1. Spirit Fanfics >
  2. Mais forte que o tempo >
  3. Vicissitude

História Mais forte que o tempo - Vicissitude


Escrita por: Super-nova

Notas do Autor


___Este capitulo foi revisado e repostado, sem alteração no teor principal da história, em 02/09/2020___
___Este capítulo foi betado em fevereiro de 2023___


_____________________________________________
Olá.
Vou logo mandando a real porque a essa altura vocês já entenderam que falar é comigo mesmo.
Hoje tem bastante nota inicial e final, mas podem auxiliar para melhor degustação do capítulo.
Eu aconselho, contudo não obrigo.
Vamos lá

Algumas considerações para o capítulo

✩ Tarte tartin é uma torta típica francesa, tradicionalmente de maçã, que é feita invertida: a fruta é posta na assadeira antes da massa. Ao assar a fruta carameliza e ao desenformar ela fica por cima. No Brasil fazemos algo parecido com banana e abacaxi.

✩ Mílo, ou μήλο, em grego, em tradução literal significa maçã

✩ A Museion Editora é fictícia, ok, criei para a fic. Mas não me espantaria nada se existir realmente uma por aí

✩ A título de curiosidade, Museion é o templo das musas. Na mitologia grega as musas, filhas de Mnemosine - deusa da memória - são entidades capazes de prover inspiração ao homem, para arte e ciências, cada uma para um fim, sendo ao todo nove musas. Agora se você ouvir a expressão "musa inspiradora" já sabe de onde vem.

✩ Blockbuster é uma expressão para designar um sucesso de vendas e mídia. Algo que caiu no gosto popular, que todos conhecem e gera boa receita. É um termo utilizado para filmes, mas comumente visto aplicado à outras modalidades



Enjoy!

Capítulo 4 - Vicissitude


Fanfic / Fanfiction Mais forte que o tempo - Vicissitude

Shaka acordou e procurou o marido com a mão, instintivamente. Retornou à realidade e abriu os olhos. Era estranho estar no sebo. Era estranho não sentir o braço de Saga ao alcance de suas mãos, era estranho não se virar para o lado, velar seu sono por um ou dois minutos, agradecer silenciosamente por tê-lo ao seu lado e beijar seu peito nu, na altura de seu coração, enquanto o outro dormia. Também não levantaria e prepararia o café de ambos. Sentiu-se amargo. Era um homem extremamente apegado à sua rotina, mas não era simplesmente isso. Acontecia que Saga fazia uma falta visceral. 

Levantou e pôs-se a arrumar tudo, guardando os lençóis e transformando a cama em sofá. Era segunda-feira e seria uma longa semana. Lavou o rosto, escovou os dentes e os cabelos, prendendo-os em um rabo de cavalo alto, deixando solta a franja e algumas mechas que lhe emolduravam o rosto. Terminava de se vestir quando seu celular tocou. Era Camus.

 

— Sim?

— Bonjour, mon ami¹! Estou na porta do Minerva.

— Bonjour, ruivo — disse imitando sotaque francês. — Um minuto.

Shaka estranhou. Olhou o relógio e ainda faltava meia hora para as oito, quando então abriria seu comércio. Milo às vezes aparecia cedo, mas Camus trabalhava como farmacêutico em um laboratório no outro lado da cidade. O que estaria fazendo ali? Vestiu a bata marinho de meia manga, com gola quadrada que, como a maioria de suas roupas de verão, lhe deixava as clavículas alvas à mostra, colocou-a para dentro do jeans de tom muito parecido e correu para abrir a porta.

 

— O consultório do garoto maçã é depois da esquina, acho que você errou de loiro! — comentou num tom amigável, dando passagem para que o outro entrasse.

Camus o fez, esperando o anfitrião encostar a porta e virar o semblante novamente para si. Shaka o estudou com os olhos. Portava uma sacola em uma das mãos e vestia uma polo preta com pespontos claros muito delicados, com caimento perfeito, jeans pretos muito escuros, sem lavagem alguma e sapatos de couro também pretos. Estava vestido para o trabalho. Seus longos fios ruivos estavam soltos. Um pequeno sorriso desfez momentaneamente a habitual cara de poucos amigos.

— Pois Milo disse-me ontem que seu frigobar estava desprovido de guloseimas matinais. 

— Maçã fofoqueira — retrucou, cruzando os braços em uma falsa e teatral indignação, ao que Camus sorriu novamente. 

— Sabe, penso eu que a melhor maneira de mimar um nativo de virgem é com algo feito à mão. — Shaka arqueou uma sobrancelha, curioso com o discurso alheio. — É que ele me disse que gostaria de mimá-lo. Oui², mimá-lo, com estas palavras. Então tomei a dianteira e lhe fiz isso — concluiu, estendendo a sacola.

Shaka segurou-a, um tanto sem graça e verificou seu conteúdo.

—  Atchá³! Você fez tarte tatin! E olha só, por falar em maçãs... — riu, olhando para os pedaços de torta feita da fruta. — Milo diz que seu tarte tatin é melhor que o de qualquer patisserie da França!

— Muito embora ele nunca tenha saído da Grécia!

— Exatamente!

Ambos riram e a sineta da porta foi escutada, anunciando a entrada de Milo, segurando um suporte com três cafés, que flagrou o fim da cena. Camus e Shaka rindo. Rin-do. Abertamente. Ao mesmo tempo. Ele se esforçava para arrancar risos assim de ambos, mas eles estavam fazendo isso descaradamente nas suas costas. Armou um bico.

 

— Posso saber do que os príncipes acham graça?

— Oui! De você, claro, ma pomme⁴!

— Ah, não, você também? — reclamou, referindo-se ao apelido que lhe fora dado por Shaka e aderido por seu namorado que, na verdade, ele adorava, sendo aquela cena puro charme enciumado. — E como assim de mim?

Milo, que vestia um jeans de lavagem clara, e uma blusa de botões índigo, quase roxa, com os punhos dobrados até os cotovelos e seu quase inseparável coturno nos pés, não sabia se sentia mais ciúmes do SEU namorado ou do SEU amigo

— Traíras! — acrescentou, aumentando o bico que externava seu desagrado.

— Eu gosto de pomme, me agrada. Igualmente o bico que você está fazendo agora — Camus disse segurando seu "bico", beijando-lhe a bochecha e enlaçando seu braço direito com o próprio. Era avesso às demonstrações públicas de afeto, mas estava entre os seus.

— Olhe, amigo, eu acho elefantes criaturas adoráveis, mas você fica visivelmente melhor sem essa tromba. — Shaka, contaminado pelo clima íntimo e agradável, segurou-lhe pelo outro braço, conduzindo o casal para tomarem café, dando-lhe um beijo muito ligeiro na outra bochecha. — Sem ciumeira matinal, combinado? 

— Tá bom, tá bom — disse enquanto direcionavam-se para pequena copa —, mas vocês sabem que é Milo da ilha, não Milo da fruta, não é?

— Oui, ma pomme. Inclusive a maior riqueza encontrada na ilha não foi a estátua de Vênus, foi você! Milo de Milos! 

Pronto, uma cantada ruim. Era o suficiente. O grego se derretia feito manteiga na frigideira frente a qualquer demonstração de afeto do “seu francês”. Nem precisava caprichar. Beijou-o na boca na frente do amigo. Camus constrangeu-se, mas não reclamou e Shaka lembrou-se de Saga. E sentiu o corpo tremer. E morreu um pouquinho por dentro. Como podia doer assim? Tentou manter o semblante firme, não repetiria a cena do dia passado, bastava ter fraquejado uma vez.


 

No fim da tarde anterior, Milo saiu do estabelecimento do amigo, pensando em onde poderia encontrar algo para jantarem. Lembrou-se de uma cantina estilo italiana, mas que servia boas saladas e pratos gregos também. Era um pouco longe para ir a pé, então rumou até a bicicleta de Shaka. Ele sabia a senha do cadeado e destravou-o sem problemas. Passou a mão pelos berloques pendurados: um pingente com uma lótus branca, a pureza de espírito, que havia sido ofertada pelo pai assim que nascera — fora de sua mãe que faleceu no parto —; um galo de metal, dado por Camus, símbolo de coragem em seu país; um ramo de oliveira dourado, que simbolizava o triunfo, regalo oferecido pelo próprio Milo, e um olho grego, o famoso amuleto protetor contra todo mal e inveja, presente de Saga. Shaka também pendurou ali uma bolinha de pelúcia de três cores, que lhe lembrava sua gata de estimação e dizia que carregava toda sua família consigo, naquela bicicleta. Milo sorriu, orgulhoso de ser considerado “da família”. Era um homem extremamente fiel e estava disposto a ajudar os seus. Faria o que precisasse para ver o casal que admirava em paz novamente. 

Enquanto pedalava rumo ao restaurante, pensava nas oscilações de humor de Saga. Era inevitável para Milo analisar o comportamento de todos à sua volta devido aos anos dedicados ao seu ofício, acontecia de modo automático. Percebia em Saga um homem muito justo, dedicado e inteligente. Era despachado, comunicativo e vivaz. Possuía tino para liderança, mas era um espírito sem amarras e a liderança acabava por ser muitas vezes uma delas, por isso preferia ser uma "produção independente" ambulante. Conhecia gente no mundo todo, contudo, poucas pessoas a fundo. Pensava demais, por tempo de menos, possuindo dificuldade em manter a mesma linha por longos períodos. Agia demais, concluía de menos, sempre arranjava algo mais interessante que o que estava fazendo. O jornalista era um atalho. Um caminho audaz e pouco ortodoxo. Triunfante, mas completamente caótico. Aparentemente Shaka e Saga partilhavam apenas a inteligência acima da média, a sagacidade para toda espécie de assunto e o admirável senso de justiça. O indiano era fechado e um tanto ranzinza. Possuía uma acidez que em nada combinava com a fluidez aprazível do grego. Shaka era uma linha reta. Hirto. A maior distância entre dois pontos. Fixava-se em minúcias e detalhes, e nunca, nunca seguia por atalhos. Também contava com o tal tino para liderança, mas preferia servir. Ser útil era basicamente uma meta de vida e, analisando bem, Shaka só se envolvia com pessoas que poderia ajudar de alguma maneira. Se sua presença não fazia diferença, retirava-se e apenas se estendia onde esta o fosse. Era tradicional e preocupado e, apesar de se comunicar com muita eloquência, tinha dificuldades em externar sentimentos. Usava uma máscara de arrogância e olhava todos de cima, mas Milo bem sabia que eram as camadas de defesa do exército protetor de seu coração. Conhecia o amigo o suficiente pra saber da sua dificuldade em separar sentimento e fraqueza. Como fora obrigado a ser forte desde muito novo, associou ainda na infância que força era rigidez e que cada ser vivente a sua volta estava apenas esperando que ele demonstrasse seu sentir — suas fraquezas — para se utilizar disso para lhe puxar o tapete. Possuía um ciclo de convivência bem restrito, ao contrário do marido, e desvelava-se apenas para pessoas muitíssimo seletas. Era um homem de amarras, atado aos seus costumes, seu caráter, sua rotina, suas obrigações, era tudo, menos livre. Uma máquina de críticas ambulante, tudo poderia estar melhor, ser feito com mais afinco, dar uma lapidada. As brigas rotineiras do casal eram em sua maioria, inclusive, devido ao perfeccionismo paranóico de Shaka se opor ferozmente ao jeito “o importante é que conseguimos” de Saga.

Milo alcançou a cantina e pediu uma salada e um espaguete com berinjelas e tomates para viagem. Deu uma olhada nas embalagens, o macarrão parecia muito apetitoso, a salada era de folhas verdes, pimentões, tomate e queijo feta. Faltava o molho de iogurte. Shaka era viciado em qualquer coisa com iogurte e Milo compartilhava desta paixão culinária. Gastou um tempo convencendo o atendente a preparar o molho, que não era incluído na salada que escolhera, e pôs-se a pedalar de volta.

“Será que Saga achava Shaka novo demais pra si”? Isto não fazia sentido algum a esta altura do campeonato. Pois, se fosse verdade, não teria iniciado a relação com um rapaz de pouco mais que vinte, quando o próprio já contava com trinta. “Será que era a juventude que o interessava, então? Um Shaka dez anos mais velho não tinha mais sabor de figo fresco pra ele”? Fazia menos sentido ainda, era visível o quanto se amavam e, francamente, Shaka ainda tinha cara de menino, a despeito do humor de ancião. Se a idade era o problema, só poderia ser a idade do próprio Saga. “Estaria se achando muito velho? Estaria com medo de perder seu marido para alguém mais jovem”? Lembrou-se da conversa que tivera com os pais no mês anterior. E se Saga concordasse com os devaneios deles? Saga estava com quarenta anos, não era incomum receber pacientes nessa idade em seu consultório, atravessando uma crise de meia-idade. Isso, somado ao destempero de sua personalidade explosiva, poderia ter desencadeado na discussão daquela manhã. Precisava falar com seu amigo sobre o assunto.

Entretanto, ao entrar no sebo encontrou outro homem. Era Shaka, evidente, mas não o Shaka que deixara lá, há menos de uma hora. Estava de banho tomado e possuía seu habitual semblante de quem flutua por cima das pessoas, acima delas, que Milo costumava chamar carinhosamente de “cara de entojo padrão”. Havia preparado a pequena mesa na copa para a janta e saudou Milo, como se a conversa anterior nunca houvesse ocorrido.

 

— O que teremos para a janta?

— Trouxe espaguete e salada — informou enquanto colocava as embalagens sobre a mesa.

Shaka imediatamente fuxicou os recipientes, movido por sua habitual curiosidade.

— Arey! A salada veio sem molho!

Milo sorriu. Era maravilhoso quando ele conseguia adiantar o próximo passo e não seu amigo vigilante.

— Tua sorte é que eu sou um amigo dedicado! — disse entregando-lhe o pote com o molho. — Quase precisei subornar o atendente!

Shaka pegou o molho, agradeceu sinceramente e começou a servi-los. Sereno, com seus trejeitos quase etéreos, intransponível. O comerciante havia se fechado novamente. Milo sabia que aquele era o fim da conversa. Ao menos naquela noite. Resolveu seguir o baile do amigo, posto que enfrentá-lo era sempre péssima ideia.

 

 

Ali, na mesa de café, Milo procurava nas feições de Shaka, qualquer indício de que poderia retornar em algum momento o fatídico assunto, mas o semblante que analisava permanecia indecifrável. Comiam a iguaria feita por Camus e tomavam café, Shaka e Milo sentados e o francês de pé, pois a mesa era pequena, comportando apenas dois lugares.

— Está certo que não quer sentar um pouco? — indagou o anfitrião, preocupado com o bem-estar dos amigos.

— Oui, eu não gosto de tomar café sentado.

— Diferentão — implicou Milo, sendo falsamente ignorado pelo namorado.

— Ah, Camus! — Shaka parecia lembrar-se de alguma coisa. — Tenho algo para você.

Abocanhou mais um pedaço de torta e sorveu um pouco do café puro, antes de levantar-se, indo até a mesa atrás do balcão, voltando com um livro nas mãos.

— Acabou de lançar! Digo, só lança na sexta-feira! Fui à editora fazer uma compra de edições antigas recolhidas, algumas sobras e alguns itens com defeito esquecidos, essas coisas. Quando bati o olho neste livro, na bancada do editor executivo, lembrei logo de você! Usei toda minha lábia de comerciante para conseguir um! Parece que é resultado de uma árdua pesquisa de uma equipe com diferentes profissionais, veja.

Era um livro sobre a flora local e seus usos terapêuticos, medicinais e cosméticos. Contava com pesquisas recentes e diversos comparativos de resultado.

— Nossa, Shaka, é incrível, não sei nem o que dizer. Vai ajudar muito nos meus experimentos! Quanto lhe devo?

— Não ofenda seu amigo, é um presente.

— Mas não deve ter sido barato ou simples conseguir isso.

— O que torna um presente mais “diferentão”, não?

— Você sempre falando com gestos. Obrigado.

Shaka virou-se para Milo, que já ostentava novamente um semblante enciumado.

— Não olhe assim, homem! Este é para você, escorpião ciumento! — exclamou, entregando envelope amarelo pequeno ao psicólogo, que abriu, curioso.

— Nicolo Ganopolos, editor executivo — leu o escrito em voz alta.

Havia os contatos e ao verso o logotipo da Museion Editora, famosa por publicações científicas. Milo observou um instante, tentando entender.

— Shaka, eu já tenho namorado — brincou por fim, falhando em desvendar o mistério.

— Mas ainda não publicou seu livro —  respondeu solene. — Eu andei conversando com o Ganopolos, disse a ele que eu conhecia um proeminente teórico, com uma publicação excelente sobre transtornos infantis e como a percepção do entorno pode influenciar nos tratamentos. Comentei que já havia lido e que era muito boa mesmo, e que meu tino comercial, que nunca me engana, estava certo de que quem lançasse esta publicação estaria lançando o novo blockbuster da psicologia. Ele está aguardando seu contato — concluiu com um sorriso triunfante.

Milo seguia com uma expressão de quem se esforça muito para processar uma mensagem. Apesar de atender muitos adultos, sua paixão era a psicologia infantil. Fazia tempo que procurava uma editora disposta a lançar sua publicação, a própria Museion esteve em sua lista de negativas. Era difícil se lançar como teórico na área científica, a maioria dos editores nem se davam ao trabalho de ler antes de refutar. Sabia que Shaka conhecia muita gente do ramo devido ao seu ofício, mas jamais imaginou que ele pudesse usar seus contatos para interceder por si. Escutou novamente a voz do comerciante:

— Eu sei, você deve estar se perguntando por que motivo eu não lhe entreguei isso antes, nos vimos ontem, afinal. Mas é que o Ganopolos viajou em seguida a nossa conversa e pediu para que lhe entregasse seu contato apenas quando retornasse. Estou há duas semanas esperando para poder dar a notícia.

— Shaka, eu nem sei o que dizer — Milo estava emocionado —, estou sem... palavras.

— Uau! Isso sim é um grande feito!

— Idiota! — disse já entre lágrimas, abraçando o amigo. — Muito obrigado.

Shaka não era exatamente um homem dado a contatos físicos, todavia aceitou o abraço por alguns segundos. O momento era especial e já havia até beijado a bochecha do amigo mais cedo, o que era um afago a mais?

— Já está bom, agora chega! Vão os dois trabalhar, que eu preciso abrir o Minerva! — intimou os ali presentes,  já caminhando em direção à porta. — E obrigado pelo café. Aprecio genuinamente a amizade de vocês, mas, por favor, eu sei me virar sozinho, sim? Não precisam seguir me tratando como um menor abandonado.

— Mas se não fosse chato não seria o meu amigo!

Milo deu-lhe mais um abraço, Camus acenou e saíram de mãos dadas. Shaka apreciou um pouco a cena, lembrou-se novamente do marido e morreu só mais um pouquinho, sentindo o coração apertar. Voltou-se para dentro do comércio, virou a placa que indicava o funcionamento do estabelecimento para "aberto", içou as persianas e iniciou seu dia de trabalho. Foi uma manhã bastante movimentada e com boas vendas. O período vespertino, por sua vez, parecia tedioso. Ainda não sabia, entretanto se tratava apenas da calmaria que antecipava as nuvens tenebrosas que se aproximavam à sua revelia.

Em um dado momento, distraído, pensando em seu esposo e na conversa estapafúrdia de domingo, esbarrou no porta-lápis, derrubando diversas canetas, lápis e marcadores no chão. “Onde estou com a cabeça”? Foi o que pensou ao se abaixar para recolher seus pertences. Escutou a sineta tocar anunciando a entrada de de alguém

— Um minuto — disse ainda atrás do balcão.

Pôde ouvir passos se aproximando e sentiu o perfume de cardamomo. Sabia a quem pertencia. Levantou-se, já de posse de todos os itens que haviam se espalhado momentos antes.

— O que você quer? — não conseguiu evitar o tom seco.

— Precisava ver você, Shaka.

— Pois já viu. Agora retire-se.

Shaka saiu de trás do balcão na intenção de indicar a porta ao marido, foi quando viu a mão enfaixada.

— Por Sri Ganesha, o que você arranjou aí?

Sem esperar resposta, apoiou a mão de Saga no balcão e retirou a faixa com cautela, percebendo que este sentia dor. Viu o grande corte na palma da mão, que estava inchado e parecia infeccionar.

— Ainda temos louça em casa ou eu precisarei comprar outro aparelho de jantar?

Não era uma pergunta para ser respondida. Shaka acertou em cheio sobre o motivo do corte e Saga sabia que estava sendo repreendido pela enésima vez por sua mania de quebrar tudo em surtos de raiva.

— Isso está horroroso — sentenciou. — Espere aí.

Shaka afastou-se para pegar sua maleta de primeiros-socorros. Saga fez menção de segui-lo.

Espere-aí — repetiu de maneira pausada e enfática.

Sumiu por um breve instante e retornou com a maleta em mãos, pondo-se a higienizar a ferida com a maior delicadeza possível, visto que seu marido colocava uma expressão de dor na face a cada toque.

— Shaka, você deveria voltar para casa. Ela é sua também, sempre foi, eu só...

Foi interrompido pelo mais novo.

— Saga, ou você cala esta boca ou se retira daqui.

A pior ofensa de todo o universo para o jornalista era que alguém o mandasse calar a boca. Expressar-se era sua essência e ouvir que seu rabo não valia dois euros era menos depreciativo que aquilo. Mas Shaka o sabia bem, estava testando sua reação. E descontando um pouco de sua raiva, por suposto. Queria ver até onde ia aquele arrependimento.

Saga olhou para o marido, aturdido. Percebeu que o outro queria que ele engolisse seu orgulho a seco e assim o fez. Calou-se. Não queria sair dali, precisava da presença aconchegante do homem que amava, ainda que condenado a tê-la em silêncio.

Shaka desinfectou a ferida o melhor que pôde e fez um curativo caprichoso.

— Parece que sempre nos vemos às voltas com mãos machucadas e curativos, não é? — Shaka referia-se ao dia em que se conheceram. Saga ainda estava com a mão ferida da perfuração que sofrera do ex-amante catalão antes de ser deportado ao país natal e, ao ver o curativo extremamente mal feito — ao menos para o padrão Shaka de excelência —, oferecera-se para fazer um melhor, também cuidando do ferimento. Fora o primeiro contato dos dois. — Você deveria ter ido ao hospital para levar uns pontos. Agora isso vai demorar. E vai doer — concluiu.

— Não que eu não mereça, não é?

— Não sou eu quem está dizendo! — replicou, voltando a se direcionar para porta. — Compre um remédio para esta infecção! — era uma ordem. — Agora vá.

— Eu marquei com meu analista. Liguei pra ele na primeira hora, hoje — Saga informou, estancando à porta, procurando o mar mediterrâneo estampado no olhar do companheiro.

Shaka admirou-se positivamente. Preocupava-se com seu marido.

— Não volte antes da primeira consulta.

Saga finalmente saiu do sebo, voltando-se uma última vez para Shaka.

— Eu amo você.

O outro o olhou por uns segundos, ensaiou dizer algo, mas desistiu, virando-se com a porta fechando atrás de si.

Saga permaneceu mirando a porta fechada. O silêncio era a resposta padrão para sua declaração de amor. Mas aquele homem costumava ao menos lhe sorrir, afagar a face ou recostar a cabeça em seu peito e não dar-lhe as costas.

Shaka não possuía noção do quanto sua dificuldade em demonstrar sentimentos afetava Saga e este não fazia ideia do quanto o indiano morria de amores por si. Ali, inclusive, frente àquela porta cerrada, o jornalista temeu não haver mais amor algum.

 

Dentro do sebo, Shaka encontrava sérios problemas para concentrar-se em suas atividades. Havia gasto duas horas tentando acertar a planilha de contabilidade, sem sucesso. Desistindo, resolveu tentar dar conta dos livros em cima da sua mesa. Estavam alocados no lugar errado e ele os havia posto ali no domingo, a fim de dar o destino correto para eles. Era um trabalho que exigia menos de sua concentração, então decidiu empenhar-se naquilo.

Foi segurar o primeiro livro que ele entrou novamente. Havia cortado um pouco os cabelos? Também não reconhecia aquela roupa. Lançou um olhar de desagrado, mas ele o fitava como se não o conhecesse. Inclusive, ao cravar seus olhos nas íris verdes voltadas para si, teve a perfeita sensação de fitar um estranho, e não o ser vivente mais íntimo de si na face terrestre. Aquilo não era possível, era? Não no mesmo dia, era muita desventura. Olhou para as mãos alheias assim que ele as apoiou sobre o balcão de atendimento e teve certeza.

Era possível.

Uma desgraça nunca vem desacompanhada.

Shaka respirou fundo e pronunciou-se enfim. A surpresa era tanta, que apenas conseguiu dizer seu nome.


 

— Kanon.

 


Notas Finais


¹ em tradução literal do francês "bom dia, meu amigo"

² também do francês, "sim"

³ Expressão hindi para satisfação, sem tradução literal. Seria algo como "uau", "massa" ou "nossa" no Brasil, no sentido de ter se agradado muito de algo.

⁴ do francês "minha maçã"

★★★


Aos jovens que aqui chegaram... aproveitem que são jovens, depois é só dor na coluna e no joelho.


Galero divino! Eu deveria estar finalizando a fic, mas estou o que? Introduzindo mais um personagem e armando tretas rs.
Já vou avisando, eu gosto muito do Kanon, é um daqueles personagens de SS que fazem valer o capítulo, mas aqui ele terá a única função de fazer todo mundo passar raiva enquanto lê rsrs
Estão avisados.


Enfim, muito obrigada à quem segue lendo e aquele blábláblá de pode ficar a vontade pra corrigir e/ou mandar um correio do amor!


★★★

Link para a playlist da fic
https://www.youtube.com/playlist?list=PLCoz6-aj6cy2DxPF144Qc6tweg-N-Vvhq



Até


Gostou da Fanfic? Compartilhe!

Gostou? Deixe seu Comentário!

Muitos usuários deixam de postar por falta de comentários, estimule o trabalho deles, deixando um comentário.

Para comentar e incentivar o autor, Cadastre-se ou Acesse sua Conta.


Carregando...