História Magic Hour - Space age love song

Entre um estúdio de tatuagem pertencente a uma moça de madeixas cor de girassol cuja assinava seus trabalhos com o pseudônimo Winter e uma lojinha de consertos para eletrônicos em geral, há uma papelaria miúda quase despercebida, em que a plaquinha na entrada com os dizeres “Livraria e Papelaria Black Mamba” cintila sob o fulgor vívido do Sol. O lugar, localizado em uma das avenidas movimentadas no centro da cidade, passara de geração em geração na família Yoo, tendo como atual dona do estabelecimento, a gentil, porém um tanto rígida, Yoo Jimin.

No balcão de atendimento, mantendo as pálpebras fechadas, um rapaz de cabeleira obsidiana adornada de mechas cor-de-rosa tingidas de papel crepom, viajava na galáxia da própria mente, alheio ao mundo ao redor.

(“Tinta de cabelo tá mais cara do que um pacote de arroz, não posso gastar dinheiro assim. Por enquanto, faço o que está ao meu alcance”, dissera ao mergulhar os fios ondulados na tintura improvisada. “É mais fácil, prático e de graça também! A Jimin diz que sou um bom funcionário, então me deixa pegar umas folhas sem pagar”).

Um pequeno ventilador esvoaça suas madeixas, jogando rajadas quentes contra as bochechas vermelhinhas, numa tentativa falha de amenizar o calor. Ao lado do objeto, um radinho miúdo, repleto de adesivos de flores, emprestado de seu amigo, Kang Taehyun, estava ligado, sintonizado na estação local. 

“5-8-6 FM, agora são meio-dia em ponto. A temperatura ultrapassa os trinta e sete graus e há previsão de chuva para o finalzinho da tarde, não esqueçam de se prevenir com um guarda-chuva! Os roxos e azuis trazem boa sorte.”

Anuncia o locutor, a voz tão conhecida quanto aquele a quem ela pertencia, adentrando os tímpanos e cutucando o coração do rapaz com sentimentos calorosos. Um sorriso singelo desenha-se nos lábios brilhantes pelo gloss labial sabor melão, permanecendo em seu rosto por longos instantes, mesmo quando as íris escuras vislumbram o movimento caótico lá fora.

“Iniciaremos a programação de hoje com uma indicação pessoal e, logo na sequência, atenderemos a primeira ligação do dia. Àqueles que estão almoçando agora, tenham uma boa refeição, se alimentem bem e não esqueçam de se manterem hidratados. Aqui quem fala é Choi Soobin, obrigado por nos acompanhar! A todos uma ótima tarde, fiquem agora com Just Can't Get Enough do Depeche Mode.”

Os acordes inconfundíveis do teclado ecoam pelo ambiente, a melodia agitada, acompanhada da voz de Dave Gahan, preenchendo a quietude. 

O atendente da papelaria, cujo chama-se Beomgyu (de mesmo sobrenome do locutor anteriormente citado), cantarola baixinho, observando a avenida através da vidraça transparente. Há almas apressadas perambulando pelas calçadas, praguejando reclamações e xingamentos ao vento, estudantes retornando da escola e o trânsito turbulento cheio de automóveis barulhentos.

— We walk together, we're walking down the street. I just can't get enough, i just can't get enough!

Acompanha Beomgyu, batucando os tênis surrados no chão. Meias brancas estampadas por desenhos de caveiras com chapéu de caubói enfeitam-lhe os pés, expostas pela bainha da calça dobrada até as panturrilhas. Os dedos esguios, com unhas de tamanho mediano pintadas de esmalte preto descascado, deslizam sobre o balcão, tamborilando a superfície lisa no ritmo da música. 

— Everytime i think of you, i know we have to meet. I just can't get enough, i just can't get enough!

Embalado pela canção, arrisca-se a sacolejar o corpo discretamente, remexendo os quadris em movimentos cômicos e peculiares. A cabeça chacoalha eufórica, o estalar alto de seu pescoço se sobressai ao som do rádio e os fios de cabelo da franja deslizam por sua pele, exibindo a testa salpicada de gotículas de suor incômodo. 

— It's getting hotter, it's a burning love, and i just can't seem to get enough!

Do outro lado do estabelecimento, abanando-se com um leque verde-abacate — embora um ventilador maior e mais eficiente ventilasse ao seu lado —, Jimin contempla o show particular rindo baixinho. Beomgyu não se importa de tê-la como espectadora, apreciava a companhia e a risada contagiante. A considera como uma amiga além de sua chefe, são conhecidos desde o ensino fundamental — embora vez e outra, o pensamento de receber um aumento de salário caso a bajulasse, surgisse em sua mente.

— Tu é um cabra arretado mesmo, hein, Beomgyu! — ela diz, aplaudindo-o com fervor.  

E ele apenas lhe lança um sorriso amarelo, continuando a sibilar a letra da canção.

Ansioso, aguarda o momento em que as ligações dos ouvintes serão atendidas. Quando a melodia enfim se encerra e o timbre suave de Soobin retorna a preencher o ambiente, não hesita em sacar o celular do bolso da calça rapidamente, discando o número da rádio. A chamada se prolonga por ligeiros segundos, um bip característico ecoa até a ligação ser aceita.

“Alô, com quem eu falo?”

— Bom dia, Soobin, ou seria boa tarde? Aqui é o Gyu.

“Olá, Gyu! Bem, o tempo é relativo, então acho que tanto faz.”

— Inteligente — Sorri presunçoso, escutando um suspiro do outro lado da linha. Tinha absoluta certeza de que Soobin sabia com quem estava conversando, ele reconheceria sua voz mesmo rouca ou ligeiramente distorcida.

“Tem algum pedido especial?”

— Sim, Space Age Love Song do A Flock Of Seagulls. A letra dessa música expressa tudo o que eu gostaria de dizer.

“Boa escolha. Vai dedicá-la a alguém?”

— Sim, pra você.

“Ah… Obrigado, eu acho.”

— De nada. Tenha um bom dia de trabalho, espero que sua tarde seja ótima!

“Desejo o mesmo, se cuide e não pule refeições!”, ele diz, o tom de voz soando meigo e sereno, embora fosse notório um lampejo de irritação. Consequências de se ter um Choi teimoso e inquieto como melhor amigo. “Agora na 5-8-6 FM, ficamos com Space Age Love Song do A Flock Of Seagulls, pedido especial do Gyu pra… mim…”

Há uma pausa dramática, o silêncio repentino tornando-se constrangedor. Beomgyu deixa escapar uma risada baixa, apoiando o queixo nas mãos. 

“Na sequência, atenderemos os pedidos feitos em nossas redes sociais. Se cuidem, pois a saúde de vocês é importante. Boa tarde!”

Quando a música se inicia, Beomgyu acomoda-se no banquinho de plástico, espreguiçando-se relaxado. O sorriso em seu rosto alarga-se, o relógio em seu pulso esquerdo apita, indicando o encerramento de seu horário de expediente.

— Sinceramente, se eu fosse o Soobin, te daria um belo soco — Jimin ri, jogando papéis coloridos sobre o balcão. — Coitado, é perceptível o quanto ele fica constrangido sempre que tu liga pra dedicar uma música.

— É adorável. 

— Se algum dia ele te quebrar na porrada vai ser merecido. Já deu seu horário, pode ir pra casa, a Aeri chega daqui a pouco.

Beomgyu assente, permanecendo sentado por breves instantes antes de levantar-se num pulo, sorrindo de orelha a orelha. Despede-se de Jimin com um beijo estalado entre a cabeleira com aroma de menta, juntando-se à amálgama de espíritos nas ruas. Seria uma longa caminhada até o apartamento onde morava e embora fosse estressante estar no meio da multidão barulhenta, era obrigatório suportar a balbúrdia ao redor, pois não tinha um tostão furado nos bolsos para pagar transporte, somente embalagens de chiclete. 

Mantendo o rádio de Taehyun em segurança na mão direita, segue o caminho concentrado em permanecer sossegado. Questiona-se o que deveria preparar para o almoço, talvez pão recheado com salsicha e suco de maracujá para acompanhar, ou o macarrão instantâneo que deixou guardado em um dos armários na semana passada. Yeonjun (também Choi), um de seus colegas de apartamento, provavelmente deixaria arroz cozido numa das panelas, mas suas habilidades culinárias eram duvidosas e Beomgyu não ousava arriscar desde a um última vez, quando viu sua vida passar diante de seus olhos ao experimentar uma sopa extremamente salgada preparada pelo outro rapaz.

O Sol do meio-dia frita seu cérebro com bastante tempero e castiga-lhe a pele sensível com queimaduras à medida que se esgueira nas calçadas, esbarrando vez e outra em pobres-diabos impacientes almejando estarem no conforto de seus lares. Praguejando mentalmente, apressa os passos, arrependendo-se de não ter usado protetor solar como Soobin sugeriu antes de sair de casa. 

Depois do que aparentam ser horas passeando pelo inferno, abraçado por chamas ardentes, finalmente chega ao seu destino. Suspirando aliviado, adentra o apartamento, sendo recebido pelo habitual barulho da televisão ligada e a melodia familiar do teclado sendo tocado, vindo de um dos quartos (ainda se questiona como nunca receberam reclamações dos vizinhos ao longo dos quatro anos de estadia no local). 

No balcão da cozinha, Yeonjun e seu chamativo cabelo cor-de-rosa contrastando com o pijama preto como carvão, encontra-se deitado sobre o mármore, a cabeça acomodada nos braços e os olhos vidrados na TV. No outro lado do cômodo, a cabeleira loira de Taehyun remexe-se de um lado para o outro enquanto ele organiza as louças recém lavadas no armário.

Era uma rotina típica no lar compartilhado com seus quatro amigos e colegas de banda: Yeonjun, Soobin, Taehyun e Kai — ou Hyuka. Conheciam-se desde que eram moleques catarrentos e jogavam bola no meio da rua, sujando-se de lama para o desespero de suas mães. Durante o ensino médio, formaram a Tomorrow x Together, banda independente nascida do desejo em comum de conquistar o mundo com música. Quando todos alcançaram a maioridade e conseguiram empregos dando um passo em direção a estabilidade financeira, mudaram-se para um apartamento pequeno, próximo ao centro da cidade, onde vivem desde então.

A convivência entre os cinco era caótica e ligeiramente estressante, regada por discussões bobas e risadas escandalosas. Entretanto, quando não estavam gritando pelo barulho alto da guitarra de Beomgyu nas tardes monótonas de domingo, os berros de Kai e seus jogos de terror às três da matina nas segundas-feiras, ou Taehyun testando seu alcance vocal nas madrugadas, apreciavam os poucos instantes harmônicos em grupo sentados no chão da varanda, sob a luz pálida da Lua, tendo apenas os astros celestes e Toto, o papagaio de Beomgyu, como espectadores.

— Bom dia, perdedores — cumprimenta o dito-cujo, apressando-se rumo à geladeira.

— Bom só se for pra você — Taehyun resmunga, fechando com força uma das portas do armário.

— Tá mal-humorado, é?

Não há uma resposta verbal, Taehyun se limita a lançar-lhe um olhar ameaçador, desafiando-o a testar sua paciência. 

— Gyu, olha só! — Yeonjun chama animado, um sorriso radiante adornando-lhe os lábios cheinhos. — Tá passando Yu Yu Hakusho, acredita? Me sinto tão nostálgico.

— Cara, eu já disse que você tem que parar com essa mania de deitar no balcão.

— Deixa de ser chato, tá parecendo o Taehyun.

Com a menção de seu nome, o dito-cujo joga uma tigela de plástico na cabeça de Yeonjun, e Beomgyu quase se engasga ao rir enquanto tomava goles generosos de água. Recuperando-se após uma curta crise de tosse, entrega o radinho de Taehyun, murmurando em agradecimento.

— Não vai trabalhar hoje?

— Não, hoje é meu dia de folga, graças aos céus — responde Yeonjun, espreguiçando-se como um gato. Contendo a risada que ameaça escapar subitamente, Beomgyu recorda-se de uma música que compuseram juntos aos quinze anos, intitulada Cat and Dog. — Não estou com humor para aguentar adolescentes.

— Vê se lava suas roupas, então, seu projeto de gambá — Taehyun reclama — nosso quarto tá parecendo um chiqueiro por sua culpa!

Ambos começam uma discussão sobre falta de higiene e Beomgyu se retira silenciosamente em direção ao quarto que divide com Soobin, elogiando mentalmente Yeonjun pela paciência em dar aulas de inglês para alunos do ensino médio. 

Ao adentrar o quarto, é recebido por Toto, que acomoda-se no topo de sua cabeça, depositando selares em suas madeixas. Sorrindo afetuoso, acomoda o papagaio nas mãos e afaga as penas verdinhas como as folhas das árvores, antes de deixá-lo na cama de Soobin. 

Necessitava de um banho relaxante e um longo cochilo para descansar.

Quando o Sol se põe e a Lua pincela as ruas em nuncas prateadas, Beomgyu acorda atordoado, sentindo um peso extra na rede onde cochilava, e o calor de outro corpo ao seu lado.

— Vai te lascar, Choi Beomgyu! — exclama Soobin, notando seu despertar.

— O que eu fiz? — resmunga sonolento, a visão embaçada focando-se aos poucos nas bochechas rechonchudas e o doce olhar do outro Choi.

— Não se faz de sonso. Já disse pra não ligar pra rádio e dedicar música pra mim, isso me deixa desconcertado! — Soobin murmura irritado, acertando um tapa fraco no braço de Beomgyu.

— Fofo.

— Fofo é o caralho! 

— É adorável te deixar constrangido.

— Tu é um idiota.

— Sou mesmo, admito — Beomgyu ri, aconchegando Soobin entre os braços. Este que aceita de bom grado, apesar dos xingamentos sussurrados, deitando a cabeça em seu peito. — Olha, prometo que toco Maze in the mirror pra ti mais tarde.

— Eu toquei essa música na rádio hoje.

— Logo essa? Nossa banda tem outras melhores.

— Gosto dessa, te ouvir cantar é relaxante.

— Só tu acha isso.

— Calúnia.

— Ei, eu tava pensando… que tal escrevermos uma música juntos? Queria compor contigo.

— Não sou muito bom nisso.

— Não seja mentiroso, Soobin. 

— Não to mentindo, é a verdade.

— Besteira, tuas composições são ótimas. Aceita ter uma música pra chamar de nossa?

— Certo… vamos tentar.