Eu só queria tentar acertar uma bolinha de papel na cabeça da professora, enquanto ela está virada de costas para a turma. Desculpa, eu saí do ensino médio, mas o ensino médio ainda não saiu de mim. Não passo de uma jovem adulta de dezenove anos, com mentalidade de uma adolescente de treze.
Acho que todos concordamos que segunda feira é o pior dia de todos. Mas, as minhas segundas feiras são ainda mais insuportáveis. Aula de farmacologia, com a professora Ângela. Ela tem o jeito tão calmo e a voz tão suave, que só me faz querer voltar para casa e dormir.
Ou seja, eu fico imaginando o que eu faria se tivesse no ensino médio para não morrer de tédio. Porque prestar atenção é impossível.
O intervalo tarda, mas chega. Vou direto para a lanchonete pedir um café, ou eu não suportaria ouvir a voz de Ângela por mais três tempos inteiros.
Encontro com Scórpia e Entrapta. Minhas únicas amigas nesse inferno chamado universidade. Entrapta é amiga de Scórpia de outros carnavais, mas eu a conheci aqui na faculdade mesmo, através da platinada. Entrapta é baixinha, tem longos cabelos roxos, faz Ciência de Dados e Inteligência Artificial. É toda maluquinha, as vezes grita do nada, mas é muito gente boa.
- E aí, gatinha. - Me chamou Scórpia, fazendo sinal para que eu sentasse à mesa junto com elas.
- Eu fiquei sabendo que você beijou a Adora. - Solta Entrapta para todo mundo ouvir.
- Oi???? - Coloco a mão na boca da menina. - Quer um megafone de uma vez???
- Ah, não precisa. Eu já falo alto por natureza.
Um dia ainda ensino a ela o significado da ironia.
Me sento e jogo os pés na cadeira da frente, cruzando as pernas.
- De onde tirou isso? - Pergunto, dando um gole no meu café.
- Li em algum lugar. - A menina faz cara de pensativa, com a mão no queixo.
- Eu não beijei a Adora. Eu mal falo com ela, você sabe. Scórpia, você podia parar de escrever fanfics sobre mim para a Entrapta. A menina nem consegue mais distinguir o que é realidade e o que não é.
- Isso! Foi na fanfic! - Ela fica toda alegrinha, mas logo murcha. - Ah... Então não aconteceu. Sinto muito, Catra.
- Ei, para de falar como se eu gostasse dela.
- Amiga, admite. - Me cutucou a platinada.
- Hoje é segunda feira, eu estou de TPM, com as costas machucadas, com a voz de Ângela ecoando na minha mente até agora, então, por favor. Não me faça agredir ninguém.
Scórpia e Entrapta deram risada. Elas são as únicas pessoas que me tratam com naturalidade, quem não se intimidam pelo meu jeito agressivo de ser.
Mesmo que eu não admita em voz alta, gosto demais delas.
- O que houve com as costas? - Pergunta Scórpia.
- Caí de bike.
- Puts. - Entrapta faz uma careta, mas logo volta a dar atenção para seu tablete.
Ficamos conversando ali por mais algum tempo, até o intervalo acabar e eu precisar voltar para a classe.
Finalmente a aula acabou. Mal posso esperar para chegar em casa e tomar um banho. Estou com a impressão de que minhas costas estão doendo mais que antes. Preciso lavar isso o mais rápido possível.
Mas preciso ir ao banheiro antes.
Assim que termino minhas necessidades fisiológicas, vou até a pia lavar as mãos.
Abro a torneira, olhando para baixo.
Vejo de relance pelo reflexo do espelho, alguém parado atrás de mim.
Levanto os olhos e a vejo.
Adora.
Ela está encostada em uma das cabines fechadas do banheiro, olhando para mim pelo reflexo, com um sorriso de canto.
- Hey, Adora. - Falo e volto a dar atenção às minhas mãos ensaboadas.
- Hey, Catra.
Olho mais uma vez para a loira. Ela veste a jaqueta do time, por cima de uma camisa branca justinha. Penso ser a camisa favorita dela, já que está usando-a quase todos os dias. E se tornou minha camisa favorita também. Por possuir um tecido fino e ser colada no corpo, dá para ver perfeitamente o abdômen definido da garota.
Um tanquinho desse em casa, eu pegaria gosto em lavar roupa.
Adora é gostosa em todas as línguas.
Desvio meu olhar da barriga da loira e foco em seus olhos. Eles ainda estão sobre mim, com seu sorriso congelado nos lábios.
Tudo que eu queria nesse momento, era ler seus pensamentos.
- Quer usar a pia? Já estou acabando.
- Não tenha pressa.
Me pergunto por que ela está me esperando acabar, se há mais duas pias livres ao meu lado.
Termino e seco as mãos.
- Pronto, princesa.
- Posso falar com você?
Me pegou de surpresa.
- Ué... Pode.
- Eu só queria pedir desculpas por ontem, lá no ônibus. Por ter incomodado sua viagem.
Ah pronto. Agora a bonita pensa que me incomoda. Por mim, você ia era no meu colo.
- Relaxa. Não me incomodou. Eu preciso ir, até mais. - Jogo a mochila das costas, mas esqueço do ferimento. Assim que o tecido grosso se choca contra minha pele ferida, solto um gemido agoniado sem querer, espremendo os olhos e os lábios.
- Catra, o que foi? - Adora se aproxima, com um olhar preocupado.
- Nada, de boa. Eu só machuquei as costas.
- Posso dar uma olhada?
- Você é enfermeira agora?
Ela fez um bico. Ai, linda.
- Não sou, mas iniciei um curso do corpo de bombeiros. Tenho noção de primeiros socorros.
- Iniciou? Não concluiu? - Perguntei, tirando a mochila das costas, prestes a levantar a blusa.
- Não, fui expulsa por matar um paciente sem querer.
Olho para a menina, coloco a mochila de volta.
- Até mais. - Dou as costas a ela.
Ela segura meu braço.
- Ei, é brincadeira. - A loira dá uma risadinha gostosa. - Eu não completei porque não era para mim. Achei melhor me dedicar nos estudos e tentar a faculdade.
- Ser uma engenheira de sucesso é muito mais a sua cara do que entrar em prédios em chamas. - Tiro a mochila de novo. - Se bem que... Salvar pessoas até que combina com essa sua cara de heroína de desenho animado. Sabe? Tipo a She-Ra. Cabelo loiro você já tem.
Ela deu uma risadinha fraca.
Preciso fazer um enorme esforço para não imaginar a Adora vestida com uniforme de bombeira... Ui, o banheiro ficou quente de repente.
- Para de bobagem. - A loira se abaixa atrás de mim e levanta minha camisa. - Catra????? O que aconteceu com você????
- Eu caí.
- De um carro em movimento????
- De uma bicicleta, para ser mais exata.
- Meu Deus, isso está horrível. Está passando alguma coisa? Antisséptico ou uma pomada cicatrizante?
- Existe isso?
Ela faz uma careta.
- Não tenho essas coisas em casa. - Completo.
- Eu tenho. Vamos para minha casa. Vou te ajudar com isso.
- Não precisa, loirinha. Eu me viro.
- Pois eu insisto! Se você pegar uma infecção e morrer, o Micah ficará perdido e o time entrará em colapso.
- Estou lisonjeada. - Falo irônica.
Ela apenas sorri e segura a minha mão. A menina me puxa pelo campus, mas eu não consigo prestar atenção em mais nada a minha volta, a não ser a mão de Adora me segurando. Sua mão é grande, forte, mas é delicada também. Qual seria a sensação de seus dedos enroscados nos meus? Queria saber...
Quando me dei conta, já estávamos no estacionamento. Descubro que ela tem uma FUCKING CAMINHONETE. Burguesa safada.
Colocamos minha bike na carroceria e pegamos estrada.
Okay, a ficha está começando a cair.
Eu estou indo para a casa da Adora.
Eu estou.
Indo.
Para.
A casa.
Da.
ADORA???
Meu pé começa a bater incessantemente no chão do carro da loira. Meu rosto sua frio. Meus olhos não possuem um ponto de foco, mas, mesmo assim, não se atrevem a olhar para o lado.
Eu realmente não consigo ficar normal perto dela. Quanto mais perto, mais anormal. Posso pensar em mil e uma coisas que gostaria de falar ou fazer com Adora.
Mas na prática... Mal sei respirar.
Ainda mais como? Sozinhas, num carro chique, indo para a casa da dita cuja. Eu realmente não sei se saio viva dessa. A chance de um infarto é enorme.
- Você é sempre tão quieta assim? - Levo um susto com a voz da menina do nada.
Mesmo assim, não olho para ela.
- É, às vezes.
- Hum... Está doendo? - Ela pergunta.
- O que?
- As costas.
- Ah, um pouco só.
Sinto seu olhar sobre mim.
- Você parece desconfortável.
- Eu estou super confortável. Seu carro é muito confortável. É couro?
Ela dá uma risada rápida.
- O banco é de couro sim.
- É, eu sabia. Eu estou sentada nele, né...
- É. - Ela riu abertamente. Então, a olhei.
Não importa o quão sem graça eu esteja, eu não perco a risada da Adora por nada nesse mundo.
Seus olhos fixados no trânsito. Uma mão no volante, outra apoiada na janela.
Que visão!
A viagem não demorou. Adora mora relativamente próxima da faculdade, assim como eu. Um pouco mais longe, apenas.
Ela estaciona o carro em frente a uma casa não muito grande, mas bem jeitosa.
- Chegamos. - Diz a loira.
- Eu deveria esperar aqui ou...?
Ela ri.
- Como vou te ajudar com isso se você esperar aqui?
- Achei que você só ia me arranjar as paradas.
A menina desce do carro, dá a volta nele a abre minha porta.
- Se fosse isso, bastava ter ido à farmácia. Vem, desce.
Obedeci em silencio. Sigo a menina com as mãos no bolso, olhando para o chão.
Ela pega minha mão.
- Relaxa. Só se sinta em casa.
- Se fosse para me sentir em casa, eu não teria vindo. - Falo baixo.
- Hum?
- Nada.
Entramos.
Bonita por fora, incrível por dentro.
Os cômodos são perfeitamente arrumados, cada móvel parece um espelho de tão bem lustrado.
- Vó, cheguei. E trouxe uma amiga.
Reparo em quadros que enfeitavam a parede, mesclando entre pinturas e fotos de família. Tinha até uma foto da Adora bebê.
Me aproximo. Ela parecia ter um ano de idade, usando um vestido e um chapéu branco. Sorrindo banguela para a câmera.
Que coisinha mais fofuxa e bochechuda!!!
- Ei, não olha pra isso. - Ela diz, me puxando para mais perto de si. - Já tentei tirar essa foto daí, mas a minha avó quase me bateu.
- Com razão.
Então, uma senhorinha baixinha, de grandes cabelos brancos e óculos fundo de garrafa aparece do que creio ser a cozinha. Ela batia uma massa de alguma coisa.
- Olá, queridinha. Seja bem-vinda. - Diz a senhora simpática, se aproximando da gente.
- Vó, essa é a Catra. Catra, essa é a Rizz, minha avó.
- P-prazer, senhora.
A mulher larga a colher dentro da bacia e aperta minha bochecha.
- Tão bonitinha!
Adora dá risada, depois me puxa pela mão.
- Se precisar de alguma coisa, me chama. Estaremos no quarto. - Diz a loira.
- Está bem, queridinha. Estou fazendo uma torta para você.
- Obrigada. - A garota me puxa até um quarto e fecha a porta. - Ela diz fazer torta para mim, mas quem come noventa por cento é ela mesma. - Diz sorrindo.
- Bem simpática sua avó.
- Ela adora visitas. - Adora puxa um banco que estava abaixo da penteadeira e faz sinal para que eu me sente, depois, vai até o banheiro do quarto.
- Suíte? - Pergunto, retirando meu casaco de flanela vermelho xadrez.
- É. - Ela ri. Só isso que essa menina faz. Mas eu não enjoo nunca.
- Muito chique.
A loira aparece na porta do banheiro.
- Não é lá essas coisas. - Então, se aproxima. - Tira a camisa.
- Perdão? - Meu rosto ferve no mesmo instante.
- Para eu poder passar o remédio no seu ferimento, uai. Tira.
- I-isso é mesmo necessário...?
Ela agarra na barra da minha blusa e tenta puxar para cima.
- Anda, Catra.
Afasto Adora com um empurrão, que acabou saindo mais forte do que o esperado. A menina dá um passo para trás, me olhando meio constrangida.
- D-d-desculpe. E-e-eu p-posso tirar sozinha. - Falo encarando o chão.
- Oh, desculpe. - Diz Adora cabisbaixa.
Merda, Catra... Só faz merda.
Retiro a camisa, ficando apenas de tope.
Adora me encara com um olhar diferente, mas não consigo identificar o significado dele, pois, rapidamente, ela se posiciona atrás de mim.
- Vai doer, tá?
- Sou tolerante à dor.
A loira espirra algo nas minhas costas, que me atingiu como lava. Tenho certeza foi ácido sulfúrico.
Solto um gemido agoniado.
- Aiaiaiaiaiaiaiaii......... - Aperto minhas coxas, cravando as longas e afiadas unhas nas minhas pernas. Não esperava que fosse doer tanto.
- Desculpe...
- Tudo bem, não é nada demais. Só a sensação da minha pele ser corroída até os ossos. De boa. - Falo com um resquício de voz.
Ouço a menina rindo atrás de mim. A dor até alivia, acredita?
- Precisarei passar mais um pouco, ok?
- Manda ver... - Ela esguicha o remédio fabricado a partir do mármore do inferno. - Ai, porra!
- Xinga que ajuda, vai. - E esguicha de novo.
A tão sonhada ida a casa de Adora acabou por se transformar em uma seção de tortura.
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