Não é a primeira vez que chego ao lugar onde a experiência mais traumática e dolorosa me acontecera, contudo, ainda sinto uma enorme insegurança. Além disto, cada parede faz rondar na minha mente memórias do ocorrido.
Se eu me concentrar, posso ver a arma apontada para minha cabeça. O sangue encharcando a roupa de Thomas e...
—... está bem? — Nina segura meu braço como se eu fosse uma criança. Hailey, ao lado, parece preocupada a julgar pelos olhos esbugalhados.
...eu quase posso sentir a mesma dor.
— Você está parada há vários minutos, Eve. Quer deitar um pouco?
— Não, Hailey, obrigada. E sim, tia, eu estou bem.
— Tem certeza, querida?
— Sim. O que temos para o jantar?
Jantamos comida chinesa. Hailey não esperou sequer terminarmos de comer, e saíra depois de receber uma ligação de Pierre.
Nina e eu terminamos sozinhas, num silêncio mais enfadonho do que qualquer conversa chata com Hailey.
Não é a hora certa para termos essa conversa, mas em algum momento isso terá que acontecer. E já que estamos aqui, por que não agora?
Desde que encontrei o extrato bancário na casa de Nina venho pensando em várias formas de abordar esse assunto. No entanto, diante dela e desejando dizer tudo o que estava preso na minha garganta, simplesmente não sei por onde começar.
Estamos à sós, graças à constante ausência de Hailey. Desde que voltei do hospital ela tem estado assim. Isto significa que tenho outra conversa delicada para ter com alguém.
Agora é a vez de Nina. Ela termina de lavar a louça e senta-se a mesa, a edição da Vogue Alemã está aberta na mesma e seus olhos saltam diretamente para a coleção de inverno.
— Tia, precisamos conversar.
Calmamente, Nina fecha sua preciosa revista e fita meu rosto com atenção. Provavelmente ela já sabe do que se trata. Isto facilita minha vida.
— Eu preciso ouvir sua parte, a sua versão sobre... Eu não quero aceitar que a pessoa mais importante para mim é uma vigarista aproveitadora.
Percebo a amargura de minhas palavras quando ela engole em seco e baixa a cabeça.
Eu não poderia me expressar melhor a não ser desta forma, então o mínimo que ela pode fazer depois de tudo é encarar que eu não estou contente.
— Parte disto é verdade, Evelyn, e eu sinto tanto por isso. Estou envergonhada. Mas tudo o que eu fiz sempre foi por você. Eu sei que não justifica, mas eu sempre quis o melhor pra você e me sacrifiquei por isso. Você está coberta de razão, eu me aproveitei, e me arrependo disto. — Lágrimas salientes salpicam a mesa depois de escorrerem de seus olhos. — Eu sempre vou me arrepender disto. Eu errei, e infelizmente não posso reparar esse erro e todos os seus danos. Eu quase a perdi, e só então percebi que tudo o que eu tenho não seria nada sem você. Todo o dinheiro já está na sua conta, Evelyn. Eu percebi o que fiz e não consegui continuar. Você não merece nada disso.
— Nina, sabe que eu não me importo com dinheiro. Eu nunca negaria nada a você, nunca me recusaria a ajudá-la. Eu sou realmente grata por você ter sido a minha mãe, e eu não seria nada se não fosse por sua ajuda. Eu só... Não deveria ter feito isso comigo. Não deveria ter feito nada pelas minhas costas.
— Eu entendo, querida. — Ela segura minhas mãos entre as suas. — Eu não tenho o direito, mas peço que me perdoe. O que eu puder fazer para me redimir, eu farei.
— Você já o fez. Obrigada por cuidar de mim. Não vai ser fácil, mas nós vamos passar por isso. Precisamos de tempo.
— Claro, meu amor. Eu tenho orgulho da pessoa que você se tornou.
Carente de mais palavras, decido abraçá-la e com isto passar a mensagem de que estamos dando uma trégua.
Não é fácil deixar de amar alguém cujo amor faz parte de quem você é.
Para mim, Nina é esta pessoa. Talvez por isso seja mais fácil tentar perdoar seus atos desonrosos do que não perdoá-los e encarar o desgosto que isso causaria.
Pela manhã, minha tia foi embora. Saiu cedo e diretamente para o aeroporto, a fim de não perder seu vôo com destino à Berlim.
Ainda não estando em condições de acompanhá-la, tudo o que eu fiz foi sorrir para ela quando nos esbarramos na sala.
Ela compreendeu e respeitou meu espaço, apenas sorrindo de volta e seguindo para a saída sozinha.
Hailey não está em casa, e acabo de perceber que ela sequer voltara ontem à noite.
Julian já voltara para a França, e embora eu não devesse, não consigo negar a mim mesma que sinto saudade dele.
Thomas está fora da cidade com o time há poucos dias, mas já sinto os efeitos de sua ausência. Estar longe dele é uma solidão úmida e quente que eu me esforço para não derramar pelos olhos.
A casa vazia acentua ainda mais todos os meus sentimentos.
Igual a passarinhos na janela do quarto, as lembranças sobrevoam cada cômodo e não me deixam escapar.
Talvez Hailey eu devêssemos procurar um lugar novo.
E por falar nela, se não for um fantasma, é ela quem está abrindo a porta.
Largo a xícara ( já sem café) na mesa de centro e me viro para ela.
Ela está bonita, mais do que de costume. Esta usando seu cabelo com franja e, o melhor de tudo: parece estar feliz.
— Parece que Pierre fez alguém muito feliz ontem à noite, hein?
Ela gargalha e se joga ao meu lado.
— É, e parece que vai fazer de novo todas as
noites e manhãs a partir de agora.
— Como assim?
— Ele me pediu para ir morar com ele, Evelyn. Isso não é incrível?
— Oh, sim. É um grande passo.
— Está tudo bem por você, não é? — Ela pega minha mão. — Porque se não estiver, eu...
— Hailey, não se preocupe, eu estou bem. Você está pronta pra isso? E Pierre gosta de porquinhas?
Ela cora.
— Eu o amo, Evelyn. — Então cora ainda mais após dizer isso. Soa como uma verdade. — Eu estou disposta a arriscar desta vez.
— Sendo assim, tem minha bênção. Deve aproveitar esse sentimento. Você merece ser feliz.
— Obrigada, amiga. E eu não sou a única. Por que não chama o Thomas para vir morar aqui?
— Na verdade eu estou pensando em sair deste apartamento. Me vem à todo instante na memória tudo o que aconteceu. Parece que as lembranças ficam mais aguçadas quando estou aqui.
— Então acho que você deva mesmo procurar outro lugar. Você quer ajuda com isso?
— Sim, seria ótimo, Hailey. Obrigada.
Ajudei Hailey a começar a empacotar algumas coisas. A cada caixa preenchida, sentia um vazio a mais dentro desse apartamento frio e antecipadamente solitário.
Foram as coisas mais importantes que receberam atenção especial. Enchemos duas malas com roupas suas e decidimos deixar o restante para depois.
Seu quadro de colagens não poderia ser esquecido, de maneira alguma. Quando guardamos as coisas na mala do carro, as pusemos lá com muito esmero.
— Você tem que ir agora? — pergunto eu, tendo uma breve cena da minha noite solitária; sem Thomas, sem Nina, e agora sem minha melhor amiga.
Sei que Hailey e eu não moramos juntas desde sempre, mas desde que o começamos, mesmo com todos os contras e sua tagarelice, eu parei de me imaginar morando em algum lugar sem ela.
E agora ela está de partida.
— Não, Eve, claro que não. — Seus olhos estão brilhando, e seu rosto avermelhado. Um instante de silêncio e ambas estamos chorando. Mas Hailey, claro, não o deixa se prolongar. — O que acha de comermos pipoca e procurar algum lugar legal pra você pela Internet?
— É uma ótima idéia, Hailey.
Não obtivemos sucesso nas duas primeiras horas. Já perdíamos para a exaustão quando, de repente, as coisas começaram a agradar. Os apartamentos que a tela mostrava agora eram mais aconchegantes e bem localizados.
Finalmente, Hayley escolhera um e reservara uma visita para o próximo mês. Totalmente de acordo com ela, assenti. Fora uma boa escolha.
Eu sabia que quando a busca acabasse ela iria embora, talvez por isso tenha demorado tanto para escolher um lugar.
Agora ela está diante diante da porta, prestes para ir embora e tudo o que eu quero é voltar para as horas anteriores, quando faltava um pouco mais para sua partida.
— Sua vagabunda! Eu vou sentir tanto a sua falta, Hailey.
— Eu ainda vou te ver todos os dias. E moramos na mesma cidade, Eve. Trabalhamos juntas e tudo o mais. Mas é fofo ver você com sentimentos. São lágrimas nos seus olhos?
Enxugo meu rosto de pronto, o que só reforça o fato de eu estar chorando.
— Eu espero que seja feliz, Hailey. Se cuide, está bem?
— Eu irei. Mas veja pelo lado bom, agora você pode mandar ver com Thomas sem se preocupar.
— É, tem razão. — Abraço-a brandamente. — Tchüss, Hailey.
— Tchüss, Evelyn.
E assim é selada a nossa despedida, juntamente com a porta.
Às vezes tudo o que precisamos é deitar em silêncio, fechar os olhos e pensar nas situações que possivelmente nos trouxeram a onde estamos atualmente.
Eu me deito confortavelmente, com a cabeça apoiada em dois travesseiros, pois tenho muito o que pensar.
Ironicamente, depois de tantas, eu passei a odiar despedidas. Elas sempre me deixam presa entre um estado de hibernação e um choro incessante.
Thomas me manda uma foto na qual está fazendo uma de suas caretas e uma curta mensagem de três palavras.
E estas são as melhores coisas de um dia frio cheio de despedidas.
"Ich Liebe Dich."
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