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História Meio Amargo - Sorvete de chocolate


Escrita por: MxrningStar

Notas do Autor


Olá, minha gente! Como vocês estão?
Um aviso: chegamos ao segundo ponto de virada da história. O primeiro foi o episódio da tinta verde. A fic começa a ganhar mais velocidade a partir daqui. Bora lá?

Boa leitura!

Capítulo 14 - Sorvete de chocolate


- E aí, meninão! – Lica recebeu Arthur com um high-five no pátio da escola. Queria poder ignorar as olhadinhas nada sutis que uma moça alta de cabelos pretos lhe lançava vez ou outra parada ali perto da cantina. A mulher parecia lhe secar descaradamente – Tudo certo? Como foi a aula hoje?

- Bem legal – Arthur entregou para ela a mochila. Ai crianças e a mania de acharem que adultos são seus burrinhos de carga... – Hoje na aula de Português eu aprendi orações. Mas não tem nada a ver com rezar. São frases.

Lica riu fraquinho e pôs a mochila dele nas costas.

- Oração é basicamente uma frase, né?

- Com sujeito e predicado – o menino deu sua aula orgulhosíssimo de si – Mas nem sempre o sujeito pode aparecer. Por exemplo... – ele esquadrinhou ao redor – Queria tomar sorvete.

Lica estreitou os olhos quando alcançaram a moto parada ali na calçada. Arthur definitivamente não dava ponto sem nó.

- O sujeito dessa frase está maluco porque sabe que se tomar sorvete a essa hora, outro sujeito vai matá-lo. E adivinha quem é.

Arthur riu de covinhas e tudo.

- Se a gente levar pra mamãe, ela não briga.

- Esperto o senhor, hein? – ela levantou a tampa do maleiro da moto e pôs a mochila lá dentro – Uma bola só – o menino fez festa – Fica sendo nosso acordo. Bora.

De mãos dadas, e Lica medindo o tempo porque combinara de se encontrarem com Samantha na casa de dona Arlete para o almoço, se acomodaram na mesa externa da sorveteria que ficava do outro lado da rua. Arthur quis um sunday, mas ele iria enganar outra, não ela. Terminou com um sorvetinho simples de uma bola metade chocolate, metade morango.

- Tia Lica, você falou com os pais da Manuzinha pra eles irem almoçar com a gente?

Lica esquecera completamente o que havia prometido a Arthur, o que era um erro e um tremendo passo em falso. Odiava deixa-lo no aguardo das coisas.

- Ainda não, Arthur, me desculpa. Mas ó, de amanhã não passa. Eu vou falar com a sua mãe e a gente marca. Tenho certeza que os pais dela vão adorar conhecer o Mapa Mundi. Limpa aqui ó.

Ela estendeu a mão com um lenço para limpar o cantinho da boca dele melecada de sorvete e o menino foi se ajeitar na cadeira. Um erro. A bola de sorvete já derretendo e pela metade virou sobre a camisa azul escuro do uniforme. Lica quase teve uma síncope.

- Eita! Sujou – Arthur disse o óbvio.

- Merda! – Lica xingou baixinho, mas nem tanto. Levou uma repreensão do menino. Sua mãe lhe dera educação e dissera que xingar era feio – Foi mal – tentou limpar com um lenço, mas sem sucesso – Se você aparecer imundo desse jeito pra sua mãe, quem morre sou eu, João Arthur. Pelo sorvete e por isso.

Mas a camisa só ficava pior.

- Tem camisas novas na escola, tia Lica. E limpas.

Ao menos uma cabeça pensava. Para evitar que Samantha caísse dura e caísse de pau nela quando visse o estado do filho, a saída era providenciar vestes novas. Rapidamente, ela pagou a conta e pegou Arthur pela mão, retornando ao Grupo. Compraria uma nova camisa de farda e jogaria aquela na máquina assim que chegasse em casa. Desse jeito, a mãe do moleque surtaria menos, ela esperava.

Mas aí retornamos para a tal da Lei de Murphy e sua crueldade em afirmar que tudo que está ruim sempre pode piorar. É, ela é implacável. Lica pisou no Grupo e a primeira cara que viu, ou melhor, o primeiro corpo com o qual trombou foi o de Gustavo muito bem instalado na cantina da escola batendo um papo animado com....

- Tio Edu! – Arthur correu até lá e deu um toque de mão no homem. Lica o seguiu – Tia Lica, esse é tio Edu. Ele é meu professor de futebol e natação.

- Educação Física – o homem corrigiu e se levantou sorrindo. Era bem mais alto que ela, o corpo atlético bem definido na camisa ligeiramente colada – Eduardo, muito prazer. Você deve ser a Heloísa, certo? A mãe do Arthur.

- Muito prazer – Lica se apresentou e assentiu, devolvendo com capricho o aperto de mão – Ele fala muito sobre suas aulas. Esse moleque adora um esporte.

- Qual o seu preferido, Arthur? – Gustavo se meteu. Aliás, o que diabos ele fazia ali mesmo?

- Eu gosto de natação e futebol. E você, Gustavo? Gosta também?

- Adoro natação. Quando eu era pequeno, ganhei várias competições na escola.

- Você era bem ligeiro mesmo – Eduardo riu e deixou dois tapinhas no ombro do... eles eram o quê mesmo? – Opa, é... esse aqui é o Gustavo, Heloísa. Um grande amigo meu. Estudamos juntos na escola e nossas famílias eram vizinhas. Anos depois e ele continua me perseguindo. Trabalha aí do outro lado da rua – o homem brincou.

Amigo... Lica quis soltar um esgar e pedir para Eduardo tomar cuidado e escolher melhor as próprias companhias. Não é todo mundo que é confiável, sabe?

- Eu e a Heloísa nos conhecemos – Gustavo ensaiou um sorriso – Fizemos faculdade juntos.

- Ê mundo pequeno... – Eduardo parecia bem à vontade, ao passo que Arthur parecia encantado com aquela interação entre Lica, seu professor preferido e... ok, qual era a serventia de Gustavo ali exatamente?

- Pois é – foi tudo que ela respondeu, mas riu amarelo – Bom, foi um prazer, Eduardo – a Gustavo ela nem se dirigiu – Bora, meninão?

- Sujou aí, Arthur? – o homem relanceou a camisa do menino ligeiramente melecada.

- Derramei sorvete, mas a tia Lica vai pegar uma camisa nova. Está grudando, tia Lica.

Parecendo incomodado, Arthur repuxou a gola da camisa.

- Bora trocar logo isso – ela anunciou, se despediu e se retirou com o menino a tiracolo. Comprou uma camisa no almoxarifado e levou Arthur até o banheiro. Estacionou na porta do masculino com ele e correu rapidinho até o feminino, de onde voltou com papéis toalha umedecidos em mãos – Dá aqui.

Ela pediu e o menino ergueu os braços para permitir que ela tirasse a camisa. Ela o fez e de fato o tecido estava bem melecado. Colocou em um saco plástico que pediu a uma funcionária e guardou na bolsa. Trouxe Arthur mais para perto para limpar o peito dele, ligeiramente grudento. Ele ficou paradinho enquanto ela trabalhava ali. Só foram interrompidos por um movimento na lateral.

- Sujou mesmo, hein campeão? – Gustavo ainda se pavoneava pelo Grupo? Deus do céu, ele não tinha outro lugar para ir não? Lica quis acreditar que ele andar montando acampamento ali nada tinha a ver com a possibilidade de cruzar com Samantha caso ela fosse pegar Arthur.

- Melhor? – Lica se afastou para olhar o menino melhor. Ao menos o grude na pele dele havia diminuído.

- Umhum. A gente pode ir tomar sorvete de novo, né? – e olha o que o menino queria.

Lica negou com a cabeça resoluta.

- Um-hum. Bora direto pra casa que sua mãe está esperando. O almoço hoje é na sua avó. Vira aqui.

Lica pôs a camisa na cabeça dele, passou os bracinhos e pediu a ele que se virasse para ajeitar atrás.

Agora vamos lá. Lembram da Lei de Murphy? Pois é. Arthur virou e um único movimento, simples, despretensioso desencadeou um completo caos interno em alguém que coadjuvava na cena. Gustavo ficou por ali observando o menino se limpar e nem sabia o motivo. Na verdade já ia se retirar, mas estacou em completo choque quando seus olhos capturaram uma marquinha marrom nas costas de Arthur. Um pontinho. Uma pintinha mínima perto da cintura esquerda.

O mesmo sinal que ele levava nas próprias costas.

De repente, todo o barulho exterior foi se tornando um eco até virar um zumbido enjoado. Gustavo tonteou que buscou apoio na parede do banheiro. Quase trombou em um funcionário que saía lá de dentro com baldes e escovões nas mãos. Seus olhos focando e desfocando nas costinhas miúdas de Arthur, agora cobertas pelo tecido grosso azul escuro da camisa do uniforme.

Buscou ar e não conseguiu achar. Respirou fundo, passou a mão pelo rosto e engoliu no seco.

- O-o que é isso? – inquiriu apontando com a mão trêmula para o menino.

- Como? – Lica terminou de ajeitar a golinha da camisa de Arthur e se virou para ele – Algum problema?

Quis peitá-lo, ele nem tinha que estar ali. Mas percebeu a instabilidade que ele aparentava e franziu o cenho.

- Isso... n-nas costas d-dele – apontou de novo e esfregou o rosto – E-esse... esse....

- Meu sinalzinho? – Arthur tomou a dianteira. Ergueu a camisa e se virou para que ele visse – A mamãe disse que eu tenho desde que nasci, não é tia Lica? Só eu tenho. Ela disse que é um sinalzinho de... de....

- Sinal de beleza – a mente de Lica trabalhava em marcha lenta. E quando entendeu o que de fato se desenrolava diante de seus olhos pelo assomo de incredulidade estampado no rosto de Gustavo, já era tarde – Bora, Arthur?

Ela apressou o moleque.

- Tchau, Gustavo – o menino acenou e foi na frente. Lica ficou para trás, recolhendo os papeis-toalha que usara em Arthur. Relanceou Gustavo respirando acelerado como se estivesse à beira de um colapso. Poderia ter ido embora e deixado ele morrendo ali, sabia que não devia dar trela para aquilo porque só prolongaria uma situação complicada e totalmente evitável.

Mas era humana acima de tudo. O homem parecia estar entrando em uma crise de ansiedade, ela reconhecia quando via uma. Se via naquilo.

- Puta merda – disse baixinho e um tanto contrariada antes de se virar para ele – Respira compassado e conta até dez.

- Tia Lica, vamos? – Arthur voltou ao campo de visão depois de se ver seguindo sozinho para o pátio.

- Vai já, Arthur – ela pediu – Rapidinho – se virou para Gustavo – Você não vai cair duro aqui, vai?

- Esse menino é m....

- Você está passando mal, Gustavo?

Arthur entrou no campo de visão dele. E só aí Gustavo conseguiu de fato enxerga-lo. Vê-lo como ainda não tinha visto antes. Os olhos lembravam os de Samantha. Os cabelos ondulados tinham um tom de cacheado, mas mais escuros que os da mãe. A boca definitivamente era dela, mas o rosto... o contorno dele, a expressão dos olhos... tudo em Arthur gritava a ele mesmo. A Gustavo. Foi só ao observá-lo e desnudá-lo em um olhar que ele percebeu que estava praticamente diante de si naquelas fotos antigas dos álbuns de família. Seu peito ardeu.

- Não, e-eu... eu estou bem – buscou por ar de novo.

“Quem é o pai”?

“E isso importa”?

“Com quem foi que você me traiu, hum”?

Samantha nunca respondera. Nunca.

“Você foi rápida, Samantha. Eu nem sabia que você gostava de mulheres também e de repente, voi lá... você aparece noiva e depois casada com a Heloísa. Nunca consegui entender por que essa mudança de planos repentina”.

Por causa dele. Ele era o motivo. Arthur. Arthur e ele. Samantha nunca respondera nenhuma de suas perguntas porque não precisava de resposta. Ela estava ali na falta de palavras dela. Era ele mesmo. Gustavo Medeiros, pai do filho dela.

- Esse moleque é meu filho.

Soltou sem ar de repente.

- Você tem um filho também? Legal. Eu posso conhecer ele?

- Arthur, vambora – Lica atalhou. Abordou um funcionário que passou por ali e pediu a ele que desse auxílio a Gustavo. Saiu praticamente puxando o menino – A gente está atrasado pra encontrar sua mãe. Bora?

Assentindo, Arthur se despediu de Gustavo com um acenar de mão e se deixou guiar por ela. O coração de Lica martelando no peito.

“Esse moleque é meu filho”.

Samantha lhe mataria. Deus do céu, ela lhe trucidaria.

(...)

Se tem uma coisa da qual Lica sempre se orgulhara na vida, essa coisa era saber como compartimentar aquilo que sentia e lidar só com aquilo que queria lidar. Quando era pequena e aturava o pouco caso de Edgar para com tudo que lhe dizia respeito, Heloísa aprendera a ignorar. Só ignorar. Ficar calada, na sua, não rebater e deixar o pai falando sozinho. Só que esse silêncio, quando explodiu e lhe implodiu, se tornou um verdadeiro caos. Malas jogadas pela janela, apitaços no meio do pátio da escola, afrontas... A revolta que Lica compartimentara tão bem e guardara lá no fundo de si saiu com tudo.

E aí vem o motivo da sua vergonha: se por um lado ela se orgulhava de saber engavetar seus sentimentos, por outro, quando eles se libertavam, que saísse do meio quem estivesse por perto. Estava sendo assim no que dizia respeito a Samantha, por exemplo. Lica se via impelida para ela fosse em que circunstância fosse.

Se tornava transparente aos olhos da mulher que amava.

O que era uma merda, diga-se de passagem. Ela sabia lhe ler como ninguém e, acreditem, isso não é vantagem nenhuma em certas ocasiões. Como foi no almoço na casa de Arlete naquela tarde. Samantha estranhou a camisa de farda de Arthur bem passada demais e limpa demais para quem passara parte da manhã brincando no pátio da escola, correndo atrás dos coleguinhas.

- Eu derramei sorvete nela e a tia Lica comprou outra.

Heloísa fez uma careta ao cumprimentar dona Arlete.

- Sorvete? – Samantha cruzou os braços e lhe encarou de sobrancelha arqueada – Antes do almoço.

- Uma bola só, Sammy – ela tinha que se defender – Metade dela. A outra metade foi parar na camisa dele – e tirou de dentro da bolsa o saquinho plástico com o tecido embolado. Já que ela já sabia de tudo mesmo....

- Eu vou colocar isso pra lavar – Arlete se adiantou.

- Não precisa, vó. A gente põe na máquina quando chegar em casa.

- O que vai ser só de noite. Você tem que voltar pro seu restaurante e a Lica tem que voltar pro trabalho também.

- Está me expulsando? – Samantha brincou.

- Estou cuidando das coisas do meu bisneto – a mulher riu arteira e seguiu para a lavanderia nos fundos. Foi a deixa para a Lambertini se virar para o filho.

- Como que é isso, hum? Você ia mesmo deixar quieto que comeu besteira antes do almoço? Sabendo que eu não gosto que você faça isso porque perde total o apetite?

Arthur riu zombeteiro.

- Desculpa. Mas foi a tia Lica.

Ah, menino...!

- Quem pediu sorvete foi você, Arthur, não eu! – ela se defendeu como pôde – Uma bola, Samantha... não é pra tanto. Já foi, não vai mais acontecer.

Ela quis encerrar de vez aquele assunto e se dirigiu até a cozinha. Pediu licença e abriu a geladeira. O aroma delicioso do que quer que estivesse no forno lhe envolvendo feito um manto. Pena que nem isso atiçou sua fome. Em silêncio, Lica se recostou ao balcão e virou um copo d’água. Depois outro... não era mais nem sede. Era só que entornar a bebida era a única coisa que ela tinha para manter a boca ocupada naquele instante em que Samantha se recostou ao batente da cozinha e mirou ao redor. Ela parecia buscar algo que dizer.

Ok, era plausível. As coisas meio que ficaram suspensas entre elas depois do rompante da manhã. Depois do beijo. Era muito insensato Samantha sentir o toque e a firmeza de Lica nela quando cerrava as pálpebras? Estava mesmo era enlouquecendo.

- Como foi lá na fábrica? Você conseguiu resolver o lance do lote perdido?

Longe disso, Samantha. Longe disso. Não fora só uma câmara fria que apresentara problemas, mas duas. Estavam tendo que realocar todos os produtos dos locais defeituosos junto dos demais enquanto os equipamentos eram trocados. E os que funcionavam, teriam que operar talvez além de sua capacidade para dar conta.

Lica respondeu isso? Claro que não. Resolveria tudo. Administrar uma empresa daquele tamanho sempre tem seus percalços e ela devia estar pronta para lidar com eles.

- Umhum – respondeu dispersa e pousou o copo sobre a pia – Tudo certo – fungou e passou por ela indo pegar outra garrafa d’água. Secaria todas as jarras de dona Arlete em sua vã tentativa de fuga.

E Samantha percebeu que havia algo... esquisito no ar. Lica se recostou novamente à pia para encher o litro que secara enquanto tamborilava no copo novamente envolto na mão. Ela estava agitada, inquieta.

- Tem certeza de que está tudo bem? Eu não vou te matar só porque cedeu ao drama do Arthur e deu besteira pra ele comer fora de hora – achou por bem tranquiliza – Você está... inquieta. Tem alguma coisa pegando? Além do problema na fábrica?

Lica fungou e mirou o teto em meio a um suspiro. Balançou a perna quatro vezes antes de se desencostar e fechar a torneira do filtro.

- O Gustavo estava no Grupo – ah, tinha que ser ele. Samantha já previa o que devia ter acontecido.

- Vocês não se engalfinharam no meio da escola não, né? – quis só se certificar. Lica aparentemente estava bem e Arthur não mencionara nada.

- Não. Ele estava visitando um amigo que é professor do Arthur. Os dois trocaram duas palavras e eu levei ele ao banheiro pra limpar... – apontou com o dedo para o próprio peito sinalizando a camisa do menino – O Gustavo cruzou com a gente de novo e.... bom....

Samantha engoliu no seco.

- Lica...?

- Ele sabe – ela deixou sair e suspirou, recolhendo a garrafa d’água e depositando na geladeira – Ele sabe.

- E você diz isso assim? – Samantha alteou a voz uma oitava. Arlete, lá do quintal, percebeu a agitação e esticou o pescoço, atenta – Que merda foi que aconteceu, Heloísa?

- O sinal que o Arthur tem nas costas – Lica parecia meio entorpecida – Você não me disse que era de família. É do pai dele.

Samantha riu sem humor, passou a mão pelos cabelos em exasperação e chutou de leve a parede da cozinha. Arlete largou o que fazia e correu até lá.

- O Gustavo viu – Lica respirava acelerado – Ele viu e... ele deduziu... concluiu... enfim. Ele disse que o Arthur... que o Arthur é filho dele.

Arlete tapou a boca em completo choque.

- O pai do Arthur sabe que é pai?

- Isso só pode ser piada – Samantha riu em escárnio. Lica se encolheu – Era pra pegar o Arthur na escola, Lica. Só isso. Pegar o Arthur na escola! E você me volta com a farda dele imunda e o Gustavo....

- Filha... – Arlete tentou acalmar.

- Eu não sabia que aquela pinta que ele tem nas costas era do pai dele! – Heloísa se defendeu – Você não me disse que era sinal de família! Você nunca mencionou que o Gustavo também tem um sinal igual! Você sequer mencionava ele, Samantha!

- E você queria o quê? Que eu saísse por aí com o nome do Gustavo na minha boca depois de tudo que ele fez? Eu só queria esquecer aquele canalha! Aí agora por sua causa....

- Minha causa? – Lica se empertigou. Arlete correu a desligar o forno, o que quer que havia lá dentro parecia estar queimando – Por minha causa? Quem quis voltar foi você, Samantha! Eu não te obriguei! Sempre deixei bem claro que você não precisava vir comigo, mas você decidiu, então agora arca!

- Arcar com uma coisa que você criou! Era só pegar o Arthur na escola, não colocar tudo a perder! – Samantha apontou o dedo na cara dela. Lica riu sem humor.

- Eu criei? – debochou – Samantha, acorda! Não fui eu que escondi do pai do meu filho uma gravidez não! Se isso aqui está acontecendo agora é porque você não teve coragem de ser honesta lá atrás!

Ela não disse isso. Não, Lica não tinha dito.

- Me chama de covarde, vai! – Samantha foi para cima – Continua! Tripudia mais! Joga na cara que a minha vida é a porra de uma mentira, Lica! Só não esquece que foi uma mentira que você ajudou a sustentar. Ou você esqueceu que quem criou esse circo todo foi você? Mentir por mentir, você mentiu também!

- Eu nunca menti, Samantha– Lica devolveu, ao que a mulher riu soltando um “ah, claro”. Ela sentiu o deboche na risada frouxa dela. O deboche para com o que ela sentia. Se encolheu – Eu sempre fui bem honesta com você. Você é que podia tentar ser um pouco mais honesta consigo mesma. Se tivesse sido, a história podia ser outra.

O silêncio que se instalou ali foi ensurdecedor. Dona Arlete depositava a travessa sobre a mesa ao passo que Samantha respirava acelerado lá da porta e Lica olhava ao redor para fugir da mira dela.

- Eu entendo os seus motivos pra não ter contado pro pai do seu filho que estava grávida. Tanto entendo que te estendi a mão e fiz a maior loucura da minha vida por sua causa. Porque eu não queria te ver sofrer mais do que já estava sofrendo. Eu sempre fiz tudo direitinho como a gente combinou. Sempre estive ali do seu lado fosse em que situação fosse, eu ajudei... ajudo a criar esse moleque e não foi porque ninguém pediu. Foi porque eu quis. Porque.... – Heloísa engoliu no seco como se algo estivesse prestes a sair, mas lhe embotou a garganta – Porque eu... – de novo, sem sucesso. Desistiu – Não vem me culpar por ter colocado a merda no ventilador como se eu tivesse agido de caso pensado. Eu não sabia que o Arthur tinha um sinal de nascença do Gustavo, eu nunca imaginei que ele prestaria atenção naquilo. Não fala como se eu tivesse te sabotado, porque isso me ofende e ofende tudo que eu já fiz você esses anos todos.

Samantha mordeu o lábio ante o ímpeto de falar. Preferiu ficar calada, porque no fundo sabia que se excedera. Droga! Podia ser menos burra? Com Lica? Logo com ela?

- O Gustavo sacou as coisas, somou dois e dois e a essa hora deve estar encaixando tudo. Ele deve te procurar. Talvez seja a hora de você encarar seu passado ao invés de se esquivar dele, sabe? É mais sensato que sair culpando as pessoas por tudo.

- Lica....

- Eu vou voltar pra fábrica. Tem um monte de abacaxi lá pra eu resolver e precisam de mim – Lica retornou para a sala, passou por Samantha sem falar nada – Dona Arlete, valeu pelo almoço, mas hoje eu vou passar. Numa próxima, se a senhora me chamar, eu venho com todo o prazer.

Lançou um sorriso para a mulher, deixou um beijo para Arthur e subiu na moto. O ronco do motor atingiu Samantha feito uma pedrada. Talvez uma pedrada doesse menos.

- Você não podia ter feito isso, Samantha – Arlete terminou de jogar a pá de cal – Culpar a Lica pelo que aconteceu, quero dizer. Faz ela parecer alguém que age de má fé e isso nós duas sabemos bem que ela não é.

Sem dizer nada, Samantha retornou para o fundo da rede no quintal de casa. Se jogou lá dentro contemplando o céu e o sol a pino. O tempo começava a querer fechar com algumas nuvens cinzas se amontoando mais ao longe. Talvez o retrato do que ocorria dentro dela naquele exato instante. Nuvens negras e pesadas de tempestade se acumulando durante anos e agora, finalmente, prestes a desabarem.

E ela não sabia se estava pronta. Não para encontrar face a face seu passado. Não sabia mesmo.

Mas se de um lado havia desalento e aquela pontinha de desespero, de outro havia inquietação e nervosismo. Gustavo chegou em casa naquela tarde mandando para os ares todos os compromissos do dia. Não teria cabeça para lidar com mais nada que não fosse sua vida pessoal virada de ponta-cabeça. Entornou um gole de uísque, dois... teria esvaziado a garrafa se não tivesse sido impedido por mãos delicadas, mas nervosas. E com os nervos à flor da pele já bastava ele.

Dani chegou querendo tomar satisfações. Quis saber o óbvio: ligava, ninguém lhe atendia. Mandava mensagens, ninguém lhe respondia. A raiva foi subindo e acabou sendo descontada no pior momento possível.

- Nós tínhamos combinado de almoçar juntos, Guga! Que droga, você sempre esquece quanto o assunto sou eu, sempre! Onde você estava? Onde foi que você se enfiou, eu posso saber?

Gustavo poderia tê-la mandado embora, mas não foi o que fez. Precisava colocar para fora e não via mais ninguém ao seu alcance para aquilo além da mulher diante de si. Dani parecia nervosa e ficaria ainda mais.

- Eu tenho um filho – soltou do nada e abriu os braços – Eu tenho um filho.

Sabe o riso de nervoso? Foi isso que Dani fez. Sorriu e negou com a cabeça. Aquele uísque estava vencido?

- Você bebeu demais – foi o que respondeu. Só podia ser isso – Olha, é melhor você parar....

Ela foi até lá para tirar o copo da mão dele, mas Gustavo desviou, negando com a cabeça. Parecia transtornado.

- Você não está entendendo. Eu tenho um filho. O menino da Samantha. Ele é meu!

Dani estacou no momento e se virou para ele um átimo.

- Oi?

- O sinal – Gustavo tirou o paletó e levantou a camisa – O sinal de nascença que eu tenho ele também tem. Igualzinho, no mesmo lugar. É um sinal de família. Meu pai também tem.

- Gustavo... – mas ele seguia em um monólogo.

- Eu vi hoje. Ele estava sem camisa. Se sujou na escola, foi se limpar e....

- O que você fazia no Grupo? Ah, não vai me dizer que foi atrás da....

- PRESTA ATENÇÃO, DANIELA! – Gustavo berrou e jogou o copo na parede completamente transtornado. A mulher se encolheu – Esquece porcaria de Grupo, eu estou falando de mim! A Samantha tem um filho meu! O moleque dela, o Arthur... é meu filho, porra! Eu sou o pai dele, eu! Ela mentiu pra mim aquela... aaaaah! – o rapaz socou a parede tomado pela fúria. Dani se afastou para não ser atropelada – Eu achava que ela tinha me traído... – Gustavo riu em desalento – E o tempo todo era eu. Eu que a engravidei, não um cara qualquer. Ela estava grávida de mim!

As engrenagens na cabeça de Dani trabalhavam em marcha lenta à medida que ela processava a informação. E de repente tudo que nunca fez sentido naquela história começou a se encaixar. O casamento dela com Heloísa, a gravidez repentina....

- Foi por isso que ela casou com a Heloísa? – arriscou – Porque estava grávida e não queria te contar nem criar o filho sozinha. Ela realmente deve ter ficado muito puta com você, Guga. Pra esconder isso, quero dizer. E você pelo visto, se importa.

- E tem como não me importar? – Gustavo virou a garrafa na boca, bebeu direto do gargalo – Aquele menino que anda pra cima e pra baixo com ela é meu também. Meu filho, Dani. Você sabe o que é isso?

- Seu herdeiro, você quer dizer – a mulher riu sem humor e analisou a expressão de Gustavo minuciosamente. O conhecia bem demais para dizer que não sabia o que se passava pela cabeça dele – Você não está pensando nisso.

- Dani....

- Eu não acredito que depois desse tempo todo, você ainda pensa em voltar pra aquela... mulher! – ela se descontrolou – E eu, hum? Que estive aqui o tempo inteiro? Foi pra porra nenhuma? Qual é? Vai correr atrás dela agora só por causa de uma criança?

- Uma criança que também é minha – Gustavo respirou fundo – Eu tenho tanto direito sobre o Arthur quanto a Samantha e disso eu não abro mão.

- Você quer mesmo entrar nessa? Pelo amor de Deus, Guga! Você nunca quis ser pai! Nunca nem teve vocação pra isso. Seu talento, meu querido, é ser herdeiro e gastar sua fortuna, não... cuidar de uma criança! Resolveu brincar de casinha agora?

- Você não entende nada – Gustavo negou com a cabeça e bebeu mais um gole.

- Você ainda ama mesmo aquela mulher – ela constatou incrédula – Ou é isso ou eu estou realmente blefando. Adoraria que fosse a segunda opção. Vai fazer o quê? Pedir a guarda do moleque? Você ficou maluco se acha que a Samantha vai te dar o menino assim de mão beijada. Isso se ele for mesmo seu, né? Porque um sinal nas costas não prova nada.

- Não, mas o DNA sim – Gustavo estava resoluto – Eu não vou deixar isso pra lá. Não mesmo.

- E eu? – ela tinha que perguntar – Você vai mesmo fazer com que esses anos todo dedicados a você sejam mesmo que merda?

Gustavo riu, negando com a cabeça e pousou gentilmente a garrafa sobre a mesa. Caminhou até Dani e segurou o rosto dela entre as mãos.

- Dani, minha cara Dani... – fez um carinho na bochecha dela – Eu nunca vou me esquecer de você. Mas você precisa entender que antes de qualquer coisa, antes de qualquer envolvimento maior da minha parte, eu preciso resolver minha vida. E isso inclui lidar com a Samantha e o filho dela – engoliu no seco – Meu filho.

- Você é um idiota – a mulher cuspiu, se livrou dele com um safanão e passou a mão na bolsa – Depois que der com os burros n’água, não me procura. Porque se você acha que por causa do menino a Samantha vai baixar a guarda, pode esquecer. Se ela te escondeu durante anos que vocês têm um filho, é porque não te quer na vida dele.

- Mas eu quero estar na vida dele, e isso é o que importa.

- Na dele só não, né? – Dani riu descrente – Idiota.

Sem mais, ela passou pela porta, batendo-a com toda a força que conseguiu reunir. Já passara os últimos anos todos sendo humilhada, não precisava da pá de cal.

(...)

- Você está cada vez mais parecido com seu avô – Samantha analisou as feições de Arthur atentamente. Os olhos acastanhados, o sorriso... tudo lembrava a ela mesma e aos de sua família. Até os cabelos em ondinhas. Exceto que eles eram um tom mais escuro. Ah, e o rosto anguloso também. Ok, ela tinha que admitir. Arthur e o pai dele tinham lá suas semelhanças e ela mentiria se disse que sua cabeça não vinha martelando nas últimas horas ante a mero pensamento de Gustavo. E tinha um lembrete vivo dele ali em cima dela, fazendo pirraça.

- E seu eu fizer assim? – Arthur fez uma careta e desatou a rir.

- Você continua sendo o menino mais lindo do mundo até com essa cara feia – a mãe brincou e deixou um cheiro gostoso no cangote dele. O aroma do perfume infantil lhe relaxando inteira.

- Eu sou bonitão.

- Ah, é mesmo. Um gatão. Minha cara.

Os dois desataram a rir e Arthur se aconchegou mais a ela.

- Mamãe, vai ter um campeonato de natação na escola. O tio Edu me chamou pra participar. Você vai me ver?

- E você ainda pergunta? É claro que eu vou te ver, filhote. Vou estar na primeira fila torcendo por você. Já sei! Vou levar um cartaz assim bem grandão com sua cara e uma frase dizendo que eu te amo.

- Não, mamãe. Isso não – o menino ficou vermelho e Samantha gargalhou.

- Ih... qual o problema? Eu sou sua mãe, mãe tem dessas coisas. Está no manual levar cartaz com foto do filho para as competições da escola. Eu vou levar um.

- Eu vou ficar com vergonha – Arthur admitiu e enterrou o rostinho no pescoço dela – E se eu ficar com vergonha, não vou nadar direito e vou perder.

- Bem espertinho o senhor, hein? – a mulher enfiou o nariz nos cabelos dele – Tudo bem, sem cartaz. Eu me contento só com um megafone.

- Mamãe! – Arthur reclamou, mas riu grande – Eu vou ganhar em primeiro!

- O maior nadador que o Grupo já viu! Que dirá, o mundo! Mas também se não ganhar, não tem problema. O importante é se divertir.

- Mas eu vou ganhar – ah, a alma competitiva.... Sempre fora assim, Arthur sempre fora um poço de determinação quando diziam que a coisa era uma disputa. Na escola na França, não podia haver uma competição de natação, corrida, campeonato de futebol... tudo no mundo ele estava metido no meio. E quando entrava, era de cabeça e para ganhar. Sempre dava o seu melhor para orgulho e choro bobo da mãe babona.

Teriam ficado ali mãe e filho de chamego pelo restante da noite se a porta não tivesse se aberto e por ela passado Lica. Ela estacou quando viu Samantha e Arthur tendo um momento e ensaiou um sorrisinho. Pena que ele não alcançou os olhos.

- Tia Lica! – Arthur acenou como se ela não pudesse vê-lo – Você demorou.

De fato ela havia se demorado sim e queria dizer que foi só porque teve um abacaxi enorme para resolver na fábrica. Não porque ficou gastando hora na choclataria escutando os causos de Roney e Josefina enquanto afanava barrinhas. Não porque estava adiando a vinda para casa e o encontro com Samantha.

A situação entre elas estava péssima e havia sido deixada em suspenso. Uma suspensão incômoda e para lá de desagradável. Ela havia ouvido coisas pesadas e nada gentis da Lambertini, se sentiu pessoalmente atacada. Talvez tivesse revidado à altura se não estivesse na presença de dona Arlete. Ou talvez sequer tivesse revidado mesmo: quando se sentia atacada, Lica tendia a se retrair, não atacar se volta. Talvez fosse melhor ficar na sua mesmo. Deixaria quieto.

Mas pelo visto, Samantha não.

- A gente pode conversar? – nem um “boa noite”. Ela não esperou nem Lica entrar direito em casa. Ansiosa? Se sentindo culpada? Heloísa quis rir, mas se limitou a dar uma resposta breve.

- Eu preciso tomar um banho. Passei o dia fora – foi o que disse enquanto caminhava até o sofá e se inclinava para deixar um beijinho na fronte de Arthur – Tudo certo, meninão?

- Tudo. Tia Lica – ele foi logo emendando – Eu vou competir na natação na escola. A mamãe vai me ver. Você também vai?

- Na primeira fila – Lica riu feliz da vida um sorriso genuíno – Avisa o dia e a hora que eu levo a torcida organizada.

- Não pode levar cartaz nem megafone – o menino achou por bem avisar.

- De boa – e ela entendeu na hora do que se tratava – Eu vou levar minha vulvunzela – e piscando para Samantha, o que causou um sobressalto no coração dela – Lica riu travessa e bagunçou os cabelos dele – Deixa eu ir tomar um banho e trocar de roupa.

Samantha poderia tê-la seguido, mas achou por bem ficar ali com o filho aguardando que Heloísa lhe desse a abertura que queria. Impor presença talvez não fosse o melhor no momento.

- Já jantou? – limitou-se a perguntar quando Lica já ia alcançando a escada e tirando a jaqueta.

- Comi uma besteira no Roney.

- Deixa eu adivinhar. Cacau e açúcar – Lica parou para olhá-la – Eu estou falando de jantar de verdade, Lica. Sustância, sabe? – ela negou com a cabeça – Vai tomar seu banho enquanto eu ponho a mesa. Preparei um tartelete e uma salada pra gente.

Lica podia recusar. Sabia que o clima estava estranho entre elas e dividir uma mesa de jantar talvez não fosse a ideia mais sensata, mas seu estômago roncou e a boca salivou quando Samantha falou o menu.

- Desço já – respondeu e subiu para o quarto. Ao menos quem sabe a noite pudesse terminar na calmaria que o dia não tinha lhe permitido.

E que ledo engano pensar isso.

Bota engano.

- ... E aí ele pisou na bola, mas aí eu fui lá e chutei antes. Fiz o gol e meu time ganhou!

Arthur fazia festa e se empertigava todo ao narrar os feitos do joguinho de futebol na escola. Pelo que haviam entendido, o zagueiro do time rival foi tentar tirar a bola da área, mas acabou se embanando e pisou nela. Caiu e Arthur foi lá roubar a bola e mandar direto para o fundo da rede.

- Golaço! – Lica fez com ele um high-five – Mas fala aí. De quanto foi essa goleada?

- Três a zero! Eles não fizeram nenhum gol. Nenhumzinho. E eu fiz dois.

- Quem é Neymar na fila do pão? – Samantha brincou e se esticou toda para deixar um beijinho no rosto do filho. O menino fez uma careta, mas se derreteu todo.

- Eu sou melhor que ele – Arthur se envaideceu.

- Ah, com certeza é. E não cai o tempo todo – Lica alfinetou e trocou um sorriso com Samantha.

Ok, ela podia estar imaginando coisas ou só seu corpo que andava querendo lhe pregar peças, mas essas simples demonstrações de... o quê mesmo? Esses... gestos de Lica, a piscadela de minutos antes, os sorrisos trocados, o cuidado, a atenção que ela lhe dispensava pareciam fazer Samantha se desmontar inteira. Se desmontar e ela nem sabia o porquê e o sentido. Qual a necessidade de seu coração dar aquela cambalhota ridícula ao simples olhar de Heloísa? Nunca se dera margem para aquilo, qual a necessidade agora?

O que lhe tirou daquele devaneio momentâneo foi o constatar que a situação entre elas tinha ficado estranha depois do episódio na casa de Arlete e, também, a inquietude que Samantha vinha alimentando desde a hora em que pisara em casa. Lica lhe fora clara: “A essa hora deve estar encaixando tudo. Ele deve te procurar. Talvez seja a hora de você encarar seu passado ao invés de se esquivar dele”.

Ela não estava pronta. Definitivamente não. Quis rir de desespero, se esconder debaixo da cama como se se repente a vida fosse o monstro do qual ela podia se proteger debaixo do edredom ou, quem sabe, colocar a cabeça para fora da janela e berrar a plenos pulmões um pedido de socorro. Piorou ainda mais o embate interno e todo seu turbilhão de emoções e pensamentos o fato de que ela jogara a culpa da situação toda para cima de Lica. Logo. Lica. A pessoa a quem menos ela deveria julgar no mundo, o ser humano mais justo que ela já tivera a honra de conhecer.

Fez a merda e jogou a batata para ela.

Parecia piada a combinação de palavras: “O Gustavo descobriu que meu filho é filho dele e a culpa é sua”. “O pai do meu filho descobriu que eu escondi a verdade dele e foi por sua causa”.

Lica era sempre a terceira pessoa. Só e somente só a terceira pessoa naquele emaranhado de inverdades e omissões que havia se tornado a vida de Samantha. E lhe causou espanto – o que não deveria – perceber que talvez, só talvez Heloísa fosse louca o suficiente para se meter naquela história sem precisar ser convidada.

“Ela foi de bom grado. A troco de quê, Samantha, ela iria jogar tudo pelos ares? Pondere-se, querida. Tenha senso”, a vozinha da sensatez buzinava em seu ouvido. Ela decidiu ouvi-la pela primeira vez depois de um bom tempo e se deu por vencida. Na verdade, estava tão exausta e no limite de tudo, que deixou sair em uma frase só.

- Me desculpa pelo lance na vovó – buscou Lica com o olhar. Ela parou a taça de suco a meio caminho da boca, pareceu pensar por dois segundos e entornou o líquido amarelado do maracujá. Precisava mesmo de uma bebida calmante.

- A gente pode deixar pra depois? – Lica não queria discutir aquilo na mesa de jantar com Arthur entre elas fazendo a festa com seu tartalete e alheio, mas nem tanto, a tudo. O menino tinha uma audição ótima e mais de uma vez já captara coisas que não devia em momentos inoportunos.

E, acima de tudo, ele era só uma criança. E embora a situação lhe dissesse respeito, não ali. Não daquele jeito.

- Olha, Lic....

Mas Samantha não teve tempo de concluir. A campainha do apartamento soou em alto e bom som. Ela franziu o cenho e buscou Lica com o olhar. E a mulher lhe devolveu exatamente a mesma cara de intriga. Não estavam esperando ninguém. Ao menos não ela. E nem Heloísa, pelo visto, e pela expressão que ela assumiu.

E o porteiro nem avisou que havia alguém subindo. Vai ver tinham batido na porta errada. Mas então ouviram vozes alteradas vindo lá de fora. Samantha se levantou rapidamente, jogando o guardanapo sobre a mesa. Lica a seguiu.

E bastou um abrir de porta e o mundo desabou em cima de alguém já fraco e calejado.

Gustavo parecia dez vezes maior, dez vezes mais largo e imponente com aquele olhar duro e resoluto. Olhar esse que perscrutou Samantha com a sutileza de mil faquinhas lhe rasgando de dentro para fora. Lica, coitada... essa assumiu a defensiva, mas falhou miseravelmente.

- Desculpa, dona Samantha, mas esse homem invadiu o prédio e disse que precisava falar com a senhora. Nós tentamos impedir, mas ele colocou um de nossos seguranças no chão e subiu.

O porteiro parecia ter levado um murro de tão aturdido. Automaticamente, dois segurança brotaram pelo elevador, que abriu as portas em um clique. Se dirigiram até Gustavo.

- Me solta! – ele se livrou dos dois com um safanão – Eu tenho um assunto com ela!

Ele tinha. Tinha sim. O problema era que Samantha, coitada, não tinha a menor condição de tratar com ele no momento. Mas é aquela coisa: nada acontece quando a gente está preparado. A vida, ela anda aos trancos e barrancos parecendo nos testar o tempo inteiro. E, sendo sincera, Samantha tinha cansado de ser testada.

Uma pena, porque pelo visto a coisa toda estava só começando.

- A gente tem que conversar, Samantha.

Tinham sim. E tudo isso era uma merda.


Notas Finais


Pois bem, o estrupício sabe o que lhe compete na história rsrs.
Uma coisinha: prestem bem atenção no diálogo dele com a Dani, hein? Importante pra entender umas coisinhas que virão aí rsrsrs.
Mas qual vai ser? Teorias? A relação Samantha-Gustavo tende a se tornar mais forte, isso é claro, mas eu quero saber de vocês: ela cede de vez a ele ou a coisa pode tomar o caminho inverso e agora sim ela começar a impor limites? Atentem pra Samantha, ela é quem vai fazer a história ganhar movimento. Atentem a ela e ao Arthur. A Lica nisso tudo não vai ficar de mera coadjuvante, mas ela deve começar a ter os próprios dilemas. Teorias na mesa, por favor rsrsrs.

No mais, eu agradeço pela leitura e nos vemos no próximo capítulo!


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