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História Mil Acasos - Excesso de emoção


Escrita por: MxrningStar

Notas do Autor


Olá, criaturas! Tudo bom com vocês?
Bora de capítulo?
Sobre o de hoje: rompantes.

Boa leitura!

Capítulo 34 - Excesso de emoção


- Eu não acredito nisso.

 

E de fato, Heloísa queria que aquilo fosse uma alucinação. É que a gente costuma querer que sejam invenções da nossa mente as coisas que não nos agradam. Algo que podemos desfazer, reverter a um simples clique, a um despertar. Mas Lica estava desperta e lúcida. Muito lúcida. O que foi desesperador, porque só provava que aquilo não estava acontecendo em sua mente. Era real. Real demais.

E ela odiou isso.

- O que você está fazendo aqui? – alteou a voz – Que merda! O que você está fazendo aqui?

- Lica, calma – Samantha pediu.

- Cara, isso só pode ser piada – e balançou a cabeça em um gesto negativo.

- Não é piada, Heloísa, por favor – ele pediu e tentou se aproximar.

- Se você der mais um passo, eu juro que faço uma loucura – ela ameaçou.

- Lica, a gente está em um hospital, calma por favor – Samantha tornou a pedir.

Clara limitava-se a assistir àquela cena atônita.

- Justamente, a gente está num hospital e esse cara – apontou o dedo na cara de Edgar – Não devia estar aqui. Devia estar preso, trancafiado numa cela, onde gente da laia dele tem que ficar! – virou-se para ele – O que você quer, hum? Não tem nada pra você aqui, se manda.

- Eu só vim ver minha filha – e olhou para Clara – E caso você não se lembre, Heloísa, eu sou um homem livre agora. Posso estar aqui sim. Não tenho mais que ficar trancafiado numa cela como você mesma disse. Paguei pelos meus crimes.

- Jura? Pra mim você pode ficar o resto da vida preso, morrer lá – ela cuspiu com desgosto – Vai continuar sendo um criminoso de merda.

- Lica, chega! – Samantha ordenou – Não é hora nem lugar.

- Vai embora! – ela foi para cima de Edgar.

- Lica, para! – Clara pediu e a irmã se virou para ela com uma fúria quase demoníaca nos olhos – Ele é nosso pai.

- Eu não acredito que você vai defender esse canalha, Clara – Lica se desesperou – Depois de tudo?

- Ele continua sendo nosso pai. E pagou pelos erros dele. As pessoas têm direito a uma segunda chance.

Lica balançou a cabeça em negação e desgosto.

- Quer saber? Vocês dois se merecem, foram feitos um pro outro. A idiota e o aproveitador – e saiu do quarto dando um empurrão em Edgar e quase atropelando Marta que chegava à porta com um copinho de café nas mãos.

- Ai, que é isso, Lica? Ficou maluca?

Mas a Gutierrez não deu ouvidos. Saiu a passos firmes e rápidos pelo hospital. Samantha apareceu logo em seguida igualmente sobressaltada.

- Por onde ela foi? – perguntou.

- Foi embora... o que foi que aconteceu? A Clara passou mal? – Marta fez menção de entrar e quase caiu para trás quando se deparou com Edgar Gutierrez, o próprio, estacionado perto da porta do lado de dentro – Você?

- Eu – foi tudo que disse e suspirou – Eu acho que você devia conversar com a sua filha. A Lica precisa aprender a controlar esse gênio dela.

Marta, no entanto, mirava o ex-marido completamente em choque.

- Meu Deus, só pode ser pesadelo – foi tudo que a mulher respondeu e virou o café duma vez.

(...)

- Lica! – Samantha gritou uma vez para se fazer ser ouvida. Heloísa caminhava apressada e a passos firmes pela calçada do hospital. Tentou chamar um táxi, mas não tinha nenhum ali e o carro por aplicativo estava demorando horrores que a fez cancelar a corrida e sair a pé mesmo. Não ficaria ali, não queria e nem iria ficar parada. Não conseguiria ficar parada – Lica, espera! – nada – Heloísa de Almeida Gutierrez, para de se fazer de surda!

Conseguiu faze-la estacar e se virar.

- O que você quer, hum? – e abriu os braços – Só me deixa em paz! – e virou-se de uma vez.

- Lica, para! – Samantha praticamente berrou, mas Lica desceu numa estação e sumiu das vistas dela. E conhecendo a namorada como conhecia, sabia bem que ali seria melhor não insistir. Suspirando, ela passou a mão pelos cabelos e se deu por vencida. Retornou para o hospital, mas não se atreveu a entrar mais no quarto de Clara. Não queria nem imaginar o que estava acontecendo lá dentro.

(...)

Clara analisou as feições de Edgar demoradamente, mas não era processando a imagem dele exatamente, até porque isso ela conhecia bem. Era seu pai, afinal. Era mais tentando se atinar de que aquilo de fato estava acontecendo e ele estava ali diante dela. Os cabelos antes meio acobreados agora tinham uns fios grisalhos em alguns pontos, havia rugas mais evidentes em seu rosto, os olhos claros não tinham mais tanto aquele brilho que costumavam sustentar.

Acabado não era bem a expressão. Seria mais para abatido.

- Por que você veio até aqui? – foi tudo que ela externou.

- Filha... quando eu fui liberado, a primeira coisa que soube foi que você tinha sofrido um acidente. Eu quase enlouqueci quando passei numa banca de revista e vi a foto do carro na capa de um jornal. Eu fiquei com tanto medo de te perder, Clara... – e fez menção de se aproximar dela.

- Nem mais um passo – Marta impediu. Edgar estacou.

- Marta, não começa...

- Não começa você – ela o cortou – Está sentimental demais pra quem fez o que fez.

- Quando foi que você saiu? – Clara tomou voz.

- Tem cinco dias. Não vim antes porque estava organizando minha vida.

- Organizando sua vida? – a loirinha repetiu.

- É, Clara, reavendo o que era meu. Meu apartamento, minhas roupas...

- Espera, você ainda tem aquele apartamento? – a diretora do Grupo tomou foi um susto – Aquele que a gente morou? Eu pensei que tinha sido leiloado, sei lá.

- Não, Clara, por incrível que pareça, ele foi comprado honestamente. É a única coisa que me restou. Ao menos um teto – Edgar suspirou – Um teto e você. Você e a sua irmã.

 - A Lica – Marta riu – Ai, Edgar... é muita pretensão achar que vai chegar aqui e ser abraçado por todo mundo. A Lica te odeia. Quer te ver no inferno!

- É, mas eu vou mudar isso. Eu vou mostrar pra ela que pode confiar em mim.

- Jura? – Clara interpelou – Boa sorte – e vendo a cara de Edgar – A Lica não é idiota que nem eu não, pai. Te garanto que ela não vai se deixar levar por meia dúzia de palavras bonitas. Vai precisar mais que isso com ela.

- Você se acha idiota só porque me deu um voto de confiança? Clara, por favor... Querendo ou não, eu ainda sou seu pai...

- E não merece crédito nenhum por isso – Marta entrou na história e suspirou cansada – Edgar, vai embora. Daqui a pouco o Luís chega aí e isso não vai dar certo.

- É, e você já expulsou a Lica.

- Eu não expulsei ninguém, Clara. Ela que não sabe se controlar e foi embora! Não venha me culpar pelos problemas da sua irmã.

Marta riu sem humor algum. Clara soltou um muxoxo e revirou os olhos. E de pensar que aquilo estava só no começo...

(...)

- Lica? Ué, você disse que não viria hoje – Alice se assustou quando viu a Gutierrez passando pela porta da galeria. Ela nem deu ouvidos. Atravessou o salão a passos rápidos e se enfiou em sua sala, batendo a porta. Um recado claro de que não queria ser incomodada.

Respirou fundo, andou de um lado para o outro, passou a mão pelos cabelos, mordeu o lábio tentando desacelerar um pouco sua mente, mas não adiantou nada. Virou-se em um átimo para a própria mesa e passou o braço por ali, derrubando tudo que havia em cima. O laptop só não foi parar no chão, porque estava preso à tomada pelo carregador. Mas os papéis que haviam ali, os livros, alguns pincéis, tubinhos de tinta... ficou tudo espalhado no meio do aposento.

Não foi suficiente. Lica se virou irada e deu um chute numa cadeira que foi parar longe. A raiva lhe consumindo por inteira. Tão cega e tão incontrolada que socou a parede na força do ódio. De punho fechado ela bateu uma, duas, três, quatro vezes, cinco... sequer sentiu a dor irradiando dali. A mão vermelha, já começando a sangrar. Alice ouviu ao barulho do lado de fora e correu até lá. Invadiu a sala sem nem pensar se aquilo daria demissão.

Encontrou Heloisa travando um verdadeiro MMA com o concreto.

- Lica! – correu até ela e a tirou dali. Bem que a artista tentou resistir, mas sua assistente colocou seus braços para trás impedindo-a de continuar com o que quer que tentasse – Para com isso, vai acabar se matando.

- Me deixa, caralho! – ela esbravejou e se livrou de Alice com um safanão, enfiando o punho cerrado com tudo em uma tela ali. A imagem rasgou. E ela ainda estava em processo de criação. Visivelmente transtornada, Lica pegou o quadro, terminou de parti-lo em dois e o arremessou do outro lado. Por pouco não acertou Alice, que assistia à cena completamente atônita. O que havia acontecido com Heloísa? Ela estava possessa.

- Lica, para! Vai destruir tudo assim! – ela pediu.

- Eu disse pra me deixar! – e sem nem pensar, empurrou Alice para fora de sua sala e trancou a porta.

- Lica! – a assistente bateu insistentemente – Lica, abre pelo amor de Deus! Me conta o que foi que aconteceu. Quem sabe eu possa te ajudar – não obteve resposta. Começou a bater o desespero. Alice intensificou as batidas – Lica, por favor. Conversa comigo – olhou em volta sem saber muito o que fazer – Você quer que eu ligue pra alguém? Pra Samantha? Eu vou ligar pra ela.

- Eu quero ficar sozinha! – foi tudo que ela berrou lá de dentro – Me deixa sozinha!

- Lica...

- ME DEIXA SOZINHA, EU SÓ QUERO FICAR SÓ! – esbravejou tão alto que fez Alice se encolher.

A assistente não disse mais nada. Saiu dali a passos incertos e pegou o próprio celular, mas não tinha o número de Samantha. Ligou para Tina. A produtora atendeu no terceiro toque.

- Lembrou que eu existo, sua ingrata? – ela começou brincando.

- Tina, o assunto é sério – a DJ se retesou do outro lado da linha – A Lica chegou aqui transtornada, destruiu a sala inteira e está trancada lá dentro. Eu já bati na porta que quase derrubei, mas ela não abre. Vem pra cá, por favor. Eu não sei o que está acontecendo.

Não precisou de mais nada. Tina desligou o aparelho, mandou um áudio no grupo das Five explicando o que Alice contara e dizendo que estava indo para a galeria. Pediu ao restante das meninas que a encontrassem lá.

“Eu vou avisar para a Samantha. Ela é namorada da Lica, deve saber como agir nesta situação” – Benê.

Não demorou muito e o celular de Samantha vibrou nas pernas. Estava jogada em uma cadeira na recepção do hospital depois de ter ligado para Heloísa umas dez vezes e a ligação ter caído na caixa postal. Seria sempre daquele jeito? Lica surtando e sumindo e ela tendo que ir atrás? Era muito errado dizer que aquilo às vezes cansava?

- Oi, Benê.

- Samantha, a Alice ligou para a Tina informando que a Lica está trancara na sala dela na galeria visivelmente transtornada. Estamos indo para lá. Seria bom que você fosse também, Você a conhece, sabe como agir.

Samantha nem esperou que Benê concluísse a frase. Levantou-se abruptamente e saiu correndo em direção ao estacionamento. Deu a partida com o carro praticamente cantando pneu no asfalto.

Na galeria, Alice recebia uma Tina visivelmente agitada acompanhada do restante das meninas.

- Cadê ela? – a DJ já foi logo perguntando.

- Na sala – Alice guiou as meninas até a porta – Já bati trocentas vezes, mas ela não abre nem responde.

- Lica – a japonesa chamou com a voz mansa – Lica, sou eu, Tina. Eu e as meninas. A gente veio te ajudar, mas só podemos fazer isso se você abrir a porta e deixar a gente entrar. Hum?

Nada.  Olhou para as meninas como que pedindo ajuda.

- Lica, abre a porta, por favor – Ellen tentou – Deixa a gente entrar. Vamos conversar.

Mais silêncio. Elas começaram a se preocupar.

- Ela disse o que aconteceu? – Keyla indagou Alice.

- Não, só entrou feito um furacão e começou a quebrar tudo aí dentro.

- Seja lá o que foi, foi muito grave – Benê pontuou o óbvio.

- Lica – Keyla se aproximou da porta – Por favor, a gente só quer te ajudar. Abre essa porta. A gente está aqui por você. Eu, a Tina, a Ellen, a Benê... só deixa a gente entrar, vamos conversar. A gente te ouve, a gente te deixa falar o que você tiver pra falar, mas por favor, não faz isso com a gente. Abre essa porta, por favor – ela suplicou.

Nada com coisa nenhuma.

- Vocês acham que ela está desacordada? – Benê externou o maior temor que elas tinham. Tina se agitou, Ellen também. Keyla bateu mais freneticamente na porta.

- Lica, abre essa porta ou a gente vai derrubar – foi mais firme – Nós somos cinco aqui fora.

- Vão pro inferno! – ouviram a voz dela lá de dentro. Um tanto chorosa, constataram. Sem nem perceber, soltaram a respiração que haviam prendido em um alívio.

- Lica, ajuda a gente a te ajudar – Alice foi que pediu – Por favor, não deve ser tão difícil assim, é só abrir a porta.

Mas seguiram na inércia da Gutierrez do lado de dentro. Ainda ficaram um bom tempo ali se revezando entre súplicas e batidinhas na porta, até que ouviram movimento na entrada. Samantha passou por elas com tudo.

- Cadê ela? – estava sobressaltava só de preocupação.

- Trancada aí dentro que não tem quem faça sair – Tina foi que respondeu.

Sem nem hesitar, Samantha se aproximou da porta. Deu leves batidinhas.

- Lica – tentou com a voz mansa – Meu amor, fala comigo. Só me deixa saber que você está inteira.

Lica não respondeu. Ouviu a voz de Samantha do lado de fora e se encolheu mais. Estava meio deitada, meio sentada com as costas apoiadas na parede. As mãos sangrava onde tinha socado o concreto. O rosto estava vermelho, banhado em lágrimas. Destruída era a palavra certa. Por dentro e por fora.

E a culpa, ela tinha nome e sobrenome. E pelo visto seria presença constante na vida dela agora.

- Amor, por favor – Samantha voltou a insistir – Só fala alguma coisa, não faz isso comigo.

Foi o final da frase de Samantha que a fez se mexer. Por mais que estivesse transtornada, não queria que seus problemas respingassem nela. Não na pessoa que mais amava no mundo. Não mesmo. Se esticou toda e ainda no chão, girou a maçaneta da porta, deixando-a aberta. A Lambertini entrou a passos lentos, cuidadosamente só para encontrar Heloísa jogada no chão, as pernas encolhidas, encostada à parede, o rosto vermelho e as mãos lascadas.

- Lica! – se agachou onde ela estava e a envolveu nos braços. As meninas foram entrando uma a uma – Meu Deus, por favor, não faz mais isso. Não faz mais isso, por favor – e enfiou o rosto na curva do pescoço dela, deixando beijinhos por todo o rosto.

A única coisa que Heloísa fez foi esticar o braço e deixar que Samantha se aconchegasse, mas ainda um tanto abalada.

- Lica, o que foi que aconteceu? – Tina quis saber – Você está com as mãos machucadas.

- Ela... – Alice pigarreou – Ela socou a parede – a voz dela foi morrendo até o final da frase.

Keyla fez uma careta, Samantha se aconchegou a ela, que permanecia ali. Muda. Nem um pio sequer.

- Lica, fala comigo, por favor – pediu e pegou na mão machucada dela. A expressão que assumiu foi de completo horror – Heloísa...

- É isso que eu faço – foi tudo que ela proferiu por fim – E eu tive meus motivos – engoliu em seco.

- O que foi que aconteceu, gente? – Keyla.

- O Edgar aconteceu – Samantha foi que respondeu – Foi solto e brotou no hospital pra ver a Clara.

- Oi? – Ellen se assustou.

- Então está explicado o estado da Lica – Benê assumiu voz – Ela e o Edgar não se dão bem. Ele sempre deixou a Lica transtornada.

- Aquele homem é um verme. Um bandido – ela cuspiu as palavras – Um criminoso, um fil... – ela quis se agitar de novo, mas Samantha a fez calar com um beijo. Tocou os lábios no dela, foi a única forma que conseguiu de não deixá-la surtar de novo.

- Para – pediu em um sussurro – Para, pelo amor de Deus. Isso só está te torturando, Lica. Para. Não deixa o Edgar fazer isso com você, meu amor. Ele não pode ter esse controle todo sobre você.

- Eu odeio aquele homem – Lica cuspiu – Odeio mais que tudo no mundo. Eu não... – tentou completar a frase, mas as lágrimas a impediram – Eu só odeio, Sammy. Eu odeio.

Deixou o choro sair, Samantha se sentou ao lado dela e a trouxe para si, embalando-a como se fosse um bebê. As meninas e Alice assistiam àquilo completamente mudas. Não tinham nem o que acrescentar ali, em verdade. Lica parecia totalmente indefesa, absurdamente vulnerável, completamente perdida e acabada. Esta era sua melhor definição.

Samantha apoio o queixo no alto da cabeça dela, apertando-a firme contra o peito.

- Ódio é uma palavra muito forte, Lica.

Heloísa se desvencilhou dela de uma vez.

- Você vai ficar do lado dele?

- Não, eu só estou dizendo que isso tudo que você sente, essa mágoa que você guarda aí, está te fazendo mal – ela soou firme – Olha pra você, Lica. Olha em volta – Lica relanceou a sala toda revirada e o olhar das meninas sobre ela – Não é questão de lado. É questão de saber se isso tudo aqui vale realmente à pena. Se o Edgar vale seu desespero.

Heloísa se calou.

- É isso que eu sou – proferiu depois do que pareceu uma eternidade.

- Violenta? – Benê soltou do nada.

- Benê! – Ellen ralhou.

- Mas a Lica destruiu a sala dela e tentou quebrar as próprias mãos – a maestrina prosseguiu com suas conclusões – Pessoas descontroladas e violentas costumam fazer isso. É como se o ódio que ela sente a dominasse, a fizesse fazer coisas impensadas como querer destruir tudo o que vê pela frente. Isso não é saudável.

- Benê, cala a boca – Tina suplicou.

- Eu não menti – Benedita se calou resmungando e colocando um bico na cara.

Mas sendo sincera? No fundo, todo mundo ali concordava com ela. O cenário ali, a situação de Heloísa deixavam claro o descontrole dela. O descontrole e a violência. Nunca tinham presenciado nada daquilo. Já viram Lica bêbada, virada, chapada, ressacada... mas a ponto de quebrar tudo e se quebrar daquele jeito? A mãos dela estavam umas coisas horríveis. Ela não sentia dor? Ou era justamente para sentir dor o propósito daquilo tudo? Sentir alguma coisa?

- Lica, olha pra mim – Samantha pediu, mas ela permaneceu olhando para baixo entre as pernas – Heloísa – chamou mais firme, recebendo um erguer de cabeça. Os olhos dela estavam vermelhos – Isso está muito errado.

- Me deixa, Samantha – e se livrou do toque dela com um safanão – Aliás, vão embora. Vocês não têm nada pra fazer aqui.

- Você pode espernear o tanto que for, mas daqui eu não saio – a Lambertini foi firme.

- Nem a gente – Keyla assumiu posição.

- Pois vão se foder – foi ela, Lica, quem levantou e tentou passar pela muralha que as Five formaram. Deu errado. Acabou explodindo de novo – ME DEIXEM EM PAZ, CARALHO, EU NÃO QUERO SABER DE VOCÊS! EU NÃO QUERO SABER DE NINGUÉM SE METENDO NA MINHA VIDA E DIZENDO O QUE EU DEVO OU NÃO FAZER! VÃI PRO INFERNO!

- SE A GENTE VEIO ATÉ AQUI É PORQUE A GENTE TE AMA, HELOÍSA! – Samantha se fez soar tão alta e clara quanto ela – É SÓ PORQUE A GENTE NÃO QUER TE VER SE DESTRUINDO DESSE JEITO! VOCÊ É MUITO MAIOR QUE O EDGAR, MUITO MAIOR QUE SEJA LÁ O QUE FOR QUE ELE TE CAUSE! ENTÃO NÃO VEM MANDAR NINGUÉM AQUI IR PRO INFERNO, PORQUE INFERNO É ISSO AQUI. É O QUE VOCÊ FAZ VOCÊ MESMA E COM A GENTE! SE ALGUÉM TEM QUE MANDAR ALGUÉM SE FODER AQUI, ESSE ALGUÉM É A GENTE! – respirou fundo, tentando se controlar. Recebeu olhares atônitos e assustados – Se você for surtar e se descontrolar toda vez que alguma coisa vai contra o que você quer, vai viver numa eterna tortura. Age como mulher, enfrenta isso de vez! É o Edgar que te tira do sério? Vai lá e resolve com ele! É a Malu? Resolve a situação com ela! Ficar socando a parede e destruindo tudo não vai adiantar porra nenhuma! Só vai te machucar e foder mais ainda com sua cabeça. Com a sua e com a de todo mundo aqui.

O silêncio que se instalou ali foi ensurdecedor. A boca de Alice era um O perfeito. Tina, Ellen, Keyla e Benê limitavam-se a trocar olhares, completamente assustadas. O rosto de Samantha estava vermelho e Lica... bom, Lica... sequer se atreveu a olhá-la. Não tinha coragem de ver nos olhos da mulher que amava naquele estado. Desceu a vista para as próprias mãos, os ossinhos dos dedos em carne viva, o sangue começando a coagular. Deu uma espiada ao redor e encontrou cadeiras no chão, sua mesa toda revirada, um quadro partido ao meio, a marca de sangue onde socara na parede... um completo caos. O reflexo ali fora do que era por dentro.

Se sentiu o pior ser humano do mundo.

- Você vai precisar e um curativo nas mãos, Lica – Benê falou – Isso está feio e pode infeccionar.

- Tem uma caixinha de primeiros socorros aqui – Alice disse por fim, também quebrando o silêncio.

- Não precisa, eu... – a voz dela estava embargada – Eu vou pra casa.

Mais silêncio.

- Certo – foi tudo que a assistente disse.

- Fecha a galeria – Lica proferiu antes de levantar a vista para as meninas. Queria poder decifrar o olhar delas. Havia condescendência? Pena? Preocupação? Com certeza preocupação, ela enxergou na hora. Benê foi que surpreendeu ao segurar a mão machucada dela.

- Nós somos amigas, Lica, e amigas ficam juntas nos momentos bons e ruins. Este é um momento ruim. Mas são situações assim que nos unem mais.

- Você sabe que pode contar com a gente pra tudo, né? – Ellen – Não precisava socar nada nem destruir seu escritório.

- A gente sabe bem da sua situação com o Edgar, mas não pira, Lica – Keyla pediu – É como a Samantha disse: aquele cara não pode te controlar tanto a ponto de fazer você perder o controle assim.

- Não pode mesmo – Tina endossou – Eu concordo com uma coisa: você é doida, fora da casinha, mas é muito melhor que ele. Conta com a gente, beleza? Mas não se tortura mais, porque isso mata a gente.

- Desculpa – elas não faziam ideia da culpa que estava sentindo. Estendeu o pedido a Alice – Eu acabei com o dia de vocês, não foi?

- Amigos são para essas coisas – Benê pontuou – Mas sim, eu estava ensaiando com a orquestra.

Elas acabaram rindo.

- Duvido que ensaiar com a orquestra seja mais emocionante que eu, Benê – Lica conseguiu esboçar um sorrisinho.

- Nada é mais emocionante que você, Lica – Ellen deixou claro – E esse excesso de emoção é que fode com nosso juízo.

- Eu amo vocês – sentiu uma lágrima teimosa escapando e foi envolvida em um abraço coletivo. Quase sumiu entre as meninas.

- A gente também te ama, sua patricinha mimada – Ellen proferiu o primeiro e maior apelido que dera para Lica. Melhor que ele, só o “burguesa safada” que Keyla entoara um belo dia na lanchonete do Roney, quando ela lhe roubara metade de um sanduíche e ainda tirara uma nota de cem da carteira para comprar outro.

As meninas foram se retirando da galeria, despediram-se na porta. Lica deu algumas últimas instruções para Alice antes de se desculpar mais uma vez e embarcar no banco do passageiro do carro de Samantha.

Muda. Sua namorada estava total e completamente muda. Não proferiu mais uma palavra desde aquele rompante. E pelo visto, nem proferiria. Lica também preferiu ficar na sua. Samantha dificilmente se descontrolava, sempre fora a mais segura e estável das duas. Para ela explodir daquele jeito, é porque tinha chegado ao limite do limite do limite. Lica sabia bem disso, em fato. E se sentiu péssima, pior do que já estava.

Subiram para o apartamento da Lambertini caladas. Quando passaram pela porta, o celular da empresária tocou. Ela atendeu em duas palavras rápidas, disse que tivera um imprevisto e que não iria na Meliã naquela tarde. A culpa que recaía sobre Heloísa triplicou.

Tudo que a namorada disse foi “pega, toma um banho que a gente vai fazer um curativo nas suas mãos”, enquanto jogava uma toalha para ela. E saiu sem falar mais nada, deixando Lica feito um dois de paus no meio do closet.

Virou-se para se olhar no espelho. Os olhos vermelhos e um tanto inchados, o rosto banhado por lágrimas que secaram por ali mesmo, a camisa suja da tinta fresca do quadro que quebrara, as mãos doloridas e com ferimentos expostos. Só agora ela começava a sentir um incômodo ali. Tentou mexer os dedos, mas não conseguiu muito. O desconforto começava a se tornar excruciante à medida que a adrenalina que tomara de conta de seu corpo ia embora e dava lugar à sanidade.

Desceria de novo ao fundo do poço? Era tão fraca e tão impotente assim a ponto de deixar que alguém mesquinho como Edgar Gutierrez a controlasse e a fizesse perder o controle daquele jeito? Chorou. Chorou por si mesma, pela situação em que se encontrava e com a qual não fazia nem ideia de como começar a lidar; chorou por suas amigas que presenciaram aquela cena toda; chorou mais ainda por Samantha que nunca, nunca nem tinha chegado perto de vê-la como realmente era. E a assustara.

Instável, em meio a um surto, transtornada, acabara expondo para a namorada seu pior lado. Talvez o único que tivesse, vai saber. Seus dilemas, sua porção mais obscura e impenetrável. Seu completo descontrole emocional. E temeu. Temeu ali que aquilo tivesse assustado Samantha a ponto de fazê-la repensar as decisões que tomara em relação a ela.

“Não vem mandar ninguém aqui ir pro inferno, porque inferno é isso aqui. É o que você faz com você mesma e com a gente. Se alguém tem que mandar alguém se foder aqui, esse alguém é a gente”

Foi exatamente isso que ela proferira num rompante. Heloísa não mentiria: agora que conseguia processar melhor o que aconteceu, se assustou com o real significado daquela sentença. Samantha não merecia aquela instabilidade. Ela, Lica, tinha certeza disso. E a própria empresária também. E aí? O que seria a partir daquilo? E se tivesse conseguido minar o pouco que já havia conseguido construir com Samantha nas últimas semanas?

Conseguiria se perdoar por aquilo? Saberia lidar com aquilo? Saberia reagir a um “não” vindo dela?

Entrou no chuveiro com o cansaço de um mundo inteiro nas costas. A água tocou seu corpo, fazendo-a se retesar um pouco e quando chegou a suas mãos, ela chorou de novo, mas foi de dor mesmo. As lágrimas se misturando à água que caía sobre si. Ardeu, dilacerou, teve dificuldades inclusive de segurar o sabonete para se lavar o mínimo possível. Deus do céu, fazia tempo que não sabia o que era aquilo, aquela sensação de incapacidade pós surto.

Com as mãos ardendo, os movimentos dos dedos quase nulos, ela teve problemas em fechar o chuveiro e em se enxugar depois. A toalha ficava lhe escapando. Conseguir vestir uma camisa qualquer foi uma tortura quando teve que passar os braços pela manga. Samantha foi que apareceu na hora, carregando uma caneca de chá, que a ajudou.

Enquanto Lica colocava um shortinho, ela foi atrás da maleta de primeiros socorros. Retornou para o quarto e encontrou a namorada sentada na beirada da cama. Heloísa encarava o vazio. A expressão impassível.

Em completo silêncio, a Lambertini acomodou-se ao lado dela, fazendo-a se virar para si. Pegou um vidrinho de alguma coisa com o cheiro marcante, embebeu uma gaze e tocou cuidadosamente nos pontos machucados. Lica se retesou com o ardor, quis puxar as mãos mais de uma vez, mas Samantha as manteve bem seguras para terminar seu trabalho. Um a um, limpou os ferimentos nas duas mãos e então embebeu outra gaze, dessa vez com uma pomada de aparência leitosa. Lica observava os movimentos precisos e delicados dela. Gestos de quem sabia fazer aquilo como ninguém. Se pegou imaginando quantas vezes ela não tivera que ir ao socorro de uma Marina machucada depois de querer correr mais do que as perninhas permitiam. Por fim, Samantha enfaixou os dedos dela cuidadosamente, finalizando seu trabalho ali.

Suspirando, ela recolheu o material, devolveu a maleta a seu lugar e retornou para lavar as mãos. Voltou para o quarto para se desfazer dos acessórios que usava. Lica seguia sentada na ponta da cama completamente muda.

- Eu fiz um chá e trouxe um comprimido pra dor – Samantha finalmente abriu a boca – Toma e deita um pouco.

Seguiu para o banheiro, se livrando da roupa. Se despiu inteira antes de entrar no boxe. Lica ouviu o barulho do chuveiro e suspirou, tomando o remédio e o chá. Camomila, ela sentiu. Um excelente calmante. Se fosse em outra situação ou talvez se estivesse sozinha, ela tivesse se entupido de comprimidos para poder aliviar a dor, passar o mal-estar e conseguir pregar o olho. Mas ela não estava mais só. Havia Samantha ali e o modus operandi dela era outro. Graças a Deus, era outro. Um chá era bem a cara dela, e o mínimo de drogas possível.

Em que ponto da vida, Lica acertara para merecer uma mulher daquelas? Terminou de beber o chá, esvaziou a caneca, e se recostou à cama fechando os olhos e suspirando. Em que ponto, ela não sabia, mas só tinha uma certeza: não podia perdê-la de jeito nenhum. Samantha era a única coisa nela que prestava. Se perdesse aquilo que lhe restava de bom, o que sobraria?

- Desculpa, Sammy – falou baixinho antes de se deixar embalar pelo sono.

Não viu que a namorada havia retornado ao quarto saindo do banho. Não viu que ela ouviu sua voz baixinha, quase inaudível. Foi a vez de Samantha suspirar e parar para observá-la.

- O que eu faço com você, garota? – ela devolveu no mesmo tom – Te amar tem hora que parece não ser suficiente.

E sem dizer mais nada, afastou a bandeja e ocupou o outro lado da cama. Lica sentiu a presença dela ali, porque se virou como que procurando-a. Envolveu a cintura dela e recostou a cabeça em seu peito, ressonando baixinho. Samantha levou a mão aos fios negros dela em um carinho lento e gostoso. Não disse mais nada. Não dormiu, mas também não se mexeu mais. Lica precisava daquele conforto. Ela o daria.

Era a mulher que amava. Não importava a situação, ela sempre estaria ali. Sempre.

(...)

- Eu só quero ajeitar a minha vida, Marta! Será que é pedir muito? – Edgar estava possesso. Na tentativa de fazer o ex-marido sair daquele hospital antes que Luís chegasse, ela saiu arrastando o Gutierrez pelo braço. Os dois discutiam acaloradamente no estacionamento.

- Com a minha filha não! – ela foi clara, curta e grossa – Deixa a Lica em paz, Edgar! Ela já passou por muita coisa por sua causa, não é justo agora mais essa. Querer se aproximar depois de tudo que você fez? Depois de ter acabado com as nossas vidas? Mentido pra todo mundo, quase ter jogado o nome do seu pai e da nossa escola no lixo? Eu esperaria tudo de você, menos que tivesse a coragem de aparecer aqui.

- A Clara me perdoou pelas minhas mentiras, Marta. E eu sei que a Lica também pode fazer isso se me ouvir. Eu tenho muito que contar, muito que dizer... Ela tem que me ouvir.

- Dizer o quê? Que esses anos na cadeia te regeneraram? Que você, sei lá, se converteu em alguma religião maluca e agora é um bom samaritano portador das boas novas? Ah, vai pro inferno! – Marta estava era sem paciência.

- Eu preciso contar pra Lica tudo que ela não sabe! – e ele também estava. A Gutierrez mãe se calou e limitou-se a mirá-lo – Tem muita coisa que ela não sabe, Marta, muita coisa. Me ajuda nisso, é só o que eu te peço. Uma chance de eu provar pra Heloísa de que eu ainda valho a pena.

Marta analisou as feições dele. Era esquisito ela achar que parecia ter mais alguma coisa ali?

- Você é que não sabe de nada – ela despejou.

- Como?

- Passou seis anos preso e muita coisa aconteceu durante esse tempo, Edgar, muita. Suas filhas cresceram e se você já passava poucas e boas nas mãos delas antes, imagine agora. Com a Lica, então... eu tenho é pena de você se se atrever a confrontar ela.

- Ela não pode ter tanto ódio assim de mim – Edgar se apegou àquilo – Ela é minha filha, não pode nutrir esse tipo de sentimento pelo pai.

- E você foi pai dela alguma vez? – Marta foi sem dó nem piedade – Na primeira vez que ela falou “papai” você estava? Quando ela deu o primeiro passinho, você estava? Só sabia brigar com a menina e se exibir pro outros posando de marido e pai perfeito. Um hipócrita, isso sim! Um hipócrita, Edgar, é isso que você é! Me diz, como que você espera que a Lica tenha outro sentimento por você que não o ódio? Depois de tudo que você fez? Depois de ter mentido na cara de todo mundo? De ter escondido que tinha outra filha e que essa menina era a melhor amiga da Lica? De ter me feito de idiota com a Malu? Quem é você pra julgar alguém?

Edgar suspirou e passou a mão pelos cabelos, a expressão impaciente.

- Eu só preciso conversar com a Heloísa, Marta, só isso... e quanto a esses problemas com o Grupo...

- Ah, problemas... – Marta ironizou – Claro, porque roubar a própria escola e acabar com o legado do seu pai era só um problema...

- Eu paguei pelo que fiz – ele repetiu pela milésima vez – Estou aqui solto justamente porque quitei minha dívida com a justiça. E caso você não se lembre, eu em momento nenhum neguei o que me foi imputado. Assumi todos os meus erros e paguei por eles.

- Crimes, você quer dizer – ela o corrigiu – “Erro” é muito eufêmico. Foram crimes mesmo.

- Mas eu não fiz nada sozinho.

- Claro que não, a Malu estava com você, todo mundo sabe disso, Edgar, me poupa, tá? Aliás – Marta se lembrou – Eu não sei se você sabe, mas sua mulher barra caso barra esposa ou seja lá o que for que ela era sua, está de volta à ativa, sabia?

- O que você está falando? – Edgar assumiu uma expressão intrigada.

- Estou falando da Malu estar em São Paulo e continuar fazendo todo mundo de idiota.

- Como é que é? – Edgar quase berrou – Como assim em São Paulo? Ela não tinha ido embora? Eu dei dinheiro pra ela ir embora quando... – engoliu em seco – Quando tudo aconteceu.

- Ela foi, mas voltou de novo pra atormentar todo mundo – e analisou Edgar mais atentamente – Ah, você não vai me dizer que não sabia disso – e gargalhou – Jura que você quer que eu acredite que a Malu está solta no meio do mundo e você não sabia de nada? Logo você, Edgar.

- Eu não sabia – ele afirmou com uma certeza tão visível que Marta até desconfiou. Estreitou os olhos para ele – Eu não sabia que ela estava aqui, pensei que tinha ido embora. A última vez que eu soube da Malu, ela tinha ido deixar um dinheiro pro JM na Venezuela com a ordem de sumir depois.

Marta mudou o peso da perna.

- Ironia, né? A Malu aí por cima, foragida, mas por cima... E você acabado desse jeito. Ex-presidiário, sem nada na vida tentando conseguir a atenção e o perdão das pessoas pra quem você fez tanto mal....

- Se vocês sabem que a Malu está solta por aí, porque não denunciam ela? Ela tinha que estar presa, Marta!

Aí sim, Marta gargalhou.

- Meu Deus, o que foi que eu perdi? Você querendo a Malu presa? Que realidade alternativa é essa que a gente está vivendo? Porque eu realmente não entendo.

- Marta – Edgar se aproximou dela como quem contaria um segredo – A Malu é perigosa. Mais perigosa do que vocês imaginam, ela não pode ficar solta por aí e vocês acharem que está tudo bem. Acredita em mim. Vocês não sabem do que ela é capaz de fazer.

Marta franziu o cenho diante, de novo, da certeza com que Edgar parecia proferir aquelas palavras.

- E você acha que a gente não sabe disso? – ela jogou no vento – Só que ela aparentemente não está sozinha. Aliás... grupinho criminoso asqueroso esse de vocês, viu?

- Não está sozinha?

- Ah, vai se fazer de doido pra lá, Edgar! Eu tenho mais o que fazer – foi tudo que Marta disse e se virou-se para sair – Some e larga a gente de mão! Principalmente a Lica e a Clara.

- Como assim ela não está sozinha, Marta? – ele tornou a repetir.

- Vai pro inferno – ela se livrou dele com um safanão.

- É com o Mondego?

E aí sim ele conseguiu o que quis desde o começo. Ser ouvido.

(...)

Sabe aquela sensação de dormir demais que quando você acorda, não sabe nem que horas são e nem onde está? Pois bem, era bem isso. Lica despertou lentamente, a visão tentando se costumar com a penumbra do quarto. Meu Deus, que horas eram? Não estava mais de dia? Já era noite ou a madrugada do dia seguinte? Respirou fundo, suspirou e se sentou na cama. A cama de Samantha, o quarto de Samantha.

Mas sem Samantha ali. Estranho, porque ela tinha certeza que ela estava lá quando adormeceu. Gemendo baixinho, ela afastou o lençol como pôde (as mãos machucadas ainda lhe impossibilitavam alguns movimentos) e se levantou, tateando um chinelo. Deixara um lá, já que andava passando mais tempo com a namorada que na sua casa mesmo. Foi quando relanceou a mesinha de centro e viu uma agenda aberta ali. Um livrinho de recados. Pegou e leu o que havia escrito.

“Saí para pegar a Marina, não devo demorar. Qualquer coisa me liga” – S.

Lica leu e releu aquilo umas cinquenta vezes sentindo a frieza daquelas palavras. Até com letras grafadas em um pedaço de papel, ela sentiu a dureza de Samantha. Suspirando e dando-se por vencida (se é que ainda era possível se sentir mais derrotada), se levantou e abriu as cortinas. Já era noite lá fora. Pescou o celular sobre a mesinha de cabeceira com certa dificuldade em segurá-lo. Dezenove horas. Que horas Samantha havia saído? Deveria estar chegando, pelo avançar do tempo, Lica sabia que a aula de violão de Marina terminava às dezoito. Pensou em mandar uma mensagem, mas o que diria? “Vi seu recado, estou viva”? Estava na cara por aquele bilhete que Samantha não queria respostas.

Usando a pontinhas dos dedos, porque suas mãos enfaixadas não lhe permitiam muito, Lica esticou o lençol na cama, ajeitou os travesseiros e pegou a mochila que havia deixado ali fazia uns dias. Abriu o closet de Samantha e se pôs a catar umas peças de roupa que havia levado desde que Clara sofrera o acidente (é que o apartamento dela era mais perto do hospital). Com certa dificuldade, trocou seus trajes, passou uma água no rosto e seguiu para a sala.

Mal pisou lá, viu a maçaneta da porta girar e pela soleira, passar uma Marina como sempre, tagarelando.

- Tia Lica! – ela correu até Heloísa, que se agachou rapidamente para recebê-la – Oi – a menina veio toda serelepe.

- Oi, meu amor – Lica tentou colocar seu melhor sorriso no rosto – Como que foi a aulinha hoje?

- Foi beeem legal. Eu aprendi outra nota e agora já sei fazer um acorde.

- Maravilha! – e deixou um beijinho estalado na bochecha – Você é a melhor.

- Eu sei – bem filha de Samantha mesmo. Acabou arrancando uma risadinha genuína de Lica – Você tá dodói? – ela se referiu às mãos de Lica enfaixadas.

- Ah... – ok, como explicar aquilo para uma criança de cinco anos? – Eu machuquei minhas mãos. Coisa de gente adulta que as vezes não sabe o que fazer e faz besteira.

- Tá doendo muito, tia Lica? – ela se preocupou e pegou as mãos dela.

- Um pouquinho, mas já estou melhorando.

- A mamãe diz que sara mais rápido se a gente der um beijinho, não é mamãe? – e virou-se para Samantha antes de levar a boquinha até as duas mãos de Lica e deixar dois beijinhos ali. E a Gutierrez bem que tentou, mas aquela lágrima teimosa insistiu em lhe escapar.

- Você é o melhor ser-humaninho do mundo – disse e a envolveu nos braços bem apertado.

- Você também é beeeem legal, tia Lica.

Ficaram naquele chamego por um tempo até que Samantha se fez anunciar.

- Bora pro banho? – chamou a filha. Marina colocou um bico na cara – Nem vem, gente porquinha tem que tomar banho. Bora!

- Mas mamãe...

- Pro banho, Marina Lambertini – foi mais dura. Marina suspirou derrotada e seguiu para o quarto – Vai indo que eu já vou lá te fiscalizar.

Lica se pôs de pé se sentindo tão, mas tão deslocada... estava com vergonha de Samantha. Era um misto de vergonha com medo de qualquer coisa que ela lhe dissesse, com temor pelo que estava por vir... Coisas nada, nada agradáveis.

- Obrigada pelo curativo e... bom, por ter cuidado de mim – foi tudo que falou.

E para sua surpresa, Samantha se aproximou dela e deixou um beijo casto em seus lábios. Foi tão inesperado, que Lica demorou a corresponder.

- Não me agradece, que eu sei que você faria o mesmo por mim – ela falou baixinho, ainda com a boca na dela, voltando a beijar dessa vez mais profundamente. Separaram-se a muito custo, a mente de Lica tentando processar tudo ainda – Devolve essa mochila pro lugar dela.

Foi tudo que Samantha falou antes de se virar e seguir para a cozinha. Lica foi atrás.

- Samantha, eu... Eu não quero te dar trabalho nem nada. E... bom, depois do que você viu hoje, eu...

- Você não se sente confortável? Está com vergonha? – ela parecia ler a mente de Heloísa. Tirou uns ingrediente da geladeira – Então eu sinto te informar, mas você vai ter que lidar com isso, porque nós ainda vamos conversar sobre tudo que aconteceu. Depois disso, pode até ser que eu te deixe ir se você quiser, mas até lá, você vai ficar exatamente onde está.

- Sammy...

- Lica, lembra dos termos desse nosso acordo? – ela parou e se virou com uma faca na mão, o que a Heloísa pareceu extremamente desnecessário – A gente prometeu conversar, confiar e se abrir uma com a outra. Eu não vou me contentar só com aquele pedido de desculpas na galeria e com o que você fez antes de dormir.

- Você ouviu? – os olhos de Lica se arregalaram.

- Ouvi e sabe o que respondi? – ela negou – Que eu te amo, mas as vezes parece que isso não é suficiente. Você pensou em mim quando quebrou sua sala inteira? Pensou no que eu sinto quando socou a parede e quase quebrou a mão? Lica, você pensou na gente quando me deixou gritando sozinha no meio da rua? Eu fiquei preocupada com você, com medo de te acontecer alguma coisa, de você fazer uma besteira... Parece que no fim das contas nada do que a gente combinou valeu. Nada do que o que eu sinto por você parece que valeu. Você se machucou e ainda foi bem desnecessária comigo e com as meninas.

Lica engoliu em seco.

- Dá pra abaixar essa faca? – pediu em um fio de voz.

- Não foge – ela meio que suplicou – Devolve essa mochila pro quarto, para de coisa e conversa comigo. Depois, se você quiser ir embora, tudo bem, mas só conversa comigo. Fala o que você tem que falar e ouve o que eu tenho a dizer. Só assim que eu vou poder te ajudar, meu amor. Me ajuda a fazer isso.

- Meu amor? – ela se pegou repetindo – Eu ainda sou seu amor?

Samantha arqueou a sobrancelha.

- E por que não seria?

- Porque eu surtei na sua frente e te assustei? Porque eu sou uma pessoa descontrolada que vai te fazer sofrer e você não merece essa instabilidade toda que eu sou?

Samantha acabou rindo, o que colocou uma expressão intrigada em Lica.

- Sério, Lica... precisa bem mais que isso pra o que eu sinto por você mudar ou diminuir. Para de criar coisa nessa sua cabeça desparafusada e foca no que está acontecendo. Eu fui lá, não fui? Eu cuidei de você, não cuidei? – buscou os olhos de Lica, que abaixou o olhar – Quando eu digo que te amo, é sério. Não duvida disso.

Proferiu por fim e se virou para a pia, onde começou a cortar uns legumes. E Lica distinguiu peito de frango em uma vasilha, arroz branco em outra... batatas, cenouras em cubinho.... Seu estômago rodopiou.

- Samantha – chamou com a voz mansa.

- Hum? – a Lambertini nem se virou.

- O que você está preparando? – esticou o pescoço para espiar por cima do ombro dela

- Uma canja.

Ah, não!

- Sammy, eu odeio canja e você sabe disso – ela só não viu o sorrisinho de canto de boca que a namorada deu.

- E daí? Eu adoro canja e a Marina também. São duas contra uma.

E Lica faria o quê? Se recusaria a comer e faria desfeita depois de todo o esforço que a namorada havia feito por ela até ali? Ficaria com fome? Samantha tinha uma faca na mão, por Deus!

- Hã... – engoliu em seco e se deu por vencida pela milésima vez naquele dia – Tudo bem, eu... eu como também.

Samantha largou a faca na pia sem se aguentar mais e soltou a gargalhada que estava presa na garganta. Virou-se para encontrar uma Heloísa de cenho franzido sem entender nada.

- Cara, você é muito cadela mesmo – ela negou com a cabeça e se aproximou – Sério que se eu te colocasse pra comer canja, você comeria? A comida que você mais odeia no mundo?

- Isso é algum tipo de teste? – Lica indagou. Samantha se aproximou mais, envolvendo-a com os braços pelo pescoço.

- Talvez, não sei – provocou e deixou uma trilha de beijos pelo pescoço dela, fazendo-a arrepiar – É só um frango xadrez – e Lica soltou a respiração que nem sabia que estava prendendo.

Se separaram, porque o celular da Gutierrez vibrou no bolso do short. Colocá-lo lá foi fácil, agora tirá-lo... Samantha foi que enfiou a mão no vão e o entregou para ela, que virou a tela para cima, destravando. Mensagem de um número desconhecido. Franzindo o cenho, ela abriu.

“Filha, eu preciso conversar com você. Por favor, se não fosse realmente importante eu não pediria. Me encontra amanhã no meu antigo apartamento”.


Notas Finais


Bom, tio Ed na área, Lica já mostrou que não tem a mínima cabeça pra lidar com ela e sobrou foi pra todo mundo. E coitada da Samantha. Digo coitada, porque a pobre não tem um minuto de descanso. O passatempo preferido da Lica ainda é perder o controle e fazer besteira e só sobra pra Samanthinha sair resolvendo a situação dela depois. Haja terapia, viu?
Mas, bom, tivemos aí Marta dando um chega pra lá no Edgar e ele insistindo em se resolver. Quem é team Vai Edgar e quem é team Falso do Caralho? Eu confesso que ainda não sei o que pensar. E aí, ele realmente desconhece as falcatruas da Malu e do Henrique? O que será que ele quer tanto conversar com a Lica?
PS: Marina beijando o machucado da Lica é meu momento fofurinha do capítulo.
PS2: Você sabe que ama alguém quando come a comida que mais odeia no mundo só porque a pessoa pediu.
Agora queria saber das teorias. Qual é a do seu Ed afinal?

No mais, obrigada pela leitura e nos vemos no próximo capítulo!


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