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História Liberté - A Euforia


Escrita por: caulaty

Capítulo 51 - A Euforia


13 de junho de 3660

 

Eu preciso de um descanso. Você não precisa? Depois desse violento mergulho em uma parte tão turbulenta de nossa história, sugiro que voltemos nosso olhar para uma época mais gentil, em que os traumas já parecem mais distantes (alguns deles, pelo menos) e desejos de uma vida inteira são, enfim, saciados. Merecemos isso, para que você não pense que tudo nessa jornada é terrível, porque não é. Realmente não é. Antes de seguirmos em frente, permita-me fazer uma pergunta: você tem a sensação de que o pior já passou? Bem, talvez isso seja uma questão de ponto de vista. Eu sou suspeito para falar, pois em nossa linha de acontecimentos no passado, eu vou morrer logo ali à frente. Eu me pergunto se você vai chorar. Se você se importa comigo em vida. Não fique aflito, sei que você também não pode responder a essa pergunta, e tudo bem. De qualquer forma, espero que você chore bastante. Minha morte foi, afinal de contas, um evento horroroso para aqueles que são vivos. Presumo que você seja.

Sabe, morrer dói. Dói bastante. Nunca deixe que algum narrador-fantasma fajuto o convença do contrário.

Mas nada disso importa. Vamos a Kyle e Christophe, a esse pequeno gosto de felicidade que eles experimentam antes que suas vidas se compliquem em 3660. Porque isso também está a caminho.

Agora, eles estão bem. “Felizes”, eu ousaria dizer, e essa é uma palavra que não pode ser utilizada com banalidade quando se trata desses dois homens que, verdade seja dita, não esperavam mais ser realmente felizes. Eles buscavam conforto, serenidade, força, as coisas importantes. Antes de se reencontrarem, vagavam por esse planeta prezando pela sanidade mental e integridade física, cada um à sua maneira. Não eram incompletos, não se sentiam incompletos. A presença de um na vida do outro não mudou nenhuma de suas angústias, não deu sentido à vida, não deixou as cores do mundo mais vivas. Não é esse tipo de amor. Não é ilusório. O que mudou de verdade, se você me perguntar, é o fato de que tanto Kyle quanto Christophe construíram muros tão grossos e altos ao seu redor que não se lembravam mais do que era ser tocado em sua parte mais frágil, macia, quente e humana. A parte que não é a armadura de guerrilheiro, que não é rígida e forte, a parte tão protegida que eles se esqueceram de como ela era. Um não tem que pedir licença ao outro para adentrar a concha. Eles não têm outra escolha senão abaixar suas defesas, pois é isso que seus corpos pedem, exigem naturalmente.

Eu não posso contar a você sobre todas as vezes que eles se amaram entre os dias 26 de maio e 13 de junho, pois eu passaria uma vida inteira aqui tentando mostrar cada nuance, já que todas elas parecem igualmente importantes. Posso contar brevemente sobre um dia qualquer em que eles transavam no quarto meio escuro pelo fim da tarde, com a porta aberta e as cortinas fechadas, Kyle sentado no colo de Christophe, que também tinha o tronco erguido porque não conseguia parar de beijá-lo por nada nesse mundo. Havia tanto suor, tantas mãos percorrendo todas as partes, tremores baixos e grunhidos fortes. Kyle nem percebeu quando começou a chorar; sentia a face úmida roçando contra a de Christophe tão lentamente, a ponto de não saber mais onde começava sua pele e terminava a do outro, e assim eles pareciam um só. Kyle só se deu conta de que estava chorando quando a mão pesada de Christophe envolveu sua nuca, apertando de maneira excessivamente carinhosa. Kyle percebeu o brilho preocupado no fundo daqueles olhos de cor maldita, cor indefinível, um verde que queria ser castanho com aqueles caminhos dourados pela íris, como um universo inteiro dentro dos olhos de alguém. Aqueles olhos lhe deram ainda mais vontade de chorar, e agora era perceptível. Ele sentiu vergonha, porque era isso que sempre sentia quando chorava. Tentou esconder o rosto na curva molhada do pescoço de Christophe, mas aquela mão desgraçada em sua nuca não deixou que ele se movesse. E nem era através da força, era apenas o peso daquele toque.

Qualquer outro homem nesse mundo teria agido errado, era o que Kyle sentia em seu peito. Qualquer outro homem teria perguntado o que não devia, o que não tinha resposta, teria interrompido, teria se assustado. Mas Christophe, tão errado em todos os sentidos, continuava segurando Kyle em seus braços com o mesmo desejo, continuava tão rígido e tão fundo dentro dele, pulsando ainda mais forte agora, enquanto deixava que sua testa tocasse a de Kyle devagar. Roçou o nariz pelo dele, pesando as pálpebras até se fecharem. Não tentou secar suas lágrimas. Deixou que elas existissem, que se mesclassem ao suor deles. Apenas o apertou em seu abraço e sussurrou:

-Deus…

E então o beijou com tudo o que tinha. E de todos os beijos que aconteceram antes, entre eles ou não, em toda a vida de Kyle, nunca havia sido beijado daquela forma. Com aquela necessidade. Com aquele amor que ardia. E era exatamente isso que o fazia chorar. O alívio, o desespero de sentir uma coisa tão forte. Ele quase soluçava enquanto segurava o rosto de Christophe em ambas as mãos, puxando-o contra si o quanto fosse humanamente possível, chorava e beijava na mesma intensidade desenfreada. Christophe avançou para deitar por cima dele, cobrindo-o com seu corpo.

Veja bem, como conto essas coisas no passado, você já deve saber que elas não acontecem nesse momento. Foi em algum dia desses, algum dia que parecia parte de um grande momento único e esticado em diversos outros dias, porque desde que se enroscaram pela primeira vez, nunca se largaram completamente. Christophe é esse redemoinho que carrega tudo o que Kyle é, que lhe consome toda a energia mesmo sem tentar. Mesmo quando estão fisicamente separados, Kyle não se sente longe dele. O cheiro de Christophe sempre parece estar em suas roupas. Mais do que isso, seu calor já fazia parte da pele de Kyle, como uma camada protetora à qual ele podia se agarrar quando estava longe dele.

Parece exagero, e é mesmo. É um amor exagerado.

Bem, as coisas mudam bastante depois que Christophe passa a dormir na cama de Kyle. De certa forma, se torna a cama deles, um espaço onde todas as barreiras se diluem, todos os medos desaparecem e eles se esquecem de que já estiveram separados um dia. Não é engraçado, isso, depois de tanto tempo que viveram sem sequer saber como era o gosto um do outro? E agora, não conseguem mais entender como conseguiam respirar e existir longe. Se acostumam tão fácil ao calor, à saliva, ao afeto, à pele, ao abraço para dormir. Duas pessoas tão singulares, tão individuais, que nunca se imaginaram dividindo o mesmo espaço com um outro corpo. Deus, a sede que eles têm, eu gostaria de poder explicar. Mas acho que é o tipo da coisa que se precisa sentir. E é preciso ter corpo para isso, coisa que eu não tenho mais.

Em algum momento nos últimos catorze anos, Kyle se convenceu de que a ardência que sentia por Christophe só permanecia tão intensa porque nunca foi saciada, nenhuma vez, e era isso que a alimentava; a ideia, a dúvida, uma coceira que desapareceria caso fosse aliviada. Mas não é o caso. Porra, como não é. Ele sabe disso agora. Quanto mais mergulha em Christophe, mais desesperadamente deseja – precisa – mergulhar, mais arde, mais queima. Quanto mais Kyle o beija, mais precisa beijá-lo. É a primeira coisa que ele faz quando acorda, às vezes nem bem consciente ainda, mas seu corpo já sabe que quer beijá-lo, só procura a posição certa entre os lençóis para se enroscar a ele. É quente, tudo a respeito de Christophe é quente.

Mas chega de contar. Deixe que eu lhe mostre.

 

Kyle ainda não está bem acordado. Já tomou consciência algumas vezes, apenas para se remexer até encontrar a posição mais confortável, colado ao corpo de Christophe, escorregando novamente para o descanso. Ele não dormia bem assim há alguns anos, seu corpo já tão acostumado ao estado constante de alerta das épocas de guerrilha que já não sabia mais como apagar. Dormir é algo que se aprende. No entanto, aqui estava ele, dormindo como um filhote de bezerro, tão contente e satisfeito, seguro o bastante para desligar suas defesas, perfeitamente entregue. Há uma dorzinha entre suas nádegas, um inchaço, uma ardência de quando Christophe esteve dentro dele seis horas atrás. E ele gosta. Geralmente, estaria irritado por acordar com o calor de um homem grande ocupando sua cama, mas quando rola para o meio do colchão, espreguiçando-se, sente o nariz tocar os fios do cabelo de Christophe e sorri, mesmo que dormindo. O cheiro de Christophe faz seu corpo sorrir.

Kyle roça o rosto contra a parte detrás da cabeça dele, gemendo com preguiça, esticando o braço sobre as costas de Christophe para abraçá-lo como se ele fosse um travesseiro. Quase apaga por completo novamente, porque é tão quente sob a coberta, confortável como um útero materno. Christophe, deitado de bruços, está bem acordado porque nunca dorme de fato. Especialmente aqui. Acorda de duas em duas horas, sempre, às vezes de forma brusca, às vezes sutil, desacostumado a dormir com outro corpo junto ao seu. Por mais deliciosa que seja a sensação, por mais que deseje isso, seu corpo estranha e rejeita. Então ele aceita. Aceita que o sono não será pesado, porque raramente é, com ou sem Kyle ao seu lado. Quando olha o rosto adormecido de Kyle no escuro, muitas vezes até sorri. E se não sorri, seu coração sempre se aquieta.

Grunhindo baixo, ele se vira de frente para o Kyle, que tem os olhos fechados e a mente distante, inconsciente. O Toupeira sente vontade de tocá-lo, mas também deseja tanto suspender esse momento para que dure uma eternidade. Só isso, estar aqui observando Kyle imerso nesse momento entre dormir e acordar, tão dolorosamente vulnerável, tão bonito que os pulmões de Christophe se apertam, se doem, e é assim que é. Ele atinge o limite da vontade e transborda, como se um cabo arrebentasse de repente, incapaz de segurá-lo. Avança entre os cobertores, rastejando para baixo, movendo o colchão com seu peso. Ele é um homem-animal, você já sabe, que fareja esse corpo adormecido com fome, até encontrar as nádegas macias nas quais ele quer cravar os dentes, mas ainda não crava. Apenas roça. Delicado, mas com vontade. Christophe faz poucas coisas delicadamente, mas algo acontece entre os dois que desperta nele o impulso de fazer tudo devagar e bem sentido, deliciando-se de cada pedaço.

É isso que ele faz com a língua, não imediatamente no ponto em que almeja chegar, sentindo a carne firme da parte interna da nádega deslizando pelas papilas, gemendo tão baixo com o gosto que o som é inaudível, abafado pelas cobertas. Mas ele respira profundamente, respira o cheiro do suor e de sexo que continua na pele de Kyle. Só por isso, só por esse momento de quase-lá, essa provocação invadindo as narinas, seu pau semirrígido endurece completamente, roçando contra o tecido macio que cobre o colchão enquanto ele remexe as pernas, ajeitando-se.

Quando Christophe mergulha, a boca aberta para abocanhá-lo de uma vez, os dedos adormecidos de Kyle acordam para agarrar o lençol. Suga o ar pela boca, apertando os olhos que permanecem fechados, franzindo a sobrancelha em uma expressão muito sutil de prazer, prazer quente e molhado que nasce aos poucos. Christophe não ataca com força, não assim, não de primeira. Suas mãos acariciam mais do que apertam, mas fazem pressão o suficiente para separar as nádegas, abrindo espaço, empurrando o rosto contra o calor de Kyle como se fosse o único lugar ao qual ele pertencesse. Talvez seja. Ali, entre as coxas de Kyle, entre as nádegas que o recebem como se fossem dele, só dele, de mais ninguém. Christophe não experimentou pertencimento muitas vezes em sua vida. É aqui que ele entende o que é estar no lugar certo, tudo em equilíbrio e o resto do mundo que se foda.

Não chupa com força demais para não arrancá-lo do estado do sono de maneira busca. Escorrega a mão sem pressa alguma pela curva da bunda de Kyle até encontrar sua lombar, e é ali que a mão descansa com uma leve pressão. Ele vira a cabeça, passando a língua dolorosamente devagar do períneo até o cóccix, a boca aberta como a de um lobo devorando a carne, mas sem a mesma agressividade. Sua outra mão aperta a coxa de Kyle, a carne sensível cheia de marcas que aqueles mesmos dedos fizeram, talvez na noite anterior, talvez na anterior a anterior, talvez em qualquer uma das outras descuidadas vezes em que eles se amaram.

É assim que Kyle acorda. E acontece muito. Às vezes de manhãzinha, antes do sol nascer, ou já perto do meio dia, ou na alta da madrugada quando o mundo inteiro dorme. Seu corpo já está acostumado, já espera por isso. Kyle geme com um suspiro, esticando as pernas, usando o apoio dos joelhos contra o colchão para impulsionar o quadril para trás, de leve, sentindo a boca que o consome. Esfrega a bochecha no travesseiro, abre os olhos e sorri um sorriso tão bonito que eu sentiria vontade de morrer, se já não estivesse morto.

-Shhh, sh, sh. - Christophe murmura ao sentir a inquietação dele, usando a mão em sua lombar para acariciá-lo.

Como se para desafiar a ordem, o violento barulho do telefone invade o quarto. Christophe não para, não imediatamente, pois sabe que essas coisas precisam ser feitas devagar. Deixa que a língua circule, envolva, saboreie enquanto Kyle solta um grunhido de infelicidade e enfia a cara no travesseiro. Mas logo ri, porque está feliz demais para não rir. E ao mesmo tempo, espreguiçando-se, ele estica a mão para tatear o criado-mudo até encontrar o gancho do telefone.

-Não para. - Murmura de forma lasciva e preguiçosa, sentindo Christophe sorrir contra a sua carne. A contragosto, Kyle tira o telefone vermelho do gancho e o leva até a orelha, fechando os olhos novamente, mordendo o lábio pela sensação quente e úmida que sobe pela sua pélvis. - Alô?

-Olá. O meu nome é Gregory, eu estou ligando pra saber se Kyle Broflovski está vivo ou morto. Você tem notícias?

Kyle dobra os cotovelos para erguer um pouco o tronco, segurando o telefone entre o ombro e a orelha, esfregando os olhos inchados de sono. Nesse meio tempo, Christophe afasta o cobertor que lhe cobria a cabeça, enxergando o corpo de Kyle sob a luz que entra pela janela. Não afasta a boca, nem por um segundo. No fundo, ele se delicia com a sensação desse corpo tenso, contraindo os músculos para que sua voz saia adequada.

-Que gracinha, você. - Kyle responde, nem se dando ao trabalho de colocar sarcasmo na voz. Separa os lábios e suga o ar pela boca, segurando um gemido e apertando os olhos quando sente a língua de Christophe contornando a sua entrada, aquelas mãos fortes que o seguram e o provocam ao mesmo tempo.

-Ah, você acha que é brincadeira? Pois fique sabendo que não.

-Você me viu esses dias!

-Sim, da última vez que você apareceu pra trabalhar. Há quatro dias.

-Já tá com saudade de mim?

Christophe vira o rosto e desliza a língua pela nádega esquerda de Kyle, agora sim cravando os dentes de leve, subindo o olhar para enxergar bem a reação que isso causa nas costas dele, o tremor leve que Kyle tenta conter. Christophe chupa um dedo – o indicador – e começa a circular o anel muscular que se contrai com o estímulo, tão leve que quase dói. Kyle recua com o quadril para frente, sua respiração alterada agora, soltando um gemido fraco seguido de uma risada.

-Você tá transando? - Gregory pergunta. Não há julgamento, ofensa ou escândalo em sua voz. É apenas uma pergunta.

-Você diz no geral ou agora, especificamente?

-Meu Deus, Kyle.- Enquanto diz isso, Gregory despeja café quente em uma xícara branca. É possível ouvir o barulho. - Deixa eu falar com o Toupeira.

-Ele está indisposto.

-Kyle.

Com um grunhido insatisfeito, Kyle deixa a cabeça cair para frente por um momento e se vira de lado, afastando forçosamente a boca de Christophe da sua pele. Estende o telefone a ele, o que faz o Toupeira franzir a testa. Mas pega o aparelho, apoiando o braço na lateral da coxa de Kyle.

-O que é?

-Devolva o meu funcionário.

Christophe sorri. É um dos seus sorrisos discretos, no canto dos lábios úmidos, e o sorriso em si está mais nos seus olhos do que na boca, na maneira sutil com que ele corre o olhar pelo corpo de Kyle antes de responder:

-Eu ainda tô usando.

Gregory solta uma gargalhada ao ouvir o som de um tapa do outro lado da linha. Dificilmente Gregory ri com essa espontaneidade, mas ainda está em casa, com as roupas de dormir e o cabelo bagunçado, parado em sua cozinha com o cotovelo apoiado no balcão e a mesa posta para tomar café da manhã sozinho. É uma bela mesa, com um vaso de vidro no centro e duas flores brancas, uma louça antiga que foi comprada em sua última viagem à Europa.

-Isso não se configura como sequestro?

-Eu vou devolver quando eu terminar, Gregory.

-Você é horrível. - Ele responde com afeto, mais no rosto do que na voz. Mesmo assim, Christophe o conhece bem o suficiente para sentir.

Kyle arranca o telefone do ouvido de Christophe.

-Eu vou trabalhar hoje. - Diz, deitando-se de costas, sorrindo largo quando Christophe se acomoda sobre ele e começa a farejar seu pescoço. Sim, farejar. Eu não tenho outra palavra melhor.

-Não me faça ir te buscar em casa. Eu não quero ver o coito de vocês.

-Tchau, Gregory. - Kyle diz rindo antes de desligar o telefone.

E há algo curioso sobre a maneira com que eles se olham em seguida. Christophe ergue o pescoço, apoia os braços para que o peso de seu tronco não caia completamente sobre Kyle. Eu gostaria de conseguir explicar o carinho nos olhos desse homem, como se esses espectros dourados na sua íris ficassem mais reluzentes, a cor verde-castanha muito mais viva, ainda que seu rosto continue exatamente igual. Essa maneira de olhar sempre pega Kyle de surpresa, faz seu coração bater um pouquinho mais forte. Porque é tão carnal, animal e genuíno, como se Christophe estivesse despido de qualquer defesa quando o olha dessa forma.

Kyle não se move, como se tivesse medo de acordar de repente e ainda estar na prisão. De acordar e ainda ser um garoto de vinte e poucos anos, na época em que a cicatriz nas costas e no rosto ainda eram vivas e pulsantes, na época em que o Presidente era vivo e Christophe era apenas uma fantasia, algo que não podia ser tocado. Na época em que Stan dormia ao seu lado e seus amigos ainda eram vivos. Eu ainda era vivo.

E apesar de todos os rostos que Kyle desejaria ver novamente, ele não voltaria àquela época por nada. Não aqui, agora, com o rosto de Christophe tão perto, tão palpável. Kyle sorri para ele.

-Você é tão bonito. - Diz com facilidade, mal percebendo que as palavras deixam sua boca.

Christophe bufa, sem propriamente rir, abaixando o rosto para beijar a lateral do pescoço de Kyle. É uma maneira de se esconder, de não lidar com a timidez que brota no seu rosto sério. Alguns momentos se passam e tudo é silêncio; o único som que preenche o quarto é o da língua de Christophe deslizando pela pele dele; as marcas roxas que ali haviam, agora não passam de borrões escuros que logo vão desaparecer.

-Sabe… - A voz rouca do Toupeira enche o espaço. Ele ergue a cabeça, mantendo a boca tão próxima da de Kyle, mas afastado o suficiente para enxergar os olhos verdes que esperam. É surpreendente, pois ele não é um homem de quebrar o silêncio. Geralmente, apenas responde, nunca inicia conversas. Como se pudesse ler a mente de Kyle, continua. - Eu acho bom que a gente nunca tenha feito nada quando era jovem.

Kyle franze as sobrancelhas, como se fosse arrancado de um momento de êxtase por um sopro brusco de realidade. Não parece magoado, talvez só um pouco ofendido. Ao cruzar o olhar com Christophe, não consegue evitar a risada.

-Por quê?

Christophe levanta um pouco o tronco e apoia os cotovelos nas laterais da cabeça de Kyle, acariciando os cachos para trás com suas mãos grandes.

-Porque eu era só um moleque assustado. - Há algo de mais lascivo no seu jeito de olhar agora. Ele faz menção de espiar o corpo de Kyle enquanto prossegue. - Eu não saberia o que fazer com você.

Kyle ri e o abraça; ri porque parece ridículo, abraça porque soa tão honesto. Christophe percorre o nariz pela sua bochecha, morde o seu maxilar e sorri o sorriso de um homem feliz. Apaixonado.

-Não fala merda.

-É sério. Se você tirasse a roupa pra mim naquela época, eu não faria ideia de por onde começar. - Enquanto fala, uma de suas mãos sobe pela coxa nua de Kyle, levantando sua perna instintivamente até que Kyle a enrosque em sua cintura. Eles não tiram os olhos um do outro nem por um instante.

-Eu acho isso bem difícil de acreditar. Nem quando criança você foi um moleque assustado, Christophe DeLorne. - As unhas de Kyle, curtas e limpas, sobem deslizando pelas costas dele de forma que arrepia todos os pelos de seu corpo. - Você saberia direitinho o que fazer comigo.

No fundo, Kyle também é grato por isso não ter acontecido naquela época, por milhares de razões. A mais forte delas talvez sendo o fato de que não teria sobrevivido sem esse corpo dentro dele, caso tivesse descoberto como era a sensação de tê-lo naquela época. Outra muito importante é saber que isso os mataria, mataria tudo o que tinham antes mesmo de começar, porque nenhum dos dois saberia lidar com essa vontade desesperadora.

Kyle o beija para se lembrar de que ele é real agora. Beija fundo e com uma pontinha de desespero, esfregando-se no pau duro que é pressionado entre as suas nádegas, naquela região quente que os une em uma coisa só.

Ele vai trabalhar hoje, precisa ir. Não tanto pelo trabalho em si quanto para acalentar o coração de Gregory. Mas Kyle pode muito bem fazer isso com certo atraso.

 

 

20 de junho de 3660

 

É dia de faxina. Alguns anos atrás, quando Kyle pisou nessa casa pela primeira vez e se apaixonou perdidamente por ela, hesitou muito ao comprá-la porque ter uma casa grande significava muito chão para limpar, muitas janelas para lavar, muito pó a ser tirado. Cedeu mesmo assim, porque pretendia morar sozinho pelo resto da vida e quanta sujeira uma única pessoa poderia fazer, não é mesmo? Pois bem. Agora, são duas pessoas. Christophe não é exatamente talentoso com limpeza, mas é muito bom em levantar coisas pesadas. E esse é um talento do qual Kyle pode fazer ótimo uso.

Todas as janelas estão abertas. É um dos raros dias de sol que acontecem somente no verão, um domingo à tarde embalado por uma brisa deliciosa, balançando os galhos das árvores de forma barulhenta Essa é uma casa muito diferente durante o dia e durante a noite; sob o sol, é bela e aconchegante, torta e estranha de um jeito charmoso. Mas à noite, essas nuances tortas a tornam impotente e assombrosa, um lugar forte e triste onde os fantasmas – ha. - habitam. Talvez isso tudo valha para o próprio Kyle.

Deixe-me falar um pouco sobre esse momento tão simbólico de uma vida de casal que Christophe e Kyle nunca tiveram antes, com ninguém. Mas especialmente, um com o outro. É engraçado, não é? Dois homens tão pouco apegados a qualquer traço de vida doméstica, vivendo uma paixão tão sórdida e incandescente, mas com intimidade o bastante para cuidar do ninho juntos. Eles não pensam dessa maneira, mas é isso que é.

Christophe afasta os móveis, vira o sofá, empilha as cadeiras, arreda estante, armário e geladeira. Kyle varre, passa pano, esfrega. Tem os cabelos presos para cima, de mal jeito, secando o suor da testa com as costas da mão. Christophe não usa camisa. Quando chegam à sala, o Toupeira ergue a mesinha de centro e a repousa no sofá afastado enquanto Kyle passa o rodo pelo chão de madeira. Os tapetes estão lá fora, tomando sol.

-Eu tava pensando. - Christophe diz, levemente ofegante pelo esforço físico que tomou boa parte da manhã até agora. - Acho que essa semana eu vou ver uns apartamentos.

Kyle interrompe o movimento do rodo. Não olha o outro imediatamente. Encara a parede nua de quadros. Volta a passar o rodo.

-É? - Pergunta, porque não sabe o que mais dizer. Engolindo seco, ele espreme da garganta as próximas palavras. - Por quê?

Mas Christophe não entende a pergunta, então o encara em silêncio. Kyle finalmente olha para ele. O contato visual faz com que o Toupeira se sinta obrigado a esboçar uma reação, algo que odeia, mas consente, encolhendo os ombros.

-Você não quer mais ficar aqui? - Kyle pergunta.

-O quê?

-Por que diabos você procuraria apartamento?

-Porque eu quero ficar.

Kyle está apoiado no cabo do rodo agora, os olhos parecendo duas vezes maiores. Mas seu rosto é ilegível, duro, fechado. Isso é resultado de tudo o que você acompanhou até agora.

-Você vai ficar?

-Eu quero.

-Em South Park?

-É, Kyle. - A resposta vem com aflição.

-Mas não aqui.

-Por que você tá puto?!

-Eu não estou! Eu só preciso… - Ele massageia as têmporas com uma mão e aperta o cabo com a outra. - Eu preciso entender! Por que você tomaria essa decisão sem falar comigo antes.

-Meu deus, Kyle. O que eu tô fazendo agora?!

Ele fica em silêncio por um instante, porque é verdade o que o Toupeira diz, e Kyle não sabe lidar com isso; ouvir uma verdade contra a qual não pode argumentar. Isso faz com que ele se feche, nos músculos e rosto, boca, mãos, ele não quer falar mais nada. Não quer mais ouvir, principalmente. E olhando assim de fora, fica difícil enxergar o motivo. Mas você já viu fundo o bastante no íntimo de Kyle para entender isso (e se não entender, não há problema algum): ele tem pavor de perder Christophe novamente. Pavor deixa os viventes tão irracionais.

Ele volta a passar o rodo com o pano, e isso é uma forma de defesa, pois sabe que não está fazendo sentido algum. Em poucos segundos, no entanto, Christophe estará perto dele, arrancando o cabo de sua mão com força – força, não violência – e o encarando de perto, tão perto que Kyle poderá sentir o ar quente da respiração do outro tocando sua face.

-Qual é o seu problema?! - Christophe pergunta, verdadeiramente confuso.

-Nenhum! Eu só… Eu pensei que você fosse ficar aqui, só isso.

Christophe franze as sobrancelhas grossas, parado no mesmo lugar enquanto observa Kyle dar dois – não, três – passos para trás. O chão de madeira úmido reluz com os raios de sol que entram pelas janelas abertas.

-Kyle… Isso não é fácil pra mim.

-O quê?

Tudo. Tudo isso. Inclusive, falar sobre o que não é fácil também não é fácil. Christophe esfrega os olhos, bufando com toda a carga que pesa seus ombros. Ele sempre fica assustado com o quanto duas pessoas são capazes de viver no mesmo espaço, mas estar em realidades completamente distintas. Há tantas coisas que são óbvias para ele, e isso o fez presumir que fossem óbvias para Kyle também. Agora, ele não faz ideia de como explicar o óbvio. Christophe apoia o rodo na parede e permanece em silêncio. Isso enlouquece Kyle.

-O quê, Toupeira?!

Kyle nunca o chama assim. Gregory chama, Stan chama, Kenny chama, mas nunca Kyle. É o equivalente a chamar alguém pelo nome em vez de pelo apelido carinhoso. E é de propósito. Mas ainda não há resposta. Veja, eles se esqueceram de conversar sobre as coisas importantes, porque tudo encaixou tão bem, tudo parecia em equilíbrio. O contato físico foi sufocante desde que eles o exploraram pela primeira vez. A própria precipitação do contato físico, desde que Christophe apareceu no escuro do quintal de Kyle no dia do aniversário de minha morte; ali, quando puseram os olhos um no outro pela primeira vez em catorze anos, eles não conseguiram pensar direito. E depois que começaram a se tocar, que tudo ficou permitido, a comunicação deles se dava através das mãos, da pele, dos pelos, da língua, das coxas e braços e olhos, tudo isso falava, falava muito, mas tantas coisas se confundem nesse tipo de conversa. Acho que é isso que acontece agora.

Deve ser exaustivo querer um outro tanto assim. Quando eles se esbarram pela casa, roçam sem querer e trocam um olhar demorado, nem eles sabem direito como é que começam a tirar a roupa, ou às vezes nem isso, às vezes se tomam exatamente como estão, livrando-se apenas do necessário para que Christophe possa adentrar o corpo dele. No meio do corredor, na cozinha, na sala, na escada, não importa. Apenas… Acontece. Assim como eles apenas aconteceram, sem resolver, sem discutir, sem pensar. Isso intoxica, confunde tudo que há dentro da cabeça. E eles sentem medo, os dois, sempre sentiram medo de que esse momento chegasse. Esse momento em que precisam descobrir o que são, falar sobre isso, entender o que o outro sente. Esse momento é aqui, agora, no meio da faxina.

-Me fala. - Kyle prossegue. Não parece puto agora, só terrivelmente triste. - Eu espero demais disso aqui? De você?

-Eu não sei o que você espera.

-O que você espera? Porque talvez eu tenha entendido errado. Talvez você só queira isso, uma trepada boa, um pouco de afeto pra acalmar a solidão, mais nada.

Christophe ri baixo, balançando a cabeça. Não força o riso, acha essa colocação engraçada de verdade.

-Você se escuta?

-Você me escuta?! - Kyle responde.

-A única coisa que eu faço é te escutar!

-Então me fala o que você quer, caralho!

-Eu quero você! - Agora, o Toupeira grita. Diminui a distância entre os dois, caminhando com pressa, mas não toca nele. - E eu quero ficar! Eu já disse o que eu quero. - Uma pausa. Seus olhos estão agitados. - Eu não tenho nada aqui. Eu não tenho casa, eu não tenho trabalho, eu continuo sendo clandestino, isso daqui não é a minha casa. Eu sei que você quer que seja, mas não é.

Kyle desvia o olhar. De novo, essa mania que Christophe tem de abrir a boca para dizer verdades. Mas dessa vez, Kyle não sente raiva. Desmonta as defesas, ainda que bem devagar. Christophe quer tocá-lo, isso é tão claro em cada parte do seu corpo, o quanto ele quer sussurrar “vem aqui”, mas o que deixa seus lábios é:

-Eu não posso ficar aqui sendo um peso.

-Peso? Christophe…

-Eu só preciso… - Ele interrompe. - Eu quero que isso funcione. Eu quero de verdade. E não vai funcionar se eu não… Eu preciso de espaço. Espaço físico, eu preciso de um lugar. Um lugar onde eu consiga dormir.

-Como…? Como assim? Você não dorme?

-É claro que eu não durmo. Eu quase te matei, Kyle.

Christophe não pronuncia essas palavras com angústia ou pesar; fala naturalmente, colocando fatos que os dois já deveriam reconhecer, mas os olhos de Kyle se enchem de mágoa. De culpa. O Toupeira se arrepende de ter falado. Esfrega o rosto, respirando fundo.

-Olha só, foda-se, não é só isso. A questão é que… Eu tenho umas merdas que eu preciso lidar e não pode ser aqui. E você também precisa, não é justo eu chegar aqui e tomar um espaço que não é meu. Eu não quero que você me sustente, muito menos que você me conserte. E isso não quer dizer que… Que eu te queira menos. Pelo contrário, Kyle.

Kyle fecha os olhos. Esboça um sorriso pequeno, suave, sem perceber. Porque se sente idiota, mas não do jeito humilhante. Há uma dor aguda em seu peito, que vem na mesma leva de sensações que esse sorriso, como se ele estivesse despido de qualquer coisa que o protegesse de Christophe. E é isso que ele quer. Leva alguns instantes para absorver o que lhe foi dito. Sabe, depois que se morre, a materialidade das coisas muda, você quase pode ver o peso que as palavras têm enquanto flutuam no ar. Os viventes nem notam o quanto isso os afeta.

-Desculpa. - Kyle murmura, agora enfrentando os olhos de Christophe. E são gentis, esses olhos. - Eu te quero aqui. E… Eu não gosto muito da ideia de dormir sem você.

É simples e honesto. Egoísta, talvez, mas não há cobrança nessas palavras. E ainda que a boca de Christophe permaneça em linha reta, ele sorri com os olhos. Talvez essa fosse a resposta certa.

-Eu não vou a lugar nenhum.

-Eu sei disso. - Ele mente. - Me assusta porque eu sei que tem muitas coisas que você não me conta.

-Eu tô tentando. - É a coisa mais sincera que o Toupeira pode dizer agora, envolvendo Kyle em seus braços, encostando a testa na dele. Fecha os olhos, inalando o cheiro da pele e dos cabelos do outro, em meio a essa sala aberta de móveis revirados, esse lugar comum e familiar que os acolhe. De certa forma, esse espaço é, sim, dos dois. Kyle o abraça com certa angústia, mas o calor de Christophe o acalma como um porto seguro, muito mais do que Kyle gostaria. Assusta-o o quanto precisa desse calor. No momento, ele não se importa.

 

25 de junho de 3660

 

Estamos agora no escritório de Kyle. Sua silhueta escura contrasta com a janela imensa, a lua verde minguante iluminando o céu. São 20h09 da noite, o relógio sobre a mesa marca. Kyle está sentado, o telefone na orelha repetindo o som que espera para ser atendido. Ele passa a mão pelos cabelos crespos, respirando fundo e cansado, olhando atentamente para os papéis dispostos à sua frente, mas sem enxergá-los. Sua mente está em outro lugar.

Alguém atende, mas não diz nada. É assim que Christophe atende ao telefone, apenas colocando-o na orelha e esperando. Quando questionado sobre isso em outra ocasião, encolheu os ombros e disse “quem tem que falar é quem está ligando, ué”. Kyle ri ao se lembrar disso.

-O quê? - Christophe pergunta.

-Nada. Escuta, eu vou chegar um pouco mais tarde.

-Tá. - Dois segundos depois, há um estrondo de algo feito de alumínio caindo no chão. Kyle franze a testa.

-O que foi isso?

-Nada. Você vem pra jantar?

-Você tá cozinhando?

-Depende. Você vem jantar? - Ele repete.

Enquanto Kyle ri, finalmente nota a presença de Gregory parado na porta aberta, encostado no batente de braços cruzados, um sorriso fraco em seu rosto. Ele sempre parece tão arrogante, puta merda. Kyle não sabe há quanto tempo ele está aí, mas posso te dizer que há tempo suficiente.

-Depende. O que você tá cozinhando? - Kyle pergunta, fazendo contato visual com Gregory, apoiando os cotovelos na mesa.

-É francês, você não conhece.

Kyle solta outra gargalhada. Nem sequer percebe o carinho com que Gregory o olha, o sorriso fácil que vem junto, mesmo sem saber o que foi dito do outro lado da linha. Porque é assim que funciona; Kyle sorri, Gregory também sorri. Ele sabe com quem Kyle fala, sabe pela luz nos olhos dele.

-É batata gratinada?

gratin dauphinois, o nome. Eu já falei.

-Tá bom. Então me espera pra jantar. E não coloca fogo em nada.

-Ok.

Christophe desliga primeiro. Ele também não tem o hábito de se despedir. Kyle sorri, ainda que de maneira vaga e distante, sorri para uma coisa que nem aconteceu. É quase um riso fraco e satisfeito que ele solta antes de colocar o telefone no gancho, respirando fundo. Quando ergue os olhos, Gregory continua na porta. Continua a encará-lo.

-Você não tem coisa melhor pra fazer? - Kyle pergunta. E por mais que as palavras soem agressivas, não são.

-Na verdade, não.

Encolhendo os ombros, Kyle começa a empilhar os papeis espalhados na mesa e guardar as coisas em sua bolsa de couro aberta. Levanta-se. O tempo inteiro, Gregory o acompanha com os olhos, embora desvie a atenção para a janela por um momento, observando o movimento das nuvens (que estão paradas, na realidade).

-Já vai?

-Se você não tiver mais nada a me pedir.

Em vez de responder, Gregory continua a encará-lo com um sorriso idiota na cara. Ri, balançando a cabeça, pensando algo consigo mesmo.

-O que é? - Kyle pergunta.

-Você tá feliz.

Ele não sabe como responder de imediato. Pisca algumas vezes, fechando os botões da bolsa sem enxergar direito nessa luz fraca do escritório.

-E?

-E nada. Mas é a primeira vez em muito tempo que eu te vejo feliz. Dá vontade de ficar olhando.

-Você sempre pode tirar uma foto. - Kyle diz, sorrindo finalmente, colocando a alça da bolsa em torno de seu ombro e caminhando em direção à porta. Ele para, analisando o interruptor dourado antes de apagar as luzes do escritório. Agora, a única coisa que ilumina a sala é a claridade que entra pela janela. Kyle olha Gregory de perto, os dois mergulhados em um momento denso de silêncio.

-Se você tá feliz… E eu sei que está. - Gregory prossegue. - Então por que parece que ainda tem algo te incomodando?

Kyle deita a cabeça ligeiramente para o lado, erguendo as sobrancelhas como se a pergunta o surpreendesse. Mas não deveria, porque é claro. É claro que Gregory diria algo desse tom. Encolhendo os ombros, ajeitando a bolsa no ombro, Kyle ri para disfarçar a sua verdadeira reação. E Gregory sabe disso. Kyle sabe que Gregory sabe disso.

-E não tem sempre alguma coisa incomodando todo mundo?

Mas Gregory não ri da piada evasiva. Dá espaço para que Kyle atravesse a porta, sua expressão completamente imutável. Há uma ruga preocupada entre suas sobrancelhas, como é de costume.

-Só… Me diga se eu puder ajudar.

Kyle se vira de frente para ele, toma o rosto de Gregory em suas mãos e planta um beijo demorado em sua bochecha. Esse pequeno gesto é o suficiente para que a expressão gélida de Gregory se desmanche.

-Eu tô bem. Tá tudo bem. - Ele assegura. E é verdade.

 

Mas enquanto desce as escadarias da Câmara, há algo em sua mente. Kyle atravessa a porta grande na frente do prédio, seguindo o mesmo caminho que faz praticamente todas as noites (menos, ultimamente), atravessando o estacionamento para chegar ao seu carro. A rua é iluminada pelos postes de luz laranja que brilha sobre as poças de água no concreto, pois choveu mais cedo. É bom respirar o ar livre sem que seus pulmões fiquem doloridos pelo ar gelado. Kyle gosta do verão, especialmente à noite. Há algo de fresco no ar.

Ao sentar-se no assento do motorista, ele descansa as mãos no colo e encara o para-brisas sem absorver a imagem que há à sua frente. Toda a sua atenção reside no porta-luvas, mas Kyle leva alguns instantes para abri-lo, como se precisasse pensar se é realmente isso que deseja fazer. Porque algumas imagens brotam em seu cérebro; uma específica que vale a pena citar é a imagem de um café da manhã qualquer por esses dias de junho, uma manhã em que Kyle fez panquecas e Christophe sujou a barba inteira de melado enquanto comia. Kyle sorri. Pode ouvir uma chuva fina que começa a cair contra a lata do carro, entorno dele, mas sem poder atingi-lo. Instintivamente, Kyle toca o próprio peito – o lado direito, não o esquerdo – e respira fundo.

No fim das contas, acaba se inclinando no banco do passageiro para abrir o porta-luvas. Demora para esticar a mão e tocar o livro grosso que há aqui dentro. Puxa-o até que a capa apareça, a capa com a pintura do homem barbudo que segura os castiçais, “LES MISÉRABLES” escrito em dourado. Não está mais envolto pela caixa de presente, o livro. Habita o carro de Kyle há quase um mês, escondido dentro do porta-luvas, fora do campo de visão. Kyle o socou ali dentro quando sentiu necessidade de tirar o livro de sua casa, mas não pelos motivos que você imagina. Não vai se desfazer do presente. Só precisava de tempo para saber como lidar com ele. E teve seu tempo. Agora, ele já sabe o que fazer.

Kyle desliza o dedo sobre a expressão de Jean Valjean impressa na capa dura do livro. Então, repousa-o sobre o banco do passageiro, fecha o porta-luvas e coloca a chave na ignição. A casa de Stanley Marsh é o seu destino.



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