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História Mil Acasos - Ponto fora da curva


Escrita por: MxrningStar

Notas do Autor


Olá, pessoas! Tudo bom com vocês?
Bom, primeiro que eu queria agradecer pelos comentários, críticas, opiniões e teorias. Adoro ver vocês teorizando sobre a história rsrsrs.
Segundo, bora direito pro capítulo de hoje e sobre ele: Henrique Mondego.

Boa leitura!

Capítulo 13 - Ponto fora da curva


- Ótimo – Samantha seria pragmática. Joguinhos não. Não ali – Quem era a mulher que estava jantando com você na semana passada quando ‘cê chegou aqui mais de meia noite dizendo que estava numa reunião de negócios?

 

É interessante como as pessoas são feitas de dubiedade: qualidades e defeitos, aspectos positivos e aspectos negativos, lado bom e lado ruim... Há quem fale em pontos fortes e pontos fracos. Muitas vezes, os pontos fracos se tornam pontos fortes e vice-versa. E o ponto forte de um pode ser o ponto fraco de outro.

Samantha se orgulhava de dizer que era uma observadora exímia. Tinha olhos de águia, atentos, escrutinadores, dificilmente algo lhe escapava e talvez fosse esse seu ponto forte, sua maior qualidade. E também sua fraqueza: muitas vezes aquilo que via, percebia, pegava no ar, lhe deixava vulnerável, exposta e ela odiava isso. Odiava se sentir exposta aos olhares alheios, não no sentido de ser julgada nem nada, mas no sentido de se deixar ver. Não era para muitos que ela se mostrava.

Como Samantha Lambertini que era – e haja atributos físicos e não-físicos – ela adorava se exibir aos olhos alheios. Ser notada, ser vista. Mas se revelar a eles... não. Aí já era outra esfera, outra história.

Se fosse transparente, no sentido físico da palavra, talvez fosse possível ver as engrenagens de seu cérebro trabalhando feitos loucas dentro de sua cabeça. Ela havia visto um ponto fora da curva, seus olhos capturaram algo que não lhe pareceu nem um pouco agradável, em verdade, lhe deu náuseas. E isso estava lhe fazendo querer vacilar.

Querer. Não significaria que fosse. E se dependesse dela, não iria. Não mesmo.

Viu a veia na têmpora de Henrique saltar em uma clara demonstração de nervosismo. Viu o marido sorrir acuado, o corpo dele praticamente gritando que havia apreensão em cada célula. E, aprendam: se você fica nervoso, é porque lhe afeta. Se você demonstra algum tipo de reação, qualquer que seja, é porque lhe atinge de alguma forma. E se lhe atinge, é porque é real.

A pergunta de Samantha atingira Henrique, ela vira na hora. E se isso acontecera seria porque ela tinha fundamento? Sim, porque se não tivesse, o marido se limitaria a dizer duas palavras, ela se convenceria e o assunto seria dado por encerrado. Mas não, aquele silêncio dele que pairava entre os dois só tornava a raiva que vinha subindo nela mais palpável.

E Samantha se mostrara bem aí. Sua raiva. Em sua voz.

- Responde, Henrique – seu tom estremeceu de leve e não era no bom sentido. Ela também havia sido afetada pela inércia do marido ao seu questionamento – Com quem você estava jantando naquele dia?

Henrique finalmente abriu a boca para falar algo, mas o que ele disse só tornou a situação ainda mais esquisita.

- Por que essa pergunta, Samantha? – sério que ele tentaria virar o jogo assim? – Eu não estou entendendo.

- Não interessa. O que eu quero saber é quem era a mulher com quem você estava jantando naquele dia que chegou aqui tarde da noite dizendo que estava numa reunião.

- E estava – o tom dele ficou sério – Eu estava numa reunião de negócio. Era assunto do escritório.

Ele quis dar o tema por encerrado e pegou a bolsa que havia jogado sobre o sofá. Mas Henrique que não se atrevesse a dar as costas para ela.

- Que reunião era essa que nem a sua secretária sabia?

A veia na têmpora dele voltou a saltar. É que esse detalhe, Henrique não sabia exatamente. Samantha não mencionara nenhuma vez que ligara para o escritório e falara com a secretária dele, recebendo em claro e bom som a resposta de que ele, Henrique, tinha saído naquele dia dizendo que estaria resolvendo um assunto qualquer e que não queria ser incomodado com questões de trabalho.

Belo jantar de negócios.

- Oi? – o marido riu de novo. Nervosismo.

- Não se faz se desentendido, porque você sabe muito bem que se eu não conseguisse falar com você, ligaria pra sua secretária – ele devia ter percebido isso, não é? Era o mínimo: conhecer as atitudes e gestos de sua mulher.

- E você ligou para ela? – Henrique foi pego pela surpresa – A Carol não mencionou nada.

- Esquece a Carol, Henrique, o assunto aqui é você. Com quem diabos você estava jantando naquela noite?

A voz dela, de calma, embora meio estremecida, foi para ligeiramente ameaçadora. Se controlar era uma coisa que Samantha sabia fazer bem.

- Eu já falei, Samantha, era uma reunião de negócios. Era uma cliente.

- E ela tem nome? – insistiu.

- Por que isso agora? Você nunca se interessou pelo que eu faço naquele escritório – de novo a tentativa barata de virar o jogo. Mas não com ela. Não mesmo.

- Eu me interesso pelo que você faz fora dele quando não está comigo – foi clara, curta e grossa – E um jantar com uma desconhecida aquele horário no meio da semana decididamente entra nisso. Quem era, Henrique? E por que você não me avisou? E porque saiu do escritório dizendo pra sua secretária que não queria ser interrompido com coisas do trabalho? Não era de trabalho que você estava tratando?

Henrique engoliu em seco.

- Responde! – Samantha aumentou seu tom em duas oitavas.

- Fala baixo, Samantha, a Marina está dormindo.

- Então abre a porra dessa boca e me fala o que eu quero saber – ela sibilou, parecendo pronta para voar no pescoço dele a qualquer momento – Só me responde, uma resposta sincera, Henrique, e eu prometo que deixo pra lá.

- Era uma cliente, eu já disse – a mesma resposta vaga que não valia de merda nenhuma. Samantha riu sem humor, passou a mão pelos cabelos e pegou a taça de vinho sobre a mesinha da varanda. Virou tudo num gole só. Se já estava sentido tudo à flor da pele, o álcool, ele poderia potencializar aquilo cem vezes. Péssima ideia.

- Claro – já estava mais que perdendo a paciência. Riu, sem humor. Virou-se para ele – E por que você sumiu do radar, hum? Ficou um dia quase todo sem dar sinal de vida.

- Samantha, eu não vou responder mais nada se você claramente parece já ter tudo respondido aí na sua cabeça – o homem voltou a pegar a bolsa sobre o sofá.

- Então me mostra que essas minhas respostas estão erradas, caralho! Se você sabe o que eu estou concluindo, faz alguma pra mudar isso! Se você não tem nada pra esconder, Henrique, fala a verdade, se poupa e me poupa disso aqui – apontou para os dois.

- Eu já falei a verdade, Samantha! – agora foi ele quem alteou a voz – Eu já disse, eu desliguei o celular porque era uma reunião importante, eu estava com uma cliente, não queria ser interrompido, o assunto era delicado e... – a voz de Henrique morreu. Ele encarou o nada, franziu o cenho, pareceu não enxergar mais nada à sua frente.

- E? – Samantha insistiu – Fala, Henrique! E o quê? Que porra de reunião era essa? Que assunto delicado essa esse que não podia ser tratado no seu escritório? Com quem você estava, caralho?

- Eu não vou alimentar suas desconfianças – ele deu o assunto por encerrado, mas para ela, Samantha, não estava mesmo.

- É só o que você tem feito, acredite – ela soltou. E algo naquela frase fez o brilho no olhar de Henrique assumir um tom colérico. Por um instante, Samantha se viu tendo que recuar ante a rapidez com que o marido agiu. Se aproximou dela a passos firmes, colocando o dedo em seu rosto como que dando um recado claro.

- Eu não admito que você desconfie de mim – soou um tanto ameaçador. Samantha engoliu em seco – Eu sou seu marido, eu sempre te respeitei, eu não vou permitir que você alimente desconfianças quanto às minhas atitudes – segurou firme o pulso dela. Um toque que causou completa repulsa e um certo medo na Lambertini – Seja lá quem foi que te falou isso, está tentando fazer a sua cabeça contra mim – os olhos dele brilharam em fúria – Foi ela, não foi? Foi a He....

- Papai? – a vozinha aguda e dengosa vindo lá da sala pareceu desvanecer a névoa que havia se instalado ali. Samantha permanecia com o pulso sendo segurado firme por Henrique, o olhar dele no dela era pura raiva e algo mais que ela não sabia dizer o que era e nem sabia se queria saber.

Henrique piscou duas vezes e soltou o braço de Samantha parecendo cair em si.

- Desculpa, meu amor – foi logo emendando. Mas se pensou que encontraria vulnerabilidade na mulher, enganou-se feio – D-descul...

Samantha se desvencilhou dele num gesto nada delicado. Foi quase um safanão. E foi a vez dela apontar o dedo para ele num gesto nada delicado.

- Você não tem que permitir nada – foi clara, no seu melhor tom ameaçador – Tem é que agir feito um homem e não ficar fugindo das perguntas que eu te faço – manteve a oz firme – Se você estiver me escondendo alguma coisa Henrique, qualquer coisinha que seja – olhou no fundo dos olhos dele, erguendo o queixo num claro enfrentamento – Eu vou até o inferno, mas eu descubro. Se eu souber de um ponto fora da curva, aí sim você vai ter motivo pra fugir – ameaçou – Não adianta vir bancando o machão pra cima de mim com essa de “eu permito e eu não permito”. Eu não preciso de sua permissão pra nada. E nem pensa que me enrola, porque eu te garanto, só quem vai se dar mal no final das contas, é você.

Não deu nem tempo de Henrique dizer nada. Passou por ele e se dirigiu até a filha. Marina continuava parada, vendo o pai e a mãe cara a cara sem entender muita coisa. Samantha esperava sinceramente que ela não estivesse entendendo.

- Tá tudo bem, mamãe? – ela perguntou. É... talvez ela tivesse entendido. Mas que merda!

- Está sim, filha – Samantha deu um meio sorriso para ela – Bora dormir? Está tarde já e amanhã ‘cê tem escola bem cedo.

- Tá bom – a menina assentiu – Boa noite, papai – disse, mas não obteve resposta de Henrique. Ele parecia estar em qualquer lugar do planeta, menos ali.

- Bora pra cama? – Samantha tratou de desfazer aquele silêncio que se instalou no ambiente. Mas viu a carinha que Marina fez ao não ser respondida pelo pai. Anotou isso mentalmente na já longa lista de falhas, faltas, incoerências e merdas que seu marido vinha fazendo. Teria mesmo que partir para as atitudes? Henrique iria se ver com ela. Ah, com certeza iria.

No quarto de Marina, Samantha ligou a luminária banhando o ambiente em um tom fosco, regulou a temperatura do ar deitou-se ao lado da filha na cama, trazendo-a para si. Ficou uns minutinhos em silêncio, fazendo um cafuné gostoso nos fios castanhos dela até que...

- Mamãe, o papai machucou você?

Samantha fechou os olhos, respirando fundo. Era justamente o que mais temia. Marina já ouvira discussões, tinha ideia de que ela e Henrique não andavam lá muito bem e ela mesma, Samantha, já fizera questão de explicar a ela algumas coisinhas. Mas ver? Ver? Presenciar o pai agir feito um completo idiota e sem noção? Ter que assistir Samantha se impor diante dele para colocá-lo em seu lugar? Envolver Marina diretamente nos desentendimentos? Isso ela não admitira, mas não mesmo.

Riu baixinho. Foi a forma que conseguiu achar para amenizar um pouco aquela situação.

- Não filha, o papai não machucou a mamãe – não era mentira. Henrique não lhe machucara. Não fisicamente.

- Você tá bem? – Marina ergueu os olhinhos para ela – Eu não quero que o papai machuque você. Nem ninguém – e se agarrou ao pescoço de Samantha em um claro gesto de afago e proteção que fez os olhos da Lambertini mais velha marejarem.

- Ow, meu amor – se derreteu toda ao toque dela – Ninguém vai machucar a mamãe – a envolveu trazendo-a mais para si.

- Promete? – Marina procurou os olhos de Samantha como que para atestar aquilo.

- Prometo – foi tudo que ela precisou dizer e, bom, uma promessa feita a um filho... ela não pode ser quebrada – Eu prometo que não vou deixar ninguém machucar nem a mim nem a você.

- Tá bom – Marina concordou e enfiou o rostinho no pescoço de Samantha – Te amo, mamãe – sentiu ela apertando-se mais contra si. Permitiu o aconchego.

- Também te amo, filha. Mais que tudo nesse mundo.

(...)

- Benê, eu vou perguntar pela última vez.

- Já é a quarta vez que você pergunta pela última vez, Guto – Benê anuiu – E você está me atrapalhando a afinar o piano.

- Eu sei, mas é que... – Guto suspirou – ‘Cê tem certeza que era o Henrique com outra mulher naquele dia?

- Eu já falei oito vezes, Guto. Sim, era o Henrique com outra mulher naquele dia. Eles estavam jantando. Não sei qual era o assunto, mas eles trocavam sorrisos algumas vezes.

- Sorrisos? – Guto repetiu – Benê, ‘cê tem certeza que não se confundiu?

- Guto, você disse que era a última vez que perguntaria. Eu não vou mais responder. O dó deste piano está com o som estranho e você não me deixar ouvi-lo direito para afinar.

- Desculpa – o rapaz soltou, suspirando – Mas... o Henrique jantando com uma mulher e trocando sorrisos? Tipo, se era reunião de negócio....

- Não era – Benê foi cirúrgica – Eu falei, não havia nada sobre a mesa que denunciasse que eles estavam numa reunião de negócios. Não havia pastas, nem papéis nem celulares e nem notebook. E as expressões estavam amenas. Geralmente numa reunião de negócios, as pessoas ficam sérias e não riem do nada.

Até que fazia sentido. Mas era justamente por fazer sentido, que Guto ficou com uma pulga atrás da orelha. Tinha algo de errado no ar e ele não sabia bem o que era. Sua mente vou para Samantha. Só queria que, seja lá o que fosse, sua amiga não saísse mal. Nem ela e nem sua afilhada.

- Fala, Benê! – Lica chegou, se jogando no sofá ali perto. Tinha alguns envelopes nas mãos – Oi, Guto – cumprimentou o rapaz – Que bom que eu encontrei vocês aqui. Assim me poupa tempo e trabalho – começou a folhear os envelopes até encontrar o que queria e entregou para eles – Inauguração da minha galeria, quem não for, morre.

- Isso não é jeito de fazer um convite, Lica – Benê pontuou sabiamente – As pessoas podem ficar assustadas e irem apenas porque estão sob risco de morte e não porque querem ver seu trabalho.

Lica riu pelo nariz.

- O que significa que elas vão, Benê – deixou um beijo estalado na bochecha da amiga, arrancando uma cara feira de Benedita que, imediatamente, começou a esfregar o rosto com a mão.

- Parabéns, Lica – Guto disse – Fico feliz por você – e lhe lançou um sorriso sincero.

- Valeu, Gutoso – a Gutierrez brincou, sorrindo de volta, feliz da vida. Tinha um grande apreço e carinho por Guto e não era de hoje. Só de ele fazer bem para sua amiga, entender Benê, amá-la e não julgar, já tinha um lugar cativo no coração dela. Amém, Augusto Sampaio Neto – Bom, vou indo, que ainda tenho uns convites para entregar hoje – e deu uma olhadinha para o céu. São Paulo parecia que veria chuva dali a alguma horas – Benê, esse seu piano está com um som estranho.

- E eu agradeceria se você e o Guto fossem conversar em outro lugar porque estão me atrapalhando a afinar – quase um tapa. Mas os tapas de Benê não doíam. Na maioria das vezes, não.

Lica se despediu dos dois, pegou o carro de sua mãe e rumou para entregar os convite a quem interessava. Deixou um para Tina e Anderson na produtora, um para Ellen na programadora onde ela trabalhava, fez questão de ir até a Brasilândia deixar um para dona Das Dores, avó de sua amiga; passou no restaurante de MB onde encontrou o amigo distribuindo ordens em meio a brincadeiras e chistes com seus colaboradores, ainda almoçou por lá e saiu sem pagar a conta, claro.

Rodou boa parte de São Paulo até que só sobrou um único convite em suas mãos. Esse ela havia deixado por último não era por acaso. Digitou o endereço no GPS e deixou que ele lhe guiasse.

Lica nunca tinha entrado na sede da empresa de Samantha, a tal da Meliã. Sabia que era uma rede nacional de hotéis, mas ainda não havia parado para pesquisar mais a respeito do que ela fazia. O endereço era na Paulista, poucos metros depois do Meliã Paulista. Era um prédio até discreto (confessaria: estava esperando uma torre do tamanho do mundo com o nome de Samantha em neon lá no topo), dez andares. A placa fincada nos jardins da entrada com a logo da empresa dizia que estava sim no lugar certo. Estacionou ali na frente e desceu sentindo um leve suor nas mãos e um rimbombar chatinho de seu coração nos ouvidos.

O hall onde ficava a recepção lembrou a entrada do Tryp Higienópolis, onde se hospedara e onde armara um verdadeiro barraco assim que chegou a São Paulo. O piso de mármore muito bem polido, colunas grossas davam um ar clássico em um ambiente moderno. Lica achou interessante as cadeiras e uma mesinha de centro feitos de madeira bruta entalhada a um canto. O M da empresa reluzia atrás da recepcionista que sustentava uma aparência eficiente detrás do balcão.

- Boa tarde – começou.

- Boa tarde, em que posso ajudar?

- Hã... – Lica deu seu melhor sorriso – Eu vim deixar isso aqui pra Samantha... dona Samantha – se corrigiu sem nem saber muito por quê – É o convite de abertura da minha galeria. Eu e ela somos... – ah, droga, o que elas eram mesmo? Pigarreou – Meu nome é Heloísa Gutierrez. Nós estudamos juntas – melhor dizer isso. Era a verdade, não era?

- Ah sim, claro – a mulher de nome Catarina (Lica leu na plaquinha do blazer dela) recebeu o envelope, virando-o. Atrás havia escrito em letras floreadas feitas pela própria Gutierrez “Samantha e Marina Lambertini” – Vou providenciar para que chegue até ela.

- Ela está? – Lica se viu perguntando. Queria conter sua ansiedade, mas não conseguiu. É que quando se tratava de Samantha, era meio complicado aplicar a palavra “controle”.

- Não, saiu para o almoço – Catarina respondeu – Mas deve estar voltando, se você quiser esperar para entregar pessoalmente....

- Ah, não, tudo bem – Lica se apressou – Você pode entregar. Obrigada – em um meio sorriso, Lica agradeceu e se retirou.

Mas o mundo, ele trabalha com acasos, só pode. Mil acasos.

Lica colocou os pés para fora do prédio e já estava chegando ao próprio carro quando viu um sedan cinza grafite parando na frente. Dele, desceu Samantha e Marina. Riu de orelha a orelha. Não tinha visto ainda a menininha naquele dia. Não fora ao Grupo porque estava resolvendo os últimos detalhes de sua galeria, mas deixara uma mensagem de voz no WhatsApp de Clara para que ela mostrasse a Marina explicando porque não estava lá para o lanche delas no intervalo. Esperava que a irmã o tivesse feito.

E Samantha, bom, ela estava majestosa naquela calça de alfaiataria e a camisa de lã branca com caimento perfeito. Sorria feliz da vida. Lica também abriu um sorriso involuntariamente ao vê-la. Fez menção de se aproximar, mas estacou no movimento, quando viu descer do carro, pelo lado do motorista, uma mulher alta, de pele chocolate e cabelos blackpower arrumados em um coque perfeito.

Reconheceu Renata, a professora de música da ONG.

A mulher deu a volta no carro, abraçou Samantha em um gesto que a Lica pareceu desnecessário e então se dirigiu a Marina, agachando-se para ficar da altura dela, ajeitando a golinha da camisa do Grupo. Golinha que ela, Lica, sempre arrumava. Engoliu em seco.

Não mentiria se dissesse que sentiu ciúmes de Marina toda derretida para a mulher. E algo mais quando percebeu Samantha sorrir de orelha a orelha quando Renata voltou a se dirigir a ela, dando-lhe um abraço mais apertado antes de retornar para o carro.

E antes que fosse percebida ali, Lica tratou de deslizar para o banco do motorista e dar a partida. Apertou a direção quando passou por Samantha entrando na Meilã, mas não era algo parecido com raiva nem nada do tipo. Era só seu coração se encolhendo um pouquinho.

Bastou Samantha pisar no prédio e já foi parada pela recepcionista, lhe estendendo o convite que acaba de receber de Lica.

- Sua amiga esteve aqui agora pouco para deixar – a mulher informou.

- Amiga? – Samantha pegou o envelope preto, virando-o e se deparando com seu nome e o de Marina escrito em letras floreadas douradas ali. Aquela caligrafia ela conhecia muito bem. Abriu e checou seu conteúdo.

Era o convite para a abertura da galeria de Lica. Sem fotos da artista, ela percebeu. Lica não gostava muito de aparecer, dizia que um criador nunca deve parecer mais que sua arte. A pessoa não é o foco, e sim o que ela faz. Data, horário... e lá no canto, lá embaixo, escrito com a mesma caligrafia do nome dela e de Marina, um pequeno recado que poderia passar despercebido a olhos menos atentos.

“Eu gostaria muito que você fosse, mas se não quiser / não se sentir confortável, deixa ao menos a Marina ir. A presença dela é importante pra mim”.

Mordeu o lábio. Claro que não privaria Marina de ver Lica em seu momento de glória. E ela, Samantha? Iria ou não? Aceitaria ou recusaria Heloísa?

(...)

Já fazia assim uns vinte minutos que Clara subia e descia a barra de rolagem de seu computador no Grupo, tentando entender o que havia de esquisito ali. Ouvira claramente as palavras de Lica uns dias antes de que tinha coisa não batendo naquelas planilhas e não mentiria: aquilo lhe causou estranheza a ponto dela mesma ir verificar.

Clara não era da contabilidade, tinha horror em fazer contas, mas se via meio que obrigada a ter o mínimo de noção daquilo enquanto administradora e diretora de uma escola. E havia uma equipe preparada para aquilo que lhe dava todo o apoio e lhe assessorava quando o assunto fosse contas, planilhas, cálculos, custos e lucros por parte de sua empresa. Sim, porque querendo ou não, o Grupo era uma empresa. Lhe rendia alguns bons dividendos, lhe exigia uns bons investimentos, dependia do que arrecadava com as mensalidades e investimentos de pais e entidades interessadas. Gerava lucro.

Ou mais ou menos, foi o que ela percebeu ao dar uma olhadinha mais atenta nos números.

“Tem uma coisa estranha aqui. Eu não entendo muito de conta, mas tem uns números esquisitos nessas suas planilhas”, foi o que Lica dissera.

- Janeiro.... fevereiro... março... – ela seguia acompanhando mês a mês as entradas e saídas do caixa da escola. Estavam em maio – Abril... maio...

Checou os mesmos meses do ano anterior. E os seis meses antes deles. Havia algumas diferenças que a ela pareceram mínimas. Por exemplo, de dezembro do ano anterior para janeiro, havia uma entrada muito boa de recursos. Início de ano, período de matrículas, compras de apostilas, convênios com algumas livrarias que rendiam umas boas cifras ao colégio. Mas de janeiro a fevereiro havia uma ligeira queda que se manteve em março. Era como se o Grupo tivesse meio que reduzido em uns 30% sua entrada em caixa em cada um dos dois meses.

- Como? Se em fevereiro é o mês em que mais recebemos investimentos dos pais dos novos alunos? – Clara se questionou, abrindo a planilha do mês. As aplicações lhe pareceram um tanto quanto baixas, na verdade. Rolou mais algumas semanas, chegando a abril... E os mesmos investimentos somaram cifras maiores.

Bom, o era política do Grupo entrar em acordo com os investidores sobre os valores que eles aplicariam na escola. Cada aplicação era feita conforme a robustez e a capacidade de quem dispunha do dinheiro. Por exemplo, o valor que um pai investia era menor que o que uma editora investia pelo fato do pai já pagar a mensalidade do filho. O fato era que qualquer redução na aplicação feita tinha que ser informada ao colégio. Isto estava no contrato. Mas ali haviam reduções que, pelo visto, não tinham sido avisadas de antemão.

- Que estranho... – ela aprumou a vista, estreitando os olhos para conferir mais de perto os números – Cortaram o mesmo valor em todas as aplicações... Será que combinaram e esqueceram de avisar a escola? – estranhou.

Era isso: a queda nos investimentos de fevereiro e março havia sido praticamente a mesma em todas as quantias recebidas. Qual a chance de um investidor que aplica dez mil mil reais resolver tirar dois mil naquele mês, e de um investidor que aplica cinco mil tirar exatamente o mesmo valor? Havia um padrão na queda dos investimentos e isso Clara percebeu na hora. O problema era: se os investidores decidiram diminuir as aplicações igualmente, não informaram ao Grupo. E era algo que deveriam ter feito.

Uma redução dos investimentos que, no entanto, não aconteceu em abril. Pelo contrário, os valores daquele mês, assim como os de maio, estavam dentro das cifras estipuladas nos contratos. Falando diretamente, era como se em fevereiro e março, todos os investidores do Grupo tivessem decidido reduzir em 20% suas aplicações sem avisar ao colégio e isso somava....

- Meu Deus, tudo isso? – Clara se alarmou e pegou o telefone – Célia, aqui é a Clara, bom dia. Você pode vir até minha sala, por favor? – chamou operadora do caixa da escola.

(...)

- Estou ligando pra saber se você vai poder almoçar com a gente ou se tem alguma reunião inadiável – Samantha foi curta, grossa e direta ao telefone. Havia ligado para Henrique para tentar tirar um pouco daquele bico que Marina tinha no rosto.

A menina havia ficado meio emburrada e visivelmente magoada por não ter conseguido fazer uma refeição decente com o pai nem uma vez sequer naquela semana. E Marina magoada era a última coisa que Samantha queria. E muito menos ter que lidar com a birra da filha, sendo que a culpa por ela seria única e exclusivamente do excelentíssimo senhor seu marido.

- Samantha...

- A Marina implorou pra eu te ligar – ela atalhou, sem dar chance de ele titubear – Acredite, por mim, eu não teria ligado.

Ouviu o marido suspirando do outro lado da linha.

- Onde eu encontro vocês?

- No Ca d’Oro – ela resumiu – Se der, se apressa. A gente já está aqui.

- Vai pedindo, por favor, eu também não posso me demorar muito. Reunião no Grupo.

- Algum problema com o Grupo? – Samantha se interessou. Sim, porque aquela escola era território de vocês sabem quem e Henrique lá... Bom, não se poderia esperar muita coisa... boa, para falar a verdade.

- A Clara não explicou muito, mas eu vou lá pra saber. Pede uma massa gratinada pra mim, por favor.

- Tudo bem – Samantha desligou sob o olhar em expectativa de Marina – Ele está vindo.

- Oba! – a menina fez festa e Samantha não conseguiu conter o sorriso que perpassou seus lábios ante o que viu. E Henrique poderia estar claramente lhe escondendo algo e agindo feito tudo, menos como seu marido ultimamente, mas era o pai de Marina. Não podia negar nem a ele nem à filha nada que dissesse respeito a eles. Nada.

Cerca de vinte minutos depois, ele passava pela entrada do restaurante, esquadrinhando o local à procura delas.

- Papai! – a vozinha de sua filha chamou sua atenção no mesmo minuto. Marina desceu meio sem jeito e apressada da cadeira para correr até Henrique sob os protestos de Samantha.

- Marina, vai devagar! Vai cair desse jeito, filha!

- Ela está com saudades do papai, não é, meu amor? – Henrique envolveu a menina em um abraço gostoso e a encheu de beijinhos pelo rosto – E eu também estava morrendo de saudades dela!

- O que é uma tremenda ironia, levando em conta que vocês moram na mesma casa – Samantha soltou ligeiramente ácida – E isso definitivamente não aconteceria se você tivesse um pouco mais de tempo pra sua filha.

Henrique colocou Marina de volta na cadeira e em um gesto automático, inclinou-se para tocar levemente os lábios de Samantha. Gesto do qual ela desviou na mesma hora.

- A gente pode não discutir agora? – ele perguntou visivelmente sem jeito ao que Samantha imediatamente concordou e deu o assunto por encerrado. Sua cabeça estava a mil, tinha mais coisa com que se preocupar além de Henrique e estava morrendo de fome. E a comida já vinha chegando.

- Tudo certo lá no escritório? – ela quis saber. Marina brincava distraída fazendo dobraduras num guardanapo.

- Tudo sim. Na correria de sempre, cliente dando dor de cabeça nas horas mais inconvenientes, mas nada que não possa ser resolvido com uma boa argumentação.

Advogado por formação, Henrique era proprietário de um dos mais renomados escritórios de advocacia de São Paulo. Criminalista, ganhara certa fama por pegar casos envolvendo figuras relevantes na sociedade paulista, tinha um poder de argumentação absurdo e quando assumia seu melhor ar profissional, dificilmente não conseguia o que queria.

Mas atuar na área criminal não impedia seu escritório de representar legalmente algumas empresas em São Paulo. É que Henrique mantinha sob seu comando também uma excelente equipe de advogados civilistas e, honestamente, ele lidava tão bem com contratos quanto lidava com um habeas corpus.

Sua família tinha tradição no Direito e seu nome peso e relevância na área. Fora assim com seu avô, era assim com seu pai e ele tratara de levar isso à diante fazendo um trabalho tão bom quanto eles.

- E lá no Grupo? – Samantha quis saber de novo.

O Colégio Grupo fazia parte da cartela de clientes do escritório de Henrique. Na verdade, fazia parte desde seu pai, que era colega de Edgar e foi a quem o ex-diretor da escola recorrera quando vira seu patrimônio e seu nome sendo jogados na lama diante de tanto escândalo de corrupção e desvio de dinheiro. Heitor, pai de Henrique, foi quem livrou Edgar mais de uma vez da cadeia. Na última vez, a coisa foi tão séria que até mesmo toda a destreza do advogado não foi suficiente para fazê-lo sair ileso.

Cuidando de todas as complicações em que Edgar envolvera o Grupo, foi meio que inevitável que o escritório dele assumisse a representação da escola. Aposentado, o pai de Henrique passou esse bastão para o filho. Estava dando certo e ele esperava sinceramente que continuasse assim.

- Eu não entendi muito bem o que era. A Clara parece que quer que eu analise alguns documentos... só não espero que seja abacaxi – disse, parecendo cansado.

Samantha não comentou nada. Se concentrou em observar seu prato com uma expressão que beirava a reverência. Amém massa italiana.

- Papai, olha o que eu fiz – Marina estendeu o guardanapo para ele com uma dobradura meio esquisita e um tanto torta, mas que aos olhos dele pareceu a coisa mais linda do mundo – É um barco.

- Ow filha, está lindo – ele girou a arte de Marina nas mãos. Samantha ergueu a vista para ele –Posso ficar com ele?

- Pode. Eu fiz pra você – a menina era só orgulho de si mesma. Samantha ergueu os cantos da boca em um sorrisinho.

- Obrigada, meu amor – e deixou um beijo carinhoso nos cachinhos de Marina – Como foi hoje na escola?

- Foi legal – Marina desandou a tagarelar. E mencionou o nome de Lica umas quatro vezes quando falou sobre o intervalo. Aliás, pelo tom que ela usava, dava para perceber que essa parecia ser sua hora preferida no Grupo – A mamãe deixou ela me ensinar a desenhar bonito, não foi, mamãe?

Henrique tossiu, meio que engasgando. Pigarreou, respirou fundo e tomou um gole de água. Samantha se limitou a suspirar já prevendo o que viria. E olha que foi ele que pediu para não discutirem ali.

- V-você deixou a Heloísa ensinar a Marina a desenhar? – questionou.

- Deixei. A Lica sabe desenhar e a Marina quer aprender. Não vejo problema nenhum nisso – soou extremamente calma.

- Bom, é que... tem tantos outros professores de arte em São Paulo, Samantha. Inclusive no próprio Grupo.

- A tia Lica é legal, papai – a vozinha de Marina se fez soar – Por que você não gosta dela?

Samantha descansou os talheres começando a pensar seriamente em desistir de sua comida. E ela estava tão apetitosa.... Seu olhar vagou do marido para a filha.

- Marina...

- Assunto de gente grande, Marina – Samantha interrompeu antes que Henrique dissesse alguma besteira – Não vale à pena você bater cabeça com isso. Cinco anos ainda, lembra?

Mas Marina era curiosa por natureza. Dificilmente deixaria aquilo de mão, mesmo com a mãe lhe pedindo. Voltou a olhar para Henrique.

- Mas a tia Lica é minha amiga. Por que o papai não pode ser amigo dela também?

- Ela não faz nenhuma questão de ser minha amiga, Marina, acredite – Henrique falou e aí sim Samantha desistiu de vez seu almoço.

- Henrique, não começa....

- Mas porque ela não quer ser sua amiga? – Samantha teria que ter uma conversa com a filha urgentemente e ensinar mais uma vez que havia hora de parar de questionar tudo.

- Porque o papai conseguiu algo que ela não – soltou simplesmente e voltou a se concentrar na massa em seu prato. Samantha cerrou os punhos espumando de raiva daquela grosseria que Henrique dissera. Que diabos era “conseguiu algo que ela não?”. Por acaso ele estava se referindo a ela, Samantha, como esse “algo”? Como se ela fosse um prêmio ou um troféu a ser disputado?

- O quê? – Marina perguntou. Samantha resolveu interferir. Já era demais até para ela.

- Chega, Marina! Vamos encerrar esse assunto – falou firme em uma clara ordem para a filha – E você, Henrique, vê se escuta o que está falando. Não tem essa de conseguiu ou não conseguiu algo, não tem ninguém a prêmio aqui. E existe uma coisa chamada respeito também.

- Saman...

- Para de implicar com tudo. Para de meter a Marina no que não tem nada a ver com ela. Ela tem só cinco anos e não merece conviver com reclamação e frustração o tempo todo.

Frustração. Henrique se apegou àquela palavra. E deu errado. Muito errado.

- Você está me chamando de frustrado?

- Você me chamou de “algo” – ela devolveu na mesma moeda. E se dependesse de Henrique, haveria réplica, tréplica... Mas havia uma Marina ali, atenta a cada palavra que seus pais trocavam. Péssima escolha de lugar, péssima figuração de cena. Samantha respirou fundo – Você veio aqui porque a Marina queria te ver. Era pra ser só um almoço, não acaba com isso agora.

Henrique pareceu lembrar da filha ali. Encontrou o olhar de Marina e o que saiu da boca dela...

- Porque vocês brigam por causa da tia Lica?

(...)

Samantha teve que cortar um dobrado para conseguir amenizar o clima horroroso que havia se instalado naquele almoço por causa dos comentários fora de hora de Henrique. Aquilo lhe dava nos nervos de um jeito, a irritava em proporções absurdas, que se ele soubesse... ah, se ele soubesse, não abriria mais a boca.

A empresária saiu levando Marina consigo. A menina ficaria aquela tarde na casa de Keyla brincando com Tonico. Ao menos não ficaria entediada na Meliã e provavelmente lhe fazendo perguntas capciosas demais para seu ambiente de trabalho. Não era que Samantha não queria responde-la. Era só que no trabalho não teria tempo para sentar e conversar direito com ela como a situação pedia. Deu graças aos céus quando Keyla ligou dizendo que Tonico estava perguntado por Marina.

Deixou a filha no galpão aos cuidados da amiga e rumou para a sede da Meliã. Quem sabe enfiando a cabeça no trabalho, não conseguisse amenizar um pouco a confusão que estava sua mente naquele momento. Queria entender que implicância ridícula era aquela de Henrique com Lica. Meu Deus, a história delas havia acabado há sete anos. Não eram sete dias ou sete meses, eram sete anos. Não era tempo suficiente para ele? Tinha que agir sempre com insegurança e imaturidade quando se tratava do nome de Heloísa? Buscar atingir a artista de alguma forma, tentar fazer Lica parecer o pior dos demônios draconianos até para a própria filha?

Samantha se pegou questionando se Henrique sempre fora tão inseguro assim e ela que nunca tinha percebido. Talvez a cegueira causada pelo sentimento maior que é o tal do amor. Dizem que é nas crises e momentos de dificuldade que as pessoas se mostram de verdade... E sendo sincera, Samantha não estava gostando nada do que vinha vendo em Henrique.

Isso sem contar aquela inquietação dela com relação a esse jantar de negócios que ele disse ter tido e simplesmente se negava a dizer que jantar era e com quem. Para Samantha já havia ficado claro que o marido lhe escondia algo e ela, como uma mulher experiente em ser feita de trouxa e nem um pouco a fim de repetir a experiência, já vinha mexendo seus pauzinhos para saber o que havia de errado. Coitado de Henrique se achava que a enganaria. Se tinha uma coisa que Samantha sabia fazer e bem era encontrar e obter respostas. E ler as pessoas era praticamente um dom que tinha. Não seria diferente ali. Foda-se se Henrique era seu marido. Poderia deixar de ser em dois tempos se ela decidisse assim.

E por falar em Henrique, se o advogado achou que seu dia já estava ruim, conseguiu quase gritar em desespero quando chegou ao Grupo naquela tarde e deu de cara com Clara, Bóris, a moça do caixa da escola e uma Heloísa Gutierrez muito bem empoleirada na cadeira da irmã tomando um suco no canudinho. Era o inferno. Só podia ser.

- Boa tarde – cumprimentou todo mundo e se dirigiu a Clara – Você me ligou e cá estou eu. Algum problema, Clara?

A diretora do Grupo se levantou para recebe-lo com um aperto de mão num gesto extremamente profissional. Lica se limitou a olhar aquilo enquanto sugava seu suco de maracujá, girando tranquilamente a cadeira da irmã.

- Mais ou menos, Henrique. Na verdade eu queria que você nos dissesse isso – Clara falou, o que arrancou o franzir de cenho do advogado – Senta, por favor.

Ele o fez e Clara já foi logo passando para suas mãos uma pequena pilha de planilhas. As mesmas que Lica havia lhe falado uns dias antes.

- Do que se trata?

- A gente encontrou umas coisas estranhas aí. Não sei se é bem estranha a palavra, mas...

- Tem número que não está batendo. Cifras altas demais em um mês e baixas demais em outros – Lica a interrompeu, soando firme – Padrões de queda nas aplicações como se de repente todos os investidores do Grupo tivessem decidido retirar a mesma quantia sem avisar, o que não aconteceu, porque o Bóris se reuniu com eles e conferiu os recibos. Os números que estão aí é que não conferem.

Mais direta que isso, impossível. E Lica escrutinou a expressão de Henrique uma fração de segundo antes dele pegar as folhas e começar a conferir. O advogado hesitou e, bom, hesitação é quando sua mente diz “sim”, mas seu corpo quer negar. Heloísa percebeu a hesitação de Henrique e, num gesto automático, estreitou os olhos como se o examinasse.

O advogado conferiu os números uma, duas, três vezes. Lica pensou que ele já estava era demorando demais a dar uma resposta, mas Clara, Bóris e até a moça do caixa pareciam extremamente pacientes aguardando que ele dissesse algo. É que como a escola ainda estava se recuperando do baque mais recente causado por Edgar, tudo que entrava e saía do Grupo em termos financeiros passava pelo crivo de Henrique ou de sua equipe de advogados que era quem vinha fazendo a ponte do colégio com a Justiça. Sabe como é aquela história: corrupção, bloqueio de bens, habeas corpus.... O setor jurídico da escola acabou tendo que entrar também no setor contábil. Era essa a função de Henrique.

- É, de fato tem umas diferenças bem altas aqui – Henrique pontuou o que já era óbvio. Lica revirou os olhos lá de onde estava – Mas, Clara, eu queria poder dar uma conferida mais atenta, inclusive vendo os recibos das aplicações – virou-se para a Célia do caixa – Não houve nenhuma pane no sistema financeiro da escola nos últimos dias? Vai ver teve algum erro na hora de gerar as planilhas.

- Só a de maio que eu gerei agora. As outras, inclusive as de fevereiro e março, foram geradas mês passado. – Clara explicou, apontando a data de impressão dos documentos no canto da página – Eu imprimi pra Lica dar uma olhada faz um tempão.

Henrique levantou as vistas para a artista, que sustentou seu olhar.

- Bom, a Heloísa não faz parte diretamente da direção do Grupo...

- A escola é da minha família – ela o cortou – Meu avô fundou, meu pai administrou e quase detonou, minha mãe assumiu depois, passou pra Clara e... olha só, eu sou irmã dela. A escola é minha também. Eu posso não ser bem vinda na parte pedagógica – ela lembrou bem daquela reunião em que Henrique afastara qualquer possibilidade de ela abrir a boca para tratar dos assuntos relacionados ao Grupo – Mas o Grupo é uma empresa, essa empresa é minha e como dona eu também me interesso pelas finanças e pelos lucros que ela me dá.

Bóris soltou uma risadinha e pigarrou logo em seguida, assumindo de volta sua postura profissional. Clara, pela primeira vez desde que Heloísa chegara ali, resolveu apoiá-la.

- Exato, Henrique. O Grupo é da minha família e ela se resume à tia Marta e à Lica. Elas têm o direito de conferir as finanças.

- Claro, claro. Eu só pensei que talvez....

- Vamos focar no que interessa? Você consegue dizer porque esses números não batem, ou não? – Lica foi incisiva e Clara virou-se para encará-la. Nunca vira a irmã soar tão firme como naquele momento.

- Consigo sim, mas como falei, Heloísa – ele pareceu fazer um esforço absurdo para dizer o nome dela – Eu preciso de um tempo para poder me debruçar sobre essas planilhas com calma. Não tem como eu dar um diagnóstico preciso do que houve aqui sem examinar direito.

- Mesmo esses números sendo de três meses atrás? – Lica insistiu – Sim, porque essas planilhas já haviam passado por você antes, certo? Não é você que olha tudo que entra e sai do Grupo por – ela fez aspas com as mãos – Precaução legal?

- Eu espero sinceramente que tenha entendido errado – Henrique agora fuzilava Lica com os olhos.

Clara viu que havia um embate ali e mirou Bóris com um olhar de quem suplicava por ajuda.

- Bom, então ficaremos assim – o coordenador pedagógico interferiu – Henrique, você se debruça sobre as planilhas, confere direitinho o que foi que aconteceu e nos mantém informados. Se você puder dar urgência nisso também...

- Claro, Bóris. Pode deixar que o quanto antes eu dou um retorno. Vou levar pro meu pessoal dar uma olhada mais atenta – virou-se para a Célia do caixa – Você poderia me passar as cópias de todos os recibos, por favor? Vou precisar deles.

- Claro, já estou com elas prontas – a mulher foi eficiente.

- Ótimo – o advogado concluiu – Clara, mais alguma coisa? Se for para fazermos um pente fino, é melhor que façamos logo agora.

A diretora suspirou e se pôs de pé.

- Não, Henrique... quer dizer, eu acho que não – ela sorriu, tentando ser amena – Eu só quero saber o que foi que aconteceu e dar um jeito pra evitar que isso ocorra de novo. O Grupo não está em condições de ter erros nas contas, ainda mais se esse erro for para menos – brincou.

- Claro, eu entendo sua preocupação. E admiro bastante o empenho de vocês em não deixar que as atitudes do Edgar causem mais problemas aqui. Podem contar comigo. Dou um retorno assim que tiver algo em mãos – apertou a mão de Clara em um gesto formal, despediu-se de Bóris com um tapinha nas costas, a Lica ele nem se dirigiu, o que ela agradeceu mentalmente. Odiava hipocrisia.

Henrique seguiu porta a fora com a moça do caixa para pegar os tais recibos. Foi só ele bater a porta e Clara se jogou na cadeira diante de Lica. A artista continuava ali girando de um lado para o outro em um gesto displicente, tomando seu suco.

- O que te deu pra sentar aí? – quis saber.

- Saudades – ela foi sarcástica – Inclusive já matei. Tchau, vou pra minha galeria – se pôs de pé, pegou a bolsa e jogou sobre o ombro.

- Assim? Pensei que você fosse ficar mais um pouco pra ver de perto o funcionamento da escola.

Bóris deu uma risada.

- A Lica, Clara? Até parece que você não conhece sua irmã – gargalhou.

- Irmãzinha – Lica virou-se para ela – Eu sou artista, não diretora, muito menos administradora. E a Marina não está aqui pra me fazer companhia, então tchau.

- Você virou mesmo amiga de infância dela, hein? – Clara brincou – A Samantha deve estar super feliz com isso.

- Amando – Lica foi irônica e saiu da sala.

Do lado de fora do Grupo, um Henrique visivelmente contrariado assumia o volante do carro. Sua irritação não se resumia somente ao que acabara de presenciar, mas principalmente à pessoa que protagonizara a cena que ele acabara de viver. Por que Heloísa simplesmente não conseguia ficar quieta na sua e tinha que sempre se meter onde não era chamada? Primeiro, sua vida pessoal e agora até sua vida profissional sendo alvo das interferências dela? Ah, pelo amor de Deus! Aquela mulher não tinha nem nada para fazer ali.

Não havia essa história de “O Grupo também é meu”. Heloísa nunca se interessara pelo que dizia respeito à escola, tanto que passara anos vivendo do outro lado do mundo sem nem se importar em saber o que estava acontecendo aqui. Aí agora chega com esse papinho de “é uma empresa, é minha, tenho que conferir os lucros”. Aquilo chateou Henrique em proporções gigantescas e ele só não explodiu porque estava na frente de Clara e Bóris. Pelos dois ele ainda tinha respeito, mas por Heloísa?

E que audácia fora aquela dela em questionar seu trabalho. Sim, porque Henrique sentiu cada farpa na voz da Gutierrez quando se dirigiu a ele. Como se o testasse, o avaliasse. E Henrique odiava testes e avaliações. No momento certo, daria uma resposta à altura.

Mas agora, tinha assuntos mais urgentes a resolver. Praticidade era do que precisava. Sacou o celular do bolso da calça. Foi atendido na segunda chamada.

- Nós precisamos conversar. É urgente e não pode ser deixado pra depois. Me encontra hoje à noite no local de sempre.


Notas Finais


Teorias na minha mesa, obrigada. Já ficou meio que óbvio, né?
Agora a pergunta é: quem diabos o sr. Lambertini vai encontrar? kkkkk
Palpites?
Segundo, Lica está acertando ou não?

Beijos e até o próximo capítulo!


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