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História Mais forte que o tempo - Certas conversas


Escrita por: Super-nova

Notas do Autor


___Este capitulo foi revisado e repostado, sem alteração no teor da história, em 01/10/2020___


________________________
Olá galero divino.

O capítulo 8, que eu precisei dividir fazendo o nove que também foi dividido e vai gerar o 10!
Mas fazer o quê? A gente sempre quer acrescentar tretas.

Acabei colocando a discussão do nosso casal que eu não iria abordar, ia só citar como algo que aconteceu, mas... agora temos um episódio de casos de família em flashback no meio do capítulo, com direito à chamar a Márcia, gritaria e dedo na cara! rs

Mas, entretanto, contudo, todavia, chegamos na conversa de Saga com seu analista e NA conversa do Milo com o Shaka (assim, com letras maiúsculas em homenagem à @vmustdie que está esperando este momento há capítulos rsrsrs)

Estou postando lindamente clandestina aqui do trabalho, então não sei se consigo dar outra revisada agora, como sempre faço quando posto. Mas volto para reler e, caso vocês encontrem algo errado, podem avisar, a tia não morde (mentira rs mas não vou morder).


Aquele enjoy!

Capítulo 9 - Certas conversas


Fanfic / Fanfiction Mais forte que o tempo - Certas conversas

— Não quer começar?

 

Saga olhava para o lustre no teto. Era novo. Ao menos não possuía mais que três anos.

— Não imaginei que precisaria voltar tão cedo...

— E quando você entrou aqui, há uma década, jamais pensei que te daria alta. Então, tudo na vida, meu caro, é questão de perspectiva. Você evoluiu demais, clinicamente falando, nesses anos, não se sinta mal por precisar de ajuda novamente. Apenas comece. 

Escutou um longo suspiro de seu paciente. Saga já se encontrava sob efeito da medicação e sustentava uma feição tranquila e distante. Ostentava também em seu semblante um machucado, no canto esquerdo dos lábios.

— Não sei por onde começar.

— Por que me ligou? Fez isso na segunda, pela manhã — sabia que era mais fácil para o outro raciocinar se pusesse as coisas de forma lógica ou cronológica.

— Decidi ligar no domingo. Eu... Havia brigado com Shaka. — Fez uma pausa. — Eu acabei gritando com ele e o ofendendo sem motivo, umas ofensas sérias...

— Sem motivo? Já esqueceu do nosso acordo?

— Acabei de voltar!

— É um acordo vitalício. Concordamos que tudo tem um motivo, por mais leviano que pareça e que você vai me contar todos. Dos que desconhece, irá fazer um esforço para encontrar e vai expor aqui, correto?

— Correto, Dohko.

— Por que brigou com seu marido? —  utilizou o substantivo propositalmente

— Não sei se é mais meu marido... — Sentiu o olhar do analista sobre si, sabia que a frase era vaga. Esforçou-se: — Eu... Eu terminei com ele.

— Quando?

— Hoje pela manhã.

— Não dava para esperar meia ou uma hora?

— É exatamente a pergunta que eu me fazia enquanto vinha para cá.

— Já pensava em terminar quando me ligou, no domingo?

— Não!... Quer dizer, não pensava em terminar, ainda que talvez já julgasse prudente. Mas eu não queria, eu juro. Eu, eu não quero.

O mais velho fez algumas anotações antes de prosseguir.

— Por que o ofendeu no domingo?

— Eu estava irritado. O Shaka é irritante. Veio lá com aquele jeito controlador dele, porque eu deixei uma panela queimar. Eu me distraí pensando, horas! Não sabe que meus pensamentos sempre me envolvem mais que as chatices que me cercam? Veio esfregar na minha cara o quão ele é mais cuidadoso, zeloso, o quanto eu sou um desastre! Ah claro, esfregar o quanto o garotinho da relação é obrigado a cuidar do velho problemático. E ainda disse que eu parecia uma criança, só porque me irritei com tudo aquilo. Eu devia ter casado com uma samambaia!

Dohko externou um riso sutil, com o último comentário. Fez outras anotações enquanto Saga seguia com seu relato.

— Aí eu fiquei puto da vida e disse mesmo que a criança era ele, que eu deveria me envergonhar de andar com um garoto que parecia um ninfeto, que... — O olhar de seu analista estava mais pesado ou era a culpa que ele sentia? — Que... Bom, eu disse coisas horríveis.

O terapeuta fez um gesto com a mão para que ele prosseguisse.

— Ah, cacete! Chamei ele de “firanghi” de merda, cuspi na cara dele que a casa era minha e o acusei de dar pra mim em troca da cidadania grega. Tudo mentira! Eu SEI. Sou um completo idiota que não consegue segurar a língua.

— Tudo isso por causa de uma panela?

— Tudo isso porque aquela carinha angelical me irrita! Porque ele continua exatamente igual e eu estou aqui, cheio de fio branco na cabeça e ruga na cara!  O senhor se lembra dele, não? Está lindo igual. Tudo isso porque eu sou um cara doente e Shaka está sempre lá, fazendo o bom marido, limpando minhas merdas. A perfeição dele me irrita, o armário organizado por cor me irrita, o fato dele acordar sem despertador me irrita, a maneira como ele reposiciona os talheres quando eu ponho a mesa me irrita! Ele “redobra” até minhas cuecas! Eu não tenho o direito de manter minha gaveta de roupa íntima do jeito que eu quiser! O frescor daquele homem me irrita. Como alguém tem frescor com trinta anos? Como um homem chato e ranzinza daquele tem frescor? É uma piada de mal gosto, não é? É só pra deixar bem claro o quanto eu estou velho... Às vezes penso que ele pode ter alguém mais novo e estar comigo por qualquer outro motivo... Acabo me arrependendo dos meus pensamentos assim que os tenho, afinal estou duvidando do caráter dele, mas não posso evitar.

Era evidente que Saga estava exagerando com a auto-imagem. Tratava-se de um homem maduro, feito, possuía ótima aparência, um perfil sedutor e metade das rugas e cabelos brancos que julgava possuir. Mas, sim, lembrava-se perfeitamente do porte esbelto e das feições joviais de Shaka, como justo ele poderia esquecer? Muito embora qualquer impressão de que se tratava de um garoto evanescesse em menos de dez minutos de conversa. Ali, Dohko percebia que, ironicamente, essas coisas opostas o incomodavam: tanto a aparência "jovem", quando a cabeça "velha" do, até então, companheiro.

 

— Então a idade é um problema. Já conversaram sobre isso?

— Quê? Dizer para ele que me acho velho demais? Claro que não. Que humilhação!

— Pediu o divórcio por se achar velho demais?

Saga lançou um olhar reprovador.

— Olha, só para deixar claro, eu não vou pedir divórcio, só acho melhor nos separarmos... Livrar o Shaka desse calvário que sou eu. Está nitidamente fazendo mal a ele... Mas eu não sei como funcionam as coisas legalmente, a partir daí. Um divórcio poderia trazer algum problema com a cidadania, sei lá. Ou já é minha cabeça inventando coisa para me manter atado a ele? Enfim, de qualquer maneira, não acho prudente arriscar trazer ainda mais este suplício. — Saga subitamente trocara seu semblante irritado por um triste. — É o que sou, não? Eu sei. Um suplício, a porra de um homem que vive dando defeito, com a cabeça “bichada” e a língua maldita. Mas se a separação legal for mais um problema, não quero isso pra ele. Ao menos sou cidadão helênico. O governo não precisa saber que não somos mais um casal.

— Preservar, mesmo em uma situação adversa, é uma atitude de alguém que ama. À propósito, você disse que não queria isso, quando chegou aqui. Disse que não queria separar, jurou até.

— É porque eu não quero... Mas fico me escutando dizer para mim mesmo que é o que devo fazer.

 

Aquele era o ponto crítico no caso de Saga. Sua própria voz. Saga não ouvia vozes dizendo a ele o que fazer, como um esquizofrênico, por exemplo. Também não o escutava como se fosse outro eu que habitasse o mesmo corpo, como em alguns casos de dissociação de personalidade. Não era isso. Sabia que era ele e tinha plena ciência que era exatamente ele mesmo a pessoa que lutava consigo. Não havia nenhum tipo de repartição mental, mas sim um sistema refinado de autossabotagem que, embora ele percebesse perfeitamente, não conseguia evitar.

Novamente o gestual do analista o incitava a continuar.

— Merda, Dokho, você sabe como funciona minha cabeça! Eu amo aquele homem, mas é assustador o quanto estar nas mãos de alguém parece péssima idéia. Mas uma péssima ideia loira, com olhos mais azuis que o mar Egeu, e claro, delicioso na hora de foder, quem resiste? — Saga nunca escondera sua libido elevada, tampouco o forte desejo que sempre sentiu pelo, até a última hora, marido. Parou um pouco, pensando se deveria falar o que lhe vinha à mente, mas ora, estava ali para isso. Prosseguiu: — Eu nunca pensei que isso pudesse ser um problema, nunca mesmo, sempre ouvi que eu era um tanto tarado até, mas... E quando eu não aguentar mais o tranco? Não é que meu interesse no Shaka sejam apenas os atributos físicos. Sou apaixonado por sua solicitude, seu coração muito justo, sua persistência e eficiência em tudo o que faz. É um homem tão inteligente e interessante. Mas estes são atributos que não se perdem, ao contrário da carne. Chego a beirar o desespero quando penso que estou quase uma década à frente em tudo. Não é só minha aparência que está envelhecendo antes da dele... Mas, e se ele quiser um cara com um desempenho melhor? Eu não sou mais um garoto… Eu sei que existem mil maneiras de transar e, ok, sempre me achei bom em várias delas, mas e se ele pensar diferente? Não é difícil dizer que essas coisas não importam, enquanto está tudo bem, não é? Mas quando o corpo não corresponde às expectativas, a situação muda de figura.

— Isso já foi ou é um problema?

— Bem, não sei ao certo... Acho que não. Houve a época do acidente, que era difícil fisicamente, e depois a da medicação para depressão, que me deixava com a libido de uma planta. Foram meses sem uma relação... Ele em momento algum se queixou, mas ele sabia que era um efeito colateral, que não era que eu não o desejasse mais, então era diferente, imagino. No mais... Tá bom, eu já dei uma broxada ou outra, quem nunca? Tem dias em que a gente está “pilhado”. Mas nada preocupante ou que eu não contornasse com um bom oral. Sabe, o Shaka é louco por sexo oral, na verdade, por tudo que eu consigo fazer com a minha boca naquele corpo delicioso. Dá pra convencer aquele homem de fazer qual-quer-coisa com a língua nos lugares certos... — Saga sentia o rosto afogueado, só com a lembrança. — Mas pra quê que eu estou te dizendo isso? É que nossa, acho que ele sente mais tesão quando põe na minha boca que quando põe no meu... Bom, você já entendeu.

Dohko apenas sorriu. Esse era o jeito de Saga. Tão depressa quanto da primeira vez, ele foi da tristeza à angústia e dela à uma quase euforia ao lembrar de seus anseios e desejos para com o homem que dividira a última década.

— Então a cama não é um problema.

— Nunca foi.

Uma nova nuvem passava pela feição de certeza de seu paciente, que pareceu subitamente distante.

— Nenhum problema? — Dohko insistiu.

Mais um breve silêncio. Saga parecia estar fazendo algo que praticamente nunca fazia naquele consultório: escolhendo palavras.

— É que — ponderou por mais um breve instante — é que, como sempre, eu não sei o que ele pensa.

— Não precisa formular frases precisamente coesas comigo. Sabe que não estou aqui para julgá-lo, mas sim para ajudá-lo. Apenas deixe fluir.

O jornalista tomou fôlego e Dokho sabia que essa era a ação que precedia o seu "vomitar tudo de uma vez".

— É um inferno conviver com um cara que não fala, não divide, parece que não confia em mim e isso me deixa puto da vida, porque sou sempre sincero e transparente e não é recíproco! Às vezes, dá vontade de sacudir aquele homem até ele cuspir tudo que está engasgado! Creio até que, de certo modo, foi exatamente o que eu fiz hoje. Sinceramente? Acho que ele me detesta! Tenho certeza que acha que sou um doente coitado, uma bagagem pesada e inutil que ele precisa carregar só porque Shaka, o melhor homem dentre os mortais, o perfeito, o superior, não pode se dar por vencido e abandonar a porra da mala! Aí ele fica lá, brincando num misto de esconde-esconde e o mestre mandou! Como se eu pudesse adivinhar o que ele está pensando ou o que ele sente ao acatar meus pedidos! — Saga mal respirava entre as frases. — Olha, não que não se fale nada, o Shaka tem é assunto, nenhuma foda conseguiria sustentar meu interesse em um cara com o qual a conversa não flua por mais de um mês. Nós podemos esquecer da hora e passar a noite toda conversando, não é isso. São as coisas que ele não diz. Tudo que ele não diz me mata de medo. Porque ele não compartilha suas profundezas comigo, entende? É como se não confiasse, como se eu não merecesse confiança. Com certeza não confia. E na cama... Bem na cama é a mesma coisa. O Shaka é deliciosamente quente e topa tudo que eu queira fazer. Tu-do! Você sabe, eu meio que enjoo de fazer tudo igual sempre, daí que na ama é a mesma coisa! Eu também mudo de anseios, de necessidades, enfim. Às vezes eu quero de um jeito mais romântico, às vezes eu quero feito bicho, às vezes eu quero ele por cima de mim cavalgando indômito, às vezes eu quero domá-lo e tê-lo sob os meus comandos, algumas vezes eu quero até que ele me domine ou então quero montar naquele tesão de macho, quero ser o dono e quero ser o puto, o rei e o vassalo, depende do meu humor, do dia, da lua... E ele nunca diz não ou quer de um jeito quando eu quero do outro... Claro, isso parece maravilhoso, isso é maravilhoso. Mas ele nunca toma a iniciativa. Apenas segue o jogo, se adapta. Se eu quiser todo dia, a gente vai meter todo dia, se eu subitamente passar três semanas sem procurá-lo, ele não vai me procurar, ou pedir, boa parte das vezes nem sequer insinuar, como se não fizesse falta alguma... Eu nunca sei qual é a dele... Eu nunca sei nada. Assim, sei o que ele prefere, onde prefere e quando prefere, pois durante os anos a gente conhece o outro, as reações do corpo, a essa altura sei exatamente tudo que o enlouquece. Também não posso reclamar de falta de entrega. Na verdade, o ato sexual em si é o ápice da transparência dele. Eu sei que ele está gostando e, se há algo que ele gosta mais, ele demonstra que gosta mais quando eu faço. E se faz parte do meu humor do dia querer o "Shaka que pede", ele pede com gosto, mas assim, por conta dele é tão raro que posso contar...

A sala tornou a ficar silenciosa.

— O que foi?

— É que, ontem... Ontem ele pediu. Ontem ele basicamente implorou, mas... Ele estava tão mal que eu fiquei assustado.

Saga escorregou o corpo do divã para o chão, sentando no tapete felpudo com as pernas cruzadas, completamente imerso em seus pensamentos, como se estivesse sozinho ali. Ao executar o movimento, um cordão com a sua aliança se fez visível entre a roupa que usava. Dohko o deixou assim por uns dois minutos. Observou que seu paciente estava chorando silenciosamente.

— Quer falar sobre ontem?

— É tudo culpa minha. Eu tenho certeza que é... Eu sei que eu o fiz sofrer, mas... Mas era necessário. Ele precisa se afastar de mim, eu sou um erro sem conserto... Foi minha culpa.

— O que é culpa sua?

— Você não faz ideia do que fiz ele passar hoje pela manhã...

 

 

Shaka sustentou o olhar de Milo por alguns instantes, enquanto pensava em como se livrar da preocupação do amigo, o que parecia um beco sem saída.

— Milo... Por gentileza, deixe-me trabalhar. Eu não quero falar.

— Desse jeito? Tremendo feito um galho de oliveira no vendaval? Com esse pulso mais inchado que pé de bêbado? Ok que você não queira conversar, mas não queira me fazer de idiota, nem ignorar sua saúde periclitante. Vamos fechar o sebo e você vai comigo para o hospital.

Afrouxou o contato e observou Shaka, com sua longa e não tão caprichosa trança, acompanhando a cadência de seu caminhar, ir até a vitrine da entrada de seu estabelecimento, levantando a persiana, depois rumar para a mesa atrás do balcão, ligando o notebook.

— Preciso terminar um pedido antes de ir ao hospital. Sei que preciso ver este pulso. Mas isso está pendente desde ontem, tenho prazos para cumprir.

O psicólogo suspirou. Era completamente contra a ética profissional consultar seu amigo, justamente por ser seu amigo. Estava pessoalmente envolvido em seus problemas e era impossível manter-se 100% imparcial, entretanto Milo possuía a mais absoluta certeza que Shaka não buscaria ajuda alguma, muito embora houvesse providenciado para seu próprio marido. A verdade é que não se tratava da primeira ou da segunda vez que aquele homem, ansioso para iniciar seu trabalho, como se o controle do mundo levitasse sobre suas mãos, dava demonstrações de como todo seu apreço por este mesmo controle não era sadio. Acontecia, que não havia ser vivente que conseguisse dizer para Shaka, com todas as letras: “você precisa de auxílio psicológico”, ainda que isso fosse visível para um profissional e pessoa íntima, como Milo. Havia uma barreira tão invisível quanto poderosa, que blindava o comerciante de qualquer investida no que tangia sua psique e não era porque eram mais próximos, que conseguia transpô-la. Esforçava-se ao máximo então, para encontrar alguma maneira de amortizar os danos da negligência de Shaka com seus próprios sentimentos. Queria conversar, precisava arrancar dele os últimos acontecimentos, nem que fosse na unha. Aproximou-se do amigo.

 

— Sente-se aí. Vou buscar um copo de água.

Shaka apenas obedeceu mecanicamente, aguardando que ele retornasse com o copo e lhe entregasse, ao mesmo tempo em que colocava sua bolsa sobre a mesa. Notou o olhar de Milo acompanhando suas mãos trêmulas, segurando o vidro, vigiando para que bebesse seu conteúdo, o que fez com que se pronunciasse.

— Com o quê você batizou isso aqui?

O psicólogo olhou ofendido.

— Como assim?

— Milo, está estampado na tua fuça que você está me enganando. E olha, você nem pode receitar essas coisas, por que motivo carrega na bolsa?

— Carrego porque é meu, ô entojo! É o que uso para conseguir dormir. Mas só tem duas gotas aí, não vai nem te dar sono. É só pra você parar de tremer feito vara verde.

— Algo que você usa para dormir não vai me dar sono?

— Já ouviu falar em dosagem? Pare de “cricrizice” e tome esta merda, sim? — acompanhou Shaka obedecer, por fim, enquanto o observava. — Foi tão ruim assim com o Saga ontem? Você disse que estava tudo bem.

— Estava. Quer dizer, ele teve uma crise no trabalho, mas eu consegui contornar. Meio que fizemos as pazes, estava tudo relativamente bem.

— Estava?

— Nos desentendemos hoje pela manhã.

— Ele foi rude com você de novo?

— Não... Rude dessa vez não é a palavra — suspirou — ele foi cruel.

Shaka sentiu sua cabeça latejar com mais intensidade ao lembrar do ocorrido. Milo, por sua vez, sentiu o sangue ferver um pouco com a última sentença.

— Ele te machucou? Eu encho a cara dele de porrada, sério!

— Se ele houvesse partido para esse tipo de violência, eu mesmo fazia isso, amigo. Mas, sinceramente? Antes fosse.

A voz do comerciante soava cansada, como se estivesse em uma batalha há meses, o que de fato estava. Milo puxou uma cadeira, para se sentar ao seu lado.

— O que ele te disse que pode ter sido pior que domingo?

Um suspiro profundo. Shaka ajeitou a franja que não estava ali, por hábito. Sentia-se enfadado, não queria repetir tudo aquilo. Voltou-se para o computador e fez o login, não tornando a olhar para o amigo. Milo aproximou mais a cadeira e tocou o rosto à sua frente, trazendo-o ao seu ombro, abraçando-o.

— Você consegue entender que não está sozinho? Que enquanto eu viver e, mesmo depois, nunca vai estar? Entende que sou seu amigo e estou aqui para você, por puro prazer de estar, assim como você está para mim? Não consegue desarmar nem um pouquinho essa guarda? Ao menos tente... Você sabe que não vou embora se não sentir firmeza em te deixar. E não é para que você finja firmeza e me faça sair. É para que você tire todo esse peso do ombro, pois não sei de onde você tirou que o mundo inteiro caberia aí.

Shaka manteve um silêncio sepulcral, apoiado no ombro que lhe fora oferecido. Ouvir que não estava sozinho àquela altura dos acontecimentos só fazia seu estômago revirar em uma orquestra dissonante de sentimentos. Milo sentiu sua camisa molhar. O indiano não movia um músculo, mas uma ou outra lágrima teimosa brotava sem se importar o quanto aquilo o humilhava. O que o estafava ainda mais, pois estava chorando com uma frequência assustadoramente anormal e ele odiava chorar, pois era uma exposição de fraqueza difícil de ocultar. Não conseguia por em palavras o quanto aquilo o arrasava, nem soube ao certo quanto tempo ficou ali. 

 

— Ele fez o que podia para que eu fosse embora. Levou-me ao limite. Eu não consegui segurar a corda. Ele venceu. Venceu a si mesmo na verdade, me derrotando junto, pelo caminho. — O silêncio instalou-se novamente. O psicólogo segurou a mão direita de Shaka, para dar-lhe coragem de prosseguir, exatamente como Camus fazia consigo quando ele precisava dizer algo doído de ser dito. — Ele me ofendeu muito, você não faz ideia. Começou com as ofensas sexuais, disse que eu...— interrompeu seu relato novamente, receoso.

— Por favor, Shaka, põe pra fora.

O enésimo longo suspiro da manhã.

— Disse que eu gemia feito uma vagabunda e que só me comeu todos esses anos porque era fácil. E que já passou por homens que o fodiam mais forte e mais gostoso do que eu. Que eu era só uma bonequinha boa de brincar, uma puta gratuita.

Shaka mal podia acreditar que estava dando voz às ofensas que ouvira, a exposição lhe doía como uma ferida de morte, ainda que sua voz soasse com parcimônia quase robótica, como quem lê os classificados, evitando como podia, externar sua convalescência.

— Se referiu assim? Tudo no...

— Feminino! Sim, pejorativos femininos. Não disse puto, vagabundo ou o que o valha. O que já seria ruim o suficiente, uma vez fora de algum jogo na cama. Ele fez questão, ele sabe o quanto eu odeio que...

— Se refiram à você no feminino — Milo completou a opinião na sentença, que conhecia muito bem.

— Não é porque eu gosto de caras que eu sou uma garota! Referir-se a alguém com terminações do gênero oposto independente de qual seja, sem que esse alguém deseje ser tratado assim é ridiculamente ofensivo e mexe profundamente comigo e claro que ele só fez isso pois está cansado de saber!

Pois sim, Milo sabia. E Saga também. Por sempre ter sido um rapaz de porte esguio, cabelos compridos e uma criança andrógina, antes de ganhar suas formas de homem, sempre que alguém queria ofendê-lo, o fazia chamando de "mocinha", "boneca", "menina" ou qualquer outro termo no feminino, em todas as fases da sua vida. Aquilo sempre o irritara severamente. Era ridículo, como chamar uma garota de machão só por ela usar cabelos curtos ou roupas folgadas. A intenção era simplesmente humilhar, em qualquer um dos cenários. Isso sem contar no quão estúpido considerava o conceito de alguém utilizar-se do feminino para rebaixar alguém, como se ser fêmea tornasse alguém inferior. Era desnecessário em tantos níveis, que não faltavam motivos para achar um absurdo e se desagradar imensamente de ser tratado desta maneira. E seu marido nunca o havia feito, mesmo porque, sempre concordou consigo. O que apenas reforçava a certeza de Shaka, de que Saga havia agido propositalmente, mentindo com o único intuito de magoá-lo.

— Foi daí para baixo, rolando a escadaria — concluiu.

— Conseguiu te ofender mais?

— Aí ele ainda estava sendo "rude"... Doeu muito ouvir tudo isso, mas eu sei que não é verdade... Embora, sim, ainda esteja doendo, ele não tinha o direito. Ele... Ele queria mesmo que eu fosse embora. Foi quando ele percebeu que eu não arredaria o pé, que começou a ser "cruel".

Shaka desviou o olhar e Milo podia jurar que o próximo passo seria erguer as pernas sobre a cadeira e abraçar os joelhos, mas ele afastou um pouco o assento da mesa e deitou os braços cruzados sobre ela, enfiando a cabeça entre eles, em mais um visível sinal de cansaço. Milo levantou-se, indo para trás do comerciante, erguendo sua postura para poder massagear-lhe os ombros, a fim de desfazer um pouco de toda a tensão instalada no ambiente, com um ato minimamente agradável e gentil.

— Nossa homem, você está tão tenso que parece uma pedra. Tem daquele seu óleo de massagem?

— Primeira gaveta — respondeu, distante.

Milo alcançou o frasco e enquanto pegava um pouco do conteúdo Shaka abria uns botões da camisa para facilitar o processo, afastando a roupa dos ombros.

— Pelo Olimpo inteiro enfileirado! Diz pra mim que isso aqui foi consensual!

Mal acreditava na quantidade de arranhões e hematomas no pescoço e ombro do comerciante, que sobressaltou-se, demorando um pouco para entender o motivo do espanto. Ao recordar-se um arrepio percorreu-lhe a espinha.

— Deliciosamente consensual — respondeu baixo, mais para si que para o outro.

O psicólogo começou a massageá-lo, tentando desfazer os nós naquela musculatura. Não pôde deixar de rir do jeito que o amigo ficara ao se lembrar do motivo das marcas.

— E eu achando que o Camus curtia umas paradas pesadas! — Brincou. — Você de santo só tem essa cara... Conseguiram brigar pela manhã depois de fazer isso? Porque eu tenho certeza que você não arranjou essas marcas fazendo preces.

— A vida ao lado de Saga é uma montanha-russa.

— Justo com você, o senhor estabilidade, quem diria?

Milo continuou o trabalho e novamente o sebo mergulhou em silêncio, sendo quebrado apenas por uma ou outra vocalização de dor e alívio, conforme movia suas mãos pelo pescoço e ombros do amigo.

— Vamos chegar no momento em que ele foi cruel ou você prefere ficar com as lembranças de ontem? — indagou por fim.

Quantos suspiros Shaka já havia emitido? Escolheu as palavras, antes de se pronunciar.

— Apesar disso aí e da maravilha que foi receber isso aí, a noite de ontem também não é algo que eu queira recordar... Mas isso nada tem a ver com o Saga, ao contrário de hoje.

Shaka subitamente não estava mais no sebo. Sua cabeça era atingida pelas memórias das horas anteriores.


 

O indiano olhava o marido, perdido entre a descrença e a raiva. Estava mesmo sendo ofendido daquela maneira porque se recusara a ir embora?

Sabia o que estava acontecendo. Desde o dia anterior Saga havia ultrapassado o limiar de seu autocontrole. Permanecia em surto e certamente queria terminar pois achava que Shaka não seria forte o suficiente para aguentar toda a tormenta que se seguiria, conhecia o mecanismo de cor. Mas ele conseguiria, sim. Saga estava duvidando de sua força e persistência. Enguliu as falsas e muitíssimo dolorosas ofensas sobre seu sexo.

 

— Não acredito em uma palavra que sai da sua boca agora. Arrume-se para sua consulta, sim? Você não está em condição de pensar por si mesmo.

— Pensar por mim? Está me chamando de maluco de novo?

— Quando na merda dessa vida eu te chamei de maluco, Saga? Pare com esse show agora!

— Eu dou show? — Riu alto, com nítido escárnio. — O rei do show é você! Cínico! Mentiroso! Dissimulado! Já pensou no quanto parece ridículo aí, com essa pose, como se minhas palavras não o atingissem, como se nada o atingisse! Por dentro você é um meninote chamando pela mamãe!... À propósito, que mãe, não é? Nem isso você tem! Você não tem ninguém.

Estava ficando difícil não se contorcer de dor ao som da sua voz favorita no mundo sendo ruim daquela maneira consigo. Por mais que soubesse o quão pesados podiam ser os episódios de Saga, quando sua ansiedade e seus instintos de afastar as pessoas que o amavam assumiam o controle. E mais difícil ainda não responder à altura.

"Ah, como se você tivesse mãe! É tão responsável pela morte da sua quanto eu sou pela minha"! — o comerciante bradava em pensamento — "Não, Shaka, não surta, ele já está péssimo sem você empurrá-lo. Ele só quer que você desista".

 

Respirou fundo, conseguia manter a feição séria, mas sentia uma veia saltando em suas têmporas.

— Você não está sendo razoável. Vai se arrepender.

Saga sentia o controle do marido ir embora, mas não era o suficiente, ele precisava de mais. Precisava que seu grande amor fosse embora pela porta da frente junto de seu prezado autocontrole. Guardava certeza que Shaka só se apartaria de si se o odiasse. Precisava então esfregar o orgulho daquele homem no asfalto. Doía ofendê-lo e desmerecê-lo, sabendo o quanto estava fazendo o outro sofrer. Mas isso o faria sofrer menos que mantê-lo acorrentado à si. Saga não era digno de tê-lo ao seu lado.

— Arrepender? Estou pensando aqui, do que posso me arrepender... De ter casado com um cara só pra livrar a fuça dele com o estado? De ter passado dez anos com alguém que nem a porra de um diploma conseguiu? Com o cara da lojinha de livro que ninguém quer mais? Ah, é claro! Por isso você se dá tão bem com seus livros! Foram usados e jogados fora por todo tipo de gente que não os queria mais, feito VOCÊ! Coloque-se à venda por lá também feito a vadia que é! Eu não quero mais! Você é um fracasso! E é totalmente responsável por suas decisões medíocres.

Shaka dera um passo à frente. Ultrapassou a linha invisível. Era mais orgulhoso que forte no fim, julgava. Não, ele não conseguiria.

— A decisão mais medíocre que eu tomei na vida foi ficar ao teu lado! Decisão essa que tomei várias vezes. 

Seu punho estava cerrado com tanta força, que suas unhas molestavam sua carne, mas a fala era pausada e calculada. Engoliu seco. Precisava manter o controle daquela discussão infeliz, não podia soltar a corda.

— Pois é para continuar remoendo decisões medíocres? Sabe o que é pior, Shaka? É que eu fui capaz da insensatez de passar essa década do lado de uma vagabunda, que embora seja uma vagabunda, nunca vai poder me dar filhos! — Arrancou a aliança do dedo. — Porque a vagabunda não tem útero! — Atirou-a na face do comerciante. — Você-não-serve-para-nada!

 

Foi calado com um soco.

Mais um fato inédito para a conta. Nunca haviam chegado às vias de fato.

Saga levou a mão ao local atingido e olhou para os olhos de mediterrâneo à sua frente e o que via era uma onda de ira. Pela primeira vez, sentiu medo de olhá-lo nos olhos. Shaka já estava acreditando em absolutamente tudo o que era dito. E estava derrotado pelas palavras cruéis. Mas se era para ofender, ele também sabia. Ah, se sabia.

— E você queria um filho para quê? Não tem condições de cuidar nem de si mesmo! É emocionalmente incapaz! — Diferente de Saga, que cuspia seu discurso como se tivesse nojo, Shaka falava com clareza cínica, como se estivesse discursando a alguém com algum tipo de retardo que o fizesse inferior. Eram dois jogadores, muito embora não houvesse vencedor para o que se disputava ali. Seguiu seu discurso: — Poderia ter galgado uma posição melhor, um futuro melhor, mas sempre "escolhi" — frisou bem a palavra — ser seu babá. Provavelmente por pena pois, olha que coisa, você também não tem mãe. É, eu realmente não tenho ninguém, estou completamente sozinho. Mas ao menos meu pai nunca se importou se eu estava comendo ou dando o que e pra quem. Não tenho irmãos, mas ao menos não tenho um exemplar que arma pelas minhas costas e quer tudo o que me pertence. Não preciso me envergonhar dos meus.

Dessa vez Saga estava perplexo, afinal seu marido nunca se referia à sua família de maneira pejorativa. O indiano por sua vez apenas lembrava-se que Kanon era mais um desaforo na lista de tudo que ele precisara engolir naquela semana. E ele não havia terminado de verter seu repertório sobre o outro. É claro que havia mais:

— Você reclama da minha pose, mas não fui eu quem precisou que o chefe ligasse para o maridinho medíocre. Vai dizer mais o que, agora? Que eu poderia ter ido muito mais longe se não precisasse cuidar da sua fisioterapia, da sua janta, da merda da sua casa e de te ajudar no banho, a se limpar e todo o resto porque você não consegue nem dirigir a porra de um carro? SIM, EU PODERIA! Mas escolhi cuidar de você, seu ingrato desgraçado! E trazer você de volta pra vida, quando você mesmo se julgou no direito de desistir dela, quando te faltou coragem até para existir. Mas agora você acha que é fodão o suficiente para cuidar de si sozinho? Pois tudo bem, vou te dar uma amostra grátis!

 

Virou-se, indo para o quarto e trancando a porta atrás de si. Apanhou um bocado de itens pessoais e alocou em uma mochila. Chegou a pegar sua gata, mas pensou em Saga sozinho ali... Ele e Spica se davam bem. A tricolor era o amor de sua vida e era horrível ficar longe dela, mas pensou que seria cruel demais com seu grego, também amor de sua vida.

— Por que ele precisa ser tão idiota? — Perguntou à gata, fazendo carinho em sua cabeça. — Vou sentir a sua falta a cada hora... Eu venho te ver quando ele não estiver, tudo bem? Você cuida dele para mim? Não deixe ele sozinho! Ele tem pavor de solidão... Confio em você.

Beijou a felina, que soltou um miado, como se entendesse cada palavra. Abriu a porta. Saga estava em pé esperando, muito próximo à ela. Olhou a mochila percebendo com toda dor do mundo que sua série de mentiras, impropérios e ingratidão haviam surtido o efeito desejado. Shaka estava se livrando dele. Esperava que pudesse ser perdoado por dizer tamanhas inverdades, um dia. Era uma tentativa desesperada de prover o melhor para Shaka e Saga se considerava no extremo oposto deste conceito. O comerciante precisava odiá-lo.

O que ele não esperava, ao ser empurrado pelo futuro ex marido, que abria espaço para caminhar até a porta, era que o indiano não pretendia livrar-se, nem por um segundo, do homem de sua vida, senhor dos seus íntimos e secretos doces sonhos.

 

 

Shaka esperou que o amigo terminasse o "serviço" e se sentasse ao seu lado novamente, enquanto seguia imerso em seus pensamentos. Milo achou que não iria arrancar mais nada do outro quando ouviu novamente sua voz.

— Acha que sou incapaz? Que nunca vou conseguir mais que ser o cara da lojinha? — não percebeu, mas sua voz havia abandonado qualquer tom solene, evidenciando seu cansaço e sua tristeza.

Pelo visto a escadaria pela qual o nível da conversa rolara havia sido mesmo longa.

— Que merda é essa? Isso aqui não é uma lojinha, não! É o sebo mais bem sucedido de Atenas! Vem gente de outras cidades atrás dos livros que só você consegue! Fora seu tino para sempre perceber o que seus clientes querem. É um dom, sabia? Parece que você lê a alma de quem entra aqui.

— Mas eu nem formação tenho... Nem a "merda" de um diploma. Um verdadeiro fracasso acadêmico.

— Não estou a-cre-di-tan-do que ele te disse essas coisas! Deixe-me socá-lo, por favor! Aliás, por que você não fez isso?

— Eu fiz... Depois que ele me acusou de não poder dar filhos a ele! Você acredita? Aquele desgraçado! Logo isso! Como se ele fosse o único que precisou abrir mão disso!

 

Aquilo era muito sério. Shaka sempre guardou um desejo absurdo de ser pai, coisa que bem sabia que não realizaria na Grécia, pois possuía preferência por homens e plena ciência que homossexuais eram proibidos por lei de adotar, no país. Olhou para a face vermelha e contrariada do amigo. Era um péssimo momento para começar sua análise, entretanto era a deixa perfeita. E, afinal, todo momento era péssimo para mostrar a Shaka que ele também falhava.

— Sim, eu sei que você precisou abrir mão disso, mas... Ele sabe? — O comerciante olhou sem entender, ao que Milo continuou: — Saga sabe que você sempre quis filhos, que criar uma família feliz que faz piquenique aos domingos era seu ideal utópico de futuro perfeito? Ou isso é só mais uma das coisas importantíssimas para você, que nunca dividiu com ele? Hum?

Milo sabia a resposta.

— Bem, eu... Ele ficava triste sempre que pensava em filhos. Para que eu ia dizer que isso me frustrava também? Para ele ficar mais arrasado?

— Para ele entender seu coração, tocar na sua humanidade e dividir perdas com você, Shaka. Simples. Igual seu problema com não ter terminado os estudos... Saga compreende exatamente o quanto isso deixa você na mais absoluta merda? Ou você finge que não é tão grave assim só para não passar atestado de ser humano? Porque veja bem, você sempre acha que é à prova de tudo, como se fosse um deus ou estivesse muito próximo disso. Mas você é gente! E um exemplar bem complicado da espécie. Como você se sentiria no lugar do Saga, casado com um cara que não se abre, cheio de abismos secretos? Porque eu, sinceramente, acharia que você não confia em mim o que, provavelmente, me faria achar que não me ama o suficiente.  — Seu ouvinte parecia vacilante ao escutar aquelas palavras. Milo prosseguiu: — O que também abriria espaço para devaneios como os de agora, sobre ser velho demais para você.

— Mas isso é um absurdo! De onde você tirou isso, Milo? Saga é o cara mais novo com quem eu já me relacionei! Nunca gostei de garotinhos. Ele é lindo, sensual, bem articulado, inteligente, sagaz, ele... ele é perfeito para mim.

— Ah, isso eu também sei. Pois te conheço desde o Átila e lembro que ele foi sua primeira cama e, mesmo depois, você só demonstrou interesse em pessoas mais maduras e experientes, mas, novamente a pergunta, o Saga sabe? No caso, sabe que você sente atração por gente mais velha que você? Que você nem nunca olhou para alguém da sua idade com real desejo? Sabe que para você ele é o homem mais bonito do mundo? Porque, que ele é muito bonito, isso o próprio deve estar cansado de saber, mas, que jamais seria trocado por outra beleza, isso eu duvido.

— Eu nunca me estendi muito nesses tópicos. Ora, agora tenho que dizer tudo?

— Preferencialmente. Sabe, é bom de vez em quando a gente saber que é perfeito para alguém, que é ótimo para alguém, que é amado por alguém. À propósito, quando foi a última vez que disse que o amava? — Shaka pensou por um momento, sem conseguir responder de pronto. Milo avançou: — Tempo o suficiente para não se lembrar, não é?

— É... É difícil me expor assim.

— Expor? Seu marido é seu inimigo?

— Olha, ele já possuía armas o suficiente para me fazer tocar o solo hoje! Isso, com o que ele sabe. E se eu conto tudo? Certamente viro uma criança em um campo de batalha. Eu não vou dar munição para ninguém, assim!

— Amigo, você está se escutando? Armas, campo de batalha, munição. Estamos falando de amor! De a-mor!

— Olha, Saga também não é um romântico, não fica o tempo todo de mimimi.

— Graças aos deuses, não é? Até porque, se fosse, vocês não durariam um ano.

— Não exagere, eu não sou um monstro. Você é bem romântico e está aí com o Camus, um homem racional.

— Ah, sim, mas eu ouço um "eu te amo" pelo menos uma vez por mês. É bom para que eu não me esqueça. E é bom pois significa que meu homem racional não tem vergonha de mim. Sim, Camus é racional e prático. Saga também. Já você... Amigo, teu excesso de razão já te levou à paranóia. Você simplesmente age como se teus sentimentos bonitos fossem fraquezas que precisassem ser escondidas.

— Mas não são? Veja bem, assim que uma pessoa sabe dos seus sentimentos, ela sabe pelo que você viveria e morreria. Isso te coloca nu em frente aos leões. Quem tem ciência do seu sentir, faz o que bem entende com seu coração e suas vontades. Como alguém se defende disso?

— Não se defende.

— Então o que faço?

— Mete a cara de peito aberto. Você vai se ferir, inevitavelmente. Mas não se vive sem feridas. Agora responda: você o ama?

— Desesperada e irremediavelmente.

— Então deixe-o saber, Shaka.

O comerciante remoeu um pouco tudo o que havia acabado de escutar.

— Talvez seja um pouco tarde...

— Só não há mais tempo neste plano para os mortos. “Acho” que foi “você” quem me disse isso, sabe! — Frisou as palavras. — Gostaria muitíssimo que você conseguisse pegar para si os ensinamentos que passa ao próximo! Você ainda tem a chance de ser tão sincero quanto é dedicado e leal.

 

Shaka ficou ali, absorvendo um pouco mais as duras palavras do amigo. Haviam sido ditas de maneira amável e preocupada, mas não eram menos duras por isso. Estava sendo repreendido. E seguindo a linha de raciocínio de Milo, ele até tinha razão. O que consideraria lastimável, se a lástima maior não fosse sua dificuldade em se abrir e abandonar o ilusório controle antecipado de tudo.

 O psicólogo passou o olhar do rosto pensativo para o braço do outro. Parecia cada vez pior.

— Você termina o que tem para fazer nesse computador e a gente vai ao médico. Enquanto isso vou ligar para minha assistente, para que ela desmarque minha agenda.

— Milo, não há a menor necessidade disso. Posso me cuidar sozinho, não preciso de ajuda.

— Não estou perguntando se você quer ou precisa. Estou fazendo. Só saio deste sebo contigo e para um hospital.

 

Shaka não estava acostumado que se dirigissem à ele desse jeito. O homem que delegava e falava no imperativo era ele. Era péssimo estar na outra ponta. Não disse mais nada, voltando sua atenção para a tela, tentando concentrar-se, depois de tudo. Milo lhe trouxe outro copo d´água e ele tomou aos poucos. Seu corpo estava menos agitado, mas ainda podia senti-lo levemente trêmulo, mesmo com a água batizada com sei-lá-o-que que tomara. Era difícil focar-se, pois sua cabeça ainda doía horrores. Abriu a gaveta, pegou uns três comprimidos diferentes para este fim e tomou-os ao mesmo tempo. Não costumava tomar remédios, embora os tivesse ali para quando a situação ficava mais séria a ponto de atrapalhar sua produção. Viu Milo guardar o celular e entrar na copa e tudo ficou em silêncio por uns minutos. Escutou o barulho do que parecia ser seu liquidificador, mas ignorou, o amigo podia preparar o que quisesse por lá, não se importava. Ele regressou depois de um tempo, justo quando o comerciante estava finalizando sua demanda, com dois copos, onde um líquido esverdeado semitransparente com gelo podia ser visto dentro destes.

 

— Bati folha de melissa com limonada para você se acalmar um pouco. Por sorte sua copa é quase um arsenal de xamanismo. O seu está sem açúcar, pois sei que você é chato e azedinho.

Shaka sorriu brevemente com o comentário sobre seu estoque de ervas frescas e secas. Retirou os óculos com a mão direita e esfregou o nariz e a testa com o pulso, apoiando o cotovelo na mesa. Estava visivelmente exausto e era impossível Milo não estar preocupado consigo. Pegou o copo e sorveu o líquido. 

 

O som da sineta foi escutado e ambos voltaram-se para a entrada

Era a loira venenosa, trajando uma saia malva de couro justa até os joelhos e uma blusa seca no corpo em um rosa bem claro. Estava ladeada por dois homens altos e truculentos. Shaka recolocou os óculos para poder olhar tudo atentamente e observou um outro do lado de fora, pela vitrine. Pensou que poderia considerar aquilo um péssimo sinal e temeu por seu amigo estar ao seu lado, não queria que seu pesadelo respingasse nele. Milo acompanhava a cena com genuína curiosidade, porém quando olhou para seu amigo indiano pôde perceber em seus olhos que o que havia entrado por aquela porta era um problema. Colocou-se em estado de alerta. 

A mulher aproximou-se do balcão.

— Você é o putinho mais idiota que eu pude conhecer. O que você pensa que ganha, além de uma inimiga, ferindo meu marido?

— O que eu deixei de perder, seria mais apropriado. — Shaka levantou-se. — Agora, é muita audácia sua aparecer aqui, depois do que você e o merda do Kanon fizeram ontem. Qual o seu problema? Acha que pode tudo porque é rica e bonita? Por ser influente, herdeira dos Solo e estar cercada de capangas? O que te sobra nestes atributos lhe é escasso em amor próprio, decoro e respeito! E nada disso você pode comprar! Ainda não entenderam que não vai rolar? Eu não vou ser o pet de vocês! Isto aqui não é um circo, tampouco um prostíbulo, retire-se com seus cachorros daqui!

 

Aquela era a esposa de Kanon? Era uma Solo? Ela sabia do comportamento do marido... e não se importava? E o que ela havia feito? Shaka estava irado com aquela mulher. Milo percebera que seus instintos estavam certos no dia anterior... Havia muito mais coisa naquela história toda.

 

Aquela quarta-feira estava apenas começando.

 


Notas Finais


Aos jovens que aqui chegaram... espero que tenham sobrado lencinhos e saquinhos de papel! Ainda vamos precisar!

Não vou me alongar muito hoje
Obrigada ao que seguem e aos que chegam por aqui!


★★★
Link para a playlist da fic
https://www.youtube.com/playlist?list=PLCoz6-aj6cy2DxPF144Qc6tweg-N-Vvhq

Até


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