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História Noite infernal - Um homem? (parte 1)


Escrita por: Bellalm

Capítulo 4 - Um homem? (parte 1)


- Meu deus!

Aquelas palavras se perdiam na confusão de exclamações, suspiros e sussurros que, separadamente, não seriam ouvidos por ninguém que não estivesse suficientemente próximo, mas, juntos, sendo emitidos simultaneamente, formavam um zumbido irritante, quase como uma voz coletiva e fantasmagórica. Aquela gente costumava se achar tão culta e superior, que até sua maneira de ter choque devia ser diferente.

Aquela era a parte nobre da cidade. Ao contrário dos pobres, que se reuniam em diversos pontos diferentes, aqueles estavam todos concentrados na mansão do Lorde Terringson, uma das presenças mais ilustres e abarrotadas de dinheiro daquele lugar. Nos jardins luxuosos e no balcão principal, pessoas se reuniam para conversar, beber e comer elegantemente, quase como se não estivessem reunidos para afastar demônios, mas para mostrar às damas seu novo vestido, ou aos cavalheiros a sua nova dama.

Era raro vê-los festejar do lado de fora, e um desperdício, considerando a grandiosidade dos salões de festa da mansão. No entanto, já era um costume que aquele festival fosse realizado ao ar livre e, mesmo que a tradição começasse a se perder, ela ainda tinha sua força. Os enfeites continuavam sendo vermelhos e chamativos, mas muito mais elaborados. As toalhas de mesa, por exemplo, eram até mesmo bordadas à mão. Aquilo seria um deleite a uma presença maligna com gosto requintado, que apreciava as coisas belas e de classe.

Bem, aquele não era o meu caso. Talvez a vulgaridade, o barulho, o cheiro pegajoso e a alegria ingênua das pessoas pobres combinassem mais com o meu paladar. No entanto, aquele lugar luxuoso e cheio de frescuras tinha lá seus encantos. Atiçava meu apetite.

A comoção se dava em volta de dois homens. Um deles, mais magro e com cabelos loiros, estava pálido como um fantasma e tinha o colarinho agarrado pelo outro, que tinha pelo menos o dobro do seu tamanho. O agressor tinha quase 1,90 de altura e ombros largos. Não era possível ver com clareza, por causa do terno cheio de detalhes e frescuras, mas ele devia ter um corpo musculoso também. Pelo menos era o que se sugeria pelos seus antebraços expostos, pois ele arregaçara a manga da camisa para que pudesse sacolejar o outro, como fazia, sem impedimentos.

Ao contrário do loiro, que parecia completamente assustado, o outro parecia se divertir. Tinha um sorriso enorme no rosto, mas olhos fulminantes que sugeriam que aquilo não era brincadeira de criança. Tinha os cabelos castanhos e ondulados, pouco maior que os ombros, presos num rabo perfeitamente amarrado, sem nenhum único fio de cabelo fora do lugar.  A pele era levemente bronzeada e os olhos castanhos que beiravam o verde. Embora fosse tão grande e com uma beleza agressiva, sua suavidade se mostrava em seu rosto jovem e quase ingênuo. Ele havia se tornado um homem há muito pouco tempo, ou talvez nunca tenha se tornado.

- Saia da minha frente, imbecil. – rosnou entredentes.

Soltou bruscamente o homem pálido e desnorteado que, com dificuldades, ajeitou a postura e o colarinho, e se retirou como se nada tivesse acontecido, mas com os olhos arregalados como de quem vira o próprio Diabo. O outro suspirou e ajeitou suas vestes, só então olhando ao seu redor e percebendo todos os olhares reprovadores e os cochichos ao seu respeito. Sem dar muita atenção, retirou-se também, indo em direção ao lago, que ficava consideravelmente afastado de toda a festividade.

- Esse menino é uma vergonha. – uma senhora comentou com desgosto.

- É bom que os pais não tenham comparecido, ou estariam profundamente constrangidos. Ele desonra o nome da família. – outra continuou.

- Causar briga num lugar como esse, na presença de tantas personalidades nobres! E ainda sem propósito algum...

- Dizem que ele é como um cão raivoso. Ataca sem motivos, tudo pelo prazer do conflito.

- É verdade. Soube de fontes seguras que ele volta para a casa todas as manhãs embriagado e encharcado de bebidas baratas e sangue. Cambaleando pelas ruas como um indigente, e sujando os punhos com homens imundos e sem conduta.

- O rapaz passou tempo demais com os cavalos, senhoras. Talvez tenha aprendido alguns hábitos.

Os comentários continuaram, e vinham das mais diversas bocas. Ele tinha o costume de ser o centro das atenções, mas negativas, frequentemente. Aproximando-se do lago, viu a bela silhueta de costas, com a cintura minúscula no espartilho branco, e uma sombrinha de rendas sobre a cabeça. Quase não havia sol naquela manhã, que era fresca e nublada, como se pressentisse os horrores que viriam durante a noite, mas ela devia usar o acessório por costume ou moda.

- Está começando a ficar frio. – a moça comentou, mas o clima era ameno. Apenas as rajadas de vento poderiam ser consideradas frias, mas começava a ventar muito. Na outra extremidade do lago, uma fina camada de neblina. As condições climáticas pareciam tão caóticas quanto a cidade. – Hoje é um dia que transpassa até mesmo as barreiras do clima.

- Está com raiva, não é? – o homem foi seco. Parou ao lado dela, que continuou olhando o lago como se ali, naquelas águas escuras, houvesse um segredo a ser desvendado. – Não nos vemos há mais de um ano, e isso é tudo o que tem a me dizer?

Ela por fim olhou em sua direção. Tinha a pele muito branca, ainda mais embranquecida pelo pó em seu rosto, em contraste com as bochechas e lábios vermelhos, com uma maquiagem discreta, mas que afastava qualquer possibilidade de naturalidade. Os cabelos escuros, quase pretos, estavam amarrados num belíssimo coque. Seu vestido era branco e rendado como a sombrinha que segurava. Cada parte de seu corpo estava coberta, exceto o pescoço e o rosto. As mãos pequeninas que seguravam o cabo da sombrinha com força e segurança também estavam cobertas por luvas rendadas. Ela parecia uma boneca.

Tinha olhos pequenos e muito redondos, e lábios finos. Era pequena e magra, mas tinha uma presença imponente. Seus olhos oscilaram ao cair na figura à sua frente, no homem que era tão diferente de si, física e psicologicamente. Ainda assim, havia uma atração palpável entre os dois.

- Faz um bom tempo, Vincent. – ela disse por fim, dando um sorriso forçado e rápido. – Mas você não mudou nada.

- O que eu deveria fazer, Martha? – ele praticamente gritava, mas o isolamento dos dois impedia que qualquer um pudesse ouvir aquela conversa íntima. – Meu coração quase parou quando te vi aqui. Você nunca me disse quando iria voltar. E você está ainda mais linda do que eu me lembro! – ela desviou o olhar. – E então eu espero o momento adequado para falar com você... E quando me dou conta, lá está você, encurralada por aquele nojento... O que ele disse para te levar até um lugar isolado como aquele? Atrás dos arbustos!

- Ele apenas disse que queria conversar e me arrastou... Tive medo de causar uma comoção. Mas não fez diferença, já que você já o fez por mim.

- Não fique envergonhada, ninguém sabe do seu envolvimento. Esperei que estivesse longe para dar um jeito naquele patife... E foi só um susto. Por mais que eu quisesse quebrar a cara dele, não o fiz. Por você.

- Há muitas coisas que você clama ter feito por mim. Mas foram todas por você, Vincent. – ela tinha um olhar amargurado. – Eu não preciso que você me salve. Se não tivesse chegado lá, eu teria saído de qualquer forma. Mas brigar daquele jeito, como um cão... Você sabe o que as pessoas dizem sobre você.

- E eu não ligo.

- Eu sei que não liga. Se ligasse, não agiria assim. De qualquer forma, não temos muito a conversar. Hoje é um dia importante, não devemos passá-lo falando sobre mágoas do passado.

- Quando? – a expressão de Vincent era subitamente devastada.

- Quando o quê? – ela ficou confusa.

- Quando vai embora de novo? Quando vai voltar para o exterior?

- Como você...

- Eu vi em seus olhos que não veio para ficar. – ele a interrompeu. – É por isso que tem dificuldades em olhar para mim.

- Amanhã. Estou aqui há uma semana, mas preciso retornar. Meus estudos me aguardam; falta apenas um ano e eu estarei pronta para viver em sociedade como uma excelente dama. A escola para meninas lá é incrivelmente diferente das coisas que aprendemos com nossas mães nesse lugar isolado e triste. E, até lá, eu já terei um marido me esperando. Minha mãe já começa a procurar candidatos...

- Você sequer me considera?

- Vincent, eu não posso! – ela finalmente perdeu a compostura. – Meus pais nunca o aceitariam. Ninguém nunca o aceitaria. Mas você sabe que esse não é o problema. Foi ótimo te rever e relembrar todas aquelas coisas boas. Mas acabou e devemos seguir em frente. Nós dois.

- Martha... Eu sei que não é isso que quer. Como pode aceitar tão facilmente? Como vai estar com outro homem, dormir ao lado dele todas as noites, quando ainda pensa em mim?

Vincent tocou o rosto dela com ternura e se aproximou, tentando capturar seus lábios. Martha pareceu enfeitiçada por alguns segundos, mas logo voltou a usar a razão e virou o rosto, impedindo o beijo. Sua expressão era carregada de amargura, e agora ela parecia uma pintura.

- Eu amo você... – ele sussurrou. Parecia prestes a chorar. – Você costumava me amar também.

A expressão de Martha se tornou ainda mais amarga e seus traços se deformaram no que parecia ser agonia e tristeza. Ela olhou no fundo dos olhos de Vincent, antes de dar um passo para trás e começar a se afastar, caminhando em direção às festividades.

- Eu ainda amo. – foi o que disse. – Mas você está doente. Não pode amar ninguém assim.

 

- Venham. – Charles pedia em sussurros.

Os três haviam conseguido entrar porque um dos criados o conhecia e concordou em ajudar, porque Charles inventou uma história absurda de que precisava falar com Vincent um assunto urgente, que não poderia esperar nem um dia. Ainda assim, agora se esgueiravam como ratos, porque se fossem vistos pelos convidados rapidamente seriam jogados na rua como cães sarnentos.

Mas ele era muito inteligente e havia bolado um plano, pensando em todos os detalhes. Dentre eles, uma das irmãs era a que mais estava vestida apropriadamente, e que mais tinha chances de ser aceita: a de vestido vermelho. Já ele e a outra, com aqueles farrapos de camponeses, jamais poderia passar por nobres, mesmo que possuíssem uma beleza clássica e elegante, muito mais do que todas aquelas pessoas de nariz em pé ali.

Charles conhecia um pouco da casa. Por isso planejava se esgueirar pelos corredores até encontrar um quarto importante, e roubar algumas roupas. Aquilo poderia levar horas até que encontrassem algo útil, ou poderiam facilmente ser flagrados por alguns dos empregados. Mas ele estava decidido a tentar.

Mas nem todo mundo estava.

- Não façam barulho. Logo estaremos apresentáveis. – comentou Charles. – Vamos entrar pela porta da frente, porque a dos fundos dá direto na cozinha, que é justamente o cômodo que deve estar mais movimentado hoje. Entrando pela frente, passaremos pelo salão principal, subiremos a escada e no corredor, podemos tentar as três primeiras portas à direita, que acredito pertencer a visitantes... Geralmente algumas roupas ficam nos armários para casos de emergência, mas se estiverem recebendo convidados hoje será ainda mais fácil...

Antes que Charles pudesse terminar de falar, acompanhou o olhar de uma das mulheres, só então notando que a outra desaparecera. Ela estava a alguns metros de distância, do outro lado, escondida por detrás de um arbusto. Em frente a ele, um casal flertava, aproveitando o sossego e a distância dos outros.

Charles arregalou os olhos e tentou gesticular para que ela voltasse imediatamente, mas ela apenas abriu um sorriso gigante e travesso. Como uma criança teimosa, faria exatamente o contrário do que lhe estava sendo dito. Embora Charles estivesse em pânico, pensando que ela poderia colocar tudo a perder e já calculando a enrascada em que se meteria depois, tendo que se explicar porque não só tinha invadido a festa, como também levado duas estranhas, a irmã gêmea continuava observando como se absolutamente nada demais estivesse acontecendo. Ele só sabia quem era quem porque a que o olhava com um sorriso maldoso, e agora até mesmo acenava, estava usando trapos semelhantes aos dele.

Começava a distinguir a personalidade das duas. A de vermelho era enigmática, silenciosa, quieta e inexpressiva. Gostava de coisas belas e elegantes, como as roupas que usava ou vinho. Olhava para tudo como se estivesse constantemente conspirando algo, ou vendo coisas que ninguém mais podia ver. Já a outra, era seu completo oposto. Barulhenta, exagerada, extrovertida. Estava sempre sorrindo ou gargalhando, conversando animadamente, pulando de um lado para o outro como uma criança. Empolgava-se com quase tudo e poderia parecer pura e infantil, mas havia algo em seus olhos ou no sorriso que a tornava extremamente perturbadora. Suas ações começavam a demonstrar isso também.

O coração de Charles quase parou quando a viu saltar habilidosamente atrás da mulher, e com um só movimento dá-la uma cotovelada na nuca, fazendo com que ela caísse no chão. O homem arregalou os olhos, atônito, e seu choque fez com que ele ficasse paralisado tempo suficiente para que ela olhasse em sua direção, colocasse o dedo nos lábios pedindo silêncio, e o desse uma cabeçada, fazendo com que ele também caísse no chão.

O golpe na nuca havia sido mais eficiente, pois a mulher estava claramente desacordada. Mas o homem não, e ele logo começou a tentar se levantar, grunhindo, mas ela o deu outra pancada forte na cabeça.

Charles correu até ela, completamente desesperado. A irmã gêmea o seguiu, flutuando atrás dele, como se não tivesse muita pressa e aquilo não fosse nada demais.

- O que está fazendo? – ele quase gritou, ao ver que, mesmo que o homem estivesse no chão, ela ainda o dava uma última pancada: um chute, sempre na cabeça.

- Ele é forte, não desmaia tão facilmente. Temos que ter certeza de que está mesmo inconsciente. – ela se explicou, piscando os olhos de forma que poderia ser adorável, mas para Charles parecia macabra.

- Você é louca? Não estava pensando em machucar ninguém! Se alguém encontrá-los teremos problemas. – ele continuou protestando.

- Faz sentido. – a outra, que tinha permanecido em silêncio até então, comentou tocando o queixo, com uma expressão pensativa. – Não está preocupado porque ela machucou essas pessoas, mas porque alguém pode descobrir. Você não se importa com elas, mas se importa com o que os outros podem pensar de você.

Charles ficou boquiaberto, chocado com a exatidão do comentário e também com a capacidade de percepção dela. Por isso estava em silêncio, apenas observando. A outra gargalhou, como se tivesse acabado de ouvir uma piada. Sua risada parecia a de uma criança.

- Por que atacou a mulher primeiro? Ele poderia ter te ferido, se não tivesse ficado embasbacado. – comentou Charles, apontando para o homem desmaiado. Só então notou que um feixe de sangue escorria pela testa dele.

- Porque ela era barulhenta. Se tivesse o atacado primeiro, ela gritaria e causaria um alvoroço. E isso tudo tem que ser segredo, não é? – ela voltou a colocar o dedo nos lábios, como fizera com o homem minutos antes.

Charles assentiu, um pouco comovido com a esperteza dela. Não que a achasse burra, mas seu jeito de falar e de se comportar sugeria que ela era cabeça de vento ou completamente impulsiva. Mas, pelo contrário, ela tinha um raciocínio rápido e aguçado, e perceber aquilo o fez comentar em voz alta quase sem perceber:

- Você é esperta.

- É. – ela riu. – Sou a mais inteligente das três.



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