Mesmo completamente ciente do quanto o protocolo torna isso impossível, me pego novamente desejando poder escolher onde irei me sentar à mesa hoje.
De preferência, bem longe da minha mãe. Longe o suficiente para que lhe seja impossível invadir a minha mente, mesmo com todo o tamanho de sua habilidade. Para que não descubra sobre o que aconteceu hoje.
Não que ela não vá saber uma hora ou outra.
Tentar esconder dela seria tolice, e me esforço pra ignorar todos os planos idiotas que borbulham na minha cabeça. São um impulso imaturo, um dos poucos retratos de quem sou que ainda não consigo esconder. Ou dos quais ela ainda não se livrou pra mim.
Quando ocupo meu lugar ao seu lado na mesa, assistindo Cal tentando controlar sua vontade de atacar o jantar como se fosse um morto de fome que nunca teve uma única aula de protocolo, me preparo para a sensação dela invadindo minha mente. Sensação que já se tornou tão familiar, mesmo que nunca tenha deixado de ser desconfortável. Acho que isso nunca vai mudar.
Ela não demora a vir, não se importando nem um pouco com ser sutil ou se dando ao trabalho de pelo menos esconder de mim o que está fazendo. É uma de suas especialidades, não custaria nada usá-las comigo também. Mas não é como se se importasse sobre se eu sei quando está na minha cabeça ou não.
Não faz a menor diferença pra ela.
As novas memórias com Thomas são a primeira coisa que checa, como já era esperado. Sempre fui bom em mentir e fingir pra todo mundo, mas nada escapa da habilidade da minha mãe. Não é um dos membros mais talentosos da casa Merandus à toa, sem contar que tem uma vantagem gigantesca quando se trata de mim. Pelo menos, ainda sou capaz de diferenciar o que é realmente meu do que tem sido implantado por ela nos últimos tempos. Espero que siga dessa forma.
A cena de Thomas me beijando é repetida pelo menos três vezes dentro da minha cabeça. Ela não quer perder nenhum detalhe, e sinto seu olhar pesar sobre mim quando chega na parte em que eu o abraço e beijo de novo. Se não tivesse um autocontrole invejável, sangue prateado teria subido para as minhas bochechas de uma maneira perceptível demais. Felizmente, só ela e Cal parecem notar, enquanto nosso pai nem se dá ao trabalho de levantar os olhos da comida para perguntar como sua família tem estado. Meu irmão dá uma risadinha pra mim, ciente de quem é o motivo desse rubor. Sinto vontade de jogar nele uma das ervilhas que me forço a comer, mesmo sem nenhum apetite. Não é como se eu já não tivesse comido com Thomas antes, como fazemos sempre que arranjo uma oportunidade.
Minha mãe observa Cal rindo disfarçadamente de mim com interesse, saindo da minha cabeça em um piscar de olhos. Não tão acostumado — ou tão bom mentiroso — quanto eu, meu irmão não consegue conter uma careta quando Elara invade sua mente. Quer descobrir o quanto ele sabe.
(Eu realmente estou começando a me questionar se deve ter alguma dificuldade em esconder da vítima o que você está fazendo com ela. Seria mil vezes mais confortável pra mim saber que ela está na minha mente sem precisar sentir isso.)
Reprimo um suspiro aliviado. Ocupada com Cal, ela não pôde assistir ao momento em que Thomas me escuta falar sobre meu amor por ele. Nem suas lágrimas no ombro do meu uniforme de treino, ou o quanto lutei pra me impedir de chorar junto. Não pensei que o ver chorando por um "nós" que não pode passar de onde está fosse me quebrar tanto quanto aconteceu. Eu abandonaria qualquer título de nobreza e qualquer lugar nesse palácio estúpido se isso me desse a certeza de que nunca mais vou vê-lo chorar. Pelo menos não de tristeza.
Me esforço pra terminar de comer o mais rápido possível, enquanto minha mãe ainda trabalha na mente de Cal, que tenta disfarçar o desconforto de ter seus pensamentos invadidos. Reconheço seu esforço, mas ele nunca vai ser tão bom nisso quanto eu.
Minha mãe não tem tempo de visitar meus pensamentos de novo antes de eu alegar estar satisfeito e sair andando o mais rápido possível pelo corredor, desejando o (inexistente) poder de teletransporte apenas para não ter que andar todo o caminho até meu quarto. Mas não deixo de sentir uma pequena amostra de felicidade: ela só poderá visitar meus pensamentos de novo pela manhã, o que significa que o resto das memórias de hoje serão só minhas nesse meio tempo.
Minhas, de Thomas e de ninguém mais. Tão exclusivas quando o sentimento que compartilhamos.
Ao chegar no meu quarto, corro direto para debaixo das cobertas, o melhor lugar para relembrar milhares de vezes os acontecimentos do dia. O sorriso de Thomas, suas mãos ásperas nas minhas. Seu abraço, suas lágrimas, nossos beijos e juras de amor bem mais tristes do que o desejado. O rubor vermelho em suas bochechas antes de se inclinar para me dar o beijo número um. Depois de me confessar que também tinha sido o seu primeiro, até suas bochechas ficaram vermelhas. Ele é a única pessoa assim por quem não consigo nutrir nenhum sentimento negativo.
Meus bocejos logo se tornam tão frequentes quanto a vontade de vê-lo se tornou, e me levanto para me preparar para dormir. Mesmo já tendo aceitado que a habilidade de sonhar foi tirada de mim e nunca mais voltará, enquanto escovo os dentes me pego desejando que isso seja mentira. Para que hoje eu pudesse encontrá-lo nos meus sonhos também.
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