JUGHEAD
–EAÍ, CARA? FELIZ ANIVERSÁRIO.
Passei o dedo por cima da ferradura que eu tinha insistido em gravar na lápide e limpei a garganta pra controlar a emoção que estava deixando minha voz embargada. Não venho muito neste lugar. Mas, todos os anos, no nosso aniversário, faço questão de vir ao cemitério conversar com o Dylan. É difícil pensar que o cara não vai fazer 23 anos junto comigo, que estou ficando mais velho e ele está preso nos vinte anos, que morreu tão cedo.
– Tô muito puto com você nesse momento. Minha vida tá toda de cabeça pra baixo, perdi o chão. Todas aquelas merdas que sempre faço pra me proteger da dor e das tretas não tão mais funcionando. Não entendo por que você simplesmente não conversou comigo, por que usou a Betty daquele jeito, nem por que me deixou agir como um completo otário com essa mina por tantos anos sabendo que ela gostava de mim. Bom, tenho uma notícia exclusiva pra você, mano: eu também gosto dela. E agora a situação ficou tão zoada que nem consigo pensar num jeito de consertar. Todo mundo sempre encheu meu saco porque sou difícil, temperamental e complicado. Mas acontece que você tinha muitas complicações escondidas, que eu e o Cole nem conseguíamos imaginar. E, mesmo assim, era o filho preferido. Não é uma merda?
Pela segunda vez em poucas semanas, senti meus olhos se encherem de lágrimas.
– A Betty guardou seu segredo muito bem. Esse tempo todo, mesmo quando as coisas entre a gente ficaram mais intensas. A mina te ama, mas me ama também. Só que eu simplesmente não sabia o que fazer, e me afastei dela. Aí a Betty ficou tão magoada que não quer voltar pra mim, e tudo o que mais quero é ter ela de volta. É uma bosta. Amar é uma bosta. Sinto que, se você estivesse aqui, nada disso teria acontecido. Então, você é um bosta também.
É claro que não ouvi nenhuma resposta, só o som da minha respiração curta e do vento passando entre as árvores. Fazia muito tempo que não me sentia assim, sozinho de verdade, e ter perdido meu irmão gêmeo tava deixando meu coração muito apertado. Esse último mês e meio foi bem difícil. Tudo o que rolou com a Betty me deixou passado e vulnerável.
Minha reação normal a esse tipo de onda esmagadora de emoção era acabar com meu fígado de tanto beber e comer qualquer mina que olhasse pra mim. Mas a bebida não fazia minha consciência parar de gritar que eu devia ter me esforçado mais, que devia ter lidado melhor com meu choque e minha raiva. E, só de pensar em levar alguém que não seja a Betty pra cama, meu corpo congela da cintura pra baixo.
Eu estava trampando pra caramba e tentando acompanhar os passos do Gabe, trocando uma ideia com o Mark e o Alex. Estou decidido a manter esse playboy longe da Betty, mesmo que ela nem desconfie que tô fazendo isso. Tenho passado um tempão com meus amigos, lambendo minhas feridas. Apesar da Betty ter ficado chateada comigo por eu ter tentado mudar pra ser um cara melhor pra ela, acho que fiz grandes mudanças por mim mesmo, no jeito que sou, e isso não é tão ruim assim. Tava me permitindo sentir tudo o que estava rolando e, por mais que doa sentir o fracasso do meu relacionamento, pelo menos tava ligado nos meus sentimentos, em vez de afogar tudo nos meus maus hábitos.
Já ia dar “tchau” pro Dylan quando ouvi passos atrás de mim, amassando a fina camada de neve do chão. Levantei a cabeça. Senti que meus olhos se apertaram involuntariamente, e meus lábios franziram quando me liguei quem era a figura que se aproximava. Meus instintos me diziam para sair correndo antes que ela pudesse estragar meu dia, mas fiquei parado, porque a mulher estava olhando direto pra mim e, pela primeira vez, aquele olhar não era de desprezo nem de ódio.
– Mãe?
– Feliz aniversário, Jughead.
Limpei a garganta, porque não fazia a menor ideia do que dizer. Bati com os nós dos dedos naquela lápide dura e dei um adeus silencioso pro meu irmão.
– Vou nessa pra você poder ficar sozinha com ele. Tenho certeza deque hoje é um dia difícil para você.
Quase caí quando ela esticou o braço e encostou em mim. Minha mãe não me tocava de propósito fazia anos, e isso bastou pra me deixar sem palavras.
– É difícil para todos nós, mas não é por isso que estou aqui. Para falar a verdade, liguei para seu trabalho, porque queria saber se podia almoçar comigo. Pensei que você não fosse atender se ligasse no celular, então perguntei para aquele menino que mora com você se sabia onde você estava, e ele me disse que devia estar aqui.
Dei um passo pra trás porque tinha absoluta certeza de que minha mãe tinha sido abduzida por alienígenas e aquela criatura que estava na minha frente não era real. As palavras que saíam daquela boca eram surreais demais pra eu engolir.
– Cadê o papai?
– Em casa. Ele está tentando falar com seu irmão e, depois de tudo o oqueaconteceu, eu precisava conversar com você. Podemos almoçar ou tomar um café?
Eu não queria ir. Não acreditava nela, não sabia que motivos tinha pra querer falar comigo, mas era meu aniversário, e a gente estava ali, no túmulo do meu irmão. Recusar aquele convite não era uma opção viável, e achei que eu ia me arrepender depois.
– Um café seria legal.
Ela sorriu com tristeza. Quer dizer, muita, muita tristeza, e me liguei, pela primeira vez, que minha mãe também tinha um túnel de escuridão dentro dela. Talvez eu tivesse puxado isso dela. A gente foi caminhando em silêncio até o estacionamento, e fui seguindo minha mãe até Brookside, apesar de estar a fim de voltar direto pra Denver. A gente parou naquele café onde eu sempre ia com a Betty. Deixei minha mãe pagando e fui sentar num canto meio escondido, onde espichei as pernas. Dava pra ver que minha mãe estava nervosa, então tentei relaxar e não ficar tão na defensiva.
– Estou fazendo terapia. Seu pai encontrou alguém aqui na cidade especializado em luto e questões de família. Acho que tem me ajudado bastante.
Pisquei e disse:
– Isso já é uma grande mudança.
Ela me deu um sorriso triste, e consegui ver uma faísca daquela mulher que me criou, que existia antes da nossa relação ter sido destruída pela tragédia.
– Depois do que aconteceu no jantar, seu pai me deu um ultimato. Ou eu me tratava ou meu marido, com quem sou casada há 36 anos, ia embora. O FP sempre foi a única certeza na minha vida. Não conseguiria viver sem ele e tive que me dar conta do quanto ficaria sozinha se seu pai fosse embora, então enxerguei o que tinha feito com minha família.
Só consegui ficar olhando pra minha mãe, em estado de choque. Não sabia o que dizer, então fiquei tomando meu café e olhando pra ela.
– Você me perguntou como eu era capaz de amar o Dylan sabendo que ele era diferente, se sempre foi difícil lidar com você. Quero tentar me explicar. Não é uma desculpa. Nosso relacionamento nunca foi fácil. Nunca tive com você a mesma proximidade que tinha com seu irmão, e isso começou quando vocês nasceram, prematuros. É comum acontecer isso com gêmeos, só que você nasceu forte, chorando a plenos pulmões. O Dylan não teve a mesma sorte. Estava com o cordão umbilical enrolado no pescoço, sentado. O parto foi muito difícil, e ele quase não sobreviveu. Bom… desde o começo, acho que cuidei mais dele do que de você, o que faz de mim uma péssima mãe, mas isso não significa que não amava vocês dois. O Dylan foi amamentado, você queria mamadeira. E, quando já estavam na idade de aprender a andar, ele segurava meus dedos e cambaleava pela casa, mas você levantava sozinho, se segurando no Cole, e saía andando sem minha ajuda. Seu irmão sempre precisou de mim, sempre me quis. E você… Bom, você era igualzinho ao que é hoje: independente, corajoso e determinado a abrir seu próprio caminho no mundo à força, e eu simplesmente deixei você ser assim. Eu e seu pai não prestamos a mesma atenção em você.
Eu mal conseguia respirar, mas tava tão concentrado no que minha mãe estava dizendo que isso passou batido.
– Quando o Dylan levou a Betty lá em casa, fiquei tão animada. Ele nunca tinha demonstrado interesse por outras meninas, e seu pai flagrava pelo menos uma garota por semana espiando na sua janela. A gente estava começando a juntar as peças do quebra-cabeça, mas eu estava convencida de que o Dylan estava apenas esperando a menina certa, e a Betty era perfeita: amável, educada, de boa família. Nunca me ocorreu que ela era frágil demais e tinha sido muito machucada pela própria família para ficar com alguém tão gentil e delicado quanto o Dylan. Ela precisava de alguém forte, que não tivesse medo de todas aquelas coisas que a atormentavam dia e noite. É claro que escolheu você. Ela sempre te amou. Eu percebia, seu pai percebia, e, apesar de saber que o Dylan fazia todo mundo pensar que eles namoravam, era mais fácil acreditar do que lidar com a verdade.
Ela parou de mexer no copo e olhou bem dentro dos meus olhos atônitos. Estava com os olhos cheios de lágrimas, o que não era nenhuma novidade pra mim. Mas era a primeira vez que suas lágrimas pareciam de arrependimento verdadeiro, sem aquela raiva autoritária que me culpava por tudo.
– O Dylan me ligou na noite do acidente. Eu sabia que ia buscar vocêe disse para ele não ir, porque você já era adulto e podia se virar sozinho. Seu irmão ficou muito bravo comigo, disse que eu precisava superar o que me impedia de aceitar você, de te amar abertamente e sem restrições, como eu o amava. Fiquei furiosa, disse que ele não tinha o direito de me dar sermão sobre meu relacionamento com você porque vivia uma mentira. A gente teve uma briga enorme. Foi bem feia mesmo, e eu o ameacei. Disse que ia contar para vocês quem ele era de verdade, e o Dylan ficou louco da vida. Desligou o telefone e foi buscar você, e essas foram as últimas palavras que eu disse para o meu filhinho.
Minha mãe tava chorando de verdade, e só consegui ficar lá sentado, absorvendo tudo o que ela falava.
– Eu disse que você é que deveria ter morrido no lugar dele, pus todaa minha dor e culpa sobre seus ombros porque fui fraca demais para me responsabilizar pela minha participação na morte do Dylan. De todos nós, você é o mais forte, e o que melhor lidou com a situação. Era muito mais fácil te culpar do que olhar para você e assumir o que eu tinha feito. Você nunca me amou como o Dylan me amava e, quanto mais eu afastava você, menos culpa sentia. Desculpe por ter feito isso, você nunca mereceu. Eu achava que você já tinha me deixado para trás, e perder você me parecia menos doloroso do que perder o Cole. Mas agora me dou conta de que você nunca me deixou para trás: fui eu que empurrei você para longe de mim com toda a força que pude, e isso não é saudável nem aceitável.
A gente ficou sentado em silêncio, tentando entender o que tinha rolado. Eu simplesmente não conseguia aceitar as desculpas dela. Tinha passado muito tempo, e a gente tinha se magoado muito. Mas consegui reconhecer que todos somos seres humanos, que podem cometer erros terríveis com as pessoas que amam, e que podíamos tentar resolver aquilo dali pra frente.
– É muita coisa pra assimilar, mãe, e não sei direito o que esperar depois de tudo isso que você disse.
Ela secou as lágrimas com as costas das mãos e meu deu mais um sorriso triste e culpado.
– Não espero nada. Quero apenas que você saiba que eu e seu pai queremos unir a família novamente, e isso inclui a Betty. Sei que está louco da vida porque ela não contou nada sobre o Dylan, mas também percebi o jeito como vocês dois se olham. Vi como você trata a Betty, Jughead, e sei que nunca tratou ninguém desse jeito. Ela sempre achou que você valia a pena, que precisava ser amado, mesmo quando você se esforçava ao máximo para convencer todo mundo de que não precisava de amor. Só acho que devia ter pensado nisso antes de ter resolvido terminar com ela.
Será que minha mãe, a mulher que, nos últimos três anos, só se empenhou em me transformar na forma mais baixa de vida da face da Terra, tava tentando me dar conselhos sentimentais? Sério, ela estava me dizendo pra tentar voltar com a Betty?
– Foi ela que terminou comigo. Disse que só tentar não bastava, que precisava ter certeza de que era amada, e eu simplesmente não consigo fazer isso. Não sei mesmo se a gente faz bem um pro outro.
Minha mãe esticou o braço até o outro lado da mesa e pegou minha mão, que tava parada perto do copo de café. Quase pulei de susto.
– A Betty precisa da sua força, e você precisa ensinar a ela sua forma de amar. Essa menina saiu de uma família realmente terrível, Jughead. Precisa de alguém que fique ao lado dela enquanto tenta lidar com essa situação, e você precisa de alguém que não tenha medo de você, alguém que possa amar todas as suas facetas e não pedir para mudar nenhuma delas. Ela faz isso há anos, fazia quando você nem desconfiava. A Betty era leal ao seu irmão, guardou o segredo dele mesmo quando isso começou a causar problemas entre vocês dois, e vai ser leal a você também.
Ficamos sentados em silêncio enquanto aquelas palavras entravam na minha mente. Eu não sabia o que dizer, mas tinha certeza de que minha vida sem a Betty não era a mesma. As últimas semanas foram vazias. Senti muita falta dela, e não só na cama. Senti saudade dela de manhã, na hora de tomar café. Senti saudade de receber notícias dela à tarde e mandar torpedinhos safados, que eu sabia que iam deixar minha namorada corada.
Senti saudade de ela passar no estúdio pra jantar e ficar estudando. Eu simplesmente tinha saudade da Betty, e nada era muito bom quando ela não tava por perto.
– Preciso te dizer que este é o aniversário mais surpreendente que já tive.
– Você merece ter um pouco de paz, e eu preciso me responsabilizar pelo papel que desempenhei, tornando difícil pra você reconhecer um amor verdadeiro e sincero, que estava bem no seu nariz.
– Tá na minha hora.
Levantei da mesa e olhei pra minha mãe. Fiquei feliz que ela não levantou pra me dar um abraço, porque eu não ia dar conta. Mas me deu um sorrisinho que não me recusei a retribuir.
– Obrigado, mãe.
– Você merece coisas maravilhosas, Jughead, Incluindo uma família felize saudável.
– Uma coisa de cada vez, mãe.
Eu tava saindo do café quando quase tropecei numa morena baixinha que ficou dando em cima de mim da última vez que passei por lá. Segurei os braços da mina pra ela conseguir se equilibrar e soltei, para poder passar. O que eu precisava fazer, o que tinha que fazer, ficou de repente tão claro na minha cabeça que parecia aquela luz no fim do túnel. E eu tinha certeza, certeza absoluta, de que, se eu desse um jeito naquilo, a escuridão não ia mais me dominar.
– Desculpe.
Eu ia contornar a morena, mas ela se enfiou na minha frente e ficou bem no meu caminho. Fiz uma careta, e a mina ficou batendo aqueles cílios longos pra mim e falou:
– Tá sem namorada hoje? Que desperdício!
Me encolhi todo, porque esse era tipo meu destino: minas que se jogam em cima de mim, que iriam pra casa comigo mesmo sabendo que não era solteiro. Isso pra mim já era, mereço coisa melhor.
– Na verdade, estou indo buscá-la.
A morena tentou fazer um beicinho bonito, mas nem liguei.
– Nunca pensei que você e a Betty iam acabar juntos. Ela é frígida desde o colégio, e achei que era apaixonada pelo seu irmão. Você não surta só de pensar que está substituindo o cara?
Normalmente, eu teria um ataque de raiva depois de ouvir uma dessas, perderia total a cabeça. Mas agora eu tinha entendido: essa mina não era nada. Não tava nem aí pra opinião dela, que, aliás, tava muito mal informada. Não ia mais permitir que ninguém, muito menos uma desconhecida sem noção, usasse o Dylan contra mim.
– Tá na minha hora. Da próxima vez que vir você, vou dar um jeito de ir pro outro lado.
A mina ficou sem ar, de tanto ódio, mas nem liguei. Tava muito ocupado tentando desviar dela e mandar um torpedo pra Toni, pra saber se a Betty ainda tava morando na casa dela.
Nada me garantia que a Toni ia me responder, porque as minas tinham virado unha e carne. E ela era super a favor de eu ficar bem longe da Betty.
Mas, talvez porque fosse meu aniversário, ela só disse que a Verônica e a Betty tinham trabalhado de dia e deviam estar em casa. Queria trocar uma ideia com a Betty sem plateia, ainda mais que, naquele momento, a Verônica não era uma das minhas maiores fãs. Mas tava disposto a tirar a mina da minha frente se me impedisse de falar com minha namorada.
Já era quase fim da tarde quando cheguei em Denver. Fiquei feliz de ter tirado o dia de folga, levando em consideração todas aquelas revelações bombásticas e inesperadas. Tinha marcado de jantar com os caras, e depois a gente ia fazer uma festinha no Cerberus. A banda do Reggie ia tocar, e todos os meus amigos e clientes fiéis iam passar lá pra tomar uma. Pena que o Cole já tinha ido embora. Me aproximei muito do meu irmão no tempo em que ficou por aqui. Falei um monte de vezes que ia beber a parte dele, pro cara estar presente na festa pelo menos em espírito. Mas a única coisa que eu sabia era que não ia ter comemoração nenhuma enquanto não encontrasse a Betty e falasse tudo o que tinha para dizer.
Muitos usuários deixam de postar por falta de comentários, estimule o trabalho deles, deixando um comentário.
Para comentar e incentivar o autor, Cadastre-se ou Acesse sua Conta.