe, General, eu não estou dizendo isso para que o senhor sinta pena ou tenha misericórdia. - Eu não sabia de onde vinha aquela voz gentil de dentro de mim, mas ali ela estava. Eu podia sentir a cicatriz em meu rosto quando encolhia a bochecha, separando os lábios para deixar que as palavras viessem sozinhas. - Eu estou dizendo isso porque… Porque o senhor parece um homem bom. - Eu nunca sorri um sorriso tão triste quanto naquele momento. - O senhor parece um pai, um avô, talvez… Que provavelmente ama muito a sua família e diz a si mesmo todos os dias que está fazendo a coisa certa porque isso é parte do trabalho. O senhor está prestes a me fazer passar as horas mais infernais da minha vida, não pense que eu não sei o que vai aparecer naquelas telas. - Sinalizei com a cabeça. Olhava diretamente nos olhos do homem agora. Ele me encarava com o maxilar tenso e a expressão como a de uma estátua. - E mesmo assim, eu não demonizo o senhor. Não mesmo. É só o trabalho. Machucar filhos de alguém, netos de alguém, convencer-se de que é pelo bem da Nação, eu entendo o senhor. Porque eu também sou uma pessoa boa, General, ou eu acho que sou. Eu não vou dizer nada. O meu companheiro não vai dizer nada. Você vai ter que nos matar, porque nós estamos fazendo o nosso trabalho. Faça… Faça o seu trabalho, General, e deixe que eu faça o meu.

Ele demorou para reagir. Tinha as mãos unidas em frente ao rosto e me estudava como o estrategista que era; seus olhos pequenos pareciam úmidos enquanto ele limpava a garganta e empurrava a cadeira para trás, se reerguendo.

-Muito bem. Podemos começar, então.

E as telas se iluminaram com um close de quatro ângulos diferentes. Um homem de branco segurava Gregory pelos cabelos e mergulhava a sua cabeça em um barril cheio de água escaldante. Não o suficiente para queimar, mas o forçavam por tempo o suficiente para ele pensar que se afogaria. E, logo antes que ele desmaiasse, puxavam-no pelos cabelos de volta à superfície, gritando no rosto dele:

-Quem financia a organização?!

Eu trouxe minhas mãos algemadas ao meu rosto e cobri minha boca com dificuldade, apoiando os cotovelos na mesa, aceitando minha punição. Engolindo o choro. Fazendo meu trabalho. Porque Gregory… Gregory passava pelo inferno real. Gregory aguentava a tortura, a dor, os joguinhos, os testes, e tudo o que eu precisava fazer era calar a boca. Isso não impedia a dor corrosiva em meu peito, a vontade de vomitar por toda aquela mesa, não impedia o ar de faltar aos meus pulmões, as lágrimas de arderem meus olhos, mas a presença de um militar naquela sala pequena fez com que eu reprimisse esses impulsos com toda a minha alma e apenas aguentasse. Apenas aguentasse assistir ao homem de branco mergulhar Gregory no barril repetidamente, até fazê-lo gritar, até fazê-lo se contorcer.

-Você ama esse rapaz. - O General me disse. - Está nos seus olhos. Você pode interromper essa barbárie quando quiser.

Eu não desviei os olhos da tela um segundo. E cada segundo desses consumia também a minha dignidade, o meu respeito por mim mesmo, cravava em mim uma culpa que estaria comigo para sempre.

 

Os dias passavam. Os interrogatórios se repetiam. E pareciam ficar cada vez piores. O General me perguntava:

-Como vocês conseguem dinheiro?

E Gregory se encolhia contra a parede de concreto, completamente nu e imundo, recebendo um jato destruidor de água contra a pele durante horas a fio.

-Quais são seus contatos dentro do Governo canadense?

E Gregory levava ondas de choque elétrico nas mãos, no saco, no rosto.

-Onde fica a sede de vocês?

E eles arrancaram os molares de Gregory com um alicate. Depois, as unhas do pé. Depois, alfinetes embaixo das unhas das mãos.

-Onde estão Terrance e Phillip?

E eu passava as mãos algemadas por cima da cabeça para cobrir as orelhas com meus braços, encolhendo-me na cadeira, prestes a enlouquecer se o ouvisse gritar por mais um segundo. E Gregory segurava os gritos, segurava até um limite humanamente possível, o que tornava tudo ainda pior quando ele começava a ceder. Porque a dor devia ser algo além do suportável.

Às vezes, eu começava a falar sem parar apenas para distrair meu próprio cérebro. Era nesses momentos que eu tinha certeza de que começava a perder a sanidade, porque passei três horas balbuciando sobre a saudade que eu tinha de comer comida de verdade, de comer cachorro-quente, da barraquinha em que meu pai comprava cachorro-quente para mim quando eu era criança. E o General trocou com os homens de branco um olhar muito claro que dizia: ele está começando a quebrar. Era verdade. Eu estava.

 

E depois de cada interrogatório, eles me deixavam tomar banho. Soltavam minhas mãos, me colocavam em um banheiro imundo com um chuveiro sem cortina ou box, me davam um pedaço de sabonete e cinco minutos de água quente, toalha limpa, choro escondido. Era um banheiro com ladrilhos de azulejo português quebrados, sujos, um chão amarelado que, um dia, devia ter sido branco. Não havia pia, apenas uma privada imunda onde eu vomitava quase toda vez. O sabonete era pequeno e não fazia muita espuma, mas servia para lavar meu cabelo que já voltava a crescer. Depois, me davam roupas limpas para vestir. Me algemavam novamente, faziam a minha barba e me levavam de volta para a cela, onde eu sempre encontraria Gregory como um farrapo humano, a barba crescendo, a mesma roupa já rasgada, trêmulo, fechado, forte como uma muralha. Queriam que eu fosse grato por isso.

 

As ondas do mar começavam a me enlouquecer.

 

-Quem você acha que…? - Perguntei uma noite, deitado na cama de Gregory enquanto ele me abraçava por trás, seu rosto escondido nas minhas costas. Eu sussurrava, encarando coisa nenhuma, meus braços esticados para fora da cama. Não havia mais vitalidade em mim.

Ele se mexeu um pouco para mostrar que havia me escutado, pedindo silenciosamente para que eu terminasse a frase.

-Quem você acha que nos colocou aqui? - Repeti, respirando fundo.

Milhares de nomes passaram pela minha cabeça, mas eu não consegui abraçar nenhum. Porque se eu estivesse errado, era uma acusação vergonhosa demais até mesmo dentro do meu próprio cérebro. Era muito grave, muito além da minha capacidade de compreensão. A pergunta, entretanto, nasceu da necessidade de ter a quem culpar. Gregory sabia disso. Retirou o braço de entorno do meu corpo.

-O Governo dos Estados Unidos nos colocou aqui. O resto… Todo mundo só está tentando sobreviver.

-Não. - Rolei de barriga para cima, encarando-o no escuro da cela que já parecia tão natural aos meus olhos. Eu enxergava melhor aqui do que na luz. - Olha o que eles estão fazendo com você. E você não abre a boca, a gente não abre a boca, não importa o que eles façam. Não tem nada nesse mundo que justifique trair os seus.

-Você está com raiva. - Gregory concluiu de olhos fechados, sonolento, de forma casual.

-Muita! - Eu disse mais alto para que ele, pelo menos, olhasse para mim.

Funcionou. Os olhos de Gregory pareciam cada vez mais claros, quase como gelo, conforme tinham a vida sugada deles. Ele se apoiou no cotovelo para erguer a cabeça e apenas me observou durante alguns instantes, e eu imediatamente me arrependi de ter trazido o assunto à tona. Porque ele parecia exausto de tudo. Só queria dormir.

-Quem quer que tenha feito isso… Eles já tiraram o suficiente de você. Para de pensar nisso.

E eu dei a única resposta aceitável: assenti com a cabeça, retomando a posição anterior, ficando sozinho com meus próprios pensamentos. Não dormi aquela noite.

 

Amanhã seria 26 de maio. Meu aniversário de vinte anos. Eu não fazia ideia de porque isso me deixava tão emotivo, porque uma bobagem dessas me faria chorar tanto, era apenas mais um dia como qualquer outro. Mais um dia qualquer perdido nesse amontoado de tempo sem sentido dentro da prisão. E no entanto, eu não conseguia fechar a merda da torneira que abri quando me dei conta de que era meu aniversário. Talvez já tivesse passado da meia noite, eu não fazia ideia, não havia qualquer meio de enxergar o mundo lá fora. Eu começava a me esquecer de como era o sol, de como era a chuva. Só havia aquelas quatro paredes, e quando saíamos delas, havia o inferno. E era aqui que eu passaria meu aniversário. Talvez o choro tenha vindo, não pela data em si, mas pela realização de que eu passaria o resto da vida nesse lugar. De que não havia perspectiva para nós, não havia o que esperar, ninguém estava vindo. Ninguém.

-Kyle. - Eu ouvi uma voz rouca e suave me chamar. Estava virado para a parede em posição fetal, de costas para Gregory, e assim permaneci.

-Eu n-não quero deitar com você. - Soltei em uma voz espremida, os soluços interrompendo a minha capacidade de falar, exatamente como um choro de criança. - Eu s-só quero ficar sozinho, por favor.

-Tem certeza? Você vai perder o bolo.

Franzi o cenho, esfregando a minha cara molhada e inchada antes de rolar de barriga para cima e me apoiar nos cotovelos para enxergá-lo. Minha cara era próxima demais do teto para que eu pudesse me sentar. E lá estava Gregory, na escadinha do beliche, segurando um… Um amontoado de bolinho de carne com um fósforo esperado no meio, aceso. Demorou para que eu entendesse o que isso significava. O sorriso veio contra a minha vontade, quase em um riso incrédulo, mas meus olhos se encheram ainda mais. Cobri a boca com as duas mãos, sugando o ar de forma ansiosa, sem fazer ideia do que dizer.

-Como é que você…?

-Você não faz ideia das coisas que eu tive que fazer pra conseguir um fósforo nesse lugar. - Ele me ofereceu um sorriso de canto, machucado, o rosto ainda inchado por conta da extração dos dentes do fundo. - Feliz aniversário. Faz um pedido e assopra a vela.

-Como você conseguiu esconder isso até agora?

-Só assopra a porcaria da vela. - Ele me respondeu rindo, oferecendo aquele punhado triste de carne com as mãos. E era… Grotesco e a coisa mais bonita que eu já vi em toda a minha vida. Um resquício de alegria, um fiozinho de esperança, um carinho de alguém que eu considerei sempre tão frio. Eu me arrastei para perto dele, deitando de barriga para baixo agora, o tronco erguido com o apoio dos cotovelos.

Nós trocamos um sorriso fraco, aquela chama tímida dançando no meio, iluminando nossas faces. Um pedido. “Parem de machucá-lo”. Esse foi meu pedido. E eu assoprei, até que a luz do fósforo despareceu e nós voltamos ao escuro que nos era natural. Nenhum de nós dois se moveu.

-Não acredito que você fez isso. - Eu murmurei. Já não tinha mais vontade de chorar. Queria abraçá-lo, mas ele estava de pé na escada e o ângulo não permitia. Sem falar que… Abraços não eram exatamente do nosso feitio. Conchinhas silenciosas eram mais o nosso lance. Gregory encolheu os ombros.

-Todo aniversário precisa de um bolo.

Eu estiquei o pescoço até encostar minha testa na dele, segurando sua nuca com força e apertando de forma afetuosa, fechando meus olhos. Ele pareceu surpreso por um instante.

-Eu odeio dizer isso… - Sussurrei. - Mas de todas as pessoas do mundo, que bom que você está aqui.



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