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História Notas Amarelas - Entrada negada


Escrita por: VickdeNariz

Notas do Autor


Nossa, parece q tem meses q eu ñ att essa fic. Ñ, pera-
Agora tá explicado pq ser meu leitor é castigo, mas segurem com carinho esses 8k de palavras escritos com sangue e lágrimas, pfv🥺

Capítulo 3 - Entrada negada


Fanfic / Fanfiction Notas Amarelas - Entrada negada

Irritada e impaciente, Alice tirou o celular da calça pela segunda vez no dia e observou mais um minuto ser acrescentado na hora digital conforme a porta à sua frente permanecia impenetrável, quase como que debochando de sua incapacidade de ultrapassá-la.

— Sophia, por favor, vamos nos atrasar.

— É você quem vai se atrasar se continuar me esperando — gritou, a voz abafada do outro lado da porta.

Respirando fundo para não ceder à vontade de esmurrar a porta usando de toda sua raiva reprimida – pois o medo dos vizinhos pensarem que as novas moradoras fossem duas escandalosas sem consideração pelo sossego dos outros era maior –, Alice soltou o ar, longa e o mais calmamente possível, e girou a maçaneta com um pouco mais de força, mas, como na primeira tentativa, a porta não se abriu. Estava trancada.

— Você não pode faltar, não vai ter graça sem você — insistiu.

Depois de um tempo em silêncio, talvez pela ruiva se sentir tocada pelas suas palavras, acrescentou:

— O que pode ser mais importante que o primeiro dia de faculdade?

— Um dia inteiro de bobeira em casa. Talvez eu ache um porão secreto com um livro amaldiçoado ou cuide do jardim.

— Mas você odeia terra — estranhou, e logo ouviu um resmungo que poderia ser uma concordância ou uma reclamação, porém aquilo não lhe importava no momento. — Não era você quem estava empolgada para conhecer sua alma gêmea no primeiro dia?

— Isso foi antes.

— Antes do quê?

Com o som do colchão se movimentando, o sorriso de Alice se alargou, enquanto pés descalços soavam cada vez mais próximos sobre o piso de madeira, até pararem na porta.

— Promete que não vai rir de mim? Nem me julgar?

— Prometo. Agora, por favor, abre a porta?

Suspirando de forma cansada, Sophia girou a chave na fechadura e puxou a porta devagar, mantendo a maior parte do corpo escondido atrás da madeira. Sentia-se envergonhada com os olhos amarelos em si, julgadores, e não a culpava por isso; além do quarto estar uma bagunça, com roupas jogadas no chão e na cama, tinha certeza que não havia se comportado bem na noite anterior e, não menos importante, sabia que estava visualmente horrível, com o pijama torto, o rosto expressando claramente sua dor de cabeça e o cabelo igual um ninho de rato. 

Sophia havia tido uma péssima noite e não queria lidar com nada no momento, mas não restava outra escolha senão ceder; Alice era uma pessoa insistente.

Tentando não se abalar com o quão derrotada aparentava, Sophia virou as costas e se jogou na cama com o coração acelerado. Quase imediatamente sentiu a boca ficar seca sob a pressão do olhar da loira, que puxou a cadeira do computador e sentou-se, mal desviando o olhar de si.

— Aconteceu algo depois de eu ir embora? Não era para eu ter ido embora sem te avisar, mas… — "Mas um Relojoeiro me encurralou na sala e eu não pensei antes de sair correndo", era o que iria dizer, porém calou-se ao ver Sophia levantar o rosto do travesseiro e balançar a cabeça negativamente.

— Sei que não é muito chegada em festas. O problema é outro, e o pior é que o Noah e um monte de gente estava lá quando aconteceu.

Alice se inclinou na cadeira, mais curiosa ao ouvi-la e vê-la abaixar os olhos para as próprias mãos.

— Estou com um pouco de vergonha de contar. Para ser sincera, nem eu sei direito como aconteceu, minhas lembranças estão um pouco borradas — admitiu com uma risada sem graça. A expressão de Alice logo se transformou na acusadora tão conhecida por si, como se já imaginasse o que teria acontecido, mas Sophia não lhe deu chance de interromper: — Jackson é um cara interessante e comunicativo, sabe? Você conversou com ele; totalmente o meu tipo. E depois do tour… 

Suspiros apaixonados deixaram a boca de Sophia conforme Alice apertava os olhos, desconfiada de quais palavras sairiam em seguida, mas não havia porque ter dúvidas de quais seriam, não era como se não conhecesse a garota e seu histórico iludido para com garotos. Era óbvio que Sophia havia sido conquistada pelas palavras educadas do rapaz sobre a universidade, cursos, hobbies, sonhos e os lugares que ela "não poderia deixar de conhecer da cidade"; haviam sido trinta minutos de conversa em frente à casa antes de serem interrompidos por um quarteto de rapazes e, segundo Sophia, antes da bomba japonesa ser lançada por Joseph e cair por terra entre eles.

— Quem?

— Joseph, um linguarudo quatro-olhos — resmungou, estalando a língua em aborrecimento. — Tudo bem que eu estava sendo discreta, mas ele não percebeu nosso clima romântico?! Sério?! O cara escolheu o pior momento para falar de ex!

Por um momento Alice sentiu vontade de rir da exaltação da amiga, mas se segurou quando Sophia voltou a narrar a história, levemente triste ao revelar que após todo o esforço de escolher a roupa da festa e horas analisando as roupas que tirou das malas, não acreditava que tanto esforço e dedicação haviam sido desperdiçados com o primeiro cara que enxergou potencial em poder se tornar seu tão sonhado "marido universitário", justamente o primeiro cara que a rejeitou na cidade.

— Eu me senti humilhada. Você não viu como ele ficou balançado com a volta dela, Harumi ou algo assim. Saí de perto e me encontrei com o Noah, depois passei um pouco do limite com a bebida.

Alice levantou as sobrancelhas, desacreditada com o "pouco do limite" a que ela se referia quando o amigo bateu em sua porta às uma da manhã com uma ruiva dormindo de bêbada nos braços.

Sophia não lembrava com exatidão os acontecimentos depois de começar a beber; lembra-se de suas reclamações, da tentativa de Noah de apartar sua raiva e da intromissão de uma estranha de olhos puxados. Se Sophia estivesse em seu juízo perfeito naquele momento, recordaria mais claramente da conversa sobre "homens e suas exigências visuais", mas Sophia não se lembrava disso, é claro, essa lembrança fazia parte daquelas descartadas pela bebida, misturada às inúmeras reclamações sobre a japonesa desconhecida. Tudo que a ruiva conseguia lembrar – e infelizmente com uma precisão grande demais – era que aquele rosto bonito que a aconselhava gentilmente não era asiático por coincidência; aquela estranha era a própria Harumi, infiltrada na conversa que tinham pelas suas "costas".

— E isso nem é o pior de tudo! Ela é linda, realmente linda! Tão linda que forma um casal perfeito com Jackson. De pele branquinha, a maior fofura com a franja tapando a testa. Quase me apaixonei também, mas aí eu vi aquele sorriso vermelho e venenoso e… não ria!

— Desculpa, desculpa. Continua — pediu, sem fôlego, cobrindo a boca com a mão enquanto se inclinava levemente para frente na cadeira. — O que aconteceu depois?

A ruiva soltou um resmungo irritado, cruzando os braços ao terminar:

— Eu caí em cima dela.

— Você brigou com ela?!

— O Noah me segurou quando fui puxar o cabelo dela e eu fiquei me debatendo. Mas eu não bati em ninguém, ok? — completou, suavizando a expressão assustada da loira. — Só pisei no pé dele. No final eu tinha bebido muito e saí cambaleando, escorreguei e a Harumi me segurou antes de eu bater a cara no chão.

— Foi só isso?

— Claro que não! Um monte de gente me viu caindo de bêbada e o nosso beijo!

— Beijo de quem? — Alice piscou, aturdida.

Beijo; era incrível como uma única e tão simples menção a isso podia causar tantos arrepios e sentimentos especialmente ruins em alguém. Era como se Sophia fosse explodir de vergonha apenas por sua pronúncia.

— Mais que merda… — resmungou, cansada, esfregando com força o rosto corado. — Não sei o que eu estava pensando quando puxei ela para um beijo. Acho que eu estava muito alterada, não pensei no quão idiota a ideia…

— Espera, espera, espera! Você beijou ela?! A Harumi?!

Aquela era definitivamente a pior lembrança que a bebida poderia ter lhe deixado: o lembrete do coração disparado ao ver Jackson entre os curiosos com a briga; a adrenalina quando, num impulso, puxou o rosto de Harumi em direção o seu; o impacto dos seus lábios se juntando e o gosto amargo de vodka, desgosto e rancor em meio o beijo – sua vingança nem um pouco perfeita.

Frente o rosto espantado e a posição curiosa de Alice, Sophia não se conteve em segurar os joelhos perto do peito e esconder o rosto vermelho entre eles. 

— Parece que foi tudo um sonho muito louco, a Harumi, o Jackson, o beijo… as imagens não param de surgir na minha cabeça!

— Eu realmente não esperava por isso quando fui embora — Alice confessou, encabulada. — O Noah viu também, não é? Porque ele te trouxe da festa.

— Todo mundo que estava lá viu — lamentou em voz alta, levantando o rosto marcado e sofrido dos joelhos. — Minha imagem foi manchada antes mesmo de pisar na universidade!

— Achei que não se importava com o que dissessem de você. Por que está tão nervosa? Foi só um beijo.

— Claro, um beijo que eu troquei com a menina que quase saí no tapa, a mesma menina que o Jackson, o veterano bonitão, gosta.

— Ele não é tão bonito — desdenhou, fazendo sinal para a ruiva se acalmar. — Existem coisas mais importantes que isso, por exemplo: será que na verdade você é lésbica?

— Idiota! — Irritou-se, jogando um travesseiro no rosto vermelho de tantas risadas. — Estou falando sério! Não me imaginava ficando bêbada e saindo brigando e beijando meninas estranhas.

— Embebedar-se e beijar desconhecidos não é tão fora do comum, vai ficar tudo bem se você só ignorar os outros como sempre fez — disse suavemente enquanto limpava as lágrimas dos cantos dos olhos.

— Mas isso não envolve só eu. E se eu me encontrar com a Harumi ou o Jackson de novo? Que cara eu faço?

Alice deu de ombros.

— Finja que não se lembra da noite passada. Não é estranho encher a cara e acordar sem memória no dia seguinte.

Sophia calou-se um instante, depois concordou.

— Ok, acho que posso usar essa desculpa. Agora... — hesitou, sem jeito. — E se você estiver certa sobre eu ser lésbica? Não que eu me sinta atraída por mulheres, mas eu beijei uma. Isso me faz bissexual?

— Acho melhor você tomar um banho para esfriar a cabeça. Eu vou esperar na sala — disse, jogando o travesseiro de volta para a ruiva.

— Estou falando sério! — insistiu, assustando-se ao vê-la negar com a cabeça e sair do quarto como se nada tivesse escutado. — Meu subconsciente bêbado disse!


 

 

~ Dylan --

A temporada de verão em setembro era no mínimo curiosa. Observar o céu e as pessoas do terraço de um prédio qualquer nunca deixava de ser revigorante para Dylan, mas o curioso não era o rapaz de aparência deprimente olhar a paisagem a uma altura mortalmente perigosa, e sim a paisagem em si.

O sol estava particularmente quente nesse dia, Dylan o notava pela quantidade de pessoas recolhidas sob toldos e bebericando suas bebidas geladas, e talvez fosse esse o charme em observar as pessoas no verão: a disposição que encontravam em ignorar a alta temperatura e se divertir em festivais ou simplesmente continuar seus afazeres cotidianos; Dylan achava uma coisa estranha e incrível de ver, e não poder aproveitar tal cenário no momento chegava a ser lamentável, para não dizer desesperador.

— Mortais não veem ceifeiros. Pelo amor de Deus, Dylan, a menos que você seja um Nível 2 e queira ser visto, isso é impossível. Quantas vezes mais preciso te dizer isso?

— Isso não pode estar certo. As pessoas estão me vendo contra a minha vontade.

Sentindo-se derrotado pela teimosia do amigo, Nathaniel soltou um longo suspiro e se jogou de costas no chão empoeirado, fixando o olhar no céu límpido e entediante de segunda-feira; o clima perfeito para ir à praia ou invadir alguma piscina se não fossem os problemas paranoicos do outro.

Dylan, que até um minuto atrás andava de um lado para o outro sobre o terraço, parou e se virou para Nathaniel, sem conseguir expressar a preocupação que sentia pulsar e crescer como uma árvore dentro de si, com galhos pontudos se esticando para todas as direções possíveis.

— Devo falar com um superior?

— Não acha que está ficando um pouco paranoico? Você recebeu sua compensação não faz muito tempo, talvez o problema seja se acostumar — sugeriu, abanando a mão para espantar um pombo roliço que pousara próximo a si, bicando farelos levados pelo vento.

— Mas isso deveria ser tão natural quanto voar. Não foi assim para você?

— Bem, sim.

— E acontece que para mim não é natural. — Suspirou forte, alisando o cabelo em preocupação. — Por algum motivo, não é natural…

Ao ouvir Dylan sentar-se pesadamente no chão, Nathaniel decidiu virar o rosto para observá-lo mais atentamente, e, por algum motivo que não soube pôr em palavras, sentiu como se um bolo tomasse forma em sua garganta ao contemplá-lo: os olhos opacos fixos no tênis e a curva corcunda que suas costas formava ao fazê-lo, pesadas por algo que não conseguia enxergar.

Talvez Nathaniel estivesse ficando louco, pois podia jurar que preferia o amigo melancólico de sempre ao paranoico com vivos o olhando; seu lado deprimido possuía uma estranha normalidade, e ver o amigo naquele estado tão… atípico fazia Nathaniel lembrar que eles, justamente eles, embora Dylan muito duvidasse, pudessem ter algo humano quando se dispunha de tanto tempo livre, ainda que por um momento breve – isso inesperadamente o incomodou.

— O que aconteceu ontem? — Nate decidiu perguntar. — Talvez se você detalhar o que fez, eu perceba algo que te incapacitou de ficar invisível.

Com outro suspiro longo, Dylan passou a mão nervosamente pelos fios rebeldes, não menos agitado do que quando resolveu desabafar pela primeira vez.

— Acho que isso é culpa da estranha que ficou me olhando ontem. Tive a impressão que a conhecia, mas devo ter delirado; ela me olhou com tanta intensidade que pensei que estivesse me vendo, mesmo que eu não estivesse me deixando visível. E então… — parou, tentando encontrar palavras.

— E então?

— Não sei explicar, foi estranho quando nos encaramos, como se ela estivesse olhando para dentro de mim. — Tocou o peito, distraído.

As orbes negras de Nathaniel se arregalaram quase que imediatamente, surpresa e curiosidade refletindo em suas íris. Não era comum vivos chamarem a atenção do amigo, especialmente se tratando do sexo oposto, mas preferiu não atormentá-lo com piadas.

— Ela parecia confusa e surpresa, e talvez seja por eu ter tentando decifrar sua expressão, ou por tentar me lembrar dela, que me distraí e toquei a bochecha do homem. Depois ele se debateu por algum tempo e parou.

— E a loira?

— Saiu correndo. — Balançou a cabeça, deixando a mão cair. — Levantei do sofá assim que ela correu e fiquei olhando o homem por algum tempo, pensando nas memórias que não me vieram, o que também é estranho. Depois um grupo saiu da cozinha e o viu, então eu me afastei e observei eles tentarem alguma... pegadinha com o homem? Não sei, era o que parecia. Mas ele não reagiu.

— E você já estava visível nessa hora?

Não foi preciso responder, sua reação de colocar as mãos na cabeça e esconder os olhos respondia por si só.

— Eles me olharam e perguntaram se eu tinha visto alguma coisa, e no momento eu fiquei sem reação, é óbvio. Eles ficaram desconfiados e me pressionaram como se eu fosse suspeito de ter feito algo ruim. Isso foi... horrível.

Nathaniel acenou com a cabeça, entendendo afinal sua estranheza em ter contato com algo que não tinha há muito tempo – ou nunca teve. No caso do amigo, ter contato depois de quase dezesseis anos.

— Assim que saí, enquanto eles se distraíam chamando a ambulância e verificando se o homem respirava, alguém esbarrou em mim no quintal e se desculpou, foi quando percebi que eu estava visível, apesar de tentar com todas as minhas forças que isso não acontecesse.

— Então foi isso que aconteceu — murmurou, tão sério e pensativo que fizera Dylan erguer o olhar para si, sem entender. — Ah, só estou pensando alto. Você deve ter ido embora pouco antes da ambulância chegar. Várias pessoas ficaram olhando e comentando sobre o cara que estava sendo levado para a ambulância, e não pararam mesmo depois do dono da casa dizer que o cara tinha passado mal.

— Alguns humanos tendem a ser muito insensíveis com vidas alheias — resmungou, levantando o olhar para o céu sem nuvens e os pombos que voavam em bando acima de sua cabeça. 

Nathaniel negou com a cabeça.

— Não, ele passou mal.

— O quê? — Virou-se, confuso.

— Acho que a festa teria acabado se o cara estivesse morto.

— Mas então… se ele ainda estiver vivo, isso explica o motivo de eu não ter recebido minha foice — pensou alto, pondo-se sentado e pensativo. — E isso também explicaria essa… coisa estranha, como uma presença, atrás de mim. Eu fiz o trabalho pela metade e meus poderes se atrapalharam.

— Então se você matá-lo... — prosseguiu, igualmente pensativo.

— Terei controle sobre minha visibilidade — completou, cedendo ao impulso de pular de pé no lugar. — Preciso encontrá-lo para ter certeza.

O loiro afirmou com a cabeça e se levantou, sorrindo, feliz por ver o amigo voltar a exalar o ar tranquilo de quem não tem preocupações.

Aquele era o Dylan "normal", o que passava o tempo livre sentado em cima de prédios, divagando sobre coisas que Nathaniel não tinha quase nenhuma ideia do que eram.

Com o all star sobre o degrau da beirada do edifício, o ceifeiro respirou fundo e fechou os olhos, se deixando envolver pela névoa preta costumeira, porém menos densa que o normal. Quando Dylan tornou a abrir os olhos, um estranho arrepio estendeu-se por sua espinha ao notar o mundo ainda com a mesma noção de tamanho, grande, mas não tanto quanto em sua forma de ave.

Foi ao ver que suas mãos continuavam ali que ele teve certeza: continuava o mesmo humano de sempre.

— O que aconteceu agora? — perguntou, pulando de volta para dentro do terraço, estranhamente incomodado pelos próprios polegares. — Não acredito que também não posso mais mudar de forma.

— Suas asas discordam disso. — Nate observou, apontando.

Dylan virou a cabeça e deu um giro involuntário ao tentar enxergar as penas preto-azuladas das asas, mas somente ao batê-las ele teve consciência que elas estavam ali, presas tão naturalmente em suas costas que eram quase como um terceiro braço ou perna.

— Acho que o que aconteceu ontem te deu uma má-formação. Você é tipo "Um e Meio" agora. Entendeu? Porque… enfim… — Tossiu, entendendo pela expressão do outro que não estava para brincadeiras. — Você não pode voar desse jeito enquanto sua visibilidade estiver ativa. Os humanos não iriam encarar um homem com asas muito bem.

— E o que eu faço agora? — Frustrado, não se segurou em bagunçar o cabelo outra vez, como se isso fosse ajudá-lo a pensar em uma maneira de evitar os curiosos que com toda certeza o olhariam surpresos e admirados, voando sobre a cidade.

Incapaz de mudar de forma ou voar, sentia-se acorrentado por correntes ainda mais fortes.

— Você pode pegar um ônibus. Ou um táxi, sabe? Como os humanos — sugeriu Nate, tranquilo. — Mas não tenho dinheiro para táxi.

Dylan parou com a mão em meio aos cabelos e direcionou um olhar indecifrável para Nathaniel.

— Como os humanos? Com... os humanos?

 

 

 Alice ~

Alice nunca havia percebido o quanto seu carro era abafado até se ver novamente presa com Sophia e sua desafinada cantoria, ignorando os minutos passarem rapidamente enquanto lia as mensagens de Noah e a ruiva fingia não lembrar dos anúncios de início de ano programados para antes das aulas.

Sem conseguir mais suportar um "la da dee, la la la do", Alice jogou o celular dentro da mochila e saiu do carro batendo a porta com força, assustando a ruiva a tal ponto que parou de cantar e observou-a dar a volta no carro até chegar na sua porta.

— Estou saindo, estou saindo! — Apressou-se, sendo rápida em tirar o cinto quando Alice abriu sua porta num rompante, parecendo gigantesca. — Diabos, nem temos aula agora…

Ao travar o carro, as duas começaram a andar lado a lado, alheias ao contraste que tinham: um lado sonhador e despreocupado, e outro dedicado e cuidadoso. 

Enquanto uma se concentrava no celular e nas placas de sinalização, Sophia não se conteve em avisar de tudo que via dos arredores da área extensa de edifícios, fossem os jardins, os postes chiques ou o asfalto liso e tortuoso por onde as pessoas andavam; detalhes que faziam seus tempos de colégio ficarem mais distantes em suas memórias, os conflitos, os pequenos grupos, as alegrias e a raiva gritante por mais uma nota baixa em química.

— Já me imagino fazendo piquenique com meu namorado aqui — disse animada, girando enquanto continuava pelo caminho tortuoso. — Uvas, bolos, sanduíches, tudo debaixo da sombra de uma árvore e em cima de uma toalha xadrez.

Alice respondeu com um resmungo desinteressado, distraída demais para dar atenção aos assuntos aleatórios ou a carranca da ruiva com seu desdém.

— Você é muito chata. Acho que tenho que procurar um namorado para você.

— Não sei o que é pior, as indicações do Noah, esse nome popular que não aparece nas placas, ou você falando de meninos de novo.

A ruiva cruzou os braços, chateada, porém a ignorou e olhou ao redor, analisando as poucas pessoas que andavam por ali com os grandes olhos lilases brilhando como o de uma criança diante da vitrine de uma padaria.

De repente, uma luz a distância: um rapaz de dread e piercing caminhava em sua direção, estranhamente atraente em suas roupas largas.

O fato de que Alice definitivamente não gostaria de ser empurrada para um estranho, principalmente um longe do seu tipo ideal, foi mais que suficiente para fazê-la sorrir sugestivamente.

— Quer ver eu te arrumar um namorado em dois minutos? Pois bem. Ei, cara!

Não havia melhor jeito de ser discreta estando com Sophia, Alice percebeu, subitamente pálida e desesperada para se jogar atrás de um dos finos postes que nada iriam cobri-la da vergonha que pressentia estar prestes a acontecer. Seu coração batia tão rápido quanto os olhos do universitário ao erguerem-se para a voz.

— Sophia! Meu Jesus...

Chamar a ruiva também não adiantou de nada.

— Desculpa incomodar — começou ela, encontrando rapidamente os olhos descrentes atrás de si. Um sugestivo levantar de sobrancelhas quase tirou Alice do sério. — Mas você pode mostrar onde fica o Palácio? Ou qualquer coisa assim. Somos novas. Se você não estiver ocupado, é claro.

— Na verdade, eu estava indo para lá — respondeu, alheio ao que se passava na mente das garotas. — Anúncio, não é?

— Isso, apenas anúncio! — respondeu Alice, afobada, atraindo um olhar estranho do rapaz.

— Foi bem do nada, hein — comentou a ruiva, seguindo ao lado do homem e olhando para trás por um momento, para a amiga, apenas para rir da sua expressão brava e assustada. — Eu não sabia que acontecia uma coisa tão formal antes das aulas.

— Normalmente não, mas desta vez é especial, é por causa do que aconteceu na festa ontem.

— O que aconteceu ontem? — Alice tomou coragem de perguntar, quase – apenas quase – totalmente convencida que a situação anterior não passara de uma pequena vingança da garota.

— Um cara passou mal e tiveram que chamar a ambulância, a maior confusão. Alex, vocês não devem conhecê-lo.

— Nossas aulas foram adiadas por causa desse cara? — perguntou Sophia, soando insensível mesmo sem intenção.

— Ele é sobrinho de um dos professores. — Sorriu torto, fazendo brilhar o piercing dos lábios. — O diretor deve explicar melhor. Por agora vamos correr para não ficarmos com os piores lugares.

Mas era tarde demais. Apesar de apressarem o passo e correrem ao avistar o Palácio (o maior edifício do campus, conhecido como centro de anúncios, reuniões, palestras e eventos importantes), quando atravessaram o hall o salão já estava cheio de alunos, e nem mesmo Noah – que chegara minutos antes deles – fora capaz de pegar um bom lugar. Dada essa derrota, o quarteto se recolheu para os assentos do canto da fileira esquerda, o lugar onde deveria ter uma das – se não a pior – vista para o palco.

Vozes preenchiam o lugar enquanto os professores reunidos no palco conversavam entre si, uma confusão de conversas entre as pessoas que presenciaram ou não a ambulância levar o homem da festa.

— Achei que não chegariam com tempo — disse Noah ao acomodar-se do lado de Alice, lançando um olhar curioso para o cara que os acompanhava, e então fazendo um discreto sinal entre o cara e a ruiva.

— Também achei. — Negou com a cabeça. — Ainda não começou, não é? 

— Eles estão demorando bastante — murmurou, batendo o pé em impaciência. — Provavelmente prepararam um discurso sobre responsabilidade e maturidade, considerando o tanto de pessoas bêbadas ontem.

Os olhos lilases viraram para o amigo com uma desconfiança ameaçadora.

— Por que sinto como se você quisesse me dizer alguma coisa?

— Não deve ser tão simples — intrometeu-se o de piercing, chamando a atenção do grupo. — Estou aqui há algum tempo e a direção nunca armou nada muito grande para falar de nós. Pelo menos, nunca vi o professor Benjamin tão sério.

Alice teve vontade de perguntar mais sobre o assunto, subitamente curiosa sobre a família de um professor que sequer conhecia, mas foi interrompida pelo barulho da estática do microfone.

Um senhor na casa dos 50 anos, de óculos e bem vestido, provavelmente o reitor, ficou a frente do pedestal, enquanto os professores desfaziam a roda e se sentavam nas cadeiras enfileiradas atrás, uma ao lado da outra. Foi o tempo de um pigarreio para o salão ficar em silêncio, sob o olhar cansado por trás dos óculos de armação fina.

— Caros alunos, bom dia. Imagino que não seja agradável estar aqui quando alguns de vocês queriam estar conhecendo este novo ambiente, mas é necessário que ao invés de lhes darmos boas-vindas e bons estudos, comecemos o ano com notícias ruins — hesitou, pigarreando antes de continuar, com a voz tão cansada quanto o olhar: — Como diretor, eu gostaria de explicar o que nos trouxe aqui esta manhã, mas por insistência de um dos alunos, passarei o microfone para que ele possa subir ao palco e falar com vocês.

O olhar do reitor se dirigiu para a direita, aguardando o rapaz subir os quatro degraus até o palco e caminhar em sua direção com a cabeça erguida. Ele acenou e tomou seu lugar no microfone com outro movimento de cabeça.

— É o Jackson! — exclamou Sophia, surpresa, sem pensar antes de apontar o dedo. Ela continua doidinha por ele, Alice pensou, segurando a vontade de lembrar a garota das besteiras que havia aprontado na noite anterior.

— Bom dia, colegas, professores, diretor... — Sua voz era rouca. — Acho que todos me conhecem da festa de ontem, mas para quem não se lembra de mim, meu nome é Jackson. Fui o estudante responsável pelo local para a festa, e como principal organizador, me senti responsável em informá-los o que aconteceu quando a ambulância levou um dos convidados.

Murmúrios logo voltaram a surgir, relembrando o ocorrido, mas o rapaz não lhes deu atenção e continuou firmemente:

— Ele se chamava Alex e deveria começar os estudos hoje, mas alguns de nós o conheceram quando o professor Benjamin, seu tio, o trouxe numa visita para conhecer a universidade. E mesmo com pouca convivência percebi a pessoa legal e falante que ele era. Não, ele não está morto — disse rapidamente, erguendo a mão para que as pessoas se acalmassem. — Não está morto, mas está em coma por uso de narcóticos.

Desta vez os murmúrios aumentaram a tal ponto que começaram a ecoar pelo salão. Os alunos estavam surpresos e começaram a especular o pior: ele mexia com drogas; será que só usava ou vendia também? O professor Benjamin sabia disso?

A afobação era tão grande que as palavras de Jackson se perderam em meio às especulações.

Drogas. Álcool. Alice não pôde deixar de se questionar, lembrando-se especialmente do rapaz de moletom na festa, mas incapaz de completar o raciocínio, pois se o que vira realmente havia sido o que pensava que era, como Alex poderia continuar vivo? E se ele estava vivo, aquele estranho poderia realmente ter algo a ver com seu coma? A ideia a deixou assustada.

Se não fosse o de dread inclinando-se para perto do grupo com seu perfume afrodisíaco, poderia ter facilmente continuado presa em suas dúvidas até o fim do anúncio.

— Aquele é o professor Benjamin. — Apontou.

Com um acenar de cabeça, Jackson deu um passo para o lado e tocou o ombro do professor, dando espaço para tomar seu lugar no pedestal. 

As vozes pararam quase imediatamente quando Benjamin começou a falar:

— Sei que muitos estão curiosos, mas eu afirmo: meu sobrinho não era esse tipo de pessoa. E embora eu não tenha provas disso, há testemunhas de que alguém suspeito estava com ele no momento em que o encontraram, sem prestar qualquer ajuda ou atenção quando perceberam que havia algo errado; comportamento estranho de alguém que nenhum dos nossos reconheceu como aluno. 

Ele foi visto, Alice percebeu, subitamente apavorada. Isso só podia significar duas coisas: ele realmente atentou contra o universitário ou... ou... o que isso significava? Ele não podia ser um deles.

— Esta reunião está acontecendo não somente para que vocês torçam pela melhora do meu sobrinho, como também para que tenham cuidado de agora em diante, porque esse desconhecido pode ter intencionalmente prejudicado um dos nossos — continuou o professor.

— Este é um aviso para que vocês se lembrem que apesar de estarem em uma festa organizada por colegas de faculdade, ainda há perigo em bebidas abertas que oferecem a vocês — intrometeu-se uma das professoras, avançando sobre o microfone do pedestal. — A principal suspeita é a de que alguém o drogou através da bebida.

— Jackson e os outros organizadores da festa estão distribuindo cartões para quem quiser fazer uma visita rápida, pois achei mais seguro monitorar quem entra e sai do quarto. Se alguém se interessar, favor falar com eles. As aulas começarão mais tarde hoje, isso é tudo — encerrou Benjamin, dando as costas para os alunos.

Assim que a reunião se deu por encerrada, os alunos começaram a se levantar e sair, conversando sobre o caso de Alex e o quão abatido o professor Benjamin parecia estar, que tão logo voltou para a roda dos professores e recebeu batidas de apoio em suas costas.

Depois de todo o discurso, parecia que tudo tirado pelos alunos se tratava da mesma coisa: alguém com más intenções atentou contra o bem-estar de um aluno e, ao que tudo indicava, esse alguém poderia voltar a atentar contra outra pessoa.

Com as costas curvadas na cadeira, Alice começou a roer a unha. E se não fosse alguém realmente?

— Bem, é aqui que nos despedimos, pessoal — anunciou o do piercing, lançando um olhar rápido para as garotas e o rapaz que as acompanhava.

— Obrigada por nos acompanhar, é…?

— Henry. — Acenou para Sophia. — Nos vemos por aí, quem sabe? Na próxima festa.

Alice soltou uma risada engasgada, incrédula de que houvesse qualquer comemoração tão cedo e, mesmo que tivesse, sabia exatamente o que faria: ficaria em casa, longe de pessoas bêbadas, estranhas e perigosas.

Mais importante que festas, havia um assunto que ela sentia o dever de resolver caso quisesse ter uma boa noite de sono.

— Vou pegar um dos cartões para visitar o Alex — avisou, levantando-se com pressa mesmo ao ver que não eram muitas as pessoas que cercavam o veterano. — Quero vê-lo de perto.

— Então nos separamos aqui. Vou para o meu departamento, não quero chegar perto do Jackson tão cedo. Noah também deve procurar o seu prédio, certo?

O cacheado acenou positivamente.

— Nos vemos no almoço.

Fazendo um último aceno positivo, Alice virou de costas, rumando o grupo de pessoas que pegavam e distribuíam cartões e, ao mesmo tempo, embora tentasse evitar a todo custo os pensamentos pessimistas do que viria a acontecer a partir dali, era tomada pelo único conhecimento do qual não tinha dúvidas: Alex não sobreviveria.

Só restava torcer para ter sido tudo uma infeliz coincidência.

 

 

~ Dylan --

— Eu sabia que não deveria ter te escutado — murmurou, sentindo-se enjoado com o pouco espaço do veículo. — Vamos descer aqui, por favor.

— Qual é, eu tive muito trabalho para te convencer, e ainda concordei em te acompanhar. Quarenta minutos de discurso motivacional! Teremos que andar mais um monte de quarteirões se descermos aqui — disse nervoso, porém não surpreso. — Tem certeza, Dylan?

— Nunca tive tanta certeza — reforçou, limpando o suor invisível da testa.

Alguns metros à frente, o ônibus parou e Dylan desceu com os ombros encolhidos e as mãos trêmulas nos bolsos do moletom, logo atrás do amigo loiro que o observava calado, atento às suas reações.

O dia estava correndo terrivelmente lento e entediante para Nathaniel, com imprevisto atrás de imprevisto na sua rotina, mas não podia negar que andar com Dylan visível ao seu lado fazia tudo ter um pouco mais de emoção, como quando estavam no ponto de ônibus há alguns minutos e Dylan se surpreendeu com uma senhora que lhe perguntou qual ônibus deveria pegar para chegar à casa da filha que se mudara. A inexperiência do amigo com veículos públicos, ruas e interações sociais havia feito com que ele ficasse surpreendentemente trêmulo das pernas, arrancando risos de Nathaniel.

Se o problema com a senhora do ônibus fosse o único, Nathaniel já estaria satisfeito de ter o acompanhado em sua "aventura humana", mas a chave de ouro do dia havia acontecido depois que finalmente entraram no ônibus, quando Nathaniel pensou precisar segurá-lo após uma criança chocar-se contra si enquanto corria pelo corredor entre os bancos, mas não pela força do impacto, e sim porque Dylan parecia que iria desmaiar de pavor!

Engraçado por um lado; traumatizante por outro.

— Puta que pariu, rapazinho, você só dá trabalho — comentou o loiro, propositalmente repetindo o apelido que a idosa usara para chamar sua atenção.

— Cala a boca — resmungou.

— Não estressa, cara, essas coisas acontecem. Só aconselho consertar a postura. Você é o Corcunda de Notre Dame ou o peso dos seus pecados tá de mais?

— Tem certeza que se eu encostar em alguém não tem problema? — perguntou em murmúrio, temeroso ao se aproximar e olhar as pessoas que passavam ao seu lado na calçada, mais perto do que estava acostumado.

— A menos que seja um cara forte e mal-encarado. — Deu de ombros.

Mesmo sem ter certeza das palavras de Nathaniel, Dylan afirmou com a cabeça e relaxou os ombros, adotando uma postura "normal", ainda que parecesse suspeito com a cabeça baixa sob o capuz.

Tudo pelo sossego de não ser visto.

Depois de pouco mais de trinta minutos de uma caminhada sofrida e cuidadosa para não deixar ninguém irritado – da parte de Dylan, obviamente –, tendo que andar em uma distância tão próxima de desconhecidos, foi impossível deixarem de suspirar de alívio ao avistar as portas automáticas do hospital. De repente parecia que nada mais importava, nem os carros estacionados próximos à entrada, nem o monte de janelas de onde alguns rostos olhavam, ou as pessoas que entravam e saíam pela porta. 

Saber que em breve voltaria a sua vida "invisível" inesperadamente fez que o corpo de Dylan reagisse de uma forma feliz: um sorriso – da sua própria maneira, Nate sabia, pois aquilo certamente não poderia ser considerado um; Dylan lembrava a um gato ao levantar o lado da boca daquele jeito.

Atrás do amigo, Nathaniel se surpreendeu ao ter de apertar o passo para alcançar o andar rápido dele, que passou pela porta quase como se tivesse recebido uma ligação urgente do hospital.

— Ei, ei, ei, vai com calma — alertou, o impedindo ainda na entrada. — Ainda não sabemos se ele está aqui, e não esquece que você pode ser visto.

— Eu sinto ele, ele está aqui.

— Tá, mas ele não vai sair correndo. Tenta ficar calmo — disse seriamente, observando as sobrancelhas de Dylan se franzirem antes dele bufar, ansioso.

— O que vamos fazer?

— Tira o capuz e me espera. Eu vou pedir informação para a recepcionista. Qual o nome dele?

— Alex Parker.

O loiro afirmou com a cabeça e se distanciou, dando uma olhadela rápida para trás e levantando o polegar.

Mesmo estando mais do que desconfortável naquele lugar cheio de pessoas estranhas, Dylan fez o que Nathaniel disse e se sentou com a mão direita sobre os fios rebeldes, ciente de que mesmo com a ajuda do loiro em deixar sua aparência menos "abatida" ele continuava abalado aos olhos dos outros. Não que sua aparência lhe importasse, sempre vestia roupas pretas não pelo seu trabalho, mas por achar que a falta de cores combinava com si; neutro como branco, mas melancólico demais para tal cor. Ali, porém, tinha a impressão de estar usando preto demais, afinal, aquele era um hospital, e ele sabia mais do ninguém o que preto significava.

Essa cor definitivamente não é apropriada.

Pensando sobre a imagem que passava no momento, quase não percebeu estar sendo observado. Levantou o olhar para ter certeza de que sua cabeça não estava criando paranoias e encontrou olhos castanhos o encarando descarada e repetidamente.

Ela estava sentada em um banco do outro lado da recepção, sozinha, mas ao perceber que o rapaz notou seu olhar, rapidamente desviou os olhos para a mochila sobre o colo, envergonhada.

O que a mulher da festa faz aqui?, perguntou-se, desviando rapidamente o olhar hesitante para as mãos sobre o colo. É melhor eu ficar longe antes que outra coisa ruim aconteça.

— Estávamos certos, seu cara está vivo. — Nathaniel anunciou em voz baixa ao se aproximar, abaixando-se para garantir que ninguém além do amigo o ouvisse. — Podemos visitá-lo agora, se quiser.

Dylan levantou o olhar para Nathaniel, aliviado.

— Depois dessa, não quero saber de festa nenhuma — murmurou, arrancando risadas do amigo, este que sequer notou que ele observava a loira pelo canto do olho, conversando com um grupo de três pessoas que acabara de voltar do balcão da recepção.

Ao chegarem na recepcionista, a mulher levantou o olhar do monitor e ajeitou os óculos.

— Alex, certo?

— Sim. — Nathaniel respondeu, não dando importância para o rosto de Dylan estar virado para uma direção qualquer.

— E vocês são da universidade, imagino — disse simplista, checando algo no computador. — Agora ele não tem nenhuma visita. Só preciso ver o cartão de acesso.

— Desculpa? — Piscou, confuso. — Ele não é uma celebridade, é?

— Foi uma exigência feita pelo tio do rapaz. Parece que alguém tentou matá-lo. Vocês não sabiam? Todos os universitários vieram com um cartão. — Franziu as sobrancelhas, desconfiada.

Visto que sobrava para si contornar a situação, pois Dylan havia afundado a cabeça entre os ombros e não parecia disposto a ajudá-lo na conversa, Nathaniel abriu a boca, ainda que pensando em uma justificativa. Droga!

Não tinha a menor ideia de como poderiam entrar agora.

— Licença, mas eles estão comigo.

Nathaniel virou o rosto, surpreso ao ser interrompido por uma bonita loira que rapidamente colocou um cartão sobre a mesa da recepcionista, chamando sua atenção.

A mulher tão logo pegou o cartão e o analisou, devolvendo-o.

— O uso de cartão é individual.

— Não pode pegar leve só desta vez? Supostamente deveríamos estar em aula. Está todo mundo estressado e com medo — Nathaniel interviu, aliviado ao vê-la suspirar de cansaço.

— Vou aliviar só desta vez. O Alex está no terceiro andar, quarto 155.

Murmurando um agradecimento quase inaudível, Alice foi a primeira a se movimentar em direção ao elevador. Nathaniel não pensou duas vezes antes de segui-la, sem perceber a breve hesitação do amigo.

Juntos, os três não disseram uma palavra ao pegar o elevador, se contentando em ficar cada um com o próprio pensamento enquanto olhavam para a parede de vidro que dava visão da recepção, se distanciando conforme subiam. Entretanto, ironicamente, seus pensamentos estavam todos voltados para as pessoas ali dentro: enquanto Dylan pensava na coincidência que era estar no mesmo lugar que a garota da festa, Nathaniel pensava na boa hora em que a garota havia chegado, e Alice certamente sentia-se uma idiota por ajudar dois estranhos a entrar no quarto de Alex.

Assim que o elevador parou e as portas se abriram, Alice não esperou três segundos e avançou em direção ao corredor quase vazio. Não sabia se era o ambiente hospitalar ou o medo de ter dois estranhos – possivelmente relojoeiros – a seguindo, mas queria acabar logo com aquilo e não voltar a vê-los nunca mais.

Mas é claro que Nate sendo... bom, o Nate, não tardou a encurtar a distância entre eles, o que a deixou arrepiada quando ouviu sua voz gentil ao seu lado:

— Foi muito legal você ter nos ajudado a entrar, loira. O que acha de tomarmos um café como agradecimento? — perguntou, abrindo um sorriso simpático.

— Não gosto de café.

Dylan teve vontade de rir da resposta curta e da cara de incredulidade do amigo, mas tudo que saiu fora um sorriso de gato, antes de Alice apertar o passo e fazer com que Nathaniel voltasse a caminhar ao lado do amigo, amuado pela resposta.

Ainda não. Dylan contou mentalmente: Um, dois, três... e parou, ainda com um sorriso enquanto observava o amigo se apressar em tentar uma nova aproximação; como previsto da sua personalidade determinada a fazer com que as pessoas gostassem de si.

— Pode ser um suco ou um sorvete, sabe? Não precisa...

— Escuta... — interrompeu ela, parando de tal forma que Nate assustou-se ao quase se baterem. Sentia ser a hora de tirar suas dúvidas, mas não conseguia parar de tremer. — Eu o vi. Eu sei o que vocês são, estão aqui para terminar o trabalho. 

— Trabalho? O quê? — Nathaniel riu, surpreso e nervoso. — Mas do que está fa...

— Vocês são Relojoeiros. Quero dizer, ceifadores de almas — cortou-o, com o tom de voz sério e ainda sem se virar, temendo que sua expressão fizesse os dois perceberem o quanto a afirmativa e o lugar vazio a deixavam apreensiva.

Alice respirou fundo, juntando toda sua coragem, e se virou, agradecendo internamente pelo corredor estar vazio.

— Eu só quero ter certeza do que vi ontem, saber que não sou louca. — Lançou uma olhadela rápida para Dylan, sentindo um arrepio passar por seu corpo ao contemplá-lo, uma mistura de medo com uma familiaridade estranha. — Vocês não podem ser amigos do Alex, porque não tem cartão, e é difícil pensar que vocês vieram simplesmente jogar tempo fora.

Nathaniel abriu a boca, chocado, mas nada o surpreendeu mais do que o aperto que sentiu no braço. Ele olhou para Dylan, confuso pelo toque, e foi como se pudesse ler seus pensamentos: Não nos entregue para uma humana, especialmente para ela.

Só pode ser a garota que ele encontrou ontem, concluiu por fim, voltando a olhar a loira com um sorriso armado.

— Não sei o que você quer dizer com isso de ceifador e Relojoeiro, mas em uma coisa você está certa — respondeu, tão sério que fez ambos Dylan e Alice engolirem em seco, apreensivos. — Eu adoraria perder meu tempo tomando um café com você, não literalmente, mas com você, sim.

Alice corou, envergonhada e irritada com si mesma por estar agindo novamente como uma louca. Pior: agindo como uma louca na frente de estranhos e possivelmente alunos da mesma universidade que si. Não queria nem imaginar se essa história vazasse e ela se tornasse alvo de boatos e olhares zombeteiros; sua vida universitária estaria marcada e a fase difícil que passou nos últimos meses do ensino médio se repetiria por mais cinco anos, ou até um assunto mais bombástico se espalhar na boca dos estudantes.

Estou fazendo tudo errado de novo, praguejou, pensando rápido enquanto tentava controlar as pernas bambas e escondia as mãos trêmulas atrás das costas.

— Ha ha, você é bom em responder piadas. Me desculpe caso os tenha chateado, pensei que seria bom descontrair agora… pelo Alex.

— Imagina, não se pode chorar o tempo todo por coisas assim. O importante é que ele está vivo, não é, Dylan? — Bateu nas costas do amigo, procurando chamar sua atenção. — Mas ele vai melhorar, tenho certeza.

Dylan franziu as sobrancelhas levemente ao ouvi-lo, mas nada disse – ainda tentava digerir o susto que o loiro lhe deu.

— Bom, agora eu tenho que ir. Universidade e tal — desconversou, mentalmente desesperada para se afastar dos dois rapazes enquanto ainda era tempo.

— Oh, que pena. Eu até a acompanharia, mas Alex precisa de apoio e...

— E eu entendo! — disse rápido, recuando. — Ele está nesse quarto. Enfim, tenham um bom dia.

— Igualmente.

Alice queria sair correndo para o elevador e nunca mais voltar a ver os dois, e teria cedido ao desespero se não fosse o choque do desconhecido galante lhe tomando a mão e beijando as costas dela de forma lenta e suave, como um cavalheiro; sua tática para amolecer corações difíceis.

— Até outro dia — disse ele, sorrindo ladino.

A loira afirmou com a cabeça e rapidamente se afastou em direção ao elevador, sob os olhares atentos da dupla de rapazes que a observaram ainda que de costas para eles, esperando o elevador.

Sem esperá-la sumir andar abaixo, Dylan abriu a porta número 155 e entrou apressado, puxando um surpreso Nathaniel. Quase pôde sentir seu coração voltar a bater junto à porta.

— Isso realmente me surpreendeu! É ela a loira que você viu na festa, não é? — perguntou embasbacado, observando com olhos arregalados o amigo ir em direção a maca onde Alex repousava, alheio a conversa. — Ela até que é bonita, mas não a ponto de você ficar de boca aberta. Você a conhece?

— Esta é a segunda vez que nos vemos.

— Mas ela parecia te conhecer, não acho que tenha nos ajudado por interesse em mim. Ela sabe sobre nós.

— Seja o que for, não quero saber nada sobre ela. Depois do que aconteceu, só quero distância dela.

— Depois de babar na garota, não sei se isso é possível — tirou sarro.

Dylan direcionou sua atenção para o rosto do rapaz em coma, a pessoa que havia lhe trazido problemas inimagináveis, e suspirou novamente, porém aliviado por poder finalmente encerrar o problema que tanto o incomodou e o perturbou. Poderia finalmente voltar para seu cotidiano. 

Por outro lado, Nathaniel demonstrava insatisfação com sua atitude.

— Falando sério, você não ficou nenhum pouco curioso para saber quem ela é e por que nos vê?

— Quanto mais longe dos humanos, melhor, ainda mais se forem do tipo dela.

— Não respondeu minha pergunta — insistiu, certo de que, pela primeira vez desde que o conheceu, Dylan havia se interessado em algo que não fosse observar os outros vivendo suas vidas, mas foi ignorado.

Sem se importar com a expectativa de Nate, voltou a beijar os próprios dedos e os direcionou para a testa do paciente, mas ao contrário da primeira vez, conseguiu acertar os dedos na testa do rapaz. 

A sala foi preenchida quase imediatamente pelo som agudo do eletrocardiograma, indicando a interrupção dos batimentos cardíacos.

Acabou. Alex estava, finalmente e definitivamente, morto.


Notas Finais


Música cantada pela Sophia (ai, essa cantora): https://youtu.be/3cBuQ0PuOcY

Vou falar com vcs, ô cara q custa morrer, hein? Teve q lavar dois beijinhos
Vejo vcs possivelmente em 2020


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