Parte 10
O Sangue é Raro e Doce Como Vinho de Cereja
Para conseguir o que quer você precisa aprender a ter controle, domínio, equilíbrio. Eu tive que aprender essas três coisas para entrar e permanecer na equipe de ginástica, mas tive que reaprendê-las —talvez com mais veemência do que antes— quando tive que deixar a equipe.
Nunca tive a intenção de conhecer Kevin West mais do que os demais alunos conheciam. Mas quando as coisas começaram a acontecer eu não consegui as conter. Entretanto, hoje em dia, eu nem preciso mais de esforços para me manter bem longe dele.
Então, quando meu celular vibrou e indicou uma mensagem sua, eu fechei os olhos e dormi. E o meu sono só não foi mais tranquilo porque foi conturbado por sonhos perturbados por um tatuado cujas variações de humor me tiram do sério. Mas quando eu acordei na manhã de sábado eu tive que ler e responder à mensagem de Kevin.
Kevin West: Então você desistiu mesmo?
Nove horas. Kevin enviou essa mensagem nove horas atrás.
Adelaide Young: Não sei de que você está falando.
Eu não espero e também não quero que ele esteja acordado às oito da manhã de um sábado, apto para me responder tão prontamente, então apenas me levanto da cama e caminho em direção à janela, abrindo-a e revelando a rua molhada e o céu acinzentado. Vou ao banheiro logo depois, aproveito para lavar o rosto amassado devido à noite de sono e escovar os dentes.
A cozinha cheira a bacon e isso é por causa do café da manhã do meu pai. Ovos mexidos, bacon e uma xícara de café.
— Bom dia, Adele. Dia cinza hoje, não é? —ele diz, levantando-se para pegar uma xícara para mim.
— Bom dia, pai. Acha que chove mais?
Meu pai serve café na xícara e a coloca sobre a mesa, para mim.
— Talvez. Ouvi na rádio, hoje cedo, que os dias quentes acabaram por aqui. Bom, até que o clima de verão durou bastante.
Me acostumar com a ideia de dias cinzas, sol tímido e neve, parece muito difícil agora. Eu prefiro o verão, porque adoro passar um tempo na rua com as meninas. Embora as festas, durante o inverno, pareçam ainda mais fervorosas e sejam mais habituais, é difícil voltar para a casa depois, enfrentando o frio.
— Por que você acordou tão cedo? —meu pai pergunta, puxando-me de volta para a realidade.
— Eu dormi cedo ontem, não foi de propósito. Que horas você e Andy vão viajar?
— Cinco da tarde. —ele pigarreia. — Escute, se tudo der certo e Andrew ganhar a luta, nós vamos...
— Eu sei, para uma festa.
— Não, é só uma reuniãozinha.
— Pai, —eu dou risada. — eu sei que vocês vão sair para comemorar.
E eu também concluo que a história de que não há espaço sobrando para que eu vá com eles é mentira. Mas eu ainda não tenho vinte e um anos, não posso entrar, legalmente, nos lugares onde eles querem ir. Então faz todo sentido que eu fique aqui.
— Você vai ficar bem sozinha, certo? —eu assinto, me sentando de frente para ele à mesa. — Pode chamar suas amigas para dormirem aqui, se você preferir.
— Talvez eu faça isso.
Ocupei minha manhã faxinando a casa e depois que Andrew acordou a conversa não saiu mais do tema: luta. O almoço ficou por conta do meu irmão, que caprichou nos carboidratos, visando ter mais energia para a noite.
— O que você vai fazer hoje à noite?
Dou de ombros diante da pergunta de Andy, enquanto eu distribuo os pratos na mesa. Nosso pai está cortando a grama, na frente de casa.
— Eu não sei, talvez assistir à algum filme com as meninas.
— Certeza?
Junto as sobrancelhas, confusa.
— Vai direto ao ponto. O que você realmente quer saber?
— Eu não sei. —ele murmura. — É que nós estamos de olhos abertos desde que… Bom, você sabe do que eu estou falando.
Reviro os olhos, pegando os talheres na gaveta. Ele está falando sobre Zayn.
— Fala sério. —resmungo.
— Desculpa, mas você é a minha irmã mais nova, o que espera que eu faça? —espero que cuide da sua vida, respondo mentalmente. — É estranho para caralho pensar que você esteve no carro de um bandido, tipo…
— Ele não é um bandido.
Andrew arqueia as sobrancelhas, levando as panelas até a mesa, uma de cada vez.
— Você está defendendo ele.
— Andrew, ele foi solto pela polícia. Ele estava comigo quando…
— Mas, Adele…
— É literalmente impossível estar em dois lugares ao mesmo tempo. —corto sua fala. — Além disso, a ficha dele está limpa, já sobre aquele seu amigo, da academia…
— O que? —meu irmão mexe a cabeça, confuso. — Liam não…
— Não é esse. O outro, o dono da academia.
— Ah, Bruce. Desde quando eu sou amigo de Bruce?
— Desde quando você sabia o suficiente para me explicar que ele foi preso por lesão corporal e ainda completou falando que, provavelmente, tinha algo a ver com drogas.
— Adele, eu frequento a academia dele, só isso. Você entrou no carro de um cara que… Quer saber? Eu não sei nada sobre esse cara. Pode ser que ele seja inocente e não tenha nada a ver com o que aconteceu no restaurante, mas eu tenho direito de ficar preocupado. Nosso pai também está preocupado.
— Está tudo bem comigo e vai continuar tudo bem. Você não tem motivos para ficar preocupado.
— Você não viu mais ele? —pergunta.
Não. Só ontem. E no posto. E um dia desses, durante a madrugada.
— Não. —mas Andrew aperta os olhos, desconfiado.
— Eu sei que você já tem idade o suficiente para cuidar de si mesma mas eu continuo sendo o seu irmão mais velho então, por favor, se você não quer se cuidar por si mesma, faça isso por mim e pelo nosso pai, certo? Você significa muito para nós.
— Quanto drama. —eu acho graça e o abraço. — Não precisa se preocupar comigo, é sério.
Andy beija minha testa, num gesto de carinho pouco frequente, antes aproveitar o momento em que eu dou um passo para trás, afastando-me dele, para bater com o pano de pratos no meu braço.
— Certo, agora vai lá chamar o pai para almoçar.
Concordo e faço o que ele solicitou.
Quando eu termino de guardar a louça, logo após o almoço, subo as escadas até o meu quarto e encaro o celular em cima da cama desarrumada. E lá está a notificação de mensagem de Kevin West.
No entanto, mato um pouco mais do tempo estendendo a cama para, só depois, ler a mensagem.
Kevin West: Você desistiu de usar Morris para me atingir?
Adelaide Young: Você se acha tão importante que é até engraçado.
Eu sou rápida na minha resposta e ele é mais ainda na réplica.
Kevin West: Se não foi para me provocar então foi para me superar? Não consigo pensar em outros motivos.
Adelaide Young: Vai se foder, Kevin.
Kevin West: Você me odeia mas eu meio que gosto disso. Você não pensa sobre os velhos tempos?
O que ele chama de “velhos tempos”, são tempos os quais eu gostaria de apagar. Não serviram para nada.
Adelaide Young: Nunca.
Kevin West: Mas aposto que não esqueceu.
Isso, infelizmente, é verdade.
Mas eu vejo as coisas com outros olhos agora, tendo passado um tempo desde tudo o que aconteceu. Tudo parece diferente, as intenções no começo que antes pareciam tão claras —eu acreditei, como uma tola, que não passava de diversão— e como tudo se transformou em algo tão ridículo e, depois, a junção das coisas resultou em uma confusão maior do que nós, que deixou tudo ainda pior, maldoso.
Adelaide Young: Há um abismo gigantesco entre a forma como você se lembra das coisas e como eu me lembro.
Kevin West: Será? Bom, eu só me lembro das partes boas. E, do jeito que eu me recordo, nós dois queríamos diversão, mas acho que tropeçamos em alguns momentos.
Eu quase consigo ver, de verdade, Kevin segurando o seu celular, sentado de maneira despreocupada assim como se sentava durante as aulas. Os olhos vorazes, o sorriso astucioso e a mesma marra de sempre.
Adelaide Young: A história sob a minha perspectiva coloca você na posição de vilão.
Kevin West: E não é exatamente disso que você gosta?
Bloqueio o celular, largando-o em cima da cama. Não há nada que eu realmente queira responder a Kevin.
Eu preciso me ocupar.
Desço as escadas e vou direto para a oficina que, como eu esperava, está uma bagunça. Então, como eu havia feito anteriormente em casa, faço mais uma faxina. No fim das contas, parece claro que a única coisa que permanece totalmente fora de ordem é a minha mente.
Tomo um banho longo assim que concluo a segunda faxina do dia e me jogo na cama, exausta, com uma toalha branca em volta dos cabelos molhados e um conjuntinho branco da Calvin Klein que são, provavelmente, as duas peças mais confortáveis que existem na minha gaveta de roupas íntimas.
Falta pouco mais de duas horas para o horário em que meu pai e meu irmão deixarão Oaks Field e partirão para a capital da Dakota do Norte, quando a porta do meu quarto é aberta, fazendo com que eu tome um susto.
— E aí, garota! —diz Cassandra, animada. Ela está com os óculos de coração mesmo que o dia esteja nublado, uma camiseta vermelha que combina com a armação dos óculos, shorts jeans e tênis brancos impecavelmente limpos, além de usar uma pequena bolsa preta como mochila.— Eu assustei você?
— Sim, você entrou sem bater e eu tô quase pelada. —falo, enquanto ela fecha a porta atrás de si e eu caminho até o guarda-roupas, procurando algo para vestir.
— Eu descobri um lugar e nós temos que ir. —levanto uma das sobrancelhas, curiosa, enquanto tiro do guarda-roupas um short de cintura alta e uma camiseta de meia manga. — Eu encontrei uma cartomante.
— Fala sério, Cassie.
— Eu estou! —ela sorri, animada, sentada na cadeira giratória da minha escrivaninha. — A gente tem que ir, vai ser incrível.
— Como você descobriu isso?
— Estava dando uma volta pela cidade, correndo, e aí eu encontrei. Vamos, por favor? Eu até pago para você.
Analiso a situação mentalmente e concluo que não há nada de mau na ideia de Cassie, então balanço a cabeça para cima e para baixo, concordando, e assistindo-a bater palmas, animada.
— Eu não acredito nessas coisas, você sabe, então não espere que eu vá acompanhar você em toda essa animação. E, além disso, desde quando você acredita?
— Sei lá, mas ela deve ter algumas respostas.
Respostas sobre Justin, é isso o que ela quer dizer.
— Você vai ficar sozinha hoje, que tal uma noite das garotas? —Cassie sugere e eu assinto com a cabeça. — O tempo pede filmes de terror e comidas nada saudáveis. Inclusive, vou abrir uma exceção na minha alimentação hoje, porque pelo resto da semana eu vou me alimentar da maneira mais correta possível.
Cassandra vai competir com a equipe de natação na quinta-feira, à tarde.
— Que tal irmos no mercado, então, comprar algumas besteiras e talvez um vinho barato? —proponho.
— Ótimo.
Depois de me vestir e pentear meus cabelos molhados, me despeço do meu pai e de Andrew, desejando a ele uma boa luta, pego a chave de casa e do carro, minha carteira, e entro no Maverick junto com Cassandra, que me guia pela cidade até onde ela havia visto o tal local de atendimento da cartomante.
Na região norte de Oaks Field há uma rua na qual eu quase nunca atravesso e onde se concentram a maioria das boates —ou eu deveria chamar de prostíbulos? —então eu fico surpresa quando acabamos estacionando aqui.
— O que uma cartomante faz por aqui? —pergunto, confusa. — Essas coisas não tem tudo a ver com energias e espiritualidade?
— É, mas eu imagino que ela não ganhe o suficiente para alugar um local no centro da cidade, então… —Cassie levanta os ombros.
Cartomancia da Alma, é isso o que diz na placa.
— Ela é uma cigana ou algo assim?
— Não sei. Está preparada para saber tudo o que ela vai ver na bola de cristal dela?
— Se ela realmente tiver uma bola de cristal eu vou embora na hora. —brinco e ela ri.
— Ok, vamos?
Ela tira os óculos de coração e eu desço do carro ao mesmo tempo que Cassandra o faz e então entramos no local.
Há um pequeno sofá e uma mulher ruiva sentada atrás de uma mesa. Seus olhos estão fixos em uma agenda e um gato está deitado no seu colo.
— Boa tarde. —ela diz. — Vocês têm horário marcado?
— Oi! —Cassandra responde e, me surpreendendo, conclui: — Sim, temos sim. Sou Cassie Abbott, marquei duas sessões de cartomancia.
A mulher folheia a agenda e Cassandra tira a alça da bolsa do ombro.
— Não, não. —a ruiva a interrompe. — Você paga só depois. Eu aviso assim que a madame Alma puder atendê-las, podem se sentar, enquanto isso.
Nós agradecemos e nos sentamos no sofá, então, assim que ficamos sozinhas, depois que a dona dos cabelos enormes e laranjas sai, entrando por uma porta na lateral da sala, eu cochicho para Cassie.
— Ok, primeiro de tudo: você já tinha marcado um horário sem ter me consultado antes? —minha amiga levanta as mãos, se rendendo e sorrindo. — E, em segundo lugar, o seu sobrenome nem é Abbott, por que você mentiu?
— Porque se eu dissesse o meu nome ela poderia pesquisar no Facebook e saber tudo sobre a minha vida então não teria a menor graça.
O gato, simpático, caminha até nós e passa o rosto sobre as minhas canelas descobertas. Estico o braço para acariciar seu corpo e ele ronrona.
— Quem quer ser a primeira? —a ruiva pergunta, voltando ao seu local.
Eu e Cassandra nos entreolhamos.
— Pode ir primeiro, Adele. —ela diz, por fim.
Penso em ceder a vez, mas quanto mais rápido eu acabar com isso, melhor será.
Me levanto do sofá e caminho até a porta indicada pela mulher que nos recepcionou. Giro a maçaneta e lá está madame Alma.
Alma é uma senhora de talvez uns setenta e poucos anos, usa o que parecia ser um vestido amarelo longo de mangas curtas bufantes e babados, usa também lenço no cabelo comprido e grisalho, quase totalmente branco, além de acessórios como pulseiras e colares. Na mesa há uma toalha roxa de um tecido brilhante, alguns incensos queimando, velas e, claro, um baralho de cartas. Nenhuma bola de cristal, felizmente.
— Com licença. —falo.
— Pode se sentar. —ela diz, sorrindo. E é o que eu faço, sentando-me na cadeira à sua frente. — Sou Alma, e você?
— Adelaide.
— O que traz você aqui? —pergunta a senhora, embaralhando as cartas.
— Sinceramente, a minha amiga queria vir e eu estou fazendo companhia.
— Tem algo específico que você quer saber?
Na verdade tem, sim. Mas não falar nada é mais simples, menos expositivo e, dadas as circunstâncias, talvez não saber seja melhor não perguntar nada do que ficar sabendo de coisas que podem piorar toda a situação —se é que essa coisa toda de cartomante é real. E, de qualquer forma, eu me sentiria estúpida para sempre a cada vez que eu pensasse sobre esse momento se eu perguntasse algo relacionado ao Zayn. Então eu falo que não.
Alma mexe a cabeça, lentamente, para baixo e para cima.
— Não vai perguntar nada?
— Por enquanto não, obrigada.
— Então, em que você não acredita, em mim ou nas cartas? —ela pergunta, me pegando desprevenida.
— Eu não falei que eu não acredito eu só… Eu não sei.
Sem dizer nada, Alma dispõe as cartas sobre a mesa, viradas de uma maneira em que eu não sei qual é qual.
— Escolha uma delas e guarde-a com você. —faço o que ela pede, escolhendo uma das cartas e colocando-a no meu colo.
Logo em seguida, Alma me instrui a escolher dez cartas entre todas elas. Logo após isso, ela recolhe as cartas que sobraram, fecha os olhos e vira as escolhidas por mim para cima, revelando-as —o que, na verdade, não me diz nada, já que eu não sei lê-las.
— Escolha três delas enquanto pensa nos seus pontos fortes.
Eu obedeço e o faço, enquanto ela continua de olhos fechados. Das restantes eu tenho que escolher mais três, desta vez pensando nos meus pontos fracos. E, das quatro últimas, as três escolhidas seriam selecionadas enquanto eu penso sobre o meu futuro. Nada parece fazer sentido.
— Vire para baixo a carta que sobrou.
Alma organiza as demais cartas na mesa, prestando muita atenção, depois entrelaça seus dedos das mãos sobre a mesa e dá um sorriso forçado.
— Você vai ficar surpresa com o quanto as cartas podem dizer.
Me arrepio no instante em que ela diz aquilo. Olho os desenhos e os nomes escritos em cada carta, mas eu não sou capaz de interpretá-los. E, mais do que eu havia imaginado, eu quero que ela me diga o que elas têm para dizer.
— Você é ambiciosa, Adelaide, tem um espírito livre e muita insatisfação. Mas isso é bom, se você conseguir equilibrar. —isso não significa nada. — Tem algo do seu passado que atormenta você até hoje. —isso é verdade, mas ela pode dizer para qualquer um e vai continuar sendo.
— E sobre o meu futuro, o que tem aí?
— Caos. —responde, rapidamente. — Mas você não faz ideia disso, não é, mocinha? Existe perigo ao seu redor e quando você perceber já vai ser tarde demais. —isso está começando a me assustar. — Existe algo bom, apesar disso, algo muito bom. Você vai ter o que você quer.
— Eu quero muitas coisas, —eu dou uma risada nervosa. — do que exatamente você está falando?
— Deixar essa cidade. Não sei se por bem ou por mal, mas você vai ir embora eventualmente. Talvez precise voltar, um dia, mas você não pertence a esse lugar ou a essas pessoas.
Ir embora. Isso soa como um sonho.
— Você sente muitas coisas sobre a sua mãe, não é? Admiração e ao mesmo tempo inveja pela coragem dela, mas também sente falta. —ela troca as cartas de lugar. — Você precisa controlar sua impulsividade, pensar antes de falar e fazer. Você não se importa com o que as pessoas pensam ou dizem e eu vejo isso, mas a opinião dos outros sobre você pode tirar algumas pessoas da sua vida, pense nisso.
Subitamente, Alma fica em silêncio e, quando eu penso que havia acabado, ela arrasta sobre a mesa a última carta, aquela que havia sobrado quando eu fiz as escolhas que ela instruiu, então a vira.
A morte.
— Morte? —pergunto em voz alta, sem ter a pretensão. — A minha última carta é A Morte?
— A carta que está com você desde o início. —diz, lembrando-me de uma carta que eu já havia me esquecido. — Coloque-a sobre a mesa.
Coloco a carta ao lado da A Morte e ela a virou. O Mago.
— Já estamos acabando, essas são suas últimas cartas.
— Você pode, por favor, falar sobre essa carta, A Morte?
— Ela não significa morte, literalmente. —esclarece. E é um alívio. — Nada é literal, por aqui.
— Então significa…?
Alma começa a explicar.
— O Mago: nem tudo é o que parece ser. A Morte: uma transformação gigantesca. Você vai precisar ser forte.
Mais silêncio.
Abro a boca para agradecer e ir embora, mas ela me interrompe e, parecendo relutante, diz:
— Eu vi sobre aquilo. O segredo e o homem. No plural, quero dizer.
No plural?
Os segredos. Os homens.
— E o que há sobre isso?
— Algo muito… —ela para, limpa a garganta ajeita a postura. — Algo grande vai acontecer. Segredos vão vir à tona.
— Relacionado a quem? Que segredo?
Ela recolhe todas as minhas cartas da mesa e junta-as com o resto do baralho, embaralhando-as.
— Eu não sei qual. A única que eu sei é uma frase, faz sentido para você?
— Não sei, que frase é? —eu estou ansiosa e curiosa.
— Seja fiel a quem você é. —Alma diz, por fim. — Isso te lembra algum dos dois?
A precisão me assustou. Ela sabia que eram dois. Kevin e Zayn, só poderia ser eles. Mas aquilo não me diz nada.
— Não, como eu vou saber quem é?
— O tempo dirá. Você vai precisar se forte. O dinheiro comprou o silêncio uma vez, mas dessa vez não será assim. —ela respira fundo antes de continuar. — Vai depender só de você, dessa vez.
Eu simplesmente não consigo falar nada. Então Alma se levanta e caminha até a porta, deixando bem claro que o meu tempo com ela havia terminado, e, segurando a maçaneta, ela complementa:
— Não perca a cabeça. —Alma gira a maçaneta. — E seja corajosa. Você vai precisar ser.
Parece que algo acontece comigo, com meu cérebro, durante todo o tempo em que eu atravesso a sala e a porta, caminho até o sofá onde antes eu estava sentada junto com Cassie, naquele momento, fico sozinha. Eu só ouço um zumbido, nem mesmo consigo agradecer. As coisas que ela me disse estão correndo pela minha cabeça.
Como ela pode saber sobre os segredos? Será que ela sabe que existem segredos, ou sabe também o que eu estou escondendo?
Não perder a cabeça, foi isso o que ela disse. E isso vem sendo um esforço desde a avalanche de desastres que se deu na minha vida depois da confusão com Kevin. Todo aquele monte de confusão que eu não consigo esquecer.
E eu me lembro, como se tivesse acontecido poucas horas atrás, como tudo começou.
Kevin West havia sido meu colega por sete anos, até eu trancar o ano na escola. Depois houveram dois anos sem ter nem uma única aula com ele e, então, no ano passado, quando ele repetiu o ano, nós nos encontramos novamente. E foi em uma aula de física que tudo começou.
Corpos energizados com cargas elétricas opostas se atraem. Foi isso o que aprendemos naquele dia. Eu estava copiando os exercícios de Cassandra porque sempre fui um desastre nas exatas, e derrubei minha caneta. Parecia a porra de uma cena de filme, eu e Kevin levamos a mão até a caneta no chão e então tomamos um choque. Corpos eletricamente opostos, carga fluindo de um para o outro, isso é choque. Ele riu e eu também porque percebemos a coincidência.
Daquele dia em diante, ele parecia estar por toda a parte. Em todas as aulas eu reparava no cabelo loiro e no olhar desinibido. Nos corredores eu o via acompanhado dos outros garotos atletas. Nas festas ele era sempre a primeira pessoa na qual eu colocava os olhos. Até que ele começou a aparecer nas notificações do meu celular, enviando mensagens, me ligando durante a madrugada, me contando sobre o time, sua família, seu planos. Mas dos portões da escola para dentro, não passavam de olhares.
Mas havia um fator importante e se chamava Carly Smith. A capitã das líderes de torcida, vivendo o sonho adolescente americano, loira, magra, alta, popular e desejada, e, além disso, ex-namorada de Kevin.
O fato é que eles iam e vinham, o tempo inteiro. Mas eu e ele só íamos para frente, todo dia passando horas no celular. E é surpreendente como uma coisa leva a outra. Começa com um elogio, depois vocês estão enviando fotos no espelho e cada vez com menos roupa. E parece mentira quando eu me lembro que nos beijamos apenas duas vezes: em uma festa na casa dele —escondidos no banheiro— e, pela segunda e última vez, um dia antes de me chamarem na diretoria, no vestiário feminino, logo depois de um treino da equipe de ginástica.
Isso deixava tudo melhor, nunca neguei, eu gostava de receber as fotos depois do treino, suado e de regata, ou depois do banho, molhado com uma toalha em volta da cintura. Mas as coisas não funcionavam do mesmo jeito para nós dois. Eu recebia as fotos e depois elas iam direto para a lixeira. Kevin não fazia o mesmo.
Eu estava amarrando os cadarços do meu tênis quando Carly se agachou na minha frente. Os cabelos loiros amarrados em dois rabos de cavalo no topo da cabeça. Eu lembro exatamente das palavras que ela usou, “Estão nos chamando na diretoria. Eu estou do seu lado, não se preocupe”.
O diretor Cole estava usando uma gravata verde, eu lembro disso porque eu nem conseguia olhar nos seus olhos enquanto ele proferia as palavras que usou. Vulgaridade, infâmia, vergonha. Nenhuma delas foi direcionada a Kevin, que estava repassando as fotos onde eu e Carly aparecíamos nuas ou seminuas, para todo o time de futebol americano. Kevin nem mesmo estava lá.
O diretor contou que havia decidido não comunicar nossos pais porque isso acabaria com a reputação da escola —duas alunas que enviavam fotos íntimas para um garoto—, mas seríamos expulsas. Carly Smith sabia que ser filha dos médicos mais famosos da cidade serviriam de alguma coisa e graças a contribuição financeira enorme que eles davam todo mês o diretor concordou em não expulsá-la e ela exigiu que eu continuasse estudando aqui também. Mas, de qualquer maneira, eu fui expulsa da equipe de ginástica e ela deixou de ser uma líder de torcida. Como punição, depois que a treinadora das animadoras de torcida, que foi quem ouviu os garotos conversando sobre nossas fotos no vestiário, praticamente exigiu, o time de futebol americano acabou.
Os garotos do time concordaram em não falar mais sobre o assunto, porque, se falassem, seriam expulsos —teoricamente, porque, de verdade, eu nunca acreditei que isso realmente aconteceria. Se fosse uma ameaça sincera Kevin também teria sido chamado na diretoria. Mas os boatos existiam e eram diversos, entretanto, o mais aceito foi que eu havia sido o pivô do término entre Carly e Kevin e que eu e ela fomos expulsas porque nós duas tivemos uma discussão feia. Entretanto, uma das poucas pessoas que sabia a verdade era Mabel Smith, irmã mais nova de Carly e minha colega até hoje. E era por isso que ela está sempre de olho quando Kevin se aproxima de mim.
Alguns meses depois do acontecido, Carly se formou, entrou para Yale e lá está até hoje. Não tivemos mais nenhum contato até então, mas eu sou grata a ela por ter ficado ao meu lado mesmo sabendo da interação íntima entre eu e o seu —por vezes ex— namorado.
Nenhuma das minhas amigas ficou sabendo sobre isso, nem meus pais ou meu irmão. Era um segredo meu e para sempre seria. Pelo menos era o que eu pensava, até agora. Segredos vão vir à tona, foi o que Alma disse, eu só não sei quais.
O tempo piora. As nuvens ficam ainda mais escuras e o barulho dos trovões está cada vez mais intenso.
Depois que Cassandra sai da sua sessão de cartomancia e paga pelas duas sessões, nós entramos no Maverick e eu dirijo até um mercado para fazermos as comprar para a noite das meninas.
— Já enviei uma mensagem no grupo com as meninas para avisá-las sobre hoje a noite. —diz Cassandra, indecisa, tentando escolher qual chocolate fará companhia para as batatas fritas congeladas na nossa cesta de compras. — O que você tem? Não disse nada desde que saímos da cartomante.
— Sei lá, as coisas foram intensas lá dentro. —respondo, tentando me esquivar de perguntas mais detalhadas.
— Ela abriu meus olhos sobre Justin. Não faz o menor sentido eu desperdiçar minha juventude correndo atrás dele, principalmente porque eu sou linda e talvez esteja o ápice da minha beleza, isso precisa ser aproveitado.
— Eu estou totalmente de acordo.
— Adele, vai lá e pega um vinho, minha identidade falsa está na minha bolsa, tenho quase certeza. —minha amiga sussurra e eu concordo e saio, caminhando até onde ficam as bebidas.
Passo os olhos pela prateleira, procurando por um vinho tinto barato que não seja assim tão ruim. Estendo o braço, ficando na ponta dos pés para alcançar a garrafa e antes que eu consiga, aquela mão tatuada —e dessa vez com o punho machucado— o pega primeiro. Me arrepio, assustada.
— Como você pretende levar isso para casa? —Zayn pergunta, segurando o vinho.
Quando coloco meus olhos sobre ele, logo de primeira, eu noto. Seu rosto melhorou muito desde aquele dia em que eu o encontrei todo machucado na casa do vizinho de Cassandra. Mas o corte no seu lábio está aberto, pior. E isso combinado com os machucados na sua mão significam uma coisa: outra briga.
— Pode me entregar o meu vinho? —peço, irritada.
— Não é seu, você nem tem idade para comprá-lo. —ele sorri, satisfeito com a provocação, mascando um chiclete. — Eu encontro com você até quando saio para comprar cigarros, cidade pequena tem suas vantagens.
Olho para dentro de sua cesta e lá existem duas garrafas de whisky e um fardo de cerveja. Ótimas compras.
— Ou desvantagens. —retruco. — Cassandra está me esperando, eu preciso ir. Me dá o meu vinho.
— Você está brava mesmo comigo. Eu não quis ser grosso com você.
— Ah, Malik, dá um tempo. —bufo, tentando alcançar outra garrafa.
— Malik? —ele pergunta, dando uma risadinha. — Gostei.
— Você não pode descontar nos outros os seus problemas, principalmente quando ninguém tem nada a ver com eles. —reclamo, sem conseguir segurar.
Zayn coloca a garrafa dentro da sua cesta.
— Pode ir encontrar a sua amiga, eu entrego no carro para você.
— Está tentando me comprar com vinho?
Ele segura meu rosto, como havia feito na noite anterior antes de me beijar.
— Quem dera eu pudesse fazer isso, Adele. —ele murmura, malicioso. — Talvez eu só queira melhorar as coisas entre nós, mais uma vez.
Aperto os olhos, mexendo a cabeça e me desvencilhando do seu toque.
— Ótimo. —digo. — Já que quer comprar a paz entre nós dois com vinho, pelo menos compra um dos bons.
Tiro a garrafa da sua cesta de compras e a substituo por um vinho de cereja caro. Depois dou as costas, voltando até a minha amiga que me diz que não encontrou sua identidade falsa. Continuamos as compras, pegando tudo o que é necessário para que possamos fazer hambúrgueres à noite.
Quando voltamos ao meu carro não há nenhum vinho por lá. Ou Zayn, ou o seu carro na rua.
Dirijo até a casa de Cassie e a deixo lá para que possa arrumar as suas coisas para passar a noite na minha casa. Depois faço o percurso até a minha casa e não consigo deixar de reparar no Landau preto estacionado ali na frente. Coloco o meu carro na garagem, fecho o portão eletrônico e desço as compras do carro, deixando as sacolas em cima da mesa da cozinha e caminhando com pressa até a porta da frente da minha casa.
— O que você está fazendo aqui? —pergunto, cruzando os braços, alto o suficiente para que ele ouça enquanto desce do carro com o vinho em mãos.
— Tô trazendo o vinho que eu falei que entregaria para você. —ele responde, trancando o carro e caminhando em minha direção.
— Você só pode estar completamente louco! Meu pai e meu irmão poderiam estar em casa, Zayn.
— Mas não estão.
— E como você sabe disso?
— Eu sei de muitas coisas. —Zayn responde, por fim, entrelaçando seus dedos nos cabelos da minha nuca e grudando sua boca na minha, me fazendo dar passos para trás o suficiente para que ele entre na minha casa e feche a porta atrás de si.
Descruzo meus braços enquanto sua língua e a minha se mexem juntas, e abraço seu pescoço. Ouço a garrafa de vinho ser colocada em cima da mesinha do telefone, perto da porta, e depois sinto seu braço contornando a minha cintura e grudando nossos corpos.
Acompanho o seu caminhar até a parede onde eu bato minhas costas e ele afasta nossas bocas apenas o suficiente para que seus dentes possam puxar meu lábio inferior. Expiro pesado, com a respiração descompassada.
— É assim que você pede desculpas? —pergunto, sentindo seus lábios quentes descendo até o meu pescoço. — Vinho e... isso?
— Tá dando certo pra caralho, não tá?
— Você acha que isso é o suficiente para eu desculpar você?
Ele afasta o rosto do meu pescoço e cola sua testa na minha, segurando minha cintura por baixo do minha blusa.
— Se não é a gente pode subir para o seu quarto então e aí eu faço ser.
Reviro os olhos, mordendo o lábio tentando não sorrir, e empurro seu corpo para trás, afastando-o de mim.
— Idiota. —reclamo, permitindo que o sorriso tome meu rosto enquanto eu pego a garrafa na mesinha e sigo até a cozinha, ouvindo-o caminhar atrás de mim até o cômodo. — Você tem que ir embora, minhas amigas vão chegar a qualquer momento.
— Você me esconde até das suas amigas?
— Isso mesmo, fica tudo entre nós. —falo, guardando as compras na geladeira. — É sério, como você sabia que eu estava sozinha?
— Meu amigo da academia me falou que o seu irmão vai lutar em Fargo.
Me escoro na mesa, enquanto Zayn continua parado à porta da cozinha.
— Ok, pode ir embora. —repito. — Antes que minhas amigas cheguem. Vai logo.
— Festa do pijama? —questiona.
— Como quiser chamar.
— É, você realmente não me quer aqui. —mexo a cabeça de um lado para o outro, mostrando que não. O que não é exatamente verdade, mas ele não precisa saber. Me deixa tensa tê-lo aqui. — Um beijo de despedida, dessa vez?
Não sei se Zayn esperava uma resposta, mas ele caminha até mim e quem começa o beijo fui eu, apreciando seus lábios o seu gosto acentuado pelo sangue e parecia doce, bom para caralho. Tudo parece mais intenso, talvez por estarmos sozinhos na minha casa, sob a apreensão da possibilidade de sermos pegos por uma das minhas amigas. Deixo que beijo dure e se torne mais violento, mais impetuoso. Até que os seu joelho se encaixa no meio das minhas pernas, pressionando, enquanto Zayn abre o botão do meu short e depois corre com as pontas dos seus dedos até barra elástica da minha calcinha, perto demais da minha bunda.
Estremeço quando ele desce a mão até minha bunda por baixo do short jeans, mas acima do tecido da calcinha. Então ele aperta, com força, me fazendo gemer com a boca grudada na sua. Zayn dá uma risadinha, tirando as mãos do meu corpo e afastando-se de mim.
— É, deu para perceber que você não quer minha companhia. —diz, irônico. — Bons sonhos, Adele.
Tendo tido isso ele sai. E eu apenas o assisto, caminhando pelo corredor e depois saindo pela porta da frente. Ouço o carro arrancando e jogo a cabeça para trás. Percebo minhas pernas tremendo e fecho o botão do short jeans, tentando entender como ele consegue fazer aquilo comigo.
Essa é a maior diferença entre como eu fico com Zayn e como eu ficava com Kevin. Com Zayn eu sequer me lembro de tentar manter o controle, as coisas simplesmente acontecem. Não há controle, eu não domino porra nenhuma e muito menos tenho algum tipo de equilíbrio. A falta dessas coisas é mais do que o suficiente para uma coisa acontecer. Três palavras. As mesmas ditas por Alma.
Perder a cabeça.
❝Seus olhos e palavras são tão frios, ah, mas ele queima como rum sobre o fogo, quente e rápido e raivoso como ele pode ser. Eu ando meus dias em um fio, parece feio, mas está limpo.
Oh, mãe, não tema por mim. O jeito que ele me diz que eu sou dele e ele é meu, mão aberta ou punho fechado, qualquer um está bom. O sangue é raro e doce como vinho de cereja. ❞
Hozier — Cherry Wine
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