1. Spirit Fanfics >
  2. Mais forte que o tempo >
  3. Desventuras em série

História Mais forte que o tempo - Desventuras em série


Escrita por: Super-nova

Notas do Autor


___Este capitulo foi revisado e repostado, sem alteração no teor da história, em 25/09/2020___

_________________________
Olá, galero divino.

Deixa a tia conversar um pouquinho com vocês.
Estou postando o capítulo 5, finalizando o 7.
Acontece que a fic monstrinho está crescendo e entrando na adolescência. E todo adolescente dá trabalho.
Ela não está crescendo só em número de capítulos, a história esta ganhando mais nuances. Estou peocupada porque está extrapolando o prometido e não sei se isso é bom. Mas não quero encaixar as coisas que estão surgindo em outra história, porque acho que se encaixam muito bem nessa.
Então vou continuar, mas esse capítulo é o limite em que ainda dá pra retornar apenas para o primeiro foco. À partir do 6 é point of no return. Ainda vou pensar mais um pouco sobre o assunto.

Mas bora lá

Considerações espertas para melhor entendimento:

✩ Ouzeria é um local que vende petiscos, comidinhas e bebidas. Parecido com nossos bares voltados pra sentar, conversar e comer, porque o povo grego gosta de comer (nunca critiquei). Tem esse nome devido ao Ouzo, bebida típica grega, que geralmente é servido nesses locais. É como se aqui chamássemos barzinho de "cachaceria".

✩ Lord Byron, apesar de inglês – ícone do romantismo, que os "gódegos trevosos" amam hahaha, Tá, parei – é querido na Grécia pois participou da gerra pela independência grega, na época tomada pelos otomanos.

Acho que dessa vez é só isso



Enjoy

Capítulo 5 - Desventuras em série


Fanfic / Fanfiction Mais forte que o tempo - Desventuras em série

Kanon observava surpreendido o belo homem à sua frente. Ele o havia chamado pelo nome, mas nunca o havia visto na vida. Jamais se esqueceria de um rosto tão bonito.

— Você me conhece?

Shaka, percebendo a besteira que fizera, retomou rapidamente sua "cara de entojo padrão", respondendo:

— Não, não conheço.

Tratava-se da verdade, afinal, não conhecia mesmo. Apenas sabia que seu marido possuía um irmão gêmeo e que se detestavam. Voltou sua atenção para os livros novamente. Kanon tentou perceber algo em seus movimentos que o denunciasse, mas o homem continuava a mexer nos exemplares como se subitamente ele não existisse ou fosse pequeno demais para merecer sua atenção. Aquilo, inconscientemente, o atiçou ainda mais. Tamborilou o tampo do balcão com os dedos, fazendo com que o comerciante voltasse a fitá-lo ao que ensaiou ler seus olhos, mas eles nada diziam ou poderiam dizer qualquer coisa. Seguiu olhando mais um tempo, tentando o penetrar com a mirada. O outro simplesmente sustentou seu olhar e Kanon sentiu que fora além disso: apesar de ser um pouco mais baixo, o desconhecido de longas madeixas loiras o mirava de cima. “Interessante”, não pôde evitar pensar. Aquele homem era um mistério, um enigma. Desses com esfinge e tudo. Kanon sentiu vontade de decifrá-lo. E devorá-lo.

— Não me conhece, mas sabe meu nome. Como sabe?

Shaka reparou que Kanon apoiava a mão no queixo, escorando o cotovelo sobre o balcão. Parecia um gesto costumeiro, mas percebera bem que era com a única intenção de exibir o Hublot de edição limitada, que deveria custar mais que um bom carro, preso ao pulso. O irmão de Saga o olhava de um jeito que lhe dava ojeriza, um misto de prepotência, indiscrição, perversidade e... desejo? Não podia ser, estava achando demais. Contudo, não desviou o olhar. Se o gêmeo queria competir, certamente havia escolhido o homem errado.

— Não me respondeu — Kanon insistiu.

Pois sim, não havia respondido. Não havia como responder sem expor a verdade, entretanto, sentia um instinto de evitar ser questionado sobre Saga, uma vontade irracional de resguardá-lo. Shaka não sabia exatamente o porquê. Sempre achou que Saga devia se entender com a família, mas agora ali, frente àquele homem de olhar devasso e mau agourado, achava uma péssima ideia manter qualquer tipo de proximidade.

— Seu irmão é um homem famoso — replicou por fim.

Deu-se por satisfeito com a resposta, mas por muito poucos instantes. Foi o tempo de Shaka atravessar o limite do balcão e caminhar para as estantes da loja, carregando alguns livros para alojá-los. O comerciante então escutou outra vez a voz penetrante, tão parecida e tão distinta ao mesmo tempo da sua voz favorita no mundo.

— E você deve ser muito fã do meu irmão famoso para não confundi-lo comigo — comentou, tornando a acercar-se — ou então o conhece... Não duvidaria, jornalistas devem gostar de lugares assim. 

Observou o proprietário do sebo, que continuava guardando os livros na estante, ainda o tratando como se ele não fosse o suficiente para merecer sua total atenção. Reparou nos pulsos finos, nos dedos longilíneos que moviam-se precisos realocando os exemplares na prateleira. Os longos fios presos que evidenciavam o pescoço, a nuca exposta que lhe parecia muito sensual. Sentiu vontade de cravar seus dentes naquela pele aparentemente tão macia. Ter sua libido instigada tão ferozmente por um homem que nem sequer se dera ao trabalho de tentar seduzi-lo, pior, que o ignorava, o irritava, ainda que igualmente o instigasse. Era que ser desperto por um homem o irritava por si só. Ele não era como seu irmão. Não queria ser. E sentir raiva só aumentava a lasciva direcionada ao estranho à sua frente.

— Ele, o Saga, vem muito aqui? Eh... — percebeu que não possuía nenhum nome pelo qual perguntar — como você se chama, mesmo? — notou seu ouvinte lhe direcionar uma olhada de soslaio, antes de prosseguir — Ora, você sabe meu nome, mas eu não sei o seu. Não me parece justo, não? Ou você me diz ou então, quem sabe, me apresenta seu oráculo, porque pensando bem, eu duvido muito que o Saga tenha sequer mencionado ter um irmão em seu blog ou em sua coluna e, ainda assim, você sabe meu nome. Deve ser um bom oráculo.

O comerciante ponderou. "Mas que desgraçado"! Todavia, era de se esperar que alguém com o mesmo DNA de seu esposo fosse minimamente sagaz. Uma infelicidade que não causasse a mesma impressão a respeito de sua índole.

— Shaka — revelou, sem ao menos virar-se para o outro.

Kanon pensou já ter escutado aquele nome e ele era muito pouco comum para que houvesse escutado sobre outro Shaka. Refletiu por um instante até se lembrar de quando lera sobre o casamento com um imigrante no blog do irmão. O outro provocara uma comoção europeia à espera de um final feliz entre ele e o noivo às portas de ser deportado. Olhou novamente para as mãos alheias, que guardavam o último livro. Reparou na aliança trabalhada do lado esquerdo e então puxou a mão daquele que agora sabia tratar-se de seu cunhado, com livro e tudo.

— Você é o macho dele! — segurava-o com alguma força — Mas olhe só para isso! — dedicou-lhe um olhar devasso — Deve ser de família o gosto pela ninfetagem, minha esposa tem vinte e seis — falava com algum descaso.

Shaka, violentado com invasão de espaço e com o brusco contato físico sem consentimento, estagnou por alguns instantes, piscando umas três vezes na tentativa de voltar à realidade, pois é claro que deveria estar preso em alguma dimensão paralela. Aquilo não podia estar acontecendo. Todos os seus alarmes foram acionados e suas defesas levantadas. Aquele homem era uma ameaça e Shaka guardava certeza disso, podia sentir na vibração, na aura, no toque daquele homem que emanava malícia e iniquidade. Ele jamais poderia se aproximar de Saga. E Shaka iria fazer tudo ao seu alcance para impedir.

Controlou a respiração e direcionou o olhar para a mão que segurava seu pulso e dela para os olhos de seu dono com um desdém tamanho que Kanon soltou-o de imediato. 

— Marido. É a nomenclatura adequada. E eu tenho quase trinta e dois. E já era maior de idade. E, principalmente, não te diz respeito. — Colocou enfim o último livro no lugar e afastou-se antes de prosseguir — Todavia, eu tenho certeza que você não entrou aqui em busca do seu irmão. Ou do marido dele.

O olhar de Shaka era incisivo.

— Sim, você está certo. Entrei pelos livros. É que eu sou historiador. Mas, também não é por isso. Eu sou colecionador de obras raras.

Se fosse QUALQUER outra pessoa do universo, Shaka se poria interessado, adoraria saber mais de alguém que partilhava dois interesses consigo: história e livros. Mas era Kanon. E a única coisa que o comerciante queria era que ele fosse logo embora. Era melhor atendê-lo e despachá-lo de uma vez.

— Pois sim. Em que posso servi-lo?

"Pode me servir de joelhos, me fazendo um oral com essa boca tão bonita. Depois podia me servir de quatro naquele sofá, você tem cara de que geme gostoso". Kanon se surpreendia com os próprios pensamentos. Sempre fora libidinoso e sempre conseguia o que queria, mas nunca um homem despertara em si uma reação tão animalesca. Sempre mantivera seu desejo por pessoas do mesmo sexo escondido, nunca quis ser tratado pelo pai como Saga o fora. Casara-se com uma mulher rica e preferia transar com homens muitas vezes pagos para manterem as pernas abertas e a boca fechada, garantindo que seu casamento continuaria seguro e sua esposa o continuaria bancando. Não que ela não soubesse do que a mesma considerava “fetiches homossexuais” do marido, ela só não queria duas coisas: envolvimento sentimental e escândalo. Pensou que seu irmão deveria meter com aquele homem todo dia e sentiu inveja. Um sentimento irracional e inesperado, que por sua vez despertava uma série de déja vus e destravava gatilhos de calibres letais. Não que Kanon desse conta do processo que se desencadeava nas curvas de sua mente. O que sabia era que Saga não merecia aquela delícia toda. Era um descompensado. E um descompensado que a vida toda teve por hábito conseguir coisas que Kanon guardava certeza que merecia bem mais. Direcionou mais um sorriso banhado em malícia para Shaka.

— Você possui alguma seção de obras raras disponível aqui? — perguntou, sem tirar os olhos gulosos do outro.

— Sim, deseja algo específico? — continuou dissimulando perfeita indiferença. 

— Um livro caro e que agrade a um grego que gosta de artes e literatura. Preciso fingir que gosto do meu sogro.

Era possível sentir mais nojo por alguém do que ele sentia por aquele gêmeo cretino agora? Girou em seus calcanhares, rumando para prateleira com os livros raros que possuía. Esta ficava atrás do balcão, do lado oposto à mesa, protegida por uma grade que abria com senha. Nunca havia sofrido nenhuma tentativa de roubo ou furto, era uma precaução, afinal cada livro ali valia muitos das outras estantes. Pegou a escada e subiu dois degraus, esticando-se para alcançar uma caixa no alto, o que fez sua blusa se desprender da calça, exibindo a pele que esta cobria, e Kanon se perdeu ali, no fim daquelas costas, nas formas daquele corpo, na cintura delgada e nas nádegas firmes dentro da calça bem cortada. Aquele homem era um convite. Hipnotizado pela visão inconscientemente oferecida, aproximou-se. Não percebeu quando havia atravessado o balcão ou em que momento seu olhar vidrado abandonou qualquer pudor de vez. 

Shaka sentiu Kanon próximo demais. Um frio lhe percorreu a espinha e um tremor lhe acometeu as pernas, como se na presença de uma assombração. Tentou virar o corpo, foi quando se desequilibrou e caiu. Ao tentar evitar o choque contra o chão de maneira instintiva, torceu o pulso de sua mão boa, a esquerda.

O baque do comerciante no piso despertou seu observador do transe ao que ele tentou acudi-lo, mas foi bruscamente interrompido.

— Fique aí. 

— Você se machucou, Shaka? Está tudo bem? — realmente não possuía esta intenção.

— Estou ótimo — tratava-se de uma mentira deslavada, seu pulso doía horrores. Bem como seu cotovelo e sua coxa — Volte para trás do balcão.

A voz mantinha-se calma, contudo era claramente uma ordem, que Kanon obedeceu de pronto. Shaka levantou-se, subiu na escada novamente com algum custo e pegou a caixa, fazendo um grande esforço devido à dor, apesar de manter seu semblante sereno. Retirou cuidadosamente o exemplar da caixa, assumindo novamente seu perfil de vendedor. Aquele homem já o havia perturbado com tudo o que podia, ao menos que "pagasse" pelo prejuízo. Mostrou o livro ao interessado, mantendo-se atrás do balcão a fim de evitar qualquer contato físico. Um sorriso de satisfação quase infantil tomou forma nos lábios de Kanon no mesmo instante em que reconheceu a obra, desprendendo-se do acontecido momentos antes, como se o incidente nunca houvesse ocorrido, antes de se pronunciar.

— Lord Byron! Que grego amante da literatura não gosta de Byron? Muito bom.

— Deve ser um dos ingleses mais queridos da Grécia. Esse é de de 1842, não tanto depois de sua morte, é completo e está em bom estado, visto que tem mais de um século e meio. Um livro dessa idade nestas condições já vale muito por si, independe do conteúdo.

— Sim, está muito bom! Que preciosidade! Fiquei até com vontade de tê-lo em minha coleção, mas preciso manter o teatro do bom genro, minha mulher venera o pai. Está ótimo, vou levar! — abriu a carteira e entregou um cartão para Shaka.

Nem sequer perguntara o preço. Shaka sabia que propositalmente também. Foi até o balcão, finalizou a compra e embalou caprichosamente o exemplar, a despeito da dor lancinante que sentia.

— Aqui está, passar bem.

— Obrigado. — Começou a caminhar até a porta, mas parou – É... Shaka… Como ele está? Digo, meu irmão. Ele está bem?

Shaka podia ouvir as sirenes tocando em seu subconsciente. Dele, aquele homem não arrancaria nada sobre seu marido.

— Kanon, francamente, se lhe interessasse, você saberia. Se você quisesse, conseguiria encontrá-lo. Passar bem — repetiu.

Kanon deu uma última olhada no esposo do irmão.

— Ele tem sorte. Tem um macho bonito e protetor. Duvido que mereça.

E saiu.


 

Shaka bufou de raiva e gemeu de dor. Precisava imobilizar o pulso. Pegou pela segunda vez no dia a maleta de primeiros-socorros, massageou o local dolorido com um analgésico em gel, improvisou uma tala com a polionda que usava para fazer as caixas de acondicionamento dos livros mais delicados e imobilizou com as ataduras o mais firme que conseguia. Não parecia muito bom, visto que o fizera com sua mão direita. Estava cogitando fechar o Minerva e procurar quem melhor o fizesse. Olhou para a mesa procurando as chaves e lá estava uma fotografia dele, com Saga e Spica: sua família. Pegou o porta-retratos e acariciou seus amores com a mão avariada. Estava com saudades, dos dois. Chegou a pensar em pedir para seu marido levar-lhe a gata, mas não queria deixá-lo sozinho, Saga possuía sérios problemas com solidão. Alcançou as chaves no mesmo instante em que ouviu a sineta e olhou na direção da porta. Entrou por ela uma mulher jovem e muito bonita. Era loira, com cabelos abaixo dos ombros e olhos claros de predadora. Usava um vestido muito bem cortado, até os joelhos, justo ao corpo em um tom de magenta. Caminhou até ela para poder atendê-la.

— Onde ele está? — a moça indagou, enquanto Shaka ainda se aproximava. A voz era melodiosa, não falava alto e impostava educação, mas ela parecia um tanto irritada.

— Perdão?

— Meu marido. Cadê? Passou o cartão aqui agora a pouco, o aplicativo me avisou. — disse erguendo o celular — E você? O que quer com ele? — Olhou pra Shaka como se examinasse um produto na vitrine — É muito bonito e perigosamente loiro.

Shaka entendeu que era a esposa de Kanon. Entendeu também que não recebera um elogio, o que ela externava era puro desagrado.

— Saiu há cerca de dez minutos, senhora. Comprou um livro. Um exemplar muito raro de Lord Byron. Disse que era para o senhor seu pai, queria presentear o sogro.

A moça bonita sorriu. A menção sobre o agrado ao pai pareceu alegrá-la. Tudo indicava que ela gostava mesmo dele, como Kanon havia dito.

— Ótimo, então. — Fitou novamente o homem com quem falava de cima a baixo e rumava para porta, quando viu a área reservada às peças de antiquário. Passou por uma escrivaninha e por uma luminaria estilo art déco e analisou com minúcia — Estão à venda?

— Sim.

— Se eu levar, posso mandar buscar amanhã?

— Sim.

Abriu a bolsa, entregando-lhe o cartão.

— Quero os dois.

Era mal de família não perguntar preço? Certamente o dinheiro não era deles. Pegou o cartão e finalizou outra venda, olhando o nome escrito nele: Thetis Solo. Era casada com Kanon, mas mantinha o sobrenome que provavelmente era o de solteira. Aquilo era raro.

— Aqui está. Basta que a pessoa que a senhora designar para retirada apresente este comprovante.

— Obrigada.

E desta vez cruzou a porta, deixando-o sozinho novamente.

 

Aquele definitivamente estava sendo um dia daqueles. Fechou o Minerva antes que o acaso lhe alcançasse os calcanhares mais uma vez e saiu. Havia desistido de cuidar do pulso ou de sequer passar na farmácia para comprar um anti inflamatório. Queria beber alguma coisa.

Mal havia fechado o estabelecimento e ouvira seu celular. Era Camus. Estava ligando pela segunda vez no dia. Shaka suspirou, definitivamente deveria estar perdido em alguma viagem regada a LSD de Alice no País das Maravilhas. Nada fazia sentido e o comerciante chegou a dar uma conferida para saber se o entorno de repente não havia se tornado grande ou pequeno demais. Atendeu o telefone, pensando que já não ficaria surpreso se a voz do outro lado da linha resolvesse lhe dizer que estava atrasada para o chá.

— Sim?

— Shaka, mon ami, estou no ônibus, no centro já, precisava falar com você. Está no sebo?

— Na verdade eu acabei de fechar. Mas estou indo para a ouzeria de sempre. Quer me acompanhar?

—Parfait¹! Chego em quinze minutos.

— Ok. 

 

Shaka desligou e caminhou até o local combinado, pensando no que Camus poderia querer falar consigo. Chegou, escolheu uma mesa do lado de fora e pediu uma água com gás para esperar o amigo. Queria tomar um vinho e, sendo com Camus, achou melhor esperar para que ele escolhesse. Gostava dali pois era possível ver a acrópole no alto. Imponente e em breve, com o cair da noite, resplandecente com bela iluminação noturna. Uma construção que resistira ao tempo. Dali parecia rígida e eterna, acima dos homens mesquinhos. Shaka desejava ser como aquela estrutura, medir forças com os astros, com o espaço, sobrepujar a finitude, flutuar sobre eles. Mas era um mortal com medo, fraquezas e uma sacola de problemas nas costas. Lembrou-se do casal nauseante. Ok, haviam lhe rendido ótimas vendas, todavia para si, aquelas aparições não haviam sido nada auspiciosas. Pegou o celular e digitou o nome da mulher na busca. Começava a olhar os resultados quando ouviu a voz conhecida, que para muitos soava fria, mas que ele sinceramente apreciava o timbre.

— Pesquisando sobre a família Solo?

— Os conhece?

— De nome — o francês puxava a cadeira, sentando-se enquanto prosseguia — são podres de ricos e muitíssimo influentes. Quase tudo que o mar grego produz é deles ou passa por eles. Dentre outros negócios. Dedicam-se a filantropia também. E algo na área de turismo. Essa moça, Thetis, é filha adotiva do magnata Julian Solo. Reza a lenda que é a princesinha dos olhos dele. 

Se fosse Milo, terminaria a explicação dizendo um "não sabia que você ainda gostava de mulher" ou algo do gênero com a intenção de arrancar mais alguma informação. Mas era Camus. E ele não perguntou absolutamente nada. Shaka apreciava sua discrição.

— Veio aqui para tomar água? — questionou apontando para a garrafa na mesa.

— Vim para tomar vinho! Mas gostaria que escolhesse.

— O que eu quiser?

— O que você quiser.

— Não é todo mundo que deixa um aquariano escolher "o que ele quiser".

Shaka riu brevemente e Camus começou a ler a carta de vinhos

— Confio no seu exótico bom gosto. Ademais, se eu bem lhe conheço sei que vai escolher um vinho menos óbvio, um não europeu e eu vou me surpreender descobrindo o sabor escondido em uma garrafa australiana, chilena ou sul-africana.

— Difícil surpreender um homem iluminado pelo dom de prever o próximo passo! Um sul-africano então! — Disse erguendo a mão e fazendo o pedido, apontando para o escolhido na carta e virando-se novamente para Shaka — Agora os deuses vão soprar nos seus ouvidos a uva, suponho?

— Thik hai², claro! — pôs os dedos da mão machucada na testa, fechou os olhos e levantou a outra mão no ar, como quem fala com os "deuses" — Oh, sim, obrigado! — abriu-os e olhou muito sério para Camus — Disseram-me que um aquariano amante de bioquímica certamente escolherá uma uva híbrida. Diferente, fruto do cruzamento da bênção divina com a genialidade humana. Para surpreender, afinal agradar não é exatamente seu dom, à gregos e troianos. Disseram-me também que, talvez, fosse uma boa ideia me embebedar com sua escolha, assim engulo melhor esse dia infernal — concluiu a fala, solene.

— Shaka, você é o crème de la crème³ do sarcasmo.

— Com pitadas agridoces de cinismo.

— E ainda assumido. Por isso nos damos bem.

Era verdade. Ambos eram introspectivos com estranhos e possuíam um senso de humor, digamos, peculiar. Sentiam-se à vontade na presença um do outro, era como se sozinhos não precisassem se preocupar em medir palavras, parecerem grosseiros ou insensíveis. Ambos eram objetivos, isso fazia a conversa fluir entre eles e, em decorrência, fazia com que certas vezes, curiosamente, arrancassem mais sorrisos um do outro que seus próprios parceiros, coisa que evidentemente acarretava em uma ou outra cena de ciúmes por um de “seus gregos”. Principalmente o grego Camus, que tinha ciúme mesmo era dos dois ali reunidos.

Camus reparou ao chegar nas ataduras e no grande roxo próximo ao cotovelo do amigo indiano e decidiu enfim perguntar.

— O que houve aí?

— Eu caí da escada — respondeu somente.

— Essa tala nem parece ter sido amarrada por você!

— Não sou tão bom com a destra, mas poderia ter me esforçado mais, não é?

— Posso? — perguntou, indicando o braço do amigo.

— Você foi enfermeiro antes de virar farmacêutico, não? Evidente que pode —  Shaka ofereceu a mão machucada.

O francês refez o curativo, imobilizou de maneira bem firme, reparando que Shaka mantinha aquela expressão de quem flutua sobre mortais. Admirou sua resistência e força de vontade, aquilo devia estar doendo bastante. Diferente do comerciante, Camus achava-o muito parecido com a acrópole: firme, solene e acima.

— Sabe que deveria medicar-se e descansar, não?

— Sim, sei, obrigado.

Camus não iria insistir.

O vinho chegara e Shaka pôde notar que se tratava de um Pinotage.

— Os deuses nunca me falham — disse ao francês, que sorriu. 

— Já provou algum? 

— Não, nunca.

— Então ainda não perdi por completo a chance de lhe surpreender.

Shaka provou e aprovou a bebida, deixando Camus satisfeito. O farmacêutico dedicou uma outra olhada para o pulso de Shaka e resolveu acrescentar:

— Se isso piorar amanhã, você vai buscar auxílio — não era uma pergunta ou pedido.

— Passo na sua casa já que você pode tanto fazer o curativo quanto me indicar o melhor remédio. — Sorriu brevemente e sorveu um pouco mais do líquido, certamente tratava-se de uma brincadeira — Sim, procurarei um profissional se necessário — acrescentou por fim.

Camus decidiu que era hora de aproveitar a deixa.

 

— Isso inicia a nossa pauta.

Shaka arqueou uma sobrancelha, um trejeito que Camus já conhecia. Era um pedido mudo para que desenvolvesse o assunto.

— Disse que poderia fazer ambos — começou — Há anos atrás, na França, quando tentei me formar enfermeiro, meu sonho era levar a profissão adiante, até servir em fronteiras, você conhece a história. Comecei a cursar a faculdade, era proeminente em bioquímica, me envolvi acidentalmente em um projeto intercurricular com alunos do curso de botânica e descobri um talento. Não era o que eu havia sonhado em fazer, mas era muito bom naquilo. O resto você também sabe, precisei largar a Enfermagem durante uma crise financeira e quando retomei os estudos acabei fazendo Farmácia. Hoje, naquele laboratório, não me arrependo das minhas escolhas.

Shaka escutava o relato que já conhecia do amigo, que era realmente bom em química e um gênio da botânica. O indiano seguia esperando o momento em que tudo aquilo ganharia um  propósito em ser dito.

— Falo isso — prosseguiu — pois você, mesmo começando pela área de história e que seu vasto conhecimento o ajude muito na hora de escolher e recomendar os exemplares que vende; apesar de ser, digamos, de humanas, é um talento de exatas. — Shaka o olhava, entretido e curioso, enquanto o ruivo à sua frente prosseguia — Seu comércio só deu certo pois você é excelente em contabilidade, gestão de riscos, estatística e estratégias de compra e venda. Veja bem, é um talento nato, você nunca estudou nenhuma dessas coisas e supera muitos profissionais. Você levantou aquilo do nada. E hoje é dono do sebo mais popular de toda Atenas.

— Camus, é muito lisonjeiro ouvir isso, embora você igualmente saiba que venho de uma família de comerciantes. Livros não são tecidos, mas a gestão guarda alguma semelhança em sua receita. Possuí meus professores da vida na Índia. Agora, onde você quer chegar?

Shaka estava apenas sendo educado ao externar sua lisonja, tinha plena ciência de que era bom em tudo que se predispunha a fazer.

— Quero que seja meu sócio.

— Sócio?

— Digamos que interpretei seu presente hoje como um sinal dos deuses.

— Pensei que fosse ateu.

— Digamos que seja dos seus deuses. Apenas estou interpretando para você — observou o indiano sorriu de canto e os serviu mais vinho — Shaka, você sabe que venho pesquisando arduamente a flora grega, o seu presente só comprova isso. Eu quero abrir uma botica. Algo próprio, especializado em produtos naturais, de extrema eficiência, claro. E quero seus conhecimentos para fazer meu negócio ou melhor, nosso negócio, prosperar.

— Posso dizer que estou interessado — ponderou por um instante — seria uma parceria em qual porcentagem?

— Penso em meio a meio. Vamos trabalhar juntos, desde o início. Dividiremos os lucros, mas antes, certamente, os investimentos. Sei que é um homem econômico e que dispõe de algum montante. O que gostaria de saber é se está disposto a arriscar. Óbvio que precisaremos fazer cálculos prévios, você os fará inclusive! — Tomou mais do conteúdo da taça — Sabe, Shaka, eu sei que não é da minha conta, mas é que nos parecemos em muitos aspectos. Assim sendo, consigo supor que você esteja preocupado com a sua situação. Sei que você ama seu marido. Ele te ama também e espero que vocês se resolvam de seja lá o que for que fez você dormir no Minerva. Mas sei que você não teria o feito se não fosse algo realmente grave. Também sei que nos últimos meses as coisas não andam lá muito agradáveis entre vocês. E por fim sei que você, que cogita todas as hipóteses, já cogitou a pior, não é? Que vocês porventura não se acertem, uma separação e suas consequências.

Shaka o fitou sério.

— Sim, já ocupei a cabeça com a possibilidade de as coisas chegarem em um divórcio. Muito embora eu não deseje me afastar de meu marido, que fique claro. — Fez uma pausa, como se para digerir a hipótese — Uma separação legal poderia acarretar na suspensão da minha cidadania e na revisão do meu visto. Não seria normal depois de tantos anos em um casal heterossexual, mas sabemos como sempre que possível, o Estado Helênico dificulta para pessoas como nós. Eu tenho um negócio na Grécia, mas ele é de pequeno porte. Ainda assim, posso tentar partir para o visto permanente de empreendedor, eu sei. Na época o Saga me ajudou a comprar o imóvel, mas paguei a ele cada centavo, com direito a comprovantes, fiz questão embora ele não quisesse. Não apenas está em meu nome, como é realmente meu. Entretanto, ter dois empreendimentos me deixaria muito mais seguro. Seria muito difícil deportarem um homem que gira a economia local dessa maneira — verteu o que restava na taça — então, sim, sua proposta vem em uma hora muito oportuna e, sim, estou orgulhoso e honrado com o convite, que está aceito.

Camus sorriu satisfeito com a resposta e encheu as taças pela última vez.

— Um brinde?

— Um brinde!


 

Perto dali, em sua casa, Saga tentava manter a cabeça ocupada. Estava ansioso pois havia marcado uma consulta para quarta pela manhã e ainda era noite de segunda, um dia inteiro o separava de seu objetivo. E também de poder voltar a ver seu marido. Olhou para a cama, Spica estava confortavelmente deitada no travesseiro de Shaka, depois de afofá-lo por mais de um minuto com suas garrinhas. 

— Você também sente falta dele, não é? Esse é o travesseiro mais cheiroso do universo, deixe um pouquinho pra mim!

Começou a mexer nas gavetas. Estava cobrindo as férias de um dos jornalistas da equipe e isso fazia com que precisasse ir mais vezes ao jornal. O dia seguinte seria uma dessas ocasiões e ele tinha certeza de ter guardado sua agenda com todas as anotações necessárias. Certeza que guardara, mas não de onde guardara. Abriu uma das gavetas de Shaka, poderia ter posto ali por engano. Enquanto mexia, um envelope chamou sua atenção pelo brasão da Universidade Aristóteles de Salônica. Conhecia, pois já havia morado em Tessalônica, inclusive, havia feito seu mestrado naquela Universidade, que era maior de seu país. Pegou o envelope e pôde ler que vinha do Departamento de História e Arqueologia. Naquele momento teve absoluta certeza de que estava invadindo a privacidade do companheiro e quebrando sua confiança, mas sua curiosidade era maior. Em verdade, sua curiosidade costumava ser maior que praticamente qualquer coisa. Abriu o envelope. Era uma carta de admissão no curso de História. Saga olhou a data do prazo de matrícula, até início de Julho. Estavam em meados de Agosto. Por que Shaka não havia dito nada sobre aquilo? Quando ele fora se inscrever? Pensou um pouco. Fez uma retrospectiva do mês anterior. No fim de Julho começara a cobrir as férias de seu colega, incentivado pelo marido que achava que ele precisava ocupar a cabeça, pois andava mais instável que de costume. Antes houve a viagem para Milos. Lembrou-se de quando Shaka o questionara se ele estaria enjoado do casamento. Recordou do dia seguinte, quando se sentiu mal depois do café e perguntou se Shaka abriria mão da manhã de praia para ficar consigo ao que ele respondera que "abriria mão de muito mais". Aquilo começava a ganhar um novo sentido, mas Saga ainda não entendia o porquê de Shaka não ter dito nada sobre a carta. Retrocedeu mais um pouco. Primeiro de julho. Saga fora admitido em seu doutorado. Estava muito feliz pois sua condição mental o impedira de conseguir dar esse passo duas vezes antes. Foi atingido pela lembrança do sorriso do marido, do abraço protetor quando lhe confessou que estava com muito medo que tudo desse errado novamente. Ele lhe dissera que "ambos iriam fazer tudo o que fosse necessário para dar certo dessa vez". Tornou a olhar o prazo no documento: 5 de julho. Estava claro que Shaka não havia ido a lugar nenhum.

Voltou a mirada outra vez para a tricolor em cima da cama.

— Como eu pude duvidar dos sentimentos desse homem, Spica?

Atirou-se no colchão, de frente para a gata, que começava a esfregar a cabeça em seu braço, demonstrando seu carinho, dividindo com ele o travesseiro cheiroso.

— Mas é que ele nunca diz nada, eu nunca tenho certeza. O que eu sinto é tão forte que tanto tempo depois eu ainda me surpreendo. Eu tenho medo, ele não vê, Spica? É normal temer o que é maior do que a gente, não? — acarinhou a felina — Eu só precisava que ele dissesse...

Dormiu ali, vencido pelo cansaço, pelo medo e pela esperança.

A esperança luta contra pessoas? No caso de Saga, quase o tempo todo.

Tinha certeza que seria capaz de morrer de esperança ali, sentindo o perfume do marido no travesseiro enquanto sonhava em ouvi-lo se declarar.


 


Notas Finais


¹ do francês, perfeito.
² do hindi, ok / sim. Também encontra-se a escrita "theek hai".
³ expressão francesa para dizer que algo é "o melhor". Em tradução literal significa "creme do creme", em português expressões parecidas seriam "a nata" de algo ou, em uso adaptado "o puro suco" de algo.


★★★

Aos jovens que aqui chegarem... confio o Kanon aos seus socos, chutes e pontapés, fiquem à vontade!

Então é isso galero, não vou me estender aqui, pois já disse bastante lá em cima.



★★★

Link para a playlist da fic
https://www.youtube.com/playlist?list=PLCoz6-aj6cy2DxPF144Qc6tweg-N-Vvhq


Até.


Gostou da Fanfic? Compartilhe!

Gostou? Deixe seu Comentário!

Muitos usuários deixam de postar por falta de comentários, estimule o trabalho deles, deixando um comentário.

Para comentar e incentivar o autor, Cadastre-se ou Acesse sua Conta.


Carregando...