Mandetta se senta na cadeira, leva as mãos ao rosto e suspira. Está sozinho em seu gabinete e perdido nas lembranças dos últimos dias. O conselho de seu pai persiste a se repetir na sua cabeça: "médico não abandona paciente". Mas o que fazer quando o "paciente", o Brasil, tinha um "parente" tão irresponsável e egoísta como Bolsonaro? Que, além de não contribuir para a melhora, atrapalha o "tratamento"? "Eu já tentei de tudo", Mandetta pensa consigo, "não sei mais o que fazer". De certa forma, ele já sabe no que isso vai terminar.
Sua intuição é confirmada ao ver a mensagem que chegava em seu celular. O presidente estava o demitindo pelo WhatsApp. E parece que isso também não surpreende Mandetta. "Coragem pra fazer isso cara a cara não tem, né filho da puta?", pensa. Depois de um tempo absorvendo a notícia e tentando se acalmar, Mandetta entra no WhatsApp de novo, no grupo do Ministério da Saúde.
Mandetta: ei pessoal... Foi confirmado. Fui demitido.
Wanderson: agora fodeu!
Gabbardo: era questão de tempo, chefe...
Mandetta: ok, mas não façam drama! O combate continua, mesmo sem mim! Alguém aqui já sabe quem vai ser o novo ministro? Tem alguém confirmado?
Gabbardo: parece que vai ser um tal de Nelson Taichi.
Wanderson: *Teich.
Gabbardo: que seja, esses nome alemão aí!
Mandetta: hm... Sei quem é de nome. Empresário do ramo da saúde particular.
Gabbardo: nossa!! Que SURPRESA o Bozo chamar alguém da elite da saúde, né não?! Aposto que sabe porra nenhuma de SUS!
Mandetta: mas mesmo assim, eu quero que vocês continuem na equipe, até pra ajudá-lo a conhecer o SUS e não deixá-lo fazer nenhuma besteira, tá bom?
Wanderson: comandado pelo Bolsonaro?? Tu tá nos pedindo o impossível, chefe!
Mandetta desliga o telefone e fica a pensar. Como que o Bolsonaro coloca alguém sem experiência nenhuma em saúde pública pra gerir o SUS diante de uma pandemia? Ele junta as mãos e reza para que o Brasil não vire um caos nos próximos meses.
Já no dia seguinte, Mandetta é convidado a participar da posse de seu sucessor e "passar o bastão". Na verdade, não estava animado a ir, mas se obrigou a cumprir com uma última formalidade antes de tirar esse peso dos ombros de uma vez. Enquanto se arruma, ele olha pro seu colete do SUS, que usou por tantas vezes nos últimos meses, pendurado na cadeira.
Mandetta: hoje eu não vou te vestir, velho amigo... E nem nunca mais.
Depois de arrumado, ele toma o rumo até o Palácio do Planalto, onde a cerimônia de transição de cargo já estava começando. Ele entra, apressado, pra se juntar a Bolsonaro e outros membros do governo.
Mandetta: desculpem, estou atrasado?
Braga Neto: não, mas bem por pouco. Já cumprimentou o presidente e seu sucessor?
Mandetta: bom... Cumprimentarei numa hora mais oportuna.
Enquanto Bolsonaro era o primeiro a discursar, Mandetta vira pro lado para ver aquele que iria substituí-lo. Teich veste um elegante terno azul marinho, que contorna muito bem seu corpo magro, e o cabelo grisalho bem arrumado e o cheiro de perfume caro indicam alguém vaidoso e de muito bom gosto. Porém, a expressão tristonha do novo ministro faz Mandetta se perguntar se ele realmente estava querendo assumir essa bronca. Ele repara bem no rosto de seu sucessor: desde a pele alva que provavelmente não vê o Sol há uns bons anos até os olhos negros e caídos, de alguém que já presenciou muita coisa na vida. Mas o que chama mesmo a atenção de Mandetta são os lábios, de uma cor forte, contrastando com a pele pálida. De repente, Mandetta sente uma estranha vontade de saber o quão macios são aqueles lábios...
Braga Neto: ô Mandetta!
Mandetta: hm? Que foi?
Braga Neto: é tua vez de discursar, já foi chamado duas vezes!
Mandetta: ah tá, tá, já vou!
Recém saído do transe, ele se recompõe e se levanta para discursar. Enquanto lê o discurso que havia preparado, consegue sentir o olhar de Teich sobre si e isso começa a deixá-lo inquieto. O que será que o novo ministro estaria a pensar dele? Mesmo levemente incomodado, Mandetta consegue finalizar seu discurso sem problemas, hábil na oratória como sempre foi.
Por fim, é a vez de Nelson Teich discursar. E Mandetta consegue perceber de cara que seu substituto não tinha nem metade da habilidade da fala que ele mesmo possui. Mesmo com um discurso escrito e preparado previamente, o novo ministro gaguejava, falava devagar e num volume muito baixo, quase inaudível. E parecia até desconfortável. "Já dá pra saber porque o Bozo me trocou por esse cara... Sem uma comunicação clara, as pessoas não tem informação correta e não se preocupam em se prevenir", Mandetta pensa consigo.
Encerrado o evento, Mandetta já se preparava para ir embora, quando uma voz grave e bem baixa, a que ouviu há alguns minutos, o chama.
Teich: ministro Mandetta, espere um minuto!
O novo ministro olha pros lados antes de se dirigir ao antigo, apenas se certificando de que Bolsonaro já havia saído.
Teich: eu só queria dizer que... Bom, você fez um ótimo trabalho no ministério.
Mandetta: obrigado. Te desejo boa sorte, e pelo que ouvi a seu respeito, acredito que tem capacidade de sobra.
Teich: muito obrigado, ministro. Muito gentil da sua parte.
Mandetta: não precisa me chamar de "ministro". Luiz Henrique tá de bom tamanho. Ou só Luiz, ou só Henrique, como preferir. (Risos)
Mesmo possuindo uma expressão tão séria, Teich acaba dando um sorriso tímido, apenas com os cantos da boca. Mandetta entende isso como um bom sinal de que está agradando o sucessor. E, pensa ele, pode ser esse um bom caminho pra se aproximar dele e, talvez, exercer uma boa influência e ajudá-lo a tomar boas decisões nessa pandemia.
Mandetta: olha, não querendo ser indelicado nem nada... Mas me disseram que você não tem muita familiaridade com o sistema público de saúde...
Teich: Eu aprendo rápido.
Mandetta: tenho certeza que sim! Mas, querendo uma ajudinha, pelo menos nos próximos primeiros dias, a gente pode trocar números e ir conversando no WhatsApp ou por onde você preferir...
Teich parece surpreendido pela sugestão de Mandetta, e olha para os lados mais uma vez, temendo estar sendo vigiado.
Teich: eu... Eu acho melhor não, ministro... Digo, Henrique. Eu recebi ordem expressa do presidente que eu não posso falar com você.
Mandetta: ah, é? Mas e o que você está fazendo agora, então? (Risos)
Teich: (risos) é, eu sei... E já estou me arriscando bastante, tenha certeza disso.
Mandetta: o presidente não precisa saber, Nelson. Fica sendo nosso segredo. (pisca um olho)
Teich: ... Está bem. Me passa seu número.
Bem quando os dois terminam de trocar números do telefone, Braga Neto volta, e parece furioso. Ele e Teich começam a falar baixo entre si, Mandetta tentando escutar.
Teich: desculpe, ministro, eu realmente tenho que ir.
Mandetta: claro, tranquilo. Parabéns de novo por...
Não tem tempo de terminar sua fala, já que Braga Neto praticamente arrasta Teich pra longe dele. Ele até pensa em intervir, defender Nelson, mas acaba desistindo. Já havia causado confusão demais nos últimos dias, especialmente com a ala militar. Falaria com o outro médico mais tarde, num horário que soubesse que ele estaria sozinho.
Muitos usuários deixam de postar por falta de comentários, estimule o trabalho deles, deixando um comentário.
Para comentar e incentivar o autor, Cadastre-se ou Acesse sua Conta.