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História Liberté - O Fruto


Escrita por: caulaty

Notas do Autor


TW: É aquela coisa, tem muito gore nesse capítulo. Cuidado onde pisa.

Capítulo 55 - O Fruto


16 de novembro de 3645

 

Christophe dormia.

O relógio marcava 08h23 da manhã. É um momento raro que eu e você presenciamos, Christophe adormecido de verdade. Se não me engano, da última vez que o vimos dormir, algo terrível aconteceu. Mas aqui, tecnicamente, esse algo terrível não acontecerá por mais quinze anos. Tiremos um instante para observar esse rosto inconsciente: seus músculos não estão relaxados como deveriam estar os músculos de um ser que dorme. As pálpebras fechadas estremeciam, pois os olhos sob essas pálpebras se moviam em seu sonho. Ele estava coberto até metade do abdômen, o braço repousado sobre o tronco que vestia uma regata cinza, apesar do frio terrível que fazia lá fora. E ele estava quente, mesmo em seus braços expostos, quente no rosto e no peito e nas costas, nas pernas e no pescoço. Nos pés, não. A respiração de Christophe era densa, pesada, exigia muito esforço. Havia essa ruga entre suas sobrancelhas grossas, uma ruga de preocupação, daquele que vê coisas terríveis quando fecha os olhos.

E ele não movia um músculo. O que é curioso, pois Christophe era uma dessas pessoas de sono perturbado, que se moviam a noite inteira, tomado por reflexos que ele não podia controlar, e acordava de meia em meia hora nas noites melhores. Aqui, não era o caso. Há sólidas duas horas e meia, ele dormia feito uma pedra, imóvel, tão fundo nas camadas de inconsciência que nem percebeu a presença de outra pessoa naquela cama.

Os raios do sol outonal adentrava o quarto pelas frestas da cortina fechada, lançando uma luz tranquila sobre aquele quarto bagunçado. Christophe passava pouco tempo lá dentro, apenas o estritamente necessário para recuperar as energias, mas ainda sim, havia roupas jogadas sobre a cama, pelo chão, sobre a cadeira ao lado da janela. Seus dois únicos sapatos sujos estavam quase embaixo da cama. Havia dois cinzeiros cheios, um no parapeito da janela, outro sobre a cômoda de roupas quase vazia. E garrafas. Incontáveis garrafas.

Algo despertou dentro de Christophe. Ele não sonhava, mas havia uma sensação estranha de calor tocando sua coxa direita, e a imagem de um pequeno animal começou a surgir em seu cérebro, um filhote ferido de lobo que se encolhia contra ele, como se a criatura pensasse que Christophe era seu pai. Tal percepção causou angústia, fez seu coração bater mais forte, o sangue correr mais rápido nas veias. A sensação era palpável, real, real demais para…

Ele abriu os olhos rapidamente, contraindo o tronco e sugando o ar pela boca em um contido som de pavor e alerta, desperto, consciente, acordado. Apoiou-se nos próprios cotovelos para enxergar a coisa deitada sobre sua perna, a respiração ofegante por alguns segundos. Deparou-se com a forma miúda de Kyle Broflovski. Não podia ver seu rosto, pois ele estava encolhido demais em si mesmo, mas os cabelos ruivos que cresciam na forma daquele crânio foi o suficiente para ele saber. O cheiro, também. Christophe esfregou o rosto suado e respirou fundo, dando-se conta do que poderia ter feito.

Deitou a cabeça no travesseiro novamente e permitiu-se fechar os olhos pesados, que ardiam. A dor nas têmporas também era terrível.

-Desculpa. - Ouviu a voz pequena, abafada, murmurar no silêncio do quarto. Olhou para ele novamente, mas Kyle não se moveu. Tinha a cabeça deitada na coxa de Christophe, deitado sobre o cobertor, abraçando os próprios joelhos. - Eu não quis te assustar.

Era muito claro em sua expressão que ele não fazia ideia do que responder. Apenas balançou a cabeça, seus olhos castanho-esverdeados encarando o teto de madeira branca. Com sua mão grande e calejada, Christophe apenas cobriu o topo da cabeça de Kyle. Não era tanto uma carícia nos cabelos quanto um gesto de proteção instintivo. Kyle virou o rosto apenas o suficiente para enxergá-lo.

-Tudo bem. - Christophe murmurou ao perceber que era observado.

Não perguntou o que Kyle fazia ali, por mais confuso que estivesse. Kyle também não tentou explicar. Não é preciso. Ele se sentia tão fraco, exposto, do avesso, sozinho. E foi nesse leito quente desse quarto bagunçado que Kyle encontrou algo parecido com um refúgio, um ninho onde as coisas externas não podiam tocá-lo. Claro, as coisas internas é que eram o problema real. Mas perto de Christophe, do seu calor, ele se sentia mais são. Não havia como colocar tal coisa em palavras.

Após um longo período de silêncio, Christophe levantou o rosto para olhá-lo novamente.

-Você está bem? - Perguntou. Kyle balançou a cabeça negativamente, um movimento fraco e curto, o resto do corpo imóvel. Christophe umedeceu os lábios, suas pupilas dilatadas no escuro do quarto. Desceu a mão pela nuca quente de Kyle. - Vem aqui. - Disse baixinho.

Kyle levou alguns segundos para se arrastar pelo colchão até a altura de Christophe, que puxou o cobertor para que Kyle pudesse entrar. Ele deitou a cabeça no braço nu do Toupeira e fechou os olhos, hesitante quando Christophe fez menção de puxá-lo para mais perto. Aquele micro-movimento de tensão foi o bastante para que Christophe mantivesse a distância entre eles, um vão de dois ou três centímetros. Sempre houve essa distância, não é mesmo? Em outros tempos, era por conta do medo da entrega, de perder o controle, de machucar Stan. Agora, não tinha nada a ver com isso. A razão era mais crua, mais dolorosa. Ser tocado era insuportável. Christophe podia compreender isso muito melhor do que gostaria. Deixou que a mão pesasse delicadamente sobre a orelha de Kyle, pedindo permissão para acariciá-lo na lateral da cabeça enquanto sentia seu corpo relaxando novamente.

Em todo esse processo, Kyle não fez contato visual com ele uma vez sequer. Mas estava ali. Pedindo uma ajuda que não tinha condições de receber.

Algo pesava feito concreto sobre o peito de Christophe DeLorne. Ele queria dizer que tudo estava bem, pois parecia, realmente parecia que tudo estava bem na intimidade daquela cama, no silêncio que os dois partilhavam, como se nada mais existisse. Mas Christophe não sabia mentir. Nunca lhe foi ensinado.

 

 

Um pé encostou no chão de concreto, revestido por um velho tênis azul, seguido por duas muletas que lhe davam apoio, permitindo que o pé saísse do chão para dar mais um passo, deslocando o corpo cansado de Gregory para a frente. Ele tinha os cabelos loiros recém-cortados, e eles brilhavam sob o forte sol da tarde que fazia aquele dia, quase nenhuma nuvem no céu. Mais um passo. Só mais um passo. Ele parou por um instante, firme sobre seu único pé tocando o chão do pátio, o peito subindo e descendo pelo esforço. Ou talvez fosse mais do que isso. Ele esperava sentir qualquer tipo de satisfação ao se levantar da cama e caminhar novamente, deslocar o próprio corpo sem ser carregado, mas não havia satisfação alguma naquilo. Havia dor. Dor e exaustão e um pequeno senso ácido de vergonha que Gregory engolia muito bem, como se tal coisa não existisse.

-Quer que eu vá pegar a cadeira? - Standish perguntou, logo atrás dele. Tentava parecer que não estava ali de prontidão para quando ele caísse, e Gregory retribuía tentando seu melhor para não gritar com ele. Não pôde, entretanto, evitar o suspiro irritado.

-Eu estou bem.

-Certo.

Michael e Henrietta haviam lhe roubado uma velha cadeira de rodas, sabe-se lá da onde; a coisa tinha uma aparência sofrida, como se saída direto de um ferro velho. Eles tentaram contar alguma história sobre pularem o muro de um asilo, mas pararam de falar ao perceber o ressentimento nos olhos de Gregory, apesar do sorriso fraco em seu rosto. Era grato, é claro que era. Não permitiria que pensassem o contrário, que enxergassem o quanto, no fundo, Gregory os odiava por aquele presente.

Ao longe, podia ver algumas pessoas reunidas perto dos bancos, poucas delas realmente sentadas. Trent e Christophe carregavam as armas de dentro de um caixote e repassavam aos companheiros, Nichole ajudava Bebe a prender todo aquele cabelo volumoso em um coque para não correr o risco de que os sapadores a agarrassem pelos cabelos como da última vez. Pete e Michael guardavam garrafas plásticas cheias de um líquido amarelo nas mochilas, diversas delas. Wendy afiava a lâmina de seu canivete. Henrietta apenas fumava tranquilamente sob a árvore. E a dança da preparação acontecia, com muito menos emoção do que um dia já houve; estavam acostumados, como se acostuma a tudo nessa vida. “Até mesmo a não ter uma perna”, Gregory pensou, aproximando-se deles vagarosamente.

-Que horas pretendem sair? - Gregory perguntou a Stanley, que ainda tinha olhos agitados, amarrando a bandana preta em torno do pescoço.

-O quanto antes. Hoje vai ser… - Ele fez uma pausa, lançando um olhar preocupado a Gregory. - Você vai fazer falta. - Disse com olhos tristes.

-Que gentil da sua parte. - Gregory respondeu com frieza, mas nenhum pingo de ironia na voz.

Kenny, que ajudava a separar o kit de primeiros socorros e distribuí-los, sentado no chão ao lado de Stan, foi o primeiro a perceber Kyle se aproximar. A maioria das pessoas se encontrava envolvida demais em sua função ou em alguma conversa paralela ao quadro maior. Kyle se aproximou da caixa das armas e munição, deixou sua mochila verde sobre o banco e puxou a arma descarregada para entregá-la a Trent.

Houve um prolongado momento de tensão. Os olhos de Christophe repousaram por muito tempo naquela arma enquanto Trent, inquestionável, alimentava o revólver de balas. Pareciam mais dourados do que de costume, os espectros que pincelavam o verde-marrom nos olhos dele. Os olhos de Christophe sempre tiveram uma cor de coisa natural, de folha morrendo. Subiram, curiosos, pelo rosto irredutível de Kyle que ignorava tudo e todos ao seu redor.

-O que você tá fazendo? - Stan perguntou idioticamente.

Kyle lançou um olhar vazio a ele.

-O que todo mundo tá fazendo.

-Você não pode estar falando sério.

-Stan. - Gregory disse em um tom tão seguro que quase se pareceu com o homem que ele costumava ser.

-Não. Você não vai. - Stan afirmou em um tom paternal doloroso, uma voz espremida que sugeria desespero, angústia. Aproximou-se dele, mas não o bastante para invadir seu espaço. - Eu nem achei que você quisesse…

-Ninguém quer ir. - Kyle disse sem encará-lo de volta, aceitando a arma, agora carregada, que Trent lhe oferecia. Guardou-a no cós da calça. O cabelo reluzia sob o sol todas as cores de outono, crescendo com vitalidade. Virou sua atenção para Christophe, que continuava a observá-lo em um duro silêncio de infelicidade. - Como você disse. Seria um erro ter me tirado da prisão se eu não estiver disposto a lutar, não é?

Havia crueldade naquelas palavras. Christophe engoliu seco e desviou o olhar, massageando as têmporas.

-Você disse isso a ele? - Stan perguntou, mais ferido do que com raiva.

-Pra que ele levantasse da cama. - Christophe resmungou com seu sotaque forte. - Não pra que ele tentasse se matar indo pra rua antes da hora.

-Broflovski. - A voz de Cartman interveio, o que, inevitavelmente, fez com que Christophe cerrasse os punhos quase sem perceber. Kyle passou a alça da mochila sobre o ombro e encarou Eric. - Você é quem tem que saber. Tudo o que esses veados têm a dizer é perda de tempo.

-Cala essa boca, Cartman! - Stan esbravejou, visivelmente assustado.

-Por que caralhos você tá fazendo isso? - Christophe perguntou, sem tirar os olhos de Kyle. Era uma indagação genuína, embolada em rancor, que implorava por resposta. Mas Kyle não o olhava. Nem por um instante.

-Deixem ele respirar, mas que inferno. - Enfim, veio a voz sã de Gregory. Com o pesado apoio das muletas, deu alguns passos à frente, captando a atenção de Kyle, cujos olhos amansaram de imediato. Gregory quis oferecer um sorriso de canto, qualquer coisa que o lembrasse de que não estava sozinho, mas não conseguiu. Desejou, do fundo do coração, que nenhuma daquelas pessoas estivesse ali. Lutou para manter o equilíbrio em sua única perna, a muleta direita bem apoiada no concreto do pátio, e ergueu a mão para tocar o rosto de Kyle, mas ele recuou, baixando o olhar pela vergonha. Gregory não tentou novamente. - Não está tentando se matar, está? - Gregory murmurou, inclinando-se para mais perto dele. Falava baixinho, para mais ninguém ouvir. E se ouvissem, não importava, contanto que Kyle sentisse que Gregory era a única pessoa presente. - Kyle. Você sabe o que acontece lá fora. Os tiros, os gritos, tudo isso pode… Pode te levar de volta. Entende? E se isso acontecer, se você dissociar ou tiver uma crise, ninguém vai poder ajudar.

-Eu não sou uma criança, Gregory. - Foi tudo o que ele respondeu.

Por um segundo, Gregory se esqueceu como respirar. Mas os cantos de seus lábios quase se ergueram de maneira forçada. Ele assentiu com a cabeça antes de se afastar. Apoiou as muletas no chão, deu um passo. Apoiou-as no chão, deu outro passo. O estômago se retorcia por dentro do tronco. Outro passo, firmemente dado com seu único pé. Pôs-se ao lado de Christophe, próximo o suficiente para aproximar os lábios do seu ouvido, falando baixo o suficiente para que mais ninguém pudesse ouvi-lo:

-Se não o trouxer de volta, eu te mato com as minhas próprias mãos.

Christophe voltou os olhos para ele com espanto, não pela agressividade das palavras, mas pela vitalidade com que foram ditas. Há muito não ouvia paixão na voz de Gregory. O movimento que fez com a cabeça para concordar foi tão sutil que mal chegou a um aceno.

O que é muito triste, pois não é como se Christophe tivesse controle sobre essas coisas. A mão do destino é uma coisa cruel.

 

Uma garrafa verde estourou logo acima da cabeça dele, um estrondo surdo ecoando pelos ares. Vidro estilhaçando-se contra a parede de tijolos não era nada em comparação aos sons dos tanques rolando sobre o asfalto, a chuva de rojões que caíam entre eles com o intuito de dispersar. Christophe puxou para cima o lenço negro amarrado em seu rosto, o suficiente para cobrir o nariz, olhando para o céu. Estava atrás de um carro vermelho, com os retrovisores quebrados, e não era culpa dele, mas poderia muito bem ter sido. Os rojões alaranjados voavam sobre suas cabeças, como fogo arranhando o céu através do gás branco que se acumulava entre aqueles prédios altos, tão altos que alcançavam o céu. E havia fogo, havia fogo por toda parte que Christophe olhasse. A camada de poluição escura, o gás fétido e aquelas luzes faziam tudo parecer com o próprio inferno; nem se podia imaginar um sol acima das nuvens. Não era noite ainda, mas parecia.

Tudo ardia por dentro. Ele começou a pensar que, não saindo logo dali, o corpo cederia à dor e ele perderia a consciência. Enxergava a silhueta de um menino sem braço, apenas sangue jorrando dele, um sapador batendo em sua nuca com um porrete e derrubando-o no asfalto. No topo do prédio do outro lado da rua, enxergou as familiares silhuetas de Michael e Firkle, fantasmagóricas através do gás, o menino mais novo segurando um fuzil. Christophe quase esboçou um sorriso.

Havia queimado os dedos ao colocar fogo nas latas de lixo e jogá-las na rua para evitar a passagem dos tanques; mas céus, eram tanques, nada haveria de pará-los. De qualquer forma, não podia sentir a dor da pele em carne viva.

Corria pela calçada, por cima dos destroços de madeira, vidro, placas quebradas, aço, todo tipo de cadáver de materiais, talvez bichos mortos, ele não parou para olhar. Eles se atreveram a invadir a área bem vivida da cidade, não tão bem vivida quanto na ilha, mas bem o suficiente para que a desordem causasse pânico. Christophe pulou por cima de uma pilha de cimento e tijolos com fios de cobre retorcidos, um alastramento de destruição deixado pelos seus, tão bonito de se apreciar. O rosto de Kyle cruzou seus pensamentos por um segundo, aquela cicatriz deliciosa embaixo do olho direito e como ela se deformava quando ele falava ou sorria. Christophe não sabia onde ele estava. E abrira mão de pensar sobre isso, pois não havia tempo, não havia energia.

De repente, ele tropeçou.

Bateu o queixo no chão, esfolando a carne do maxilar em uma áspera placa de cimento quebrado no chão. Ergueu-se com os cotovelos com tanta agilidade que mal pôde ser visto no chão, tirando apenas um segundo para olhar no que diabos havia tropeçado. Era um sapador. Estirado no chão, sua roupa branca maculada por sangue do vermelho mais vivo. Morrera de olhos e boca abertos, o desgraçado calvo. Christophe cuspiu o sangue que se acumulou na boca de morder a bochecha ao cair e continuou a correr, atravessando o gás como um ser sem corpo.

Subiu a rua. Correu em direção a uma fábrica de tijolos vermelhos que tinha uma passagem em seu centro para os carros, como um túnel. Ali, permitiu-se respirar, protegido da parte mais grossa do gás. Secou os olhos que produziam água ininterruptamente. Cuspiu no asfalto molhado e permitiu-se apoiar os cotovelos nas coxas para respirar, descendo o lenço até o pescoço. Escorria sangue do queixo, descia por dentro da camisa até o peito. Sentia dor atrás dos joelhos.

Estava escuro ali, na pequena passagem da fábrica abandonada de celulose. Lá fora, ouvia-se gritos de mercadores, de sapadores, de resistentes, pois o gás e o fogo não diferenciavam, não protegiam ninguém, ardiam igual em toda carne. Fechou os olhos, apoiando a cabeça na parede, permitindo-se um segundo de descanso.

Ouviu o engatilhar de uma arma.

Na saída do pequeno túnel havia um homem de branco. A perna estava encharcada de vermelho e ele tinha uma fratura exposta. Tremia, segurando sua arma tranquilizadora como se fosse um revólver de verdade. Tinha sardas e brilhantes olhos azuis. E, ao dar uma boa olhada nele – o que não durou mais do que meio segundo – Christophe riu. Riu um riso amargo, xingando Deus silenciosamente por mandar, de todos os sapadores do mundo, um rapazinho franzino de dezessete anos ao seu encontro.

-Imbécile. - Murmurou a si mesmo na língua materna antes de engatilhar o revólver silenciosamente, lançando o corpo para frente para desviar do previsível tiro mal dado do rapaz, com um dardo que seria capaz de apagar um leão. Christophe atirou, não um dardo, mas uma bala de verdade, mirando na cabeça para poupar o sofrimento, assim que ergueu o tronco. Estava próximo o suficiente para sentir o calor do estouro, o sangue quente do menino manchando as paredes e espirrando no rosto de Christophe, junto com pedaços de crânio, de cérebro, de olho. Aquele calor de sangue e cheiro de morte não lhe eram estranhos, e Christophe gostaria de se sentir menos à vontade com tais coisas, mas seria como um pato estranhar a água.

Quando o corpo caiu, Christophe enxergou o que havia atrás dele. Stan Marsh estava ali parado a dez metros, o rosto assustado, mas firme, segurando um longo cilindro de metal enferrujado nas mãos. Fez sinal com a cabeça para que Christophe o seguisse. E ele o fez, mas porra, a dor que sentiu no peito ao perceber que Kyle não estava com ele foi tão aguda que eu quase posso senti-la daqui.

Uma fumaça negra espessa tomava conta dos ares, contrastando com o cinza pesado daquele céu. O ponto alto da tarde começava a se tornar escuro como a noite. Christophe pisou em algumas poças enquanto seguia Stanley pela rua de paralelepípedos, onde estavam expostos demais, cada sentido aflorado para perceber até mesmo o bater de asas dos pombos escuros que os observavam do topo dos prédios. Havia muitos deles, assustados com o caos, seus pequenos olhos arregalados acompanhando os dois homens atravessando a larga rua até alcançar o esgoto a céu aberto.

Pularam a mureta de tijolos e caíram sobre uma fina camada de água fétida. O fedor era insuportável, até mesmo para Christophe, que ainda tinha o lenço cobrindo o nariz e a boca. Agora, os olhos ardiam um pouco menos, mas começou a tossir. Os dois lados do esgoto levavam a túneis longos em que não se podia enxergar nada.

Após secar as lágrimas dos olhos com as costas da mão, ainda segurando a arma firmemente com a outra, Christophe avistou Kyle. Mal pôde reconhecê-lo, aquele pedaço de gente encolhido no meio da água, naquela mistura de merda e sabe-se lá o quê mais, abraçando os próprios joelhos nus pelos rasgos na calça, arranhado, sangrando, de cabeça baixa. Tremia. Christophe não fez menção de se aproximar, mas esse foi o momento em que seu coração voltou a bater normalmente.

-Leva ele de volta. - Disse a Stan, que tinha os olhos arregalados como os de uma coruja o tempo inteiro. - Você sabe voltar sozinho?

-Quê?! Não! Ele nem se mexe, tô aqui com ele há uma hora!

Christophe sacudia a cabeça, recarregando o revólver com as balas que havia dentro da meia, silenciosamente. Tinha os sapatos mergulhados em merda, sentindo a umidade invadir pela sola do sapato e chegar às meias. Deu uma boa olhada em Stanley, com aquele cabelo imundo e o rosto manchado de pólvora.

-Merda. - Murmurou, olhando o céu. - Ele não devia ter vindo.

-Ah, você acha?!

-Fala baixo. - Virou-se para Kyle, mas antes que pudesse se aproximar dele, sentiu o movimento de dentro do túnel do esgoto, aquelas luzes brancas acopladas às armas compridas de dardos tranquilizadores, feitas especificamente para caçar os ratos no esgoto escuro. Eles eram os ratos. Christophe ainda não havia terminado de recarregar a arma quando veio o primeiro tiro, em cheio de raspão em seu braço. - Caralho!

A mão de Christophe soltou o revólver, que se perdeu dentro da água escura que corria lentamente. “Filho da puta”, ele pensou, mas eram dois, um jovem e um velho. Dois homens de branco, exceto que o branco não era branco, e sim manchado de marrom e vermelho vivo, como seus rostos e seus capacetes. O jovem estava ferido, Christophe observou no mesmo milissegundo em que se jogou no chão para encontrar o revólver pesado, mas outro tiro veio, confuso e desnorteado, do sapador que tinha a mão quebrada e uma camada tão grossa de cabelo empapado com sangue que cobria um de seus olhos. Stan soltou a barra de ferro em um estrondo gigantesco, chamando a atenção dos dois, sacando a pistola com suas mãos trêmulas demais para saberem o que fazer. O velho ergueu a arma tranquilizadora na direção dele, agora assustado, mas tinha o olhar de um militar treinado que não fugia do ferro e fogo, e Christophe sabia o que aquilo significava.

De quatro no meio da água espessa, Christophe sentiu todo tipo de coisa mole e grotesca em suas mãos até que os dedos encontrassem a textura fria da arma. Um tiro ecoou pelos céus, fazendo os pombos alçarem voo, aterrorizados, e um clarão provocar cegueira momentânea naquele espaço estreito do esgoto. Stan acertou o desgraçado do velho no ombro. Isso fez com que o jovem ferido arregalasse os olhos, virando-se na direção do homem.

Eram pai e filho. Não que Christophe ou Stan soubessem disso.

O velho despencou, o corpo fazendo um barulho terrível ao atingir a água. Ele cobriu o ombro ensanguentado e fez menção de erguer a arma tranquilizadora enquanto o outro rapaz, o sapador, o encarava. Christophe viu medo em seus olhos. Pensou ter tempo de erguer o revólver, mas o joelho do sapador colidiu direto com o seu rosto, produzindo um “crack” medonho de osso saindo do lugar. Não era a primeira vez.

-Some daqui, filho da puta! - Stan gritou, segurando a pistola entre as mãos trêmulas, mas agora firmes, um aperto forte nos dedos de quem sabe o que faz, sabe o que diz. - Você acha que eu quero te matar?! Some! Finge que não viu a gente! Vocês não ganham merda nenhuma com isso, olha quantos de vocês foram pro saco hoje!

O sangue escorria do velho e se misturava à cor escura da água, aos detritos, ao mijo de rato e de gente. Ele parecia prestes a desmaiar.

-Pega o outro. - O velho murmurou ao filho. - Tá esperando o quê, covarde?!

Quando o jovem quebrou o transe do medo da morte, lembrando-se de sua missão nesse mundo, e tentou ajeitar a arma para pegar o homem que havia acabado de chutar, foi surpreendido pelo corpo pesado de Christophe DeLorne, de pé, alto e forte feito uma muralha, lançando-se contra o seu. Não sabia da arma, mas não precisava dela. Havia se perdido novamente no meio da água. E agora, Christophe batia com a cabeça do sapador contra a parede de tijolos do esgoto, grunhindo alto como um animal, tudo isso acontecendo rápido demais para as mãos de Stanley saberem como reagir.

Stan presenciara um massacre naquele dia. Massacre dos seus companheiros de guerrilha (desconhecidos, de outras unidades) sendo esmagados por um tanque. Massacre das bombas que os atingiam, do gás que os deixava em carne viva de dentro pra fora ao respirar. Mas também massacre de sapadores metralhados ao tentarem se aproximar, desarmados, com suas armas de choque e seus dardos. Massacrados pela sede, pela fome, pelo governo, todos eram massacrados igualmente. E ali, de pé, com uma pistola apontada para um homem velho que chorava de dor, mesmo que tentasse parecer inatingível, com o corpo encolhido de Kyle a poucos metros como resultado dos horrores da guerra, nada mais parecia fazer sentido.

Então, o velho o atingiu com o dardo de sua arma. E foi uma sensação esquisita. Ou pelo menos eu acho que foi; não se pode saber, eu não estava no corpo de Stan. Mas tenho sensibilidade o bastante, daqui onde estou, para enxergar coisas além da visão. Você já sabe disso. E te digo, as pernas foram as primeiras a amolecer. Como se Stan não pudesse senti-las mais. O dardo perfurou suas roupas e o atingiu no peito, perto da axila, espalhando o efeito facilmente pela corrente sanguínea. Ele piscou algumas vezes, sentindo o tempo dilatar enquanto usava o resto de seu esforço para erguer a pistola, que agora, parecia pesar 300kg, e puxou o gatilho. Foi a última coisa que conseguiu fazer antes de os joelhos cederem, atirando no borrão que aquele homem havia se tornado diante de seus olhos, um segundo antes de cair junto com ele na água. Não sentia mais o cheiro de merda. Foi uma sensação bastante agradável. Antes do cérebro desligar, Stan se perguntou se aquilo era como morrer. Se fosse, morrer parecia bastante tentador.

Stan desmaiou de costas na água, e essa foi sua sorte. Se caísse de lado, provavelmente teria se afogado.

Para Christophe, as coisas se passaram de um outro modo. Ouviu o estouro do outro tiro, que acertou a garganta do velho e fez jorrar sangue escarlate para todo lado, mas aquilo não importava. Pois dançava a sua dança favorita, aquela que arrancava sangue e dentes e pedaços, que deixava hematomas roxos e verdes na pele para se lembrar das coisas importantes. O sapador bateu com a arma em seu rosto já inchado pela joelhada, antes de deixá-la cair, avançando ambas as mãos no pescoço de Christophe, lançando-se para frente até derrubá-lo ao chão, fazendo a água imunda espirrar. Por baixo do capacete, caíam cabelos loiros e encaracolados. O homem tinha olhos pequenos e lábios finos, um brilho doentio de quem não gostava de matar e teria sonhos terríveis com aquilo mais tarde. E Christophe arfava por ar enquanto erguia as mãos para alcançar o rosto do desgraçado afim de apertar-lhe os olhos, mas o capacete o protegia, e o ar começava a se esvair de seus pulmões. A dor, porra, a dor era terrível.

-Seu filho da puta… - O sapador murmurou, cuspindo no rosto dele. - Você deve valer uma grana, seu desgraçado, eu conheço a tua cara. Eu nem devia te matar, só pra ver eles enfiando um rato no seu cu lá em Washington, seu merda.

Christophe apertou os olhos ao sentir a saliva quente e começou a se debater embaixo dele. Por um ou dois segundos, teve certeza de que morreria. Como teve tantas outras vezes em sua vida.

E como todas essas outras vezes, não foi o caso. Não farei mistério aqui, você já sabe que não foi.

 

O capacete do sapador não foi suficiente para aliviar o impacto da barra de ferro.

Primeiro, ele apenas rachou. O impacto foi forte o bastante para lançá-lo para o lado, aterrissando de bruços ao lado do corpo de Christophe. O pobre coitado, de nome Daniel, com dezenove anos e duas irmãs pequenas, nunca saberia do que morreu. Kyle não deu chance de que ele se levantasse. Calmamente, pondo um pé em frente ao outro em meio à água fétida, as duas mãos bem firmes em torno da barra de ferro enferrujado, ele golpeou de novo. E de novo. E de novo. E de novo. Rápido, preciso, intenso, o rosto limpo de qualquer emoção, tão pálido, contrastando com aquelas gotas de Daniel que voavam sobre sua pele e seus cabelos, sangue e outras coisas além de sangue, pedaços dos olhos que estouraram nas cavidades, veias, pele, cérebro, tudo se desfazia em uma única massa até que nada daquilo fosse um ser humano reconhecível. E Christophe, atordoado, apoiado nos cotovelos e marcas vermelhas em torno do pescoço, observava.

Por um instante, Kyle parou. E só então, Christophe se deu conta de que devia levantar. Não esperava que Kyle se sentasse sobre o sapador, apontando a ponta da barra na direção daquela massa rosa, vermelha, amarela, marrom, e então prosseguisse com os golpes de forma mais lenta, mais sã, mais cheia de vontade. Não havia gosto naquilo, não havia prazer sádico, não havia medo ou nojo, não havia nada por trás dos olhos verdes de Kyle. E ele golpeava. Lento. Preciso. Gradual.

-Kyle. - Christophe chamou, aproximando-se dele cautelosamente. Mas o outro não ouviu. - Kyle.

Você se lembra de Roy? No dia 10 de novembro de 3644, quase que exatamente um ano antes, Christophe esmagava contra o concreto o crânio de um homem chamado Roy, um sapador que teve a infelicidade de cruzar caminho com ele. E Kyle assistia àquela cena, talvez você se lembre, com terror absoluto nos olhos, pois nada daquilo lhe parecia certo, por mais terrível que Roy fosse. E era. Era um estuprador desgraçado. E, em algum lugar da história, Christophe segura Roy pelos cabelos e bate seu crânio inúmeras vezes contra o chão até ele ficar tão deformado, a ponto de não se parecer mais humano, como Daniel agora não se parece. É engraçado como o mundo gira.

Christophe repousou uma mão delicada no ombro de Kyle.

-Ele tá morto. - Disse, como se tal coisa não fosse óbvia. Sua voz era estranhamente gentil. - Pode parar. Já acabou.

Mas Kyle não soltou a barra. Continuou imóvel, os olhos fixos no que um dia foi o crânio de um sapador desconhecido, que agora jazia morto na merda, e Kyle quase preferia estar no lugar dele.

Lentamente, abaixou a barra, voltando o olhar ao corpo desacordado de Stan sem ter certeza se ele estava vivo ou não. Não reagiu a isso.

-Ele só tá apagado. - Christophe explicou mesmo assim, apertando o ombro de Kyle antes de afastar a mão. De certa forma, sentiu-se grato que ele não estivesse vendo aquilo.

Olhou em volta, para os três corpos deitados, a poça gigantesca de sangue grosso que se formava ao redor deles na água, o rosto e mãos e peito e cabelos de Kyle besuntados de sangue, o cheiro de morte e de esgoto e de todas as coisas que o inferno tem a oferecer.

Kyle bateu com a barra uma última vez antes de soltá-la em um estrondo barulhento, parecendo assustadoramente são.

-Vamos voltar. - Disse, como se nada de anormal tivesse acontecido, e Christophe não se atreveu a contradizê-lo.



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