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História Mil Maneiras - Mil Maneiras


Escrita por: MxrningStar

Notas do Autor


Olá, minha gente. Tudo certo com vocês?
Olha, um aviso: esse capítulo 10 era pra ser o último da fic. Ela tinha 10 capítulos. Mas como postei um bônus no dia 12 de novembro pela estreia da série, acrescentei mais um. Então esse é o penúltimo capítulo e o último fica sendo o 11 que postarei na semana que vem.

No mais, sobre o capítulo de hoje: em família.

Boa leitura!

Capítulo 10 - Mil Maneiras


Lica entrou no quarto jogando a mochila sobre o colchão. Seu corpo automaticamente implorou pela maciez da cama e pelo aconchego das cobertas, mas sua mente lhe permitiria tudo, menos o descanso. Suspirando, se pôs e tirar peça por peça que usava e rumar para o banheiro. A água gelada (preferiu essa temperatura para ver se despertava de vez do modo autotune em que havia entrado) tocou sua pele como se mil faquinhas cravassem por seus poros. Doeu, incomodou, mas com o passar dos minutos, ela foi se acostumando.

Seria ótimo se sua vida se resolvesse daquele jeito: depois de um tempinho tudo voltasse ao normal simplesmente. Queria isso, implorava por isso, mas sendo sincera, Lica não via lá muita perspectiva no que estava por vir. Samantha queria conversar, ela Heloísa sabia que tinham que conversar. Marina e Gabriela claramente precisavam de um bom diálogo também, mas olha... coragem, disposição e vontade de discutir era tudo que a Gutierrez não tinha.

Fechou os olhos e deixou a água lhe banhar o rosto como que levando embora tudo de ruim e de errado que parecia ter se instalado sobre ela. Os pensamentos acelerados, a mente vagando em mil lugares de Mil Maneiras diferentes.

Mil Maneiras talvez fosse mesmo a definição do que Heloísa era e do que sempre fora: filha do diretor da escola, depois enteada da professora de Literatura. Melhor amiga de Clara, depois irmã de Clara. Conhecida de Luís e de repente enteada dele. Amiga de infância de MB e de repente namorada dele. Amiga de infância de Samantha e de repente o amor da vida dela. Mãe por tabela de Marina, mãe de Gabriela, uma Five, madrinha de Tonico, artista, diretora do Grupo em seu contra-turno. Cozinheira da casa nas horas vagas, mas também o espírito bagunceiro daquela família quando dava na telha.

Gritava, esperneava para conseguir o que queria e chamar a atenção. Depois passou a usar outra tática: prezar pelo diálogo e confrontos pacíficos. De uma das mais pegadoras do colégio, se tornou a mulher casada, mãe e esposa exemplar. De musa dos Lagostins, elegeu a vocalista da banda como sua musa e nessa troca incessante, pareciam até se entender e levar tudo bem.

De pedra no sapato do ex-marido de Samantha, se tornara a salvadora da vida dele. Para ter sua vida tirada totalmente dos eixos pelo mesmo homem anos depois.

Mil Maneiras diferentes de ser, de agir, de pensar e se portar e parece que nenhuma delas pareceu ser suficiente para manter firme nas suas mãos tudo que conquistara na vida. Bastou uma presença, um nome, uma pessoa e tudo simplesmente escorreu por entre seus dedos com consistência de água. Lhe escapou feito fumaça. De repente, a menina que adotara como filha, como parte de si, como uma extensão de seu corpo, de seu nome e de seu ser, parecia ter perdido o encanto. “É meu pai. É do meu pai que estamos falando. Mas ele é meu pai”. Cada frasezinha dessa parecia pegar Marina e coloca-la a quilômetros de distância de Lica. Machucou.

De repente, a mulher para quem jurara amor pelo resto da vida, para quem teve a coragem de finalmente abrir a boca e dizer um “eu te amo”, para quem declarou apoio, cumplicidade, carinho, devoção e mais um bando de coisas que pessoas perdidamente apaixonadas fazem, lhe vinha mais com palavras duras e, em gestos nada sutis, fora lhe colocando para o canto.

“É o pai da Marina. Eu sei que ele errou, mas todo mundo merece uma segunda chance. Eles têm esse direito de tentarem de novo”.

E Lica cada vez mais no canto... no canto... no canto....

E arrastara Gabriela junto consigo. Quem via de fora pensava que não era bem uma família. Era só Lica e Samantha, cada uma com sua filha, se digladiando e se afastando... afastando....

Lica pensara, analisara, se auto analisara... ponderou, chorou, refletiu, conjurou... criou mil e uma situações em sua cabeça de Mil Maneiras diferentes e nenhuma delas, simplesmente nenhuma, parecia se encaixar.

- Talvez o encaixe venha quando a Samantha jogar as cartas dela, Lica. Como em um jogo de dominó, que o oponente precisa jogar a peça seguinte para que você saiba como prosseguir – Benê pontuara numa conversa quando fora junto com Keyla, Tina e Ellen visita-la em Campos do Jordão.

- Não era pra Samantha ser minha oponente, Benê. A gente devia estar jogando juntas.

Mas “juntas” era tudo que elas não estavam.

Quando Gabriel chegou informando que Marina herdaria de Henrique mil e uma coisas que eram dela de direito e que haviam sido cedidas de bom grado pelo homem, o pouco chão que ainda sustentava Heloísa pareceu ruir.

- O Henrique passou a herança dele pra Marina? E a Samantha permitiu? Ela não precisa daquilo, ela tem a mim e à outra mãe dela! Nossa filha nunca precisou de nada daquele cara!

- Eu sei, Lica, mas é lei e está tudo certinho. A Marina é a única herdeira do Henrique e tem esses bens que permaneceram no nome dele e que precisam ser passados à diante. A Marina que tem que receber.

- Mas ela não precisa! – Lica se levantou parecendo transtornada – Eu nunca deixei faltar nada pra ela, Gabriel! Nunca! Tudo que a Marina quis eu sempre dei sem nem hesitar. Viagens, estudo, cultura, lazer... Ela não precisa de casa nem de apartamento de ninguém!

- Lica, a gente sabe isso, mas... – Gabriel hesitou, engoliu em seco, pesou as palavras, mas não havia outras – Ele é o pai da Marina. Se é dele, passa pra ela quando ele quiser. E... bom, ele quer.

- E eu sou a mãe – Lica disse com um fio de voz. Sendo sincera, repetir aquilo lhe parecia cada vez mais em vão. Parecia gritar para o vazio. Sua voz se assemelhava cada vez mais a um eco distante que ninguém ouvia. Era desesperador na verdade – Eu sei que não tenho apartamentos pra deixar pra Mari nem... nem uma casa do tamanho do mundo, mas tem minha galeria. Eu vou passar pro nome dela. E tem também meu carro e o... – Lica franziu o cenho e sacudiu a cabeça derrotada – Deixa pra lá.

- O Grupo?

- A Marina já disse que não pretende herdar a escola – soltou frustrada e foi se servir de um uísque. Estava precisando – Falou que não leva jeito pra Educação e... a... a Gabriela é que deve assumir. Talvez a Sofia quando tiver idade e a Clara se aposentar.

- Certo, hã.... Você quer passar sua galeria pro nome da Marina então? Já conversou com ela a respeito?

- Não – Lica virou o copo de uísque. Desceu rasgando – A gente nunca conversou sobre isso, mas ela deve aceitar.

Lica queria, precisava que ela aceitasse. Seria o único legado que deixaria para a filha e se nem nele ela tivesse interesse....

- Conversa com ela primeiro e depois a gente vê. Agora o que eu vim conversar foi sobre essa situação do Henrique – Gabriel não sabia nem como tocar no assunto.

- Não tem como eu impedir, né? – Heloísa ainda tinha alguma esperança.

- Infelizmente não. O Henrique manifestou o desejo de passar todos os bens pra filha e a Samantha, a princípio, não se opôs. E nem a Marina. Ficaram surpresas, mas em nenhum momento falaram em não aceitar.

- Ótimo... – estava tudo uma merda, isso sim. Lica virou mais outro copo de uísque sob o olhar atento de Gabriel. Se ela continuasse naquela velocidade, esvaziaria a garrafa sem muito esforço. Foi se servir de mais – E o que querem que eu faça?

- Eu... eu só vim informar....

- Beleza, recado dado – Lica cortou e virou o copo mais uma vez. Pegou a garrafa e pôs debaixo do braço – Olha, sem querer ser mal educada, Gabe, eu vou subir, tá? Fica à vontade, eu fiz uma torta pro jantar, mas perdi a fome. Pode comer e levar se quiser. Eu vou... licença.

Sem mais, Lica sumiu pelas escadas para o andar de cima. Se trancou no quarto mas não sem antes passar na antiga suíte de JM e que hoje pertencia a MB e abrir o mini bar que ele tinha lá dentro. Fez quase uma limpa. Amanheceu no dia seguinte com uma ressaca horrenda como há muito, muito tempo não fazia. Mas tudo bem: ao menos por alguns instantes o álcool ajudou a anestesiar porque sóbrio, ninguém passaria por aquela situação.

Lica queria não estar sóbria. Queria estar chapada, entupida de álcool até os poros para poder olhar na cara de Samantha e Marina e dizer umas poucas e boas como tinha feito diante do espelho lá no quarto que ocupara na casa de Campos. A cena era digna de um dramalhão mexicano.

Ou de uma tragédia grega.

- O pai... ele é o pai... FODA-SE O PAI! PAU NO CU DESSE FILHO DA PUTA QUE ACHA QUE PODE TOMAR MEU LUGAR! – uma Lica cambaleante e trôpega esbravejou para o próprio reflexo acabado e desgastado no espelho. Os cabelos desgrenhados, a roupa amassada e o cheiro de álcool por cima – EU FUI A MÃE E O PAI! FUI EU! EU AQUI Ó! EUZINHA! EU... Eu....

E aí o choro. Talvez seja a parte mais humilhante de tudo. Chorar feito uma criança abandonada, feito um cão sem dono.

- Eu sou a mãe, porra! – soltou entre lágrimas – Eu que criei e eduquei a tua filha, seu desgraçado, fui eu! Q-que fez a Samantha feliz... – limpou o rosto com as costas das mãos, a garrafa escorregando. Entornou mais um gole. Ajeitou a postura e se pôs a analisar-se no reflexo à frente. Se sentiu... – Idiota. Você é uma idiota! Uma fodida que achou que ia conseguir construir uma família com o que sobrou da família alheia. O dono chegou pra pegar de volta e você ficou sem nada. Ou quase sem nada! – Lica ergueu a taça como quem brindasse com o invisível – Eu também tenho uma filha... – fez um floreio meio bêbado e quase tropeçou nos próprios pés – E você não é nada dela pra tirar ela de mim. Nem você nem a... – bebeu de novo.

O celular tocou em algum canto. Tropeçando nos próprios pés, Lica pegou o aparelho com dificuldade para enxergar quem lhe importunava em sua epifania. A foto sorridente e feliz da vida de Samantha reluziu no visor. Ela bloqueou a chamada na mesma hora. Jogou o celular no canto. Ele tocou de novo. E de novo, e de novo... e depois de mil ligações recusadas, uma mensagem. Lica leu na notificação da tela inicial.

“Lica, atende esse celular pelo amor de Deus! Eu estou preocupada. E responde a droga das minhas mensagens! A Gabriela saiu de casa. Pegou uma mochila e se mudou pro galpão. Eu não sei mais o que fazer. Por favor, volta pra casa, vamos conversar”.

Lica leu mil vezes o “Gabriela saiu de casa, pegou uma mochila e se mudou pro galpão”.

Sem dizer nada, desligou o celular, jogou sobe o colchão, o objeto quicou duas vezes antes de ir parar no chão, e ela mesma se estatelou na cama encarando o teto. Bebeu mais um gole generoso de uísque esvaziando mais uma garrafa. Deixou-a por ali, suspirou com o corpo pedindo socorro, se rolou para o lado e se aconchegou ao travesseiro.

Pegou no sono que nem sentiu. Ao menos inconsciente seu mundo parecia não ruir.

Inconsciente, porque consciente... A despeito da ressaca do dia seguinte, Lica sabia que só uma conversa direta e na lata poderia resolver tudo para o bem e para o mal. Desligou o chuveiro, saiu enrolada num roupão, trocou de roupa por ali e se pôs a encarar a si mesma no reflexo do espelho. Cansada, exausta, exaurida e mais outras Mil Maneiras de definir “destruída”, Lica respirou fundo e retornou para a sala arrastando os chinelos no chão. No corredor, pôde visualizar a porta do quarto de Gabriela aberta. Entrou por lá pedindo licença para encontrar a filha deitada de barriga na cama encarando o teto.

- Com sono?

- Eu não queria estar aqui, você sabe.

- Pra quê esse ódio todo?

- Por que a gente foi traída? – a menina se sentou em um salto – Trocaram a gente pelo cara que fodeu com a nossa vida, mãe. A gente nem tinha que estar aqui.

- Tinha sim, porque a gente mora aqui.

- Eu não moro mais. Vim obrigada e de visita. Vou voltar pra casa da tia Keyla.

- E montar acampamento no galpão?

- Um acampamento no galpão é melhor do que aqui – Gabriela emburrou a cara – Você devia vir comigo. A gente pode alugar um canto pra gente bem longe de gente traíra.

- Olhas os termos, Gabriela! – Lica foi mais dura.

- Por que você está brigando comigo? Tem que brigar é com a outra lá que te chamou de mãe a vida inteira e na primeira oportunidade te trocou pelo pai criminoso.

Lica se calou com a ferocidade daquela afirmação e engoliu em seco. Respirou fundo e estendeu a mão para a filha em uma clara ordem de “bora, levanta daí”.

- A gente tem um assunto pra resolver em família. E você ainda faz parte dessa aqui. Anda!

Sem dizer mais nada, mas claramente descontente, Gabriela se deixou guiar pela mãe para encontrar Marina e Samantha sentadas no sofá da sala conversando sobre algo que elas desconheciam. Em outros momentos, Lica se jogaria em cima da esposa, a encheria de beijos e entraria no assunto fosse ele qual fosse sem precisar de muito para ser incluída. Ali, se sentiu ligeiramente deslocada e invadindo um espaço que parecia não ser o seu. Foi amargo.

- Ei... – Samantha ajeitou a postura quando encontrou com a mulher e a filha de pé feito duas estátuas – Estão com fome? Eu preparei uns hambúrgueres pra gente.

Gabriela cedeu. A pose decidida e revoltada de segundos antes se esvaiu com a velocidade da luz.

- Tem cebola caramelizada? – a barriga roncou.

- E eu ia fazer sem cebola caramelizada pra você? – Samantha gracejou e se pôs de pé – Bora pra mesa?

Jantar em família? Era isso que Samantha queria? A família de comercial de margarina? Lica deu para trás.

- Estou sem fome. Eu espero vocês aqui.

- Lica....

- Sério, eu comi uma besteira no caminho de volta, pode ir comer. Eu vou ficar por aqui mesmo.

- Mãe, a gente preparou aquele molho que você ama – Marina insistiu agora – Bora com a gente?

- Sem fome, Mari, eu... – Lica engoliu em seco. Não conseguia se atinar ali, não conseguia... parecia errada, inapropriada. É isso, se sentia inapropriada dentro da própria casa. Deu uma olhadinha em volta – Eu vou... vou ficar por aqui mesmo.

Samantha mediu Lica de cima a baixo e se assustou com o que viu. Sua esposa parecia acuada, quase sufocada. Fazia tempo, anos, quase duas décadas que não via sua mulher assim. E a conhecendo como conhecia, sabia bem o que estava acontecendo. Odiou-se mais ainda por tudo e mais um pouco.

- Lica, olha pra mim – Samantha caminhou até ela e buscou seu olhar. Ela fugiu – Lica, olha pra mim – foi mais firme – Lica.

- Hum? – ela estava suando. Aérea, suando e nervosa.

- Respira comigo – a Lambertini pediu com a voz mansa e inspirou e expirou profundamente – No meu tempo, hum?

Lica o fez na primeira vez. E na segunda. Na terceira, Samantha segurou sua mão. Sentiu uma corrente elétrica perpassar o corpo e se instalar em cada poro. Puxou-a de uma vez. Samantha sentiu o abandono do gesto.

- Eu estou de boa. Podem ir comer, eu vou... vou lá no quarto.

Sem dizer mais nada, Lica retornou a passos rápidos para a suíte como quem fugia de algo. Jogou uma água no rosto na pia do banheiro, respirou fundo umas cinco vezes, engoliu no seco e se recostou à bancada de mãos apoiadas nos joelhos.

- Lica? – ouviu a voz de Samantha se aproximando. E quando ela a viu naquele estado... – Lica! Marina, corre aqui!

A menina se materializou na porta e correu para acudir a mãe. Juntas, ela, Samantha e Gabriela, que apareceu atrás, levaram Lica até a cama mesmo sob protestos. A Lambertini Mãe saiu anunciando que faria um chá. Gabriela se pôs a ir procurar um calmante na farmacinha na cozinha e Marina tomou o lugar na beirada do leito segurando firme a mão da Gutierrez.

- O que a senhora tem?

Lica balançou a cabeça para dizer que não era nada, mas acabou sendo acometida por uma tontura.

- Cansaço, talvez – e uma crisezinha de ansiedade, quis acrescentar – Estou bem.

- Não está não – Marina foi firme – Você não está bem, mãe. A mãe Samantha também não, eu não estou e nem a Gabi. Está todo mundo mal e tudo muito errado aqui.

Lica teve certeza que não era só sobre seu mal-estar que ela falava e sendo sincera, não sabia se queria enveredar por aquele assunto.

- Eu sei que não é o melhor momento, mas eu preciso saber – Marina tomou ar – Você está com raiva de mim, não está? E da mãe Samantha. Por causa do papai.

Lica engoliu no seco e ficou em silêncio. Marina entendeu aquilo como um “sim”.

- É claro que está – a menina riu sem humor algum e negou com a cabeça – O que a gente fez foi imperdoável. Quer dizer, eu pensei que pudesse ser mais simples, sabe, mas pelo visto me enganei feio. Nunca vai dar certo. Ou melhor, estava tudo certo e eu tinha que ir lá e estragar com tudo.

Lica nada disse. Permanecia muda. Sentiu movimento vindo da porta do quarto. Samantha veio de lá com um copo com água e um comprimido numa bandeja. Gabriela do lado. A mais nova se jogou no colchão ao lado da mãe e a Lambertini ficou ali em completo silêncio. Tinha pego o final da frase de Marina.

- Filha, deixa sua mãe descansar, hum? Depois a gente conversa.

- Não, mãe. Tem que ser agora – Marina negou e se virou para Lica – Me perdoa. Perdoa a gente por achar que trazer aquele cara pra nossa vida de novo ia ser de boa. Foi um erro e agora eu vejo isso. Me perdoa, mãe.

Lica tinha ao menos o que perdoar? Acometida por uma súbita inquietação, ela recolheu as pernas e se sentou de lado levantando do colchão sob o olhar atônito de Marina e Samantha. Pegou o remédio e o copo na mão da mulher, tomou tudo de uma vez e seguiu para a cozinha atrás de mais água.

- Mãe? – Marina tentou mais uma vez – Você não vai falar nada?

- Falar o quê? – Gabriela tomou palavra, indo atrás – Vocês que foderam tudo e querem que ela fale?

- Gabi, não começa.

- Chega vocês duas! – Samantha foi firme. Lica se jogou no sofá da sala de olhos fechados, a cabeça latejando e um copo de água na mão. Recostou-se à poltrona – Lica, volta pra cama, hum? ‘Cê não está bem.

- Estou de boa – foi o que a Gutierrez respondeu e respirou fundo ainda de olhos fechados – Já estive pior.

- Pior? – Marina se alarmou.

Lica engoliu em seco antes de responder.

- Ninguém passa por uma merda dessas estando sóbria – abriu os olhos e encarou esposa e filha – Eu só bebi. Ajudou a colocar pra fora.

Samantha exalou pesado.

- Lica....

- Não começa, Samantha – ela a cortou – Sério, nem tenta – e de repente, a raiva subiu - Se for pra dar esporro agora, nem vem. Eu já estou na merda, acabada, não preciso de mais – engoliu no seco e exalou pesado – É foda você se sentir uma estranha na própria casa. É foda você ver sua família ir pelo caminho errado, tentar alertar e ninguém ouvir. Ninguém aqui me ouviu. Ninguém.

- Mãe....

- Com essa brincadeira daquele cara ser seu pai e merecer segunda chance, vocês conseguiram me tirar o que eu tinha mais sólido na vida – bateu palmas irônica. Samantha sequer reconhecia a própria esposa – Parabéns, a idiota aqui fez papel de trouxa por dezessete anos pra ser jogada pra escanteio na primeira oportunidade.

- Lica, não fala assim.

- E É PRA FALAR COMO? – Heloísa perdeu as estribeiras. Samantha e Marina se encolheram. Gabriela se assustou e arregalou os olhos. Ainda comia seu hambúrguer – Sabe, Samantha, eu reconheço que sempre fui problemática, que nunca soube lidar bem com sentimentos, sei que já te machuquei muito, que já causei dano demais mas, cara... eu pensei que tinha conseguido reparar. E justo quando eu consigo tomar as rédeas da minha vida e ter tudo que eu sempre quis, é rasteira atrás de rasteira.

Lica bebeu água e se pôs de pé. Queria que aquilo fosse álcool.

- É foda você ver as pessoas que mais ama no mundo abrindo os braços pra acolher alguém que te fez tanto mal só porque ele tem laço de sangue. Não era você mesma, Samantha, que vivia dizendo que sangue era o de menos? Que o que importava era amor, carinho, cuidado e proteção? – Lica tomou ar – EU QUE DEI ISSO TUDO, CARALHO! ERA EU! SEMPRE FUI EU, SEMPRE! EU QUE LEVEI PRA HOSPITAL, EU QUE LEVAVA PRA ESCOLA, EU QUE IA NA PORRA DA REUNIÃO DE PAIS, EU QUE ACORDAVA NO MEIO DA NOITE PRA IR SOCORRER A FILHA ADOLESCENTE QUE TINHA FEITO MERDA.... ENQUANTO O CARA MARAVILHOSO QUE VOCÊS QUEREM COLOCAR AQUI DENTRO E ME OBRIGAR A CONVIVER ESTEVE PRESO PORQUE TENTOU MATAR MINHA IRMÃ!

Samantha engoliu em seco. Marina abaixou a vista para os próprios pés.

- O HENRIQUE É SEU PAI? BELEZA, ELE É E É FODA NÃO PODER ISSO. MAS ELE TAMBÉM É UM ASSASSINO! UM LADRÃO! UM BANDIDO DE MARCA MAIOR QUE FEZ DA MINHA VIDA A PORRA DE UM INFERNO DE ONDE EU PENSEI QUE NUNCA PUDESSE SAIR! VOCÊS NÃO PODEM ME OBRIGAR A ACEITAR E CONVIVER COM O DEMÔNIO QUE QUASE ACABOU COM A MINHA VIDA! E COM A SUA! – apontou para Marina – FUI EU QUE QUASE MORRI PRA TOMAR UM TIRO NO LUGAR DA SUA MÃE E EVITAR UMA TRAGÉDIA MAIOR! FUI EU QUE ME ENFIEI NUM CARRO PEGANDO FOGO PRA SALVAER AQUELE MONTE DE MERDA QUE VOCÊ CHAMA DE PAI PRA NÃO TE VER SOFRENDO A DOR DE UMA PERDA!

Uma lágrima teimosa escapou dos olhos de Lica e ela nem se deu ao trabalho de contê-la.

- Mas claro, ele é o pai. E eu sou só a idiota que pensou que amor valia muito. E que achou que daria certo construir uma vida em cima do que restou da vida alheia. No fim das contas sabe qual é a impressão que eu tenho? Que tudo que eu fiz a vida inteira não valeu de porra nenhuma – abriu os braços em desalento – Não adiantou dormir em hospital quando você adoecia, porque o Henrique é o pai. Não adiantou acordar cedo todo dia pra te deixar na escola, porque o Henrique que é seu pai. O tanto que eu me dediquei, que me doei nisso aqui... merda nenhuma – mais choro. Lica limpou o rosto com as costas das mãos – Eu estou pouco me fodendo pro Henrique, sabe? Por mim ele pode se explodir, morrer e ir pro inferno que pra mim nem fede nem cheira. O que acaba comigo é isso aqui. Ninguém me escuta, ninguém pergunta se eu estou de acordo, ninguém procura saber o que eu penso nem o que eu quero. Porque, claro, é coisa de pai e filha, é coisa de família e quando se trata de vocês três, eu não tenho voz nem vez.

- Nem eu – Gabriela se fez ouvir – Eu não suporto aquele cara e queriam que eu almoçasse com ele como se estivesse tudo de boa. Como se minha mãe não tivesse ido embora e como se ele não tivesse feito tanto mal pra ela.

- Nossa mãe, Gabi – Marina se atreveu a falar.

- Minha mãe, Mari – a menina rebateu de cara emburrada – Se sangue é tão importante assim, é o dela que corre aqui dentro.

Samantha fez uma careta àquilo. Lica fungou.

- Chega, Gabriela.

- Ué, a Marina pode sair por aí dizendo “ah, porque é meu pai e eu vou ignorar as merdas dele” e eu não posso dizer que minha mãe é você e que eu vou ficar do seu lado? Se ela escolheu o assassino, eu escolho você.

- Eu não escolhi assassino nenhum.

- Escolheu sim, ow mané!

- Não era pra ser assim, Gabriela! – Marina gritou.

- Mas foi! – e a mais nova devolveu – Foi e foi exatamente o que aconteceu. Vocês ainda não entenderam que aquele homem não quer a mãe Lica na vida de vocês e que a cada vez que ele chegava mais perto ela saía pra mais longe? É tipo forças opostas, sabe? Física: dois corpos não podem ocupar o mesmo espaço ao mesmo tempo. Lica e Henrique não se dão, beleza? E é questão de escolha mesmo. Foda-se se ele é seu pai, ele sequer pensou em você quando colocou uma maluca psicopata na sua vida que tentou matar tua mãe! Ele sequer lembrou que você é filha dele quando tentou te levar pra longe de quem você amava. Burra e trouxa, isso que você é, Marina!

- Chega, Gabriela! – Samantha alteou a voz.

- Chega porra nenhuma! Alguém precisa falar as coisas nessa casa – a menina se emburrou e cruzou os braços - O cara lá é seu pai de sangue, tem laços e merece uma segunda chance... mas ele sequer te aceita como você é, cara... ele prefere morrer a admitir que você foi criada por duas mulheres e que tem duas mães. Falta amor próprio, sabe? Ficar correndo atrás de uma pessoa que nem existe mais e que nem te respeita. Acorda, Marina!

O silêncio que se instalou ali foi ensurdecedor. Samantha buscou o olhar de Lica, mas ela o desviou.

- Ainda tem conserto pra isso? – o medo daquela resposta talvez fosse o maior que a Lambertini já sentiu na vida. E olha que ela não era de temer por pouca coisa: sempre foi sua marca registrada a cara e a coragem de peitar e ir em frente fosse em que situação fosse. Mas ali depois de tudo que vira e ouvira... sentia-se uma gatinha acuada com medo do mundo. Nada de leoa dona de tudo. Só um animalzinho indefeso e sendo sincera... não podia se culpar mais por aquilo.

Lica não disse nada. Se jogou no sofá exausta dando permissão para que sua mulher prosseguisse.

- Você me conhece desde os seis anos de idade, Lica, e sabe que a minha maior qualidade também é o meu maior defeito. Eu sempre tento ver o melhor das pessoas. O lado bom, a sinceridade e a honestidade. Só que nessa vontade de ver o que presta, eu acabo ficando cega pro que não presta também – Samantha respirou fundo – Eu pensei realmente que seria uma boa ideia deixar as coisas irem acontecendo pra ver se se encaixavam sozinhas. A Marina é sim filha do Henrique e ele, querendo ou não, é pai dela. Mas mais do que ele ter colocado ela no mundo, foi você quem criou e ensinou tudo que ela sabe. E se ela é a pessoa que é hoje, é fruto do nosso trabalho. Nós duas, juntinhas. Em momento nenhum eu quis ignorar isso ou te preterir. Em momento nenhum a gente quis te colocar de lado ou te silenciar, mas pelo visto.... A gente te sufocou.

Sufocar talvez fosse mesmo a palavra certa.

- E eu mais do que ninguém devia ter previsto essa caos. Por favor, pondera.

- Você ponderou? – Lica tinha amargura na voz.

- Eu só pensei no que seria bom pra minha filha.... Pra nossa filha. E me enganei feio. Me perdoa por isso.

- A culpa é minha, mãe. Eu que insisti nessa loucura de me reaproximar do meu pai, porque achei que pudesse dar certo. A lembrança que eu tinha dele era o cara que me deixou aqui com cinco anos e essa versão de hoje... ela me assusta – Marina olhou para baixo mortificada – Eu sou muito idiota.

Lica calada estava, calada ficou.

- É mesmo – mas Gabriela não – Pô, eu pensei que inteligência fosse uma coisa nossa, sabe? Quer dizer, quais as chances de colocar na nossa vida de novo o cara que fez tanto mal pra gente e dar certo? Era a receita do “deu merda” total e ninguém percebeu?

- Ninguém me ouviu – Lica terminou de jogar a pá de cal – Mas de boa, eu já estou acostumada. Eu adoro como só sirvo quando o pai de família não está perto.

Dizer que ela estava magoada era pouco.

- Lica, por favor....

- Isso não é verdade, mãe – Marina.

- Alguma vez você me perguntou se eu estava de acordo com isso? – Lica foi implacável para cima da filha – Que eu me lembre, a vez que você tratou sobre isso comigo foi pra me pedir pra eu dar uma segunda chance pro Henrique porque você queria, não pra perguntar minha opinião. Detalhe, detalhe: comparou a situação aqui com a minha e da sua mãe. “Ah, porque a mãe Sammy te deu uma segunda chance...” FODA-SE MARINA! EU NÃO MATEI, NÃO ROUBEI E NEM TENTEI DESTRUIR A VIDA DELA INTEIRA! EU SÓ ME MANDEI PORQUE NÃO SABIA LIDAR COM O QUE SENTIA, NÃO PORQUE ERA UMA ASSASSINADA BANDIDA – Lica deu uma voltinha pela sala negando com a cabeça e se virou para a filha de dedo em riste. Marina se encolheu – Você me comparou com um criminoso só porque ele é seu pai. Era tudo que eu não precisava: ter sido comparada com o Edgar a vida inteira pra terminar no mesmo balaio que o Henrique. Não pensa que eu esqueci, porque não esqueci.

- É sério isso? – Samantha se alarmou – Comparar sua mãe com o Henrique? Você enlouqueceu ou se fez de doida, Marina?

- Me desculpa... na hora eu nem pensei.

- Vocês nunca pensam! – Lica de novo – Me criticam tanto porque eu sou impulsiva e agem pior! E só quem toma no cu é a idiota aqui. Bora socar mais porque a Lica aguenta!

- A gente pode só tentar conversar civilizadamente?

- NÃO PODE PORQUE EU NÃO QUERO! NÃO HOUVE UM PINGO DE CIVILIDADE DE VOCÊS QUANDO ME JOGARAM PRO CANTO PRA RECEBER AQUELE ANIMAL!

Samantha se encolheu e Marina também. Gabriela anunciou que iria lavar as mãos na cozinha e perguntou se tinha sobremesa.

- Vocês querem o quê? Que eu fique de boa? – Lica respirou fundo e deu seu ultimato – É o seguinte, pra resolver logo essa questão: se o Henrique não me suporta, eu também não suporto ele. Os dois juntos não dá certo então eu sinto muito, Marina, mas vai ter que ter uma escolha aí.

- O Henrique já foi.

Lica ergueu o rosto para a filha em um átimo. Era a primeira vez que ela se referia a Henrique sem ser como “pai”.

- Como?

- O Henrique já foi. Eu mandei ele sumir. Ele não me aceitava, é bem como a Gabi falou. E nem a você. E se alguém não aceita você, automaticamente não me aceita também, porque a gente é um pacote: eu, a mãe Sammy, a Gabi e você, mãe. E dezessete anos são três vezes mais que cinco – Marina buscou os olhos de Lica – Você conseguiu ser três vezes mais mãe do que ele foi pai pra mim numa vida inteira. E eu gostaria muito te poder continuar te chamando de mãe, porque assim... você foi a melhor coisa que já aconteceu na minha vida.

Lica se aprumou como se tivesse levado um choque.

- E eu não posso perder isso, porque é como... sei lá... perder uma parte de mim. Se você ainda quiser, eu posso tentar reparar esse lapso mental e mostrar que o Henrique não é de nada pra mim. Não quando eu posso te chamar de mãe. Eu pensei que ele pudesse ser alguma coisa, mas nem adianta, porque pelo visto eu não sou muito pra ele. Não vou ficar correndo atrás de quem não quer saber de mim quando eu tenho uma pessoa incrível pra me dar todo o apoio, amor e carinho do mundo. Me perdoa, mãe. Eu... eu não queria que tivesse sido assim.

Lica engoliu em seco e mudou o peso de perna.

- Eu também te devo um pedido de desculpas – Samantha tentou – Por ser... tapada? Achar que poderia vir algo de bom de alguém como o Henrique e... cara, eu sou muito idiota – riu sem humor e se pôs a dar uma voltinha pela sala – Pelo amor de Deus, só diz que me perdoa e que a gente pode continuar de onde parou, porque eu preciso de você do meu lado. E me desculpa, Lica, me desculpa... por tudo que tem de mais sagrado no mundo, me desculpa por ter te colocado nessa situação. Eu fui agir com a cabeça e meti os pés pelas mãos, você não merecia, eu reconheço minhas falhas e só te peço uma chance de mostrar que pode dar certo sem a sombra de ninguém por perto. E só pra constar: ninguém aqui é resto da família de ninguém nem resquício de relacionamentos alheios. Nós somos a sua família e eu só te peço que não duvide disso. E nem... nem do meu amor, porque... porque eu te amo.

- E pra mim, ninguém vai pedir desculpa não? – Gabriela se pronunciou lambendo a taça de mousse de maracujá – Eu também fui afetada. Minha família de repente virou um inferno e tinha um bandido comendo a minha comida.

- Dá pra perdoar a gente? – Samantha se virou para a filha – Ou é pedir muito?

- Dar até que dá... mas eu demoro um pouco a digerir – Gabriela fez a difícil e lambeu a taça.

Mas Samantha... era ainda era mãe ali e tinha autoridade para tanto.

- Certo... a gente pode conversar agora sobre você ter saído de casa e ter me desacatado e desobedecido cem vezes nos últimos dias? Me tratado feito lixo e me enfrentado sem nem me dar chance de conversar direito? Porque assim... não pensa que eu esqueci suas atitudes comigo, Gabriela, porque eu não esqueci – foi firme na voz.

- Eu vou lavar minha louça – Gabriela se levantou em um pulo com a voz fina – Sabe como é, não cai a mão.

A menina chispou dali arrancando um sorrisinho bobo de Marina.

- Não adianta fugir, porque de mim você não escapa! – Samantha alteou a voz.

- E então? A gente pode ter uma resposta, mãe? – Mari se virou para Lica, que permanecia em pé feito um dois de paus como quem avaliava os danos. E eles eram muitos. E a mágoa também.

- Lica? – Samantha insistiu. Ela parecia não ter ouvido.

- Eu... – Lica olhou ao redor. Tinha coisa demais em sua cabeça – Eu preciso... licença.

Ela catou as chaves e passou pela porta.

- Mãe! Ei mãe! – Marina quis ir atrás. Se virou aturdida para Samantha – Mãe, faz alguma coisa.

A súplica nos olhos da filha foi que levou Samantha a agir dessa vez. Já passara dias sem sua mulher em casa e dera a ela todo o tempo de que precisava. Se Lica já estava no limite, ela também já estava no seu. Passou a mão nas chaves, na bolsa e saiu porta a fora a passos rápidos. Correu para o elevador de serviço e quase alcançou Heloísa no estacionamento. Ela estava entrando no carro quando Samantha pisou lá. A Lambertini correu para o próprio veículo e arrancou quase ao mesmo tempo que ela. Saíram as duas juntas do prédio.

Nem bem virou na esquina, o celular de Heloísa tocou no assento do banco do passageiro. A foto de sua esposa sorrindo feliz da vida reluziu no visor. Não atendeu de primeira. Ela ligou de novo. Não atendeu. Virou em outra esquina. Dessa vez o aparelho notificou uma mensagem. Ela leu na tela de bloqueio.

“Lica, me atende, por favor. Eu estou atrás de você. Literalmente. Por favor”

Lica olhou pelo retrovisor para ver o carro de Samantha em seu encalço. Apertou e estreitou os olhos. O celular tocou novamente. E dessa vez ela o pegou, mas só para dar um basta naquilo. No entanto, antes mesmo que pudesse dizer uma palavra....

- Eu sei que eu errei e sei que o que fiz é difícil de entender e de perdoar. Mas eu não vou permitir que a gente se desfaça assim por causa das minhas merdas – Samantha metralhou. Sua voz soando alta e clara no viva-voz. Lica apertou os lábios e respirou fundo. Parou em um semáforo com Samantha logo atrás.

- Lica, eu não quero te perder. Eu não posso te perder e se o que eu fiz me levar a isso, eu não sei nem como vou passar, porque no sério, eu realmente não me imagino sem você na minha vida – Samantha respirou fundo – Uma família, lembra? E eu não esqueci do juramento que fiz na frente daquela juíza dezessete anos atrás.

- Não esqueceu mesmo? – Lica finalmente abriu a boca. O sinal abriu e ela deu a partida. Samantha atrás.

- Não. Você pode fazer tudo, menos duvidar do que eu sinto e do meu amor por você. Isso eu não admito – a Lambertini foi assertiva – Todo mundo comete erros e eu dei a má sorte de achar que seria sensato trazer o Henrique de volta pra nossa vida pelo bem da Marina. Mas eu não enxerguei o óbvio.

- Que era....

- Que ela já estava bem e que sempre esteve. E que nunca precisou de Henrique nem de nada além do que ela tinha – Samantha tomou ar. Lica ouvia a respiração dela acelerada pelo viva-voz – Uma mãe incrível que sempre fez tudo por ela, que se doou a vida inteira pelo bem dela e que foi fundamental pra ela ser essa pessoa justa que ela é hoje. E eu não estou falando de mim.

Lica apertou a direção e acelerou. Mudou de faixa. Samantha tentou acelerar, mas um outro veículo entrou na frente dela.

- Não faz isso. Eu sei que mereço, mas não aguento mais. Você é a mulher que eu amo, você é a minha família, você é a pessoa que eu quero e você é a mãe da Marina.

- E o Henrique é o pai – Lica acelerou. Samantha jogou o carro para o lado quase causando um engavetamento para não perde-la de vista. Pisou mais fundo no pedal e conseguiu emparelhar com Lica. Mas foram obrigadas a parar em mais um farol. Lado a lado. Se encararam pelo que pareceu uma eternidade. Lica tinha uma expressão triste nos olhos. Samantha não conseguiu encontrar outra coisa ali que não tristeza e uma pontinha de decepção. Se sentiu o pior ser humano do mundo.

- O Henrique é o pai – ela repetiu e Lica lhe lançou um olhar mortificado – E você é a mulher que esteve do lado da nossa filha o tempo todo enquanto esse pai não serviu pra coisa nenhuma. Foi você quem cuidou, quem criou, quem ensinou o que é amor, o que é certo e o que é errado. Quem mostrou direitinho pra ela como ser uma pessoa melhor a cada dia e que fez da nossa filha... a nossa filha, Lica, a mulher incrível que ela é hoje. E eu vou ser eternamente grata por isso, acredite. E me desculpa se eu não soube externar isso, se eu em algum momento dei a entender que você ali não tinha valor. Você tem, você sempre teve e sempre, sempre vai ter e sabe por quê?

Lica permaneceu em completo silêncio. O farol abriu e elas continuaram ali se encarando e falando ao celular. Receberam algumas buzinadas.

- Porque você é a melhor coisa que já aconteceu na nossa vida. Na minha e na da Marina. Foi você quem eu amei primeiro e quem eu nunca deixei de amar nem por um segundo mesmo estando longe. Foi você que me ensinou o que é ser querida, desejada e respeitada acima de tudo. Foi você quem me mostrou o real sentido da palavra família e mais importante que isso: você escolheu a minha filha pra chamar de filha também. Você acolheu a Marina como sua desde o primeiro momento e isso... isso é maior do que qualquer coisa. Eu... – outra sequência de buzinadas – Eu confiei total e cegamente a Marina a você porque eu sabia que nas suas mãos, não tinha como dar errado. Não deu e eu te peço por tudo que tem de mais sagrado no mundo... não deixa dar errado agora.

- Sai da frente, ow! – um motorista agoniado enfiou a cabeça pelo vidro do carro e soltou alguns impropérios, gesticulando impaciente com a mão e buzinando. E outros repetiram o gesto. O sinal voltou a fechar. Ouviram muxoxos e protestos em indignação.

- Me perdoa. Perdoa a Marina. Nos perdoa pela falta de tato, de senso e de noção. Não duvida do que a gente sente porque não é mentira. Na verdade, você é a única certeza que a gente. Volta pra casa. Volta... – o farol piscou no amarelo. A buzinas voltaram a soar – Volta pra mim.

Lica mentiria se dissesse que seu coração não estava querendo sair do peito de tão louco desesperado que batia. As mãos começaram a suar, a boca secou e ela inteira pareceu entrar em uma espécie de estado de... ela não sabia definir bem. Encarava Samantha segurando o celular ao ouvido como se esperasse alguma reação, alguma resposta por mínima que fosse. E o buzinaço atrás voltou. Elas estavam atravancando o trânsito da avenida inteira presas no próprio impasse.

Até que alguém gritou alguma ameaça lá atrás e elas foram tiradas daquele estado de transe. Lica piscou umas três vezes para poder se atinar da realidade e deu a partida. Samantha o fez em seguida atrás dela.

- Fala comigo – ela pediu ao celular. Ainda estavam em ligação, mas só até aquele segundo. Lica desligou. Samantha, de desatenta que ficou com o bipe do celular, o afastou do ouvido para checar o visor e acabou perdendo o controle do volante. Foi parar na traseira de um carro que havia reduzido para virar na rua. E o homem que o conduzia havia dado a seta e feito tudo certinho. Ou seja....

- Puta merda! – soltou baixinho e fechando os olhos para não sair gritando feito doida no meio da rua. Estava esgotada. E tudo piorou quando o dono do veículo à frente desceu visivelmente chateado e disposto a arrumar briga. Bateu no vidro dela.

- Ei! Ficou maluca? É cega por acaso? – chateado era pouco. O cara estava possesso – Olha o que você fez, sua idiota!

Samantha até respiraria fundo e agiria com calma se não fosse o xingamento.

- Idiota é a... – ela abriu a porta pronta para dar em alguém, mas foi obrigada a se calar.

- Dá pra resolver sem precisar disso, cara – Lica simplesmente se materializou atrás do homem. Parecia dez vezes maior.

- Dá licença que o assunto aqui é com essa maluca.

- Eu sou esposa da maluca – ela anunciou com toda a naturalidade do mundo e nada pareceu tão certo de ser proferido. Samantha simplesmente estacou no que fazia. Encarou Heloísa com um claro questionamento nos olhos, mas era mais como se pedisse que ela lhe dissesse que não estava alucinando.

- Oi? – o homem se virou sem entender nada.

- Eu sou esposa dela e isso aqui dá pra resolver sem precisar de agressividade.

- Sua... esposa bateu no meu carro e ficou feio – de fato uma parte do para-choque havia arrebentado e caído. Mas não foi bem isso que atraiu a atenção de Lica e sim o escárnio que ele parecia ter emitido no tom que usou pra se referir a Samantha. O homem chutou uma pedrinha no asfalto e  murmurou um “além de barbeira ainda é sapatona”. Os ouvidos de Heloísa capturaram.

E sem nem medir seus atos, ela puxou o homem pelo colarinho que ele quase tropeçou nos próprios pés.

- Lica! – Samantha desceu do carro para contê-la.

- Me deixa, Samantha! Me deixa que meu dia foi uma merda e eu preciso descontar em alguma coisa. E esse filho da puta não vai falar com você desse jeito! Não na minha frente.

- Me solta, ow maluca! – o homem se desvencilhou dela.

- Maluca é o caralho! A Sammy devia era ter passado por cima dessa sua lata velha!

Uma pequena aglomeração começou a se formar ali e uma viatura da companhia de trânsito estacionou lá na esquina de sirene acesa. Ótimo! Podiam terminar o dia presas. Samantha choramingou exausta de tudo. O guarda já chegou perguntando que alvoroço era aquele. Só que Lica foi mais rápida.

- O excelentíssimo filho da puta aqui foi grosseiro com a minha mulher.

- E ela bateu no meu carro! Vão ter que pagar por isso!

- É esse o problema? – Lica estava incontrolável. Abriu a carteira e jogou um cartão para ele – Me liga depois e a gente resolve isso. Dinheiro não é problema, panguão!

- Vão ter que aguardar a perícia – o guarda informou já anotando as placas enquanto um colega administrava o congestionamento que se formara atrás delas. Samantha suspirou exausta quando ele se dirigiu a ela – Seu nome, por favor?

- Samantha. Samantha Lambertini Gutierrez – se virou para Lica – Pode ir. Seja lá pra onde for que você estivesse indo.

- Pra casa – ela soltou simplesmente – Eu estava indo pra casa – Samantha abriu e fechou a boca duas vezes sem dizer nada – Pra onde mais eu ia, Samantha?

- Não sei...? Pra... qualquer lugar longe da gente?

- Você me pediu pra voltar, não pediu? – ah, não!

- Custava ter me respondido, filha da mãe? – Samantha se revoltou e deu com a bolsa em Heloísa, que se encolheu e tentou pará-la. Era um vexame apanhar bem ali no meio da via pública – Eu fiquei falando e falando sem saber mais o que dizer e você se divertindo às minhas custas? Eu quase chorei de desespero com seu silêncio, Heloísa! Eu bati o carro por sua causa! – outra bolsada.

- Ai, Samantha, para! Estão olhando.

- Eu não estou nem aí, sua idiota!

- Parou! – Lica a segurou pelos pulsos e ainda teve que trazê-la para si para evitar que ela vacilasse com o choro que se formou involuntariamente – Ei, Sammy....

- Eu te odeio, Lica!

- Não foi isso que você disse há cinco minutos.

- Cala a boca! – Samantha se agarrou a ela como quem se agarra a uma tábua em meio a um oceano em fúria. Lica sentiu sua camisa molhando. Mas estranhamento não se condoeu. O que lhe preencheu foi outra coisa. Boa. Muito boa. Completa. Certa.

Ninguém chora em seu peito do nada. E se alguém te procura em um momento de fraqueza é porque você é especial. Importante e essencial. Lica teve a certeza de que ocupava esse lugar de privilégio na vida da mulher que amava, e que mesmo com todos os imprevistos, impasses, percalços, seguiam ali sendo uma da outra e estando uma pela outra. Sempre.

E não tinha Henrique no mundo que mudasse aquilo.

Foda-se Henrique.

(...)

- Mãe! – Marina não esperou nem que a porta se abrisse direito para se jogar em cima de Lica que quase a derrubou. Mas foi recebida, isso que importava – Vocês demoraram. Como foi lá?

- Um porre ficar sentada no meio fio esperando o seguro resolver burocracia. Minha bunda está quadrada – Samantha jogou a bolsa sobre o sofá.

- Ela continua linda, amor.

- Ai, credo! Eu sou de menor, não posso ouvir essas coisas – Gabriela tapou os ouvidos. Devorava um pacote de bolacha.

- Tira os pés do sofá – Samantha ordenou à mais nova – E para de sujar tudo de farelo, Gabriela.... Para de se entupir de besteira, vai tomar um banho e volta pra cá que meu assunto com você ainda não terminou.

- Eu pensei que a gente estivesse bem – a menina se fez de desentendida.

- Jura? – Samantha arqueou uma sobrancelha para a filha – E eu tenho uma memória excelente pra dizer que não, não está tudo bem entre eu e a senhorita.

- Mas mãe....

- Faz o que eu mandei, Gabriela!

- Mas....

- Gabriela, chega! – Lica se meteu – Deixa de coisa, para de dificultar tudo, se sua mãe mandou é pra fazer e pronto! – a menina abriu a boca, mas a Gutierrez foi mais rápida – Eu não estou de brincadeira, menina! Obedece a sua mãe que ela manda em você tanto quanto eu!

- Minha mãe é você, não ela!

Lica teve que respirar fundo umas três vezes para não levantar a mão para a filha. Não era dada àquilo, mas tinha hora que Gabriela testava seus limites.

- Eu que te carreguei nove meses aqui dentro, passeis três meses enjoando por sua causa e fui eu que senti a porra da dor de um parto pra te colocar no mundo! – Samantha respirava acelerado – Fui eu quem te criei, que te eduquei e te ensinei tudo que você sabe junto com a Lica. Se isso não é ser, mãe, Gabriela, me explica o que é e aí a gente conversa!

A menina arriou os ombros e abaixou o olhar parecendo mortificada.

- Mede as palavras pra falar comigo e antes de dizer que eu não sou nada sua, pensa em tudo que eu já fiz por você, inclusive te dar a vida! – Samantha quase gritou. Até Marina se encolheu – Anda, passa pra dentro, vai tomar um banho e não me testa mais.

- Você precisa de um calmante, mãe. Quer um?

Frase errada no momento errado. Lica, atrás da filha, fez uma careta.

- Eu preciso é que você suma da minha frente, Gabriela. Antes que eu mesma te faça sumir! Passa pro chuveiro, anda! Vai tomar um banho e me dá isso aqui! – sem delicadeza nenhuma, ela arrancou o pacote de bolachas da mão da filha – Anda, chispa!

Gabriela ficou para feito um dois de paus encarando a mãe assustada. Samantha devolvia o olhar. E então bateu o pé, só bateu, e a menina soltou um “socorro” e saiu correndo para o quarto.

- Pra quem será que essa menina puxou, hein? – Samantha fez questão de jogar a batata para Lica.

- Não faço a menor ideia – cínica – Filhos são uma coisa....

- Mãe – mas Marina tinha outra burocracia a resolver – A gente... a gente pode conversar? – dirigiu-se a Lica. Ela devia esperar por isso. Trocou um olhar com Samantha e recebeu um breve acenar de cabeça dela em incentivo.

- Eu posso só tomar um banho? Minha bunda também está doendo de esperar na calçada.

Marina assentiu e se afastou. Catou Samantha para tentar entender o que havia acontecido até ali, mas tudo que recebeu de resposta foi um “melhor ser entre vocês duas, hum?”. Bom... não foi só entre elas duas exatamente. Quando Lica retornou para a sala depois de uma chuveirada, encontrou a mulher e as filhas decidindo o que pedir para comerem (Gabriela pianinho dizendo amém para tudo que Samantha sugeria). Parece que a fome tinha batido em geral. Marina se levantou em um salto ao ver a outra mãe vindo pelo corredor. Havia expectativa em cada centímetro dela. E Lica percebeu.

- A gente pode conversar agora?

A campainha tocou em seguida. Gabriela franziu o cenho, mas não largou o celular.

- A gente está esperando alguém?

Mas Samantha já estava de pé. Sabia de quem se tratava, mas Lica pediu que fosse ela a fazer aquilo. Dirigiu-se até a porta e a abriu para dar de cara com Henrique Mondego, o próprio, estacionado na soleira. O homem pareceu ter virado um boneco de cera de tão branco que ficou quando a viu diante de si. Estacou. Lica, por outro lado, manteve a pose amena. Ou ao menos tentou.

- Você? – Marina se assustou.

- Boa noite, Henrique – Lica tentou ser cordial, o que pegou o homem de calças curtas.

- He-Heloísa? – Henrique tropeçou nas palavras e relanceou Samantha por sobre o ombro de Lica – Samantha, eu... eu pensei que....

- Por que a surpresa? – Lica riu amena, mas nem tanto. Se era para tocar na ferida, ela tocaria e ainda cutucaria sem dó nem piedade. E ali, era seu território. Mandava nele e ponto – Essa casa é minha também. Minha família vive aqui e eu junto. Minha mulher e minhas filhas – ela fez questão de pontuar – Você tem algum problema com isso?


Notas Finais


E aí? Bora pro barraco parte II? kkkkkkkkk Assim, dessa ez a conversa é de gente grande mesmo: colocar Lica e Henrique no mesmo espaço é nitroglicerina pura. E não se enganem: Gabriela e Marina também terão seu momento juntas rsrs.
Mas o que esperar desta conversa? Definitiva ou só mais lenha na fogueira? E no próximo e último cap também teremos a presença ilustre do excelentíssimo Pedro Lucas. Não esqueci dele, um beijo Pedro Lucas.

No mais, Lica apanhando da Samantha no meio da rua é minha religião.

Obrigada pela leitura e nos vemos no próximo capítulo!


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